curso de direto penal - código nacional de trânsito lei seca
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Curso de Direto Penal - Código Nacional de Trânsito Lei Seca Professor Luiz Flávio GomesAulas exibidas nos dias 25, 26, 27, 28 e 29 de agosto de 2008
LEI SECA: ACERTOS, EQUÍVOCOS, ABUSOS E IMPUNIDADE
LUIZ FLÁVIO GOMES
Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito
penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi
Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001).
Diferença entre a infração administrativa (art. 165) e a penal (art. 306)
O art. 165 do CTB, ao disciplinar a infração administrativa de embriaguez ao
volante, diz: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância
psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima; Penalidade - multa
(cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida
Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e
recolhimento do documento de habilitação”.
O art. 306, ao cuidar do delito de embriaguez ao volante, estabeleceu o seguinte:
“Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por
litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer
outra substância psicoativa que determine dependência”.
Infere-se o seguinte: (1) duas são as condutas incriminadas no art. 306: (a)
conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por
litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas e (b) conduzir veículo
automotor, na via pública, sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que
determine dependência; (2) a primeira conduta não pode ser interpretada como infração
de perigo abstrato (sim: é uma infração de perigo concreto indeterminado, porque exige
uma condução anormal, ou seja, exige o “estar sob a influência de álcool” + direção
anormal).
Se ambas exigem “estar sob a influência”, qual é a diferença entre elas? Temos
que cuidar do assunto por partes.
No que diz respeito à embriaguez decorrente de álcool depreende-se o seguinte:
por força do novo art. 276 qualquer concentração de álcool por litro de sangue
sujeitaria o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código (ou seja: pela
literalidade do dispositivo, ocorre infração administrativa com qualquer concentração
de álcool no sangue). A infração penal, por seu turno, exige seis decigramas ou mais de
álcool por litro de sangue (art. 306). O índice de tolerância (pelo que se tem noticiado)
é de 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue.
Conclusão: até 0,2 decigramas: margem de tolerância (fato atípico); de 0,2 a 0,6
decigramas: infração administrativa (art. 165). Igual ou mais que seis decigramas:
infração penal (art. 306), se o agente dirigia o veículo de forma anormal (zig-zag, v.g.),
colocando em risco a segurança viária. E se o sujeito dirigia corretamente? É pura
infração administrativa.
A primeira diferença entre a infração administrativa e a penal, como se vê, está
no nível de concentração de álcool no sangue. O fator distintivo (por enquanto) é
meramente quantitativo. A quantidade de álcool é o primeiro critério diferenciador.
A segunda diferença está no seguinte: o crime (do art. 306) exige não só um
condutor embriagado (com 0,6 decigramas, no mínimo) senão também uma condução
anormal (que coloca em risco a segurança viária). E se o sujeito dirigia com menos de
seis decigramas de álcool por litro de sangue, porém, normalmente (corretamente) –
essa, aliás, é uma situação absolutamente corriqueira? Trata-se da infração
administrativa do art. 165, visto que ela exige (só) “estar sob a influência de álcool” (ou
seja: uma condição pessoal alterada). Não se trata de infração penal porque a
concentração era menos de seis decigramas.
Toda quantidade de álcool no sangue já é suficiente para a infração
administrativa? Não. A resposta está no parágrafo único do novo art. 276, que diz:
“Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos
específicos.” Quantidade insignificante de álcool no sangue (decorrente do consumo de
um bombom com licor, por exemplo) não autoriza nem sequer a configuração da
infração administrativa. A polícia vem tolerando o índice de 0,2 decigramas.
E se o sujeito tinha concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas,
mas dirigia seu veículo normalmente (corretamente, sem nenhum deslize viário)? Não
se trata de infração penal (art. 306). Cuida-se, sim, de infração administrativa (art. 165).
O crime exige embriaguez + direção anormal (risco concreto para a segurança viária).
Risco concreto (direção em zig-zag, v.g.). Em síntese: condutor anormal + condução
anormal.
Não se admite presunção contra o réu (se estava bêbado, automaticamente se
presumiria que cometeu infração penal). Direção normal, ainda que com seis
decigramas ou mais de álcool, não é infração penal. É administrativa. A infração
administrativa não exige direção anormal. Só o “estar sob a influência”. Isso é perigo
abstrato. Que se admite para a infração administrativa, não para a penal.
No que concerne à segunda parte do art. 306 (que coincide com a segunda parte
do art. 165) temos o seguinte: tanto a infração administrativa (art. 165) como a infração
penal (art. 306) exige dirigir “sob a influência de outra substância psicoativa que
determine dependência”. Estar “sob a influência” no âmbito administrativo só exige
uma coisa: um sujeito alterado em razão da substância que ingeriu; no âmbito penal
exige duas coisas: estar alterado + direção anormal.
Conclusão final:
1. embriaguez por álcool ou outra substância em quantidade absolutamente
insignificante (a polícia vem adotando o seguinte critério: menos de 0,2 decigramas de
álcool por litro de sangue é insuficiente para configurar a infração administrativa): fato
absolutamente atípico (ou seja: não é infração administrativa nem penal);
2. embriaguez por álcool: de dois a seis decigramas por litro de sangue (direção normal
ou anormal): infração administrativa (art. 165); com seis decigramas ou mais e, além
disso, direção anormal: infração penal (art. 306); com seis decigramas ou mais, mas
com direção normal: infração administrativa (art. 165).
3. intoxicação por outras drogas: com quantidade absolutamente insignificante: conduta
atípica (não é infração penal nem administrativa); com direção normal (o agente estava
drogado, mas dirigia corretamente): infração administrativa (art. 165); com direção
anormal (agente drogado + direção anormal – em zig-zag, v.g.: infração penal - art.
306).
Não pode haver crime de perigo abstrato
O art. 306 do CTB não pode ser interpretado (secamente) como delito de perigo
abstrato. O perigo abstrato é válido somente no campo administrativo. É inadmissível
no âmbito do Direito penal (porque viola o princípio da ofensividade - cf. GOMES,
L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007,
p. 464 e ss.). A ofensividade autoriza a antecipação da tutela penal para campos prévios
(Vorfeldkriminalisierung), ou seja, permite o delito de perigo, mas sempre deve ser o
concreto (não o abstrato). Nisso é que reside uma das diferenças entre a infração
administrativa e a penal. Eventual interpretação literal da primeira parte do art. 306
retrataria exemplo de administrativização do Direito penal. Confundiria Direito
administrativo com Direito penal.
Contentar-se, no âmbito penal, com o simples perigo abstrato significa dar curso
ao abominável Direito penal do inimigo, que pune o agente sem o devido respeito às
garantias mínimas do Direito penal (estando, dentre elas, o princípio a ofensividade). O
Direito penal nazista fez muito uso dessa técnica legislativa consistente na infração de
perigo abstrato (ou seja: mera desobediência à norma, sem nenhuma preocupação com
a ofensa ao bem jurídico). Não podemos repetir o que historicamente se tem como
abominável. Não podemos conceber como válida uma interpretação nazista do Direito
penal.
Conclusão: ambos os dispositivos (arts. 165 e 306) exigem o “estar sob a
influência” de álcool ou outra substância (de acordo com nossa interpretação fundada
na razoabilidade). O art. 306, também em sua primeira parte, destarte, não é um delito
de perigo abstrato. Exige mais que uma condição (o estar bêbado), além disso, a
comprovação de uma direção anormal (zig-zag, v.g.), que espelha o chamado perigo
concreto indeterminado (ou seja: basta a comprovação da direção anormal, não se
requerendo uma vítima concreta).
Aspectos probatórios controvertidos
O artigo 277 do CTB cuida dos meios probatórios que podem conduzir à
constatação da embriaguez ao volante. Por força da Lei 11.705/2008, agregou-se ao art.
277 um novo parágrafo (§ 2º) que diz o seguinte:
“§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo
agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca
dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”.
O art. 277 diz: “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de
trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a
influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou
outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo
CONTRAN, permitam certificar seu estado”.
O § 1o desse mesmo artigo diz: “Medida correspondente aplica-se no caso de
suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos”.
As três formas clássicas de se provar a embriaguez ao volante são: (a) exame de
sangue; (b) bafômetro e (c) exame clínico. No novo § 2o o legislador ampliou a
possibilidade da prova, falando em outras provas em direito admitidas.
A prova da embriaguez não se restringe, mais, às clássicas formas. Outras
provas em direito admitidas podem ser produzidas, para que sejam constatados os
notórios sinais de embriaguez, a excitação ou o torpor apresentado (s) pelo condutor.
Por exemplo: prova testemunhal.
Em matéria de prova da embriaguez há, de qualquer modo, uma premissa básica
a ser observada: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de não-
autoincriminação, que vem previsto de forma expressa no art. 8º da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, que possui valor constitucional – HC 87.585-TO –
cf. GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valério, Comentários à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, São Paulo: RT, 2008). O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo
ou parte dele para fazer prova (contra ele mesmo). Em outras palavras: não está
obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro (porque essas duas
provas envolvem o corpo humano do suspeito e porque exigem dele uma postura ativa).
Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos
Médico-Legais) ou a prova testemunhal.
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de
sangue e bafômetro. Mas não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse
exame? Disso cuida o § 3º (novo) que diz:
“§ 3o (do art. 277). Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas
estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a
qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.”
A leitura rápida desse dispositivo pode levar o intérprete a equívocos. O texto
legal disse mais do que podia dizer. Veremos em seguida. Na prática, alguns delegados
estão falando em prisão em flagrante por desobediência (quando houver recusa ao
exame de sangue, ao bafômetro ou ao exame clínico). Não é isso, propriamente, o que
diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Como se vê, o correto não é falar em
desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165.
Quando elas incidiriam? Pela letra da lei, quando o condutor recusar a se
submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do artigo. Na verdade, não é
bem assim (a lei disse mais do que devia). Note-se que todo suspeito tem direito de não
produzir prova contra si mesmo. Logo, não está obrigado a fazer exame de sangue ou
soprar o bafômetro. Nessas duas situações, por se tratar de um direito, não há que se
falar em qualquer tipo de sanção (penal ou administrativa).
Conclusão: o § 3º que estamos comentando só tem pertinência em relação ao
exame clínico. A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não está sujeita a nenhuma
sanção. Quando alguém exercita um direito (direito de não-autoincriminação) não pode
sofrer qualquer tipo de sanção. O que está autorizado por uma norma não pode estar
proibido por outra.
Lei seca gera impunidade
As polêmicas geradas pela famosa “lei seca” (Lei 11.705/2008) ainda não
terminaram. Os objetivos fixados pelo legislador foram: 1) estabelecer alcoolemia zero
(no que diz respeito à infração administrativa); 2) tratar o embriagado com rigidez
máxima. A fiscalização severa logo após a edição da lei conseguiu mobilizar a
sociedade. Isso está correto e todos nós apoiamos, desde que não haja abusos. Na parte
criminal, entretanto, como bem ponderou Aldo de Campos Costa (no portal
www.lfg.com.br) a nova lei é extremamente benéfica aos motoristas embriagados.
A questão é simples: antes do advento da nova lei o crime de embriaguez ao
volante (art. 306 do CTB) não exigia nenhuma taxa de alcoolemia. Bastava a existência
de um condutor anormal (dirigir sob a influência do álcool) e uma direção anormal (que
coloca em risco a segurança viária). Agora, depois da Lei 11.705/2008, só existe crime
quando a concentração de álcool no sangue atinge o nível de 0,6 decigramas.
Conclusão: todas as pessoas que estão sendo processadas ou mesmo que já
tenham sido condenadas pelo delito do art. 306 cometido até o dia 19.06.08, desde que
tenham sido surpreendidas com menos de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue
acham-se “anistiadas”. Todas! Houve abolição do delito. Em outras palavras: o que
antes era delito se transformou em infração administrativa. Nenhuma conseqüência
penal pode subsistir para esses motoristas. A lei seca trouxe lá sua surpresa: na parte
criminal, beneficiou todos os processados ou condenados.
Se a nova lei vai alcançar seu objetivo de reduzir o número de mortes no Brasil
não sabemos, o que é certo, desde logo, é que ela (pela sua redação completamente
equivocada) veio beneficiar milhares de motoristas embriagados que foram condenados
ou que estão sendo processados pelos delitos que cometeram.
Mas a famosa “lei seca” não beneficiou somente os que cometeram delito até o
dia 19.06.08. Ela é, também, extremamente favorável aos que vão delinqüir daqui para
frente. Vejamos: as duas únicas formas correntes de se comprovar no Brasil a taxa de
dosagem alcoólica são: exame de sangue e bafômetro. A esses dois meios de prova o
motorista suspeito não está obrigado a se submeter, porque ninguém é obrigado a ceder
seu corpo para fazer prova contra si mesmo (princípio da não auto-incriminação).
E certo que existem outras formas de se comprovar a embriaguez: exame
clínico, fotos, prova testemunhal. Mas nenhum desses meios consegue definir (com
precisão) a quantidade de álcool no sangue. Logo, se o motorista recusa o exame de
sangue e o bafômetro (o que é um direito seu, diga-se de passagem, não podendo ser
punido nem sequer administrativamente por essa recusa), ficará praticamente
impossível ao poder público comprovar o nível de dosagem alcoólica no motorista.
Conclusão: sem a prova da materialidade do delito nem sequer prisão em
flagrante pode haver. De outro lado, sem tal materialidade, não há como comprovar a
existência do crime. Havendo prova de que o agente estava bêbado mas não se
comprovando o nível de dosagem alcoólica, pune-se o sujeito pela infração
administrativa, mas não há que se falar em delito.
A lei seca, como se vê, teve a virtude de sacudir a polícia e, em conseqüência, a
sociedade brasileira. Na sua parte administrativa (que é muito boa), desde que
combinada com a severa fiscalização que está acontecendo, ela pode gerar uma nova
cultura, a de jamais dirigir depois de beber. Tudo isso é muito positivo. Na sua parte
criminal, no entanto, foi um desastre: beneficiou não só os delinqüentes pretéritos como
criou uma forma de “anistia” para todos os criminosos futuros.
A intenção do legislador foi a de endurecer o Código de Trânsito contra todos
os motoristas bêbados (que são responsáveis pela maior parte das 35 mil mortes por
ano no Brasil). Mas uma coisa é o que o legislador pretende fazer e outra muito distinta
é o que ele escreve nas leis. A técnica legislativa no nosso país é extremamente
deficiente.
Exageros e equívocos na interpretação da lei seca
A tragédia gerada no Brasil pelos acidentes de trânsito está devidamente
quantificada: cerca de 35 mil mortes por ano, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e
22 bilhões de reais por ano só para cobrir os gastos com os acidentes das estradas
federais. Política de tolerância zero: essa é a bandeira da Lei 11.705/2008. Mas estão
ocorrendo muitos exageros, equívocos e abusos.
1º) Quantidade ínfima de álcool no sangue deve ser desconsiderada. Uma
pessoa chegou a ser flagrada depois de ter ingerido dois bombons com licor. Isso é um
exagero. Por mais que se queira evitar tantas mortes no trânsito brasileiro (mais de 35
mil por ano), não pode nunca a administração pública atuar com falta de razoabilidade.
Quem usa um anti-séptico bucal não pode sofrer nenhum tipo de sanção. A infração
administrativa do art. 165 exige estar sob a influência do álcool ou outra substância
psicoativa.
Nem toda quantidade de álcool no sangue é suficiente para configurar a infração
administrativa do art. 165. O parágrafo único do novo art. 276 diz: “Órgão do Poder
Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” Nesse
caso o sujeito deve ser liberado e o carro também. Não se aplica multa e não se fala em
prisão. Não é necessário que uma terceira pessoa venha conduzir o veículo.
2º) Um grave equívoco que deve ser evitado consiste em prender em flagrante o
sujeito todas as vezes que esteja dirigindo com seis decigramas ou mais de álcool por
litro de sangue (0,3 no bafômetro – que equivale a dois copos de cerveja). A existência
do crime do art. 306 pressupõe não só o estar bêbado (sob a influência do álcool ou
outra substância psicoativa), senão também o dirigir anormalmente (em zig-zag, v.g.).
Ou seja: condutor anormal (bêbado) + condução anormal (que coloca em risco concreto
a segurança viária).
Não se pode nunca confundir a infração administrativa com a penal. Aquela
pode ter por fundamento o perigo abstrato. Esta jamais. O Direito penal atual, fundado
em bases constitucionais, é dotado de uma série de garantias. Dentre elas está a da
ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa (concreta) ao bem
jurídico protegido. Constitui grave equívoco interpretar a lei seca “secamente”. Não há
crime sem condução anormal. A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um
abuso patente, que deve ser corrigido prontamente pelos juízes.
Em síntese: quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue,
com menos ou mais que seis decigramas) mas não chega a perturbar a segurança viária,
não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante. O agente, nesse
caso, sofre as conseqüências administrativas previstas no art. 165 do CTB (multa,
suspensão da habilitação etc.), mas não pode ser preso em flagrante, não há que se falar
em fiança etc. Claro que o carro fica apreendido até que um terceiro, sóbrio, venha a
conduzi-lo. Mas nem sequer é o caso de se ir à Delegacia de Polícia.
3º) A prova da embriaguez se faz por meio de exame de sangue ou bafômetro
ou exame clínico ou outros meios. A premissa básica aqui é a seguinte: ninguém está
obrigado a fazer prova contra si mesmo. O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo
ou parte dele para fazer prova. Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue,
não está obrigado a soprar o bafômetro. Havendo recusa, resta o exame clínico (que é
feito geralmente nos Institutos Médico-Legais).
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de
sangue e bafômetro. Não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse
exame? Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por
desobediência. Isso é equivocado. Não é isso o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB.
Sua redação é a seguinte: “Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas
estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a
qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”.
Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções
administrativas do art. 165 (e mesmo assim, somente quando houver recusa ao exame
clínico). A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não pode sujeitar o motorista a
nenhuma sanção, porque ele conta com o direito constitucional de não se
autoincriminar.
4º) A fiscalização intensa da polícia nos últimos dias veio comprovar que ela é
que é fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis mais
duras são suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da efetiva punição
(infalibilidade da pena), conscientização, educação e engenharia.
5º) O legislador adotou a política da tolerância zero, mas ainda há graves falhas
na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução
homicida (que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total
menosprezo à vida alheia. Por exemplo: dirigir veículo na contramão numa rodovia).
Há muito ainda que se fazer para aprimorar a legislação brasileira. Temos que
declarar “guerra” contra as 35 mil mortes por ano no trânsito. Mas tudo tem que ser
feito sem exageros e sem abusos. Não queremos viver perigosamente nas ruas e
estradas brasileiras, mas também não estamos dispostos a suportar os excessos do poder
público, que só pode atuar legitimamente dentro da razoabilidade.
Lei seca: fiscalização e menos mortes. Pelo fim das crendices popular e
jornalística
Depois da lei seca (vigente desde o dia 20.06.08) reduziram-se os acidentes de
trânsito em praticamente todos os Estados brasileiros (15,3% só no Estado de S. Paulo).
Nas estradas federais, 14,5%. As mortes também: 8,8% no Estado de S. Paulo e 63% na
sua capital. E os custos hospitalares? Economia de R$ 4,5 milhões, em trinta dias,
considerando-se os trinta hospitais estaduais da região metropolitana de S. Paulo (de
um mês para outro caíram os atendimentos drasticamente: de 9.102 para 4.449). A que
se deve tanta diminuição (já extraordinária, embora possa aumentar ou ser maior em
algumas outras cidades)?
A crendice popular e, em geral, jornalística (midiática) diz: “aos rigores da nova
lei”, “passou a ser crime dirigir com qualquer quantidade de álcool”, “antes, só com 0,6
decigramas o motorista era punido” etc. Quantos absurdos, quantas desinformações! As
penas previstas na nova lei (nos arts. 165 e 306) são exatamente as mesmas da lei
anterior. Então a lei nova não aumentou as penas? Não. Ela não é mais rigorosa que a
anterior? Não. Está sendo “vendida” midiaticamente como mais dura, mas não é. Nisso
reside um grande equívoco informativo (que ilude o imaginário popular).
E por que essa lei nova “pegou”? Intensa fiscalização e certeza da punição (isso
nada mais é que a infalibilidade da sanção, que já era reivindicada por Beccaria em
1764). O quê, então, funciona (what works)? É a lei dura (mas quase nunca aplicada)
ou a fiscalização (controle certo)? A resposta é óbvia: fiscalização e infalibilidade da
punição. É dizer: a lei, por mais severa que seja, sem fiscalização (sem controle) não
funciona preventivamente (a lei dos crimes hediondos constitui a prova mais
contundente disso no território brasileiro).
Sem a nova lei poderiam ter sido reduzidos os índices escabrosos de mortes no
Brasil (35 mil por ano)? Sim. E por que isso não ocorreu antes? Por falta de
fiscalização e ausência da certeza da punição. Já existia lei seca (antes) no nosso país?
Sim. A tolerância zero já tinha sido aqui implantada legalmente? Sim, desde 2006 (por
força da Lei 11.275/2006). Então o Código de Trânsito (em sua redação original, de
1997) era mais tolerante com o motorista embriagado? Sim (permitia até 0,6
decigramas de álcool por litro de sangue). Foi a partir de 2006 que essa grande margem
de tolerância acabou. E por que a Lei 11.275/2006 não “pegou”? Você já sabe a
resposta: falta de fiscalização.
A moderna Criminologia nos mostra que é a fiscalização e a punição certa que
conduzem à mudança de hábitos das pessoas. A conscientização só acontece quando há
percepção de que a regra é “pra valer”. Qual é a maior prova disso? A redução dos
acidentes, dos atendimentos hospitalares e das mortes. Há alguma outra prova? Sim. A
lei nova não “pegou” em algumas capitais: Porto Velho, Macapá, Palmas, Cuiabá e
Campo Grande, que, segundo a Folha de S. Paulo de 23.07.08, p. C4, continuam com
número de morte equivalente às cidades africanas, consideradas uma calamidade pela
ONU. Por que não “pegou”? Por total falta de estrutura e ausência de fiscalização.
A lei nova é inconstitucional (como alguns juízes estão reconhecendo, em suas
liminares)? Em parte sim, em parte não. Quando ela pune o motorista (embora com
penas administrativas) por recusar o exame de sangue ou o bafômetro, sim (é
inconstitucional). Por quê? Porque todos os cidadãos brasileiros, por força do art. 8º da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não são obrigados a se auto-
incriminar, ou seja, não são obrigados a ceder seu corpo ou parte dele (ainda que seja
um só sopro) para fazer prova contra eles mesmos. Bafômetro (que exige participação
ativa do suspeito e intervenção do seu corpo) não é a mesma coisa que mostrar a
carteira de habilitação.
O art. 306 do Código de Trânsito, com a redação dada pela nova lei seca, é
inconstitucional? Parcialmente sim porque ele, ao presumir generalizadamente que o
motorista, com 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, (sempre) está embriagado,
desconsiderou que as pessoas são diferentes (o álcool produz efeitos diversos em cada
sujeito, tudo dependendo da sua altura, peso, sexo etc.). Ou seja: tratou pessoas
desiguais de forma igual. Isso viola o princípio da igualdade, que exige tratar os
desiguais desigualmente.
Eliminada (do art. 306) a exigência de 0,6 decigramas de álcool o crime
desaparece? Não. Mas (com isso) sua redação ficaria idêntica à do art. 165 (que cuida
da infração administrativa)? Sim. E qual seria a diferença entre tais infrações? Aquela
(a administrativa) é de perigo abstrato (não interessa, para ela, a forma como o sujeito
conduzia o veículo: normal ou anormalmente). Esta é de perigo concreto indeterminado
(ou seja: o crime do art. 306 requer um condutor embriagado mais uma direção
anormal: em zig-zag, passar o vermelho etc.). Nisso está a diferença (ainda não captada
por algumas autoridades).
Qual é a qualidade técnica da nova lei seca? Deplorável. A anterior (Lei
11.276/2006) era melhor? Sim. Apesar de tudo, a lei nova “pegou” porque a prevenção
de acidentes e de mortes no trânsito depende não da gravidade abstrata da sanção (nem
muitas vezes da qualidade técnica da lei), sim, da fiscalização, punição, conscientização
(que decorre dos dois fatores anteriores), educação e engenharia (esta última pode
proporcionar segurança nas ruas e estradas, assim como nos veículos).
A eficácia (bastante benéfica) da nova lei seca vai durar quanto tempo? O tempo
que durar a fiscalização (isto é: a mobilização policial). Com o relaxamento dela,
aumentarão os acidentes e as mortes? Sim, pois já vimos esse filme de 1999 até 19 de
junho de 2008.
Conclusão: é uma falácia afirmar ou sugerir que a lei nova é mais rigorosa que a
anterior. Mas, mesmo não sendo mais “dura”, como foi capaz de evitar milhares de
acidentes e de mortes? Ela foi o pretexto para se desencadear a mais intensa
fiscalização de trânsito em quase a totalidade do país. Isso é o que vale. A lição a ser
difundida é esta: o segredo do sucesso de uma lei está no seu efetivo cumprimento, não
no seu rigor formal. Que o legislador brasileiro (e alguns setores da mídia) aprenda
(aprendam) essa lição de uma vez por todas. Seguramente deixariam de fazer ou de
dizer bobagens inoculadas no imaginário popular brasileiro.