cultura um conc. antrop. parte 1

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--I ROQUEDEBARROSLARAIAéprofessor titular da Universi- dade de Brasília. Iniciou sua carreira no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, em 1969, transferiu-se para a Universidade de Brasília, onde foi Diretor do Instituto de Ciências Humanas. Doutor pela Universidade de São Paulo, realizou pesquisa de campo entre os índios Suruí, Akuáwa-Asurini, Kamayurá e Urubu-Kaapor. É membro de diferentes associações científicas do país e do estrangeiro. Foi secretário-geral da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), assim como diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Participou dos comitês assessores da CAPES e do CNPq. Roque de Barros Laraia lSBN.85-7110-438-7 Jmllll~~1 "tu.. : ,II, É autor de índios e castanheiras, juntamente com Ro- berto Da Matta, Tupi, índios do Brasil atual e Organiza- ção social (org.). Além destes livros possui vários artigos publicados em revistas especializadas. IJ-Z'EI JorgeZahar Editor

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Page 1: Cultura um conc. antrop. parte 1

--I

ROQUEDEBARROSLARAIAé professor titular da Universi-dade de Brasília. Iniciou sua carreira no Museu Nacional

da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, em 1969,transferiu-se para a Universidade de Brasília, onde foiDiretor do Instituto de Ciências Humanas. Doutor pelaUniversidade de São Paulo, realizou pesquisa de campoentre os índios Suruí, Akuáwa-Asurini, Kamayurá eUrubu-Kaapor.

É membro de diferentes associações científicas do país

e do estrangeiro. Foi secretário-geral da AssociaçãoBrasileira de Antropologia (ABA), assim como diretor daAssociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa emCiências Sociais (Anpocs). Participou dos comitêsassessores da CAPES e do CNPq.

Roque de Barros Laraia

lSBN.85-7110-438-7

Jmllll~~1

"tu.. : ,II ,

É autor de índios e castanheiras, juntamente com Ro-berto Da Matta, Tupi, índios do Brasil atual e Organiza-ção social (org.). Além destes livros possui vários artigospublicados em revistas especializadas.

IJ-Z'EI JorgeZahar Editor

Page 2: Cultura um conc. antrop. parte 1

ColeçãoANTROPOLOGIA SOCIAL

diretor: Gilberto Velho

.O RIso E o RiSíVEL

Verena Alberti

.MOVIMENTO PUNK NA CIDADE

Janice Caiata

.O EspíRITO MILITAR

.Os MILITARES E A REPÚBLICA

Celso Castro

.VELHOS MILITANTES

Ângela Castro Gomes,Dora Flaksman,Eduardo Stotz

.DA VIDA NERVOSA

Luiz Fernando Duarte

.GAROTAS DE PROGRAMA

Maria Dulce Gaspar

.O COTIDIANO DA POLíTICA

Karina Kuschnir

.CULTURA: UM CONCEITO

ANTROPOLÓGICO

Roque de Barros Laraia

.CARISMA

Charles Undholm

.AUTORIDADE & AFETO

Myriam Uns de Barros

.ILHAS DE HISTÓRIA

Marshall Sahlins

.Os MANDARINS MILAGROSOS

Elizabeth Travassos

.ANTROPOLOGIA URBANA

.DESVIO E DIVERGÊNCIA

.INDIVIDUALISMO E CULTURA

.PROJETO E METAMORFOSE

.SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE.A UTOPIAURBANAGilberto Velho

.O MUNDO FUNK CARIOCA

.O MISTÉRIO DO SAMBA

Hermano Vianna

.BEZERRA DA SILVA:

PRODUTO DO MORRO

Letícia Vianna

.O MUNDO DA ASTROLOGIA

Luís Rodolto Vilhena

.ARAWETÉ: os DEUSES CANIBAIS

Eduardo Viveiros de Castro

~

Roque de Barros Laraia

,

.

CULTURAUm Conceito Antropológico

13!! edição

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Page 3: Cultura um conc. antrop. parte 1

SUMÁRIO

Copyright @ 1986. Roque de Barros Laraia

Todos os direitos reservados.

A reprodução não-autorizada desta publicação, no todoou em parte. constitui violação do copyright. (Lei 9.610)

Apresentação

primeira parteDa natureza da cultura ouDa natureza à cultura

1 O determinismo biológico2 O determinismo geográfico3 Antecedentes históricos do conceito de cultura4 O desenvolvimento do conceito de cultura

5 Idéia sobre a origem da cultura6 Teorias modernas sobre cultura

2000Direitos para esta edição contratados com:

Jorge Zahar Editor LIda.rua México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJ

tel.: (21) 240-0226 I fax: (21) 262-5123e-mail: [email protected]

site: www.zahar.com.br

Edições anteriores: 1986, 1987, 1988. 1989. 1991.1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1999

Impressão: Cromosete Gráfica e Editora

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Laraia, Roque de BarrosCultura: um conceito antropológico I Roque de

Barros Laraia.- 13.ed. - Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 2000.

segunda parteComo opera a cultura

1 A cultura condiciona a visãode mundo do homem

2 A cultura interfere no plano biológico3 Os indivíduos participam

diferentemente de sua cultura

4 A cultura tem uma lógica própria6 A cultura é dinâmica

L331c13.ed.

(Antropologia Social)Anexos

Inclui bibliografiaISBN: 85-7110-438-7

1. Cultura. I. Título. 11.Série.Anexo 1 Uma experiência absurda

Anexo 2 A difusão da cultura00-1090CDD - 306CDU - 316.7

Bibliografia

7

9

17

2125305460

67

6977

82

9098

106

109

113

Page 4: Cultura um conc. antrop. parte 1

rI

APRESENTAÇÃO

Para Lúciao presente trabalho pretende introduzir o leitor ao conceitoantropológico de cultura. Tema central das discussões an-tropológicas nos últimos 100 anos, o assunto tem se de-monstrado inesgotável, razão pela qual aqueles que tiveremo interesse de se aprofundar mais devem recorrer à biblio-grafia apresentada no final do volume. Destinado principal-mente a um público que se inicia no tema, limitamos o al-cance deste trabalho evitando muitos dos desdobramentos

teóricos que o mesmo tem suscitado. A nossa intenção foi ade elaborar um texto bem didático e, portanto, bastanteclaro e simples.

Procuramos, na medida do possível, utilizar exemplosreferentes à nossa sociedade e às sociedades tribais quecompartilham conosco um mesmo território. Isto não impe-de, contudo, a utilização de exemplos tomados emprestadode autores que trabalharam em outras partes do mundo. Talprocedimento é coerente, desde que o desenvolvimento doconceito de cultura é de extrema utilidade para a compreen-.-10do paradoxo da enorme diversidade cultural da espéciehumana.

Para tornar a bibliografia citada mais acessível aos

7

Page 5: Cultura um conc. antrop. parte 1

8 cultura: um conceito antropológico

leitores, utilizamos prioritariamente os textos em suas edi-ções brasileiras, limitando-se as citações em línguas estran-geiras apenas para os casos em que não existem traduções.

O Livroestá dividido em duas partes: a primeira, quese refere ao desenvolvimento do conceito de cultura a partirdas mamfestações iluministas até os autores modernos; asegunda parte procura demonstrar como a cultura influen-cia o comportamento social e diversifica enormemente ahumanidade, apesar de sua comprovada unidade biológica.

A nossa intenção foi de atender às demandas das dis-ciplinas iniciais dos cursos de graduação em antropologia edemais ciências sociais. Para isto contamos com o apoioe o estimulo dos colegasdo Departamento de Antropologiada Universidade de Brasllia, aos quais devemos nossos agra-decimentos. Mas um reconhecimento especial é devido aJúlio Cezar Melatti, que tanto insistiu para que realizásse-mos este trabalho.

primeira parte

DA NATUREZA DA CULTURAOU DA NATUREZA À CULTURA

Page 6: Cultura um conc. antrop. parte 1

da natureza da cultura 11

disso, se uma mulher livre desposa um homem escra-vo, seus filhos são cidadãos integrais; mas se um ho-mem livre desposa uma mulher estrangeira, ou vivecom uma concubina, embora seja ele a primeira pes-soa do Estado, os filhos não terão qualquer direito àcidadania.2

4

Este volume trata da discussão de um dilema: a concilia-

ção da unidade biológica e a grande diversidade cultural daespécie humana. 1 Um dilema que pennanece como o temacentral de numerosas polêmicas, apesar de Confúcio ter,quatro séculos antes de Cristo, enunciado que "A naturezados homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêmseparados" .

Wlo\'\03~"\9"I10 Mesmo antes-.J.a~c~tação do m.9no~enismo,os ho-mens se preocupavam co_~~ dive~ ~ ~~~m-portamen to ex~_te_l!~en~e os difer~e~ ~vos.- Até mesmo Heródoto (484-424 a.C.), o grande his-

!.2!iador grego, preocupou-se com o tema quando descre-veu o sistema social dos lícios:

Ao considerar os costumes dos licios diferentes de"todas as outras nações do mundo", Heródoto estava to-mando como referência a sua própria sociedade patrili-neal,3 agindo de uma maneira etnocêntrica, embol"d elepróprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afir-mar:

~ Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos oscostumes do mundo, aqueles que lhes parecessem me-lhor, eles examinariam a totalidade e acabariam prefe-rindo os seus próprios costumes, tão convencidosestão de que estes são melhores do que todos osoutros. //"

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A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural doslicios não é diferente da de Tácito (55-120), cidadão roma-

no, em relação às tribos gennânicas, sobre as quais escreveucom admiração:

Eles têm um costume singular pelo qual' diferemde todas as outras nações do mundo. Tomam o nomeda mãe, e não o do pai. Pergunte-se a um lício quemé, e ele responde dando o seu próprio nome e o desua mãe, e assim por diante, na linha feminina. Além

Por tudo isso, o casamento na Alemanha é austero,não há aspecto de sua moral que mereça maior elogio.

I Cl1lford Geertz, 1978. p. 33.

1"'Iltll'clto, 1967, p. 22.I ( hllllllllllOSde sociedade patrilineal aquela em que o parentescof "'lI\lIll'IlIdo apenas pelo lado paterno. Isto é, o irmão do pai, por, ,"1111'10,é um parente, o mesmo não ocorrendo com o irmão daIlIill'

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da natureza da cultura 11

disso, se uma mulher livre desposa um homem escra-vo, seus filhos são cidadãos integrais; mas se um ho-mem livre desposa uma mulher estrangeira, ou vivecom uma concubina, embora seja ele a primeira pes-soa do Estado, os filhos não terão qualquer direito àcidadania.2

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Este volume trata da discussão de um dilema: a concilia-

ção da unidade biológica e a grande diversidade cultural daespécie humana. 1 Um dilema que permanece como o temacentral de numerosas polêmicas, apesar de Confúcio ter,quatro séculos antes de Cristo, enunciado que "A naturezados homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêmseparados" .

Wlo\'103e."\~O Mesmo antes~a ..2c~tação do m~n.?ge~~ os ho-mens se preocupavam c~~ d~~dade ~ ~odos de com-portamento existentes entre os diferentes I?<:!vos.- Até mesmo HerÓd~-to(484-424 ;.C.), o grande his-

~riador grego, preocupou-se com o tema quando descre-veu o sistema social dos licios:

Ao considerar os costumes dos licios diferentes de"todas as outras nações do mundo", Heródoto estava to-mando como referência a sua própria sociedade patrili-neal,3 agindo de uma maneira etnocêntrica, emboi"à elepróprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afir-mar:

~ Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos oscostumes do mundo, aqueles que lhes parecessemme-lhor, eles examinariam a totalidade e acabariam prefe-rindo os seus próprios costumes, tão convencidosestão de que estes são melhores do que todos osoutros. //"

~(ff~Óo~

A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural doslicios não é diferente da de Tácito (55-120), cidadão roma-

no, em relação às tribos germânicas, sobre as quais escreveucom admiração:

Eles têm um costume singular pelo qual' diferemde todas as outras nações do mundo. Tomam o nomeda mãe, e não o do pai. Pergunte-se a um licio quemé, e ele responde dando o seu próprio nome e o desua mãe, e assim por diante, na linha feminina. Além

Por tudo isso, o casamento na Alemanha é austero,não há aspecto de sua moral que mereça maior elogio.

1 Chfford Geertz, 1978. p. 33.

1'''llIll'l'Ito, 1967, p. 22., , lllIlIIlIlIIOSde sociedade patrilineal aquela em que o parentesco, ,"mllll'l'Iulo apenas pelo lado paterno. Isto é, o irmão do pai, por, .,IIlplu,é um parente, o mesmo não ocorrendo com o irmão datiljII~

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Page 8: Cultura um conc. antrop. parte 1

12 cultura: um conceito antropológico

São quase únicos, entre os bárbaros, por se satisfaze-rem com uma mulher para cada. As exceções,que sãoextremamente raras, constituem-se de homens querecebem ofertas de muitas mulheres devido ao seuposto. Não há questão de paixão sexual. O dote édado pelo marido à mulher, e não por esta àquele.4

Mo.'f('o ?o\o Marco Polo, o legendário viajante italiano que visitoua China e outras partes da Ásia, entre os anos 1271 e 1296,assim descreveu os costumes dos tártaros:

Têm casas circulares, de madeira e cobertas de fel-tro, que levam consigo onde vão, em carroças de qua-tro rodas. . . asseguro-lhesque as mulheres compram,vendem e fazem tudo o que é necessário para seusmaridos e suas casas. Os homens não se têm de preo-cupar com coisa alguma, exceto a caça, a guerra e afalcoaria. . . Não têm objeções a que se coma a carnede cavalos e cães, e se tome o leite de égua. . . Coisaalguma no mundo os faria tocar na mulher do outro:têm extrema consciência de que isto é um erro e umadesgraça. . .s

~~ k,C\n~~ O padre José de Anchieta (1534-1597), ao contráriode Heródoto, se surpreendeu com os costumes patrilinearesdos índios Tupinambá e escreveu aos seus superiores:

O terem respeito às filhas dos irmãos é porque lheschamam filhas e nessa conta as têm, e assim nequefornicarie as conhecem, porque têm para si que o

4 PerUl Peito. 1967, p. 23.5 ldcm. Iblllem, p. 24.

1>

da natureza da cultura 13

parentesco verdadeiro vem pela parte dos pais, quesão agentes; e que as mães não são mais que uns sacos,em respeito dos pais, em que se criam as crianças, epor esta causa os filhos dos pais, posto que sejamhavidos de escravas e contrárias cativas são semprelivres e tão estimados como os outros; e os filhos dasfêmeas, se são filhos de cativos, os têm por escravose os vendem, e às vezes matam e comem, ainda quesejam seus netos, filhos de suas filhas, e por isto tam-bém usam das filhas das irmãs sem nenhum pejo adcopulam, mas não que haja obrigação e nem o costu-me universal de as terem por mulheres verdadeirasmais que as outras, como dito é.6

.r ~., vvt Montaigne (1533-1572) procurou não se espantar em

B

.

J demasia com os costumes dos Tupinambá, de quem tevenotícias e chegou mesmo a ter contato com três deles emRuão, afirmando não ver nada de bárbaro ou selvagemnoque diziam a respeito deles, porque .

~ na verdade, cada qual considera bárbaro o que nãose pratica em sua terra. //

Imbuído de um pioneiro sentido de relativismo cul-tural, Montaigne assim comentou a antropofagia dos Tu-pln,lmbá:

Não me parece excessivojulgar bárbaros tais atos decrueldade, mas que o fato de condenar tais defeitosnao nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo queG mais bárbaro comer um homem vivo do que o co-

. I , lI<' Anchieta, 1947.

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14 cultura: um conceito antropológico

mer depois de morto; e é pior esquartejar um homem Ientre suplícios e tonnentos e o queimar aos poucos,ou entregá-Io a cães e porcos, a pretexto de devoção

r e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrerentre vizinhos nossos conterrâneos.7

E tenninou, ironicamente, após descrever diversoscostumes daqueles índios Tupi: "Tudo isso é interessante,mas, que diabo, essa gente não usa calças."

Desde a Antigüidade, foram comuns as tentativas deexplicar as diferenças de comportamento entre os-home~a partir das variacõesdos ambientes físicos.

Marcus V. Pollio, arquiteto romano, afinnou enfa-tlcamente:

Os povos do sul têm uma inteligência aguda, devido àraridade da atmosfera e ao calor; enquanto os das na-ções do Norte, tendo se desenvolvido numa atmosferadensa e esfriados pelos vapores dos ares carregados,têm uma inteligênciapreguiçosa.8

~fA\\ ~JiV1

!bn Khaldun, filósofo árabe do século XIV, tinha umaopinião semelhante, pois também acreditava que os habitan-tes dos climas quentes tinham uma natureza passional, en-quanto aos dos climas frios faltava a vivacidade.

Jean Bodin, filósofo francês do século XVI, desenvol-veu a teoria que os povos do norte têm como líquido do-minante da vida o fleuma, enquanto os do sul são domina-dos pela bl1is negra. Em decorrência disto, os nórdicos sãofiéis, leais aos govemantes, cruéis e pouco interessados se.

? Montaigne, 1972, p. 107.8 Citado por Marvin Harris, 1969, p. 41.

da natureza da cultura 15

xualmente; enquanto os do sul são maliciosos, engenhosos,abertos, orientados para as ciências, mas mal adaptados paraas atividades poh ticas. 9

Contudo, explicações deste gênero não foram sufi-cientes para resolver o dilema proposto, tanto é que D'Hol-bach replicavaem 1774:

Será que o sol que brilhou para os livres gregos e ro-manos emite hoje raios diferentes sobre os seus dege-nerados descendentes?10

I ~

Qualquer um dos leitores que quiser constatar, umavez mais, a existência dessas diferenças não necessita retor-nar ao passado, nem mesmo empreender uma difícil viagema um grupo indígena, localizado nos confins da florestaamazônica ou em uma distante ilha do Pacífico. Basta com-parar os costumes de nossos contemporâneos que vivemnochamado mundo civilizado.

Esta comparação pode começar pelo sentido do trân-sito na Inglaterra, que segue a mão esquerda; pelos hábitosculinários franceses, onde rãs e escargots (capazes de causarrepulsa a muitos povos) são considerados como iguarias,até outros usos e costumes que chamam mais a atençãopura as diferenças culturais.

No Japão, por exemplo, era costume que o devedorInHolventepraticasse o suicídio na véspera do Ano Novo,como uma maneira de limpar o seu nome e o de sua famllia.O harakiri (suicídio ritual) sempre foi considerado como\1111<1fonna de beroísmo. Tal costume justificou o apareci-

10"'111, ihidcm, p. 42.

~I 1.ltlll, ihlllcm, p. 42.

Page 10: Cultura um conc. antrop. parte 1

16 cultura: um conceito antropológico

mento dos "pilotos suicidas" durante a Segunda GuerraMundial.

Entre os ciganos da Califórnia, a obesidade é conside-rada como um IDalCaaOrda vmJ1dade,mas também é uti-lizada para conseguir benefícios junto aos programas gover-namentais de bem-estar social, que a consideram como umadeficiência física.

A carne da vaca é proibida aos hindus, da mesma for-ma que a de porco é interditada aos muçulmanos,

O nudismo é uma prática tolerada em certas praiaseuropéias, enquanto nos países islâmicos, de orientaçãoxüta, as mulheres mal podem mostrar o rosto em público.Nesses mesmos países, o adultério é uma contravenção gra.ve que pode ser punida com a morte ou longos anos deprisão.

Não é necessário ir tão longe, nesta seqüência deexemplos que poderia se estender infinitamente; basta veri.ficar que em algumas regiões do Norte do Brasil a gravidezé considerada como uma enfermidade, e o ato de parir édenominado "descansar". Esta mesma palavra é utilizada,no Sul do país, para se referir á morte (fulano descansou,isto é. morreu). Ainda entre nós, existe uma diversidade deinterdições alimentares que consideram perigoso o consumoconjunto de certos alimentos que isoladamente são inofensivos,como a manga com o leite etc.

Enfim, todos estes exemplos e os que se seguem, ser-vem para mostrar que as diferenças de comportamen toentre os homens não podem ser explicadas através das diver-sidades somatológicas ou mesológicas--'..-Tanto o determinJ~-mo geográfico como o determinismo biológico-,-como mos.traremos a seguir, foram incapazes de resolver o dilema pro.posto no início deste trabalho.

1

o DETERMINISMO BIOlÓGICO

São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacida-des específicas inatas a "raças" ou a outros grupos huma-nos. Muita gente ainda acredita que os nórdicos são maisinteligentes do que os negros; que os alemães têm mais habi-lidade para a mecânica; que os judeus são avarentos e nego-ciantes; que os norte-americanos são empreendedores e in.teresseiros; que os portugueses são muito trabalhadores epouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, trai-çoeiros e cruéis; que os ciganos são nômades por instinto,e, finalmente, que os brasileiros herdaram a preguiça dosnegros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos por-tugueses.

Os antropólogos estão totalmente convencidos de

que asdiferenças genéticas não são deter~es das düe-ronças cult~ Segundo Felix Keesing, "não existe corre-1.lç.1osignüicativa entre a distribuição dos caracteres genéti-co. o a distribuição dos comportamentos culturais. Qual-quor criança humana normal pode ser educada em qualquer('ultura, se for colocada desde o início em situação conve.lI\lm!..do aprendizado". Em outras palavras, se transportar-11101p.na o Brasil, logo após o seu nascimento, uma criança

17

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'~50

"De.c.\~YtN:Ao

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18 cultura: um conceito antropológico

sueca e a colocannos sob os cuidados de uma família serta-neja, ela crescerá como tal e não diferenciará mentalmenteem nada de seus irmãos de criação. Ou ainda, se retirarmosuma criança xinguana de seu meio e a educarmos comofilha de uma famlua de alta classe média de lpanema, omesmo acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades dedesenvolvimento que os seus novos irmãos.

Em 1950, quando o mundo se refazia da catástrofee do terror do racismo nazista, antropólogos físicos e cul-turais, geneticistas, biólogos e outros especialistas, reunidosem Paris sob os auspícios da Ynesco, redigiram uma decla-ração da qual extraímos dois parágrafos:

10. Os dados científicos de que dispomos atualmen-te não confirmam a teoria segundo a qual as diferen-ças genéticas hereditárias constituiriam um fator deimportância primordial entre as causas das diferençasque se manifestam entre as culturas e as obras das ci-vilizações dos diversos povos ou grupos étnicos. Elesnos informam, pelo contrário, que essas diferençasse explicam antes de tudo pela história cultural decada qrupo. Os fatores que tiveram um papel prepon-derante na evolução do homem são a sua faculdadede aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidãoé o apanágio de todos os seres humanos. Ela consti-tui, de fato, uma das características específicas doHomo sapiens.

15.b) No estado atual de nossos conhecimentos, não foiamda provada a validade da tese segundo a qual osgrupos humanos diferem uns dos outros pelos traçospsicologicamélae inatos, quer se trate de inteligência

da natureza da cultura 19

ou temperamento. As pesquisas científicas revelamque o nível das aptidões mentais é quase o mesmo emtodos os grupos étnicos.

A espécie humana se diferencia anatõmica e fisiolo~gicamente através do dimorfismo sexual, mas é falso que asdiferenças de comportamento existentes entre pessoas desexos diferentes sejam determinadas biologicamente. Aantropologia tem demonstrado que muitas atividades atri-buídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídasaos homens em outra.

A verificação de qualquer sistema de divisão sexualdo trabalho mostra que ele é determinado culturalmente enão em função de uma racionalidade biológica. O transpor-te de água para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu(como nas favelas cariocas). Carregar cerca de vinte litrosde água sobre a cabeça implica, na verdade, um esforçofísico consideravel, muito maior do que o necessário parao manejo de um arco, arma de uso exclusivo dos homens.Até muito pouco tempo, a carreira diplomática, o quadrode funcionários do Banco do Brasil,entre outros exemplos,eram atividades exclusivamente masculinas. O exército dehrael demonstrou que a sua eficiência bélica continua in-tacta, mesmo depois da maciça admissão de mulheres sol-dddos.

Mesmo as diferenças determinadas pelo aparelho re-produtor humano determinam diferentes manifestações(~lturais. Margareth Mead (1971) mostra que até a ama-mcmtllçêlopode ser transferida a um marido moderno por1111110da mamadeira. E os nossos índios Tupi mostram queI) m.lI'ldopode ser o protagonista mais importante do parto.

Page 12: Cultura um conc. antrop. parte 1

20 cultura: um conceito antropológico

É ele que se recolhe à rede, e não a mulher, e faz o resguar-do considerado importante para a sua saúde e a do recém-nascido.

Resumindo, o comportamento dos indivíduos depen-de de um aprendizado, de um processo que chamamos deendoculturação. Um menino e uma menina agem diferente-mente não em função de seus hormônios, mas em decorrên-cia de uma educação diferenciada.

2

o DETERMINISMO GEOGRÁFICO

o determinismo geográfico considera que as diferenças doambiente físico condicionam a diversidade cultural. Sãoexplicações existentes desde a Antigüidade, do tipo dasformuladas por PolUo, Ibn Khaldun, Bodin e outros, comovimos anteriormente.

Estas teorias, que foram desenvolvidasprincipalmentepor ge6grafos no final do século XIX e no início do sécu-lo XX, ganharam uma grande popularidade. Exemplo signi-ficativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado emHuntington, em seu livro Civiljzation and Climate. 1915,no qual formula uma relação entre a latitude e os centrosde civilização, considerando o clima como um fator im-portante na dinâmica do progresso.

A partir de 1920, antropólogos como Boas, Wissler,Kroober, entre outros, refutaram este tipo de~erminismo.. demonstraram que existe uma limitação na influênciaVltográficasobre os fatores culturais. E mais: que é possívelI' comum existir uma grande diversidade cultural localizada11111um mesmo tipo de ambiente físico.

Tomemos, como primeiro exemplo, os lapÕ8se os es-1111111101.Ambos habitam a calota polar norte, os primeiros

21

Page 13: Cultura um conc. antrop. parte 1

da natureza da cultura 2322 cultUra: um conceito antropológico

no norte da Europa e os segundos no norte da América.Vivem, pois, em ambientes geográficos muito semelhantes,caracterizados por um longo e rigoroso inverno. Ambostêm ao seu dispor flora e fauna semelhante. Era de se espe-rar, portanto, que encontrassem as mesmas respostas cul-turais para a sobrevivência em um ambiente hostil. Masistonão ocorre:

sabão e nem que resolvam os seus conflitos com uma sofis-ticada competição de canções entre os competidores.

Um segundo exemplo, transcrito de Felix Keesing,é a variação cultural observada entre os índios do sudoestenorte-americano:

Os esquimós constroem suas casas (iglu) cortandoblocos de neve e amontoando-os num formato decolmeia. Por dentro a casa é forrada com peles deanimais e com o auxílio do fogo conseguem mantero seu interior suficientemente quente. É possível, en-tão, desvencilhar das pesadas roupas, enquanto noexterior da casa a temperatura situa-sea muitos grausabaixo de zero grau centígrado. Quando deseja, oesquimó abandona a casa tendo que carregar apenasos seus pertences e vai construir um novo retiro.

Os lapões, por sua vez, vivem em tendas de pelesde rena. Quando desejam mudar os seus acampamen-tos, necessitam realizar um árduo trabalho que se ini-cia pelo desmonte, pela retirada do gelo que acumu-lou sobre as peles, pela secagem das mesmas e o seutransporte para o novo sítio.

Em compensação, os lapões são excelentes criado-res de renas, enquanto tradicionalmente os esquimóslimitavam-seà caça dessesmamíferos. 1

Os índios Pueblo e Navajo, do sudoeste americano,ocupam essencialmente o mesmo habitat, sendo quealguns .índios Pueblo até vivem hoje em "bolsões"dentro da reserva Navajo. Os grupos Pueblo são al-deões, com uma economia agrícola baseada principal-mente no milho. Os Navajo são descendentes de apa-nhadores de víveres, que se alimentavam de castanhasselvagens,sementes de capins e de caça, mais ou me-nos como os Apache e outros grupos vizinhos têmfeito até os tempos modernos. Mas, obtendo ovinosdos europeus, os Navajo são hoje mais pastoreado-res, vivendo espalhados com seus rebanhos em gruposde faml1ias.O espírito criador do homem pode assimenvolver três alternativas culturais bem diferentes -apanha de víveres, cultivo, pastoreio - no mesmoambiente natural, de sorte que não foram fatores dehabitat que proporcionaram a determinante princi-pal. Posteriormente, no mesmo habitat, colonizado-res americanos tiveram que criar outros sistemas devida baseados na pecuária, na agricultura irrigada ena urbanização.2

A aparente pobreza glacial não impede que os esqui-mÓstenham uma desenvolvida arte de esculturas em pedra-

o terceiro exemplo pode ser encontrado no interiord(l nosso país, dentro dos limites do Parque Nacional doXlnqu. Os xinguanos propriamente ditos (Kamayurá, Ka-

1 Cf. Felix Keesing,1961, pp. 184-85.hl~ 111,ibll1cm, p. 183.

I I

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lapalo, Tromai, Waurá etc.) desprezam toda a reserla deproteínas existentes nos grandes mamíferos, cuja caça lhesé interditada por motivos culturais, e se dedicam mais in-tensamente à pesca e caça de aves.Os Kayabi, que habitamo Norte do Parque, são excelentes caçadores e preferemjustamente os mamíferos de grande porte, como a anta, oveado, o caititu etc.

Estes três exemplos mostram que não é possível admi-tir a idéia do determinismo geográfico, ou seja, a admissãoda "ação mecânica das forças naturais sobre uma humani-dade puramente receptiva". A posição da moderna antro-pologia é que a "cultura age seletivameme", e não casual-mente, sobre seu meio ambiente, "explorando determinadaspossibilidades e limites ao desenvolvimento, para o qualas fo~as decisivas estão na própria cultura e na história dacultura" .3

As diferenças existentes entre os homens, portanto,não podem ser explicadas em termos das limitações que lhessão impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meioaIJ'lbiente.A grande qualidade da espécie humana foi a deromper com suas próprias limitações: um animal frágil,provido de insignificante força física, dominou toda a natu-reza e se transformou no mais temível dos predadores. Semasas domUlOUos ares; sem guelras ou membranas própriasconqUlstou os mares. Tudo isto porque difere dos outrosanUnéUSpor ser o único que possui cultura. Mas que é cul-tura?

3

ANTECEDENTES HISTÓRICOSDO CONCEITO DE CULTURA

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o ter-mo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todosos aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a pa-lavra francesa Civilization referia-se principalmente as rea-lizações materiais de um povo. Ambos os termos foramsintetizados por Edward Tylor. (1832-1917) no vocábuloinglês Culture, que "tomado em seu amplo sentido etno-gráfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capa-cidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membrode uma sociedade".. Com esta dl!finição Tylor abrangiaom uma s6 palavra todas as possibilidades de realizaçãohumana, além de marcar fortemente o caráter de aprendi-Zc1doda cultura em oposição à idéia de aquisição inata,tr.msmitidapor mecanismos biológicos.

O conceito de Cultura, pelo menos como utilizado4tutllmente, foi portanto definido pela primeira vez porTylor. Mas o que ele fez foi formalizar uma .déia que vinha

--3 ~lar~hall Sah1ins, s.d., pp. 100-101. I I ,twllld Tylor, 1871, Capo I, p. 1.

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crescendo na mente humana. A idéia de cultura, com efeito,estava ganhando consistência talvez mesmo antes de JohnLocke (1632-1704) que, em 1690, ao escreverEnsajo acer-ca do entendimento humano, procurou demonstrar que amente humana não é mais do que uma caixa vazia por oca-sião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitadade obter conhecimento, através de um processo que hojechamamos de endoculturação. Locke refutou fortementeas idéias correntes na época (e que ainda se manifestam atéhoje) de princípios ou verdades inatas impressos heredita.riamente na mente humana, ao mesmo tempo que ensaiouos primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar queos homens têm princípios práticos opostos: "Quem investi-gar cuidadosamente a história da humanidade, examinarpor toda a parte as várias tribos de homens e com indife-rença observar as suas ações, será capaz de convencer-sede que raramente há princípios de moralidade para ser de-signado, ou regra de virtude para ser considerada... quenão seja, em alguma parte ou outra, menosprezado e con.denado pela moda geral de todas as sociedades de homens,governadas por opiniões práticas e regras de condutas bemcontrárias umas às outras" (Livro I, capo11,§ 10).

Finalmente, com referência a John Locke, gostaría-mos de citar o antropólogo americano MarvinHarris (1962l..que expressa bem as impücações da obra de Locke para aépoca: .Nenhuma ordem social é baseada em verdades ina-ta:., uma mudança no ambiente resulta numa mudança nocom -)orta.'11ento."Z

2 MarvID Harr:s, 1969.

da natureza da cultura 27

Meio século depois, Jacques Turgot (1727-1781) aoescrever o seu Plano para dois discursos sobre históriauniversal,afirmou:

Possuidor de um tesouro de signosque tem a faculda-de de multiplicar infinitamente, o homem é capaz deassegurar a retenção de suas idéias eruditas, comunicá-Ias para outros homens e transmiti-Ias para os seusdescendentes como uma herança sempre crescente.(O grüo é nosso.)

Basta apenas a retirada da palavra erudita para queesta afirmação de Turgot possa ser considerada uma defini-ção aceitável do conceito de cultura (embora em nenhummomento faça menção a este vocábulo). Esta definição éequivalente às que foram formuladas, mais de um séculodepois, por Bronislaw Malinowski e Leslie White, comoo leitor constatará no decorrer deste trabalho.

Jean Jacques Rousseau (1712-1778), em seu Discursosobre a origem e o estabelecimento da desigualdadeentreos homens, em 1775, seguiu os passos de Locke e de Tur-got ao atribuir um grande papel à educação, chegando mes-mo ao exagero de acreditar que esseprocesso teria a possibi-lidade de completar a transição entre os grandes macacos(chimpanzé, gorila e orangotango) e os homens.3

Mais de um século transcorrido desde a definiçãodo Tylor, era de se esperar que existisse hoje um razoávelACOrdOentre os antropólogos a respeito do conceito. Taloxpoctativa seria coerente com o otimismo de Kroeber

I Ih pOlIgídcos afastaram-se da linha evolutiva do homem há cerca,I. }~f)f)O.OOOde anos.

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28 cultura: um conceito antropológico da natureza da cultura 29

que, ~O, escreveu que lia maior realizacão da Antro-pologia na primeira metade do século XX foi a ampliação ea clarificação do conceito de cultura" ("Anthropology",in Scientific American, 183). Mas, na verdade, as centenasde definições formuladas após Tylor serviram mais para es-tabelecer uma confusão do que ampliar os limites do con-ceito. Tanto é que, em 1973, Geertz escreveu que o temamais importante da moderna teoria antropológica era o de"diminuir a amplitude do conceito e transformá-Io numinstrumento mais especializado e mais poderoso teorica-mente". Em outras palavras, o universo conceitual tinhaatingido tal dimensão que somente com uma contraçãopoderia ser novamente colocado dentro de uma perspecti-va antropológica.

Em 1871, Tylor definiu cultura como sendo todo ocomportamento aprendido, tudo aquilo que independe deuma transmissão genética, como diríamos hoje. Em 1917.Kroeber acabou de romper todos os laços entre o culturale o biológico, postulando a supremacia do primeiro em de-trimento do segundo em seu artiQo, hoje clássico, "O Su-~rorgânico" (in American Anthrqpologist, Vol. XIX,nQ 2, 1917).4 Completava-se, então, um processo iniciadopor Lineu, que consistiu inicialmente em derrubar o homemde seu pedestal sobrenatural e colocá-Io ~entro da ordemda natureza.'O segundo passo deste processo, iniciado porTylor e completado por Kroeber, representou o afastamen-to crescente desses dois domínios, o cultural e o natural.

O "anjo caído" foi diferenciado dos demais animaispor ter a seu dispor duas notáveis propriedades: a possibili-

dade da comunicação oral e a capacidade de fabricação deinstrumentos, capazes de tomar mais eficiente o seu aparatobiológico. Mas, estas duas propriedades permitem umaafirmação mais ampla: o homem é o único ser possuidorde cultura. Em suma, a nossa espécie tinha conseguido, nodecorrer de sua evolução, estabelecer uma distinção de gê-nero e não apenas de grau em relação aos demais seres vi-vos. Os fundadores de nossa ciência, através dessa explica-ção, tinham repetido a temática quase universal dos mitosde origem, pois a maioria destes preocupa-se muito mais emexplicar a separação da cultura da natureza do que com asespeculaçõesde ordem cosmogônica.

No período que decorreu entre Tylor e a afirmaçãode Kroeber, em 1950, o monumento teórico que se desta-cava pela sua excessiva simplicidade, construído a partir deuma visãoda natureza humana, elaborada no período ilumi-nista, foi destruído pelas tentativas posteriores de clarifica-ção do conceito.

A reconstrução deste momento conceitual, a partirde uma diversidade de fragmentos teóricos, é uma das ta-refas primordiais da antropologia moderna. Neste trabalho,entretanto, seguiremos apenas os procedimentos básicosdesta elaboração.

4 Alfred Kroeber, 1949, pp. 231-81.

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da natureza da cultura 31

4 Buscando apoio nas ciências naturais, pois consideracultura como um fenômeno natural, Tylor escreve em se-guida:

Nossos investigadores modernos nas ciências de natu-reza inorgânica tendem a reconhecer, dentro e fora deseu campo especial de trabalho, a unidade da nature-za, a permanência de suas leis, a definida seqüênciade causa e efeito através da qual depende cada fato.Apóiam firmemente a doutrina Pytagoreana da ordemno cosmo universal. Afirmam, como Aristóteles, quea natureza ni[oé constituída de episódios incoerentes,como uma má tragédia. Concordam com Leibnizno que ele chamou "meu axioma, ~ a natureza nun-ca age ~ saltos", tanto como em seu "grande prin-cípio, comumente pouco utilizado, que nada aconte-ce sem suficiente razão". Nem mesmo no estudo dasestruturas e hábitos das plantas e animais, ou na inves-tigação das funções básicas do homem, são idéiasdesconhecidas. Mas quando falamos dos altos pro-cessos do sentimento e da ação humana, do pensa-mento e linguagem, conhecimento e arte, uma mu-dança aparece nos tons predominantes de opinião. Omundo como um todo está fracamente preparadopara aceitar o estudo geral da vida humana como umramo da ciência natural (. . .) Para muitas menteseducadas parece alguma coisa presunçosa e repulsivao ponto de vista que a história da humanidade é partee parcela da história da natureza, que nossos pensa-mentos, desejos e ações estão de acordo com leisequivalentes àquelas que governam os ventos e asondas, a combinação dos ácidos e das bases e o cresci-mento das plantas e animais. 3

o DESENVOLVIMENTO DOCONCEITO DE CULTURA

A primeira definição de cultura que foi formulada do pon-

to de vista antropológico, como vimos, pertence a E. Tylor,/'no primeiro parágrafo de seu livro Primitive Culture (1871).Tylor procurou, além disto, demonstrar que cultura podeser objeto de um estudo sistemático, pois trata-se de um fe-nômeno natural que possui causas e regularidades, permi-tindo um estudo objetivo e uma análise capazes de propor-cionar a formulação de leis sobre o processo cultural e aevolução.' "

O seu pensamento pode ser melhor compreendidoa partir da leitura deste seu trecho:

Por um lado, a uniformidade que tão largamente per-meia entre as civilizaçõespode ser atribuída, em gran-de parte, a uma uniformidade de ação de causas uni-formes, enquanto, por outro lado, seus vários grauspodem ser considerados como estágios de desenvolvi.mento ou evolução. . . .2

, I:. T>"lor.1871[1958, parte 1, p.1l.2 Idem, ibidem.

, 1.11'111, ibidcm, p. 2.

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32 cultura: um conceito antropológico

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Neste sentido, ainda na segunda metade do séculoXIX, Tylor se defrontava com a idéia da natureza sagradado homem, daí as suas afinnações no final do texto acimae a sua preocupação expressa no seguinte:

Mas outros obstáculos para a investigação das leis danatureza humana surgem das considerações metafí-sicas e teologicas. A noção popular do livre-arbítriohumano envolve não somente a liberdade de agir deacordo com motivações, mas também o poder de que-brar a continuidade e de agir sem causa - uma combi-nação que pode ser grossamente ilustrada pela analo-gia de uma balança, algumas veze~agindo de modousual, mas também possuindo a faculdade de agirporela própria a favor ou contra os pesos. Este ponto devista de uma ação anômica dos desejos, que é incom-patível com o argumento científico, subexiste comoopinião manifesta ou latente na mente humana, eafeta fortemente a sua visão teórica da história (. . . )Felizmente não é necessário adicionar mais nada àlista de dissertações sobre a intervenção sobrenaturale causação natural, sobre liberdade, predestinação eresponsabilidade. Podemos rapidamente escapar dasregiões da filosofia transcendental e da teologia, parainiciar uma esperançosa jornada sobre um terrenomais prático. Ninguém negará que, como cada homemconhece pelas evidências de sua própria consciência,causas naturais e definidas determinam as ações hu-manas.4

Após discutir as questões acima, Tylor reafinna aIgualdade da nat'.lreza humana, "que pode ser estudada com

----4 hkm. ibidem, p. 3.

da natureza da cultura 33

,!

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gr~.ndeprecisão na comparação das raças do mesmo grau decivilização".

Mais do que preocupado com a diversidade cultural,Tylor a seu modo preocupa-se com a igualdade existente nahumanidade. A diversidade é explicada por ele como o re-sultado da desigualdade de estáqios existentes no processode evolução. Assim, uma das tarefas da antropologia seria ade "estabelecer, grosso modo, uma escala de civilização",simplesmente colocando as nações européias em um dos ex-tremos da série e em outro as tribos selvagens,dispondo oresto da humanidade entre dois limites. Mercier5 mostraque Tylor pensava as "instituições humanas tão distinta-mente estratificadas quanto a terra sobre a qual o homemvive. Elas se sucedem em séries substancialmente uniformespor todo O globo, independentemente de raça e linguagem- diferenças essas que são comparativamente superficiais-, mas moduladas por uma natureza humana semelhante,atuando através das condições sucessivamente mutáveis davida selvagem,bárbara e civilizada".

Para entender Tylor é necessário compreender a épo-ca em que viveu e conseqüentemente o seu background in-telectual. O seu livro foi produzido nos anos em que a Eu-ropa sofria o impacto da Origem das espécies, de CharlesDarwin, e que a nascente antropologia foi dominada pelaestreita perspectiva do evolucionismounilinear.6

5 I'aul Mercier, 1974, p. 30.6 Segundo esta abordagem, todas as culturas deveriam passar pelasmesmas etapas de evolução, o que tornava possível situar cada so-dcdllde humana dentro de uma escala que ia da menos à mais desen-vulvida.

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A década de 60 do século XIX foi rica em trabalhosdesta orientação. Uma série de estudiosos tentou analisar,sob esse prisma, o desenvolvimento das instituições sociais,buscando no passado as explicações para os procedimentossociais da atualidade. Assim,Maine em Ancient Law (1861)procurou analisar o desenvolvimento das instituições jurí-dicas; o mesmo ocorreu com Bachofen, que em Das Mus-teITecht desenvolveu a idéia da promiscuidade primitiva econseqüentemente da instituição do matriarcado.7 E emPrimitive Marriage (1865) McLennan estuda a instituiçãodo matrimônio a partir dos casamentos por rapto. Pordetrás de cada um destes estudos predominava, então, aidéia de que a cultura desenvolve-sede maneira uniforme,de tal forma que era de se esperar que cada sociedade per-corresse as etapas que já tinham sido percorridas pelas "so-ciedades mais avançadas". Desta maneira era fácil estabele-cer uma escala evolutiva que não deixava de ser um proces-so discriminatório, através do qual as diferentes sociedadeshumanas eram classificadas hierarquicamente, com nítidavantagem para as culturas européias. Etnocentrismo e ciên-cia marchavam então de mãosjuntas.

Stocking (1968) critica Tylor por "deixar de ladotoda a questão do relativismo cultural e tomar impossívelo moderno conceito da cultura". A posição de Tylor não

poderia ser outra, porque a idéia de relativismo culturalestá implicitamente associada à de evolução multilinear. A

7 Matriarcadorefere-se a uma sociedade em que o poder esteja nasmãos das mulheres. Não há comprovaçãoempÍrica da existênciadetal sociedade. ~ comum, entretanto, confundir este conceito com omatrilineal, que se refere às sociedadesonde o parentesco é traçadopela lin ha materna.

da natureza da cultura 35

unidade da espécie humana, por mais paradoxal que pos~aparecer tal afirmação, não pode ser explicada senão em ter-mos de sua diversidade cultural.

Mercler considera Tylor u~ dos pais do difusionismocultural. Lowie, em sua The History of Ethnological Theory(1937), faz no entanto uma oportuna ressalva: "O que dis-tingue Tylor do difusionismo extremo é simplesmente suacapacidade de avaliar as evidências. Recusando assumir apriori que toda semelhança resulta da dispersão, aplica cri.térios definitivos para a solução da questão." Como AdolfBastian (1826.1905), Tylor acreditava na "unidade psí-quica da humanidade". Tal fato lhe foi útil para não cairnas armadilhas do difusionismo (como veremos posterior-mente), mas constituiu em sua falha o fato de "não reco-nhecer os múltiplos caminhos da cultura".

O seu grande mérito na tentativa de analisar e classi-ficar cultura foi o de ter superado os demais trabalhadoresde gabinete, através de uma crítica arguta e exaustiva dosrelatos dos viajantes e cronistas coloniais. Em vez da aceita.ção tácita dessas informações, Tylor sempre questionou averacidade das mesmas. Ao contrário de John Lubbock(1872), recusou aceitar a afirmação de que diversosgrupostribais, entre eles os aborígenes brasileiros, eram desprovi-dos de religião. Tais afirmações, conclui Tylor, baseiam-se"sobre evidências freqüentemente erradas e nunca conclu-aivas".

A principal reação ao evolucionismo, então deno-minado método comparativo, inicia-se com Franz Boas(1858-1949), nascido em Westfália (Alemanha) e inicial.mento um estudante de física e geografia em Heidelberg eBonn. Uma expedição geográfica a Baffin Land (1883-IRM) que o 'colocou em contato com os esquimós, mudou