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Pós-modernidade, história e representação: cultura negra e identidade Roberto dos Santos 1 Resumo Este artigo está focado sobre a discussão entre a história, cultura imaterial, patrimônio e estudos negros. Discute-se que os estudos históricos devem levar em consideração a dinâmica dos pensamentos e a forma como os conhecimentos são produzidos no mundo contemporâneo. Para tanto se utiliza no âmbito deste trabalho um diálogo com algumas literaturas que analisam o pós- modernismo. As relações elaboradas pela compreensão sobre o patrimônio e a cultura imaterial podem favorecer uma discussão favorável sobre os estudos negros, no sentido de propor a atenção sobre novos olhares. Palavras-chave: Patrimônio. Negros. Cultura negra. História. Pós-modernismo. Identidade. Postmodernity, history and representation: black culture and identity Abstract This article focuses on the discussion among history, culture, patrimony and black studies. It is argued that historical studies should take into account the dynamics of thinking and the way knowledge is produced in the contemporary world. For this reason, this work proposes a dialogue with some of the literature that analyzes postmodernism. The relationships developed by the understanding about patrimony and culture can foster a positive discussion about black studies, to call the attention to new gazes. Key words: Patrimony. Black. Black culture. History. Postmodernism. Identity. Este texto consiste em um exercício de pensamento e de leitura da cultura negra através da preocupação em se afastar de uma análise histórica tradicional e, para tanto, convergir para possibilidades que estudos pós-estruturalistas possam sugerir no direcionamento de olhares sobre os estudos negros, estudos de educação e estudos históricos. As palavras que compõem o título exigem um estudo completo e complexo sobre teorias, entretanto não é este o propósito das articulações deste artigo, igualmente, é chamar a atenção de usos que a ciência histórica possa fazer de discussões que lhe direcionem para caminhos diferenciados e novos resultados. Do conjunto que o título oferece, informo que a última palavra não será utilizada como conceito, mas sim como uma alegoria 2 que avisa sobre a amplitude das sombras que se diluem na pluralidade. Olhar pelo vão que elucidada a claridade não significa apreender o sentido dos 5 Jan-Jul/2009 Patrimônio

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Pós-modernidade, história e representação:

cultura negra e identidade

Roberto dos Santos1

Resumo Este artigo está focado sobre a discussão entre a história, cultura imaterial, patrimônio e estudos negros. Discute-se que os estudos históricos devem levar em consideração a dinâmica dos pensamentos e a forma como os conhecimentos são produzidos no mundo contemporâneo. Para tanto se utiliza no âmbito deste trabalho um diálogo com algumas literaturas que analisam o pós-modernismo. As relações elaboradas pela compreensão sobre o patrimônio e a cultura imaterial podem favorecer uma discussão favorável sobre os estudos negros, no sentido de propor a atenção sobre novos olhares. Palavras-chave: Patrimônio. Negros. Cultura negra. História. Pós-modernismo. Identidade.

Postmodernity, history and representation: black culture and identity

Abstract This article focuses on the discussion among history, culture, patrimony and black studies. It is argued that historical studies should take into account the dynamics of thinking and the way knowledge is produced in the contemporary world. For this reason, this work proposes a dialogue with some of the literature that analyzes postmodernism. The relationships developed by the understanding about patrimony and culture can foster a positive discussion about black studies, to call the attention to new gazes. Key words: Patrimony. Black. Black culture. History. Postmodernism. Identity.

Este texto consiste em um exercício de pensamento e de leitura da cultura negra

através da preocupação em se afastar de uma análise histórica tradicional e, para tanto,

convergir para possibilidades que estudos pós-estruturalistas possam sugerir no

direcionamento de olhares sobre os estudos negros, estudos de educação e estudos históricos.

As palavras que compõem o título exigem um estudo completo e complexo sobre teorias,

entretanto não é este o propósito das articulações deste artigo, igualmente, é chamar a atenção

de usos que a ciência histórica possa fazer de discussões que lhe direcionem para caminhos

diferenciados e novos resultados.

Do conjunto que o título oferece, informo que a última palavra não será utilizada como

conceito, mas sim como uma alegoria2 que avisa sobre a amplitude das sombras que se diluem

na pluralidade. Olhar pelo vão que elucidada a claridade não significa apreender o sentido dos

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sentidos, de tal forma que a identidade pode estar borrada pelas sombras e ver-se em si pode

abrir para o ver de si e para si. Os Estudos étnicos existem colados à questão da identidade

tendo-a como um recurso para definir o conceito de etnia; isso não implica simplesmente

listar características que determinem o que é cultura negra, mas entendê-la no processo de

construção sobre o que o é, e, por conseguinte, existindo na articulação das diferenças e

estando na construção dos sujeitos étnicos. Stuart Hall (2004) e Tomaz Tadeu da Silva (1996)

abordam uma discussão sobre identidade que interessa, sobremaneira, para os estudos negros

na medida em que operam sobre um conceito articulador e entendem-no em sua flexibilidade.

Os autores afastam as ideias que compreendem a identidade como estática e colocam-na

vinculada a contextos e, totalmente, historiada. Então, debruçar-se sobre a cultura negra

implica em ser atravessado por discussões sobre identidade e, na sugestão comentada até aqui,

seria conveniente entendê-la em seu plural como culturas negras3. Exatamente como crítica

direta a ideia de pureza de qualquer relação vinculada a cultura e do empenho em destacar o

hibridismo presente na própria construção de identidades.

O título deste artigo atua como guia neste exercício de visualizar os estudos negros, ou

os estudos sobre culturas negras, com lentes distintas da tradição histórica do “passado

recuperado”4 por documentos convencionados como depositário da memória. Dessa forma, é

interessante considerar algumas preocupações presentes em autores identificados com o pós-

modernismo e, no caso das opções deste artigo, o que o “pós” pode incrementar em termos da

relação entre a História e a possibilidade de desfocarmos olhares e relativizarmos o tempo em

estudos sobre o negro.

Para início de conversa, David Morley (1998), ao se posicionar quanto ao pós-

modernismo, lança questões sobre a relação com a história. Observando a ideia que segue:

Decir pos es decir pasado. El término mismo señala algún tipo de cambio. Generalmente se presupone, en las discusiones sobre el posmodernismo, que lo que se está dejando atrás, o se está superando es la <<modernidad>> o el modernismo. (p. 86)

As palavras do autor sugerem uma compreensão sobre a História, embora em forma de

início de discussão ou em lembrete, a palavra “pós” pressupõe uma sequência cronológica de

entendimento sobre a História em um encadeamento de eventos, que podem formar um

conjunto representado por determinados fundamentos caracterizando uma época. Nessa

lógica, a época ou o grande período constitui, pensando essencialmente, uma visão de mundo

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referencial, de tal forma que os fenômenos semelhantes ou diferentes dos fundamentais,

existem a partir de uma classificação de aproximação ou distanciamento dos paradigmas

estabelecidos. Não significa, absolutamente, que outras formas não existam ou possam ser

construídas em relações adversas aquelas que representam os fundamentos.

Além da percepção de um tipo de desenvolvimento histórico, o <pós> destaca o

princípio da transição, da mudança e do algo diferente. De certa forma, uma negação

manifestada na ressignificação de lógicas que questionam fundamentos anteriores. Ou em

síntese, questionam a própria ideia de fundamentos. David Morley (1998) foge de

simplificações, deixando na pauta o aviso sobre o pós-modernismo como uma abertura de

janelas, em que a percepção refinada pelos cuidados teóricos e filosóficos se permite incluir

em seus interesses objetos e preocupações que sejam fruto de olhares diversos.

Está posta, então, a discussão sobre a possibilidade de olhares múltiplos e da invenção,

construção cuidadosa e metodológica, de objetos que estejam vinculados por interesses.

Linguagem e representação, linguagem e cultura e linguagem e identidade são relações

intrincadas que constituem o sujeito neste processo de invenção. Entender o deslocamento do

contexto histórico, para outro lugar que não seja a simples evolução cronológica de marcos

selecionados por interesses políticos de grupos hegemônicos, e conceber que o tempo,

também é uma construção, que deve ser explicado em sua utilização e aplicação. Se os olhares

e objetos podem ser inventados pela capacidade de pensar dos sujeitos, o campo onde essas

situações se gestam é a cultura ou verbalizados5 na cultura. O pós-moderno precisa se

direcionar para a linguagem no universo da cultura como centro (HALL, 1998), encontrando

nelas os princípios de identificação do sujeito através de caminhos que aproximam a

socialização de formas de comunicação e informação. Assim David Morley, ao comentar as

ideias de Saussure, salienta que “(...) nuestros verdaderos pensamientos son estructurados, de

forma inconsciente, por las normas y los conceptos del lengaje y la cultura em la cual hemos

sido socializados desde la infância ( MORLEY, 1998, p.95)

Isso que chamamos de culturas negras e, por extensão, de comunidade negra não

existe em uma cronologia linear. O passado pode ser removido e se apresentar ao presente

ressignificado. O uso político das informações sobre o Quilombo dos Palmares é uma

invenção que se gesta no século XX. A experiência de Palmares, como “cola” para o

movimento negro ou para uma supracitada História comum aos negros brasileiros, não existiu

no seu tempo cronológico de ocorrência, mas sim na ideia que hoje fazemos do que,

supostamente, ocorreu no século XVII. Dessa forma, nem aquele e nem este tempo existem

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absolutamente. 6

Nessa relação entre metodologia, linguagem e cultura se compreende a não utilização

absoluta de formas e análises que sejam estruturais e que dificultem o trânsito de objetos e

olhares diversos. É, neste caso, uma crítica aberta sobre as metalinguagens, no sentido da

inoperância e dos usos unilaterais das essencializações. Tomaz Tadeu da Silva (1996) refina

essa discussão ao colocar no centro da discussão, sobre as metanarrativas, o sentido de criação

de mundo e de representação de realidades, destacando as significações de poder que

determinadas representações de mundo e sujeito possuem nas articulações da própria

invenção dos mesmos. Dizer ou enunciar sobre as coisas é o princípio que permite que as

coisas possam existir.

Uma das implicações da virada lingüística é conceber o nosso conhecimento e compreensão do mundo social como necessariamente vinculado á própria forma como nomeamos esse mundo. Esse processo de nomeação não é mero reflexo de uma realidade que existe lá fora; esse processo produz, constitui, forma a realidade. As categorias que usamos para definir e dividir o mundo social constituem verdadeiros sistemas que nos permitem ou impedem de pensar, ver e dizer certas coisas. (SILVA, 1996, p.245-246)

Nesta medida, a História Pesquisa e a História Ensino são enunciações sobre tempos

de um mundo social visitado por lentes de nitidez sempre questionáveis pela liberdade de

produção de uma infinidade de leituras parciais anunciadas e, perfeitamente, alteráveis

conforme as ferramentas que são utilizadas no processo de polimento das lentes. A virada

linguística, mencionada por Tomaz Tadeu da Silva (1996) e por Stuart Hall (1998), ao

atravessar os discursos metanarrativos sobre a História articula na desobrigação de saberes

uniformes resgatados no passado ou na criação de um passado com saberes que pretendem a

uniformização de sujeitos e mundos.

Eleanor Heartney (2002), ao articular o mundo como imagem imediata, retira o solo

de certezas sobre as possíveis realidades. O mundo é uma construção que deriva das

representações do próprio mundo. A mediação, destacada pala autora, é mais um foco

revelador de imagens, que atuam nas possibilidades de dizer sobre as coisas. Ainda sobre a

ideia de Eleanor Heartney (2002), é pertinente atentar que as imagens podem ser ou estar

posterizadas ou disformes com um caleidoscópio. A História, dada como tempos e espaços

indiscutíveis, é esfarelada e precisa, também se ressignificar de tal forma que [...] “é exposta

como mito, o autor morre, a realidade é repudiada como uma convenção antiquada”.

(HEARTNEY, 2002, P.7).

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Em estudos sobre culturas negras, a própria ideia de cultura que fundamenta a

compreensão sobre a existência de culturas, opera representações que os negros e não negros

produzem sobre si mesmos. O negro, o branco e outras denominações étnicas só existem na

relação de uns com os outros e não por si. Na História brasileira, o ser negro ou a forma que

as ideias do e sobre o ser negro são articuladas deriva de interesses marcados pelas

contextualidades. O negro do período colonial, do final do século XIX, da imprensa negra do

início do século XX, das articulações do período getulista, do contexto do centenário da

abolição da escravatura ou do negro na conjuntura das ações afirmativas do século XXI, são

todos sujeitos referendados por imagens posicionadas e focadas que interiorizam os sujeitos.

Uma pesquisa rápida pela Internet, utilizando as palavras Zumbi e Palmares, mostra ao menos

10 imagens diferentes do mesmo personagem7 , o que sugere um necessário processo de

alfabetização para lermos as informações ou para entendermos os códigos das imagens

representadas.

A História pós anos 708, principalmente a Escola francesa que entendeu novos

métodos, novos objetos e novas abordagens9, sugerem um novo olhar sobre os próprios

objetos do estruturalismo, que de certa forma, não eram concebidos como objetos. A História

Cultural e a Nova História Cultural sucumbem a esta gerência da imagem, mesmo que não

abracem a sua significância midiática, atendem-na como texto e instrumento focado para a

concepção de realidades possíveis e circunstanciais. O momento em que a História Cultural se

inscreve na historiografia confirma o que Eleanor Heartney prescreve para o pós-modernismo

e a arte.

Não é mais possível pensar que a história segue um único curso, ou que o leitor não é um componente essencial de qualquer texto [...]. Apesar de todas as contradições e absurdos ocasionais, está claro que o pós-modernismo refez o mundo em aspectos que jamais poderão ser revogados. (2002, p. 77)

No pós-modernismo como condição, segundo David Morley (1998), é preciso pensar a

História como campo de oferta de contextualizações que atuam na constituição de visões e

tempos. Os sujeitos devem ter espaços e tempos discutíveis e definidos nas lógicas que os

apresentam como tal. A História, então, é um campo importante para a compreensão sobre

contextualizações e tempos.

Entendendo o papel da História e colocando-a como instrumento na pós-modernidade,

Gianni Vattimo (1991) enterra a História tradicional, cronológica e guardiã de verdades

inquestionáveis, associando-a como uma prática da modernidade. “Pois bem, a modernidade,

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na hipótese que proponho, acaba quando – por múltiplas razões – já não é possível falar da

História como algo de unitário” (1991, p.10)

Gianni Vattimo (1991), ao conceber a inadequação do discurso unitário para a História

que pode ser apropriada nessa condição de análise oferecida pelo pós-modernismo, abre a

discussão para qual tipo de História e relação com o tempo pode ser interessante para um

entendimento do pós-modernismo. Nesse caso, a História é um campo do saber que reconhece

o discurso sobre épocas, como um conjunto de seleções ou como utilidades reconhecidas da

memória. Digamos que é na perspectiva da complexidade da memória como ressalta

Fernando Catroga (2001), em que a relação entre memória e História reside em opções e

posições que olham o passado. A História é dinâmica, na mesma medida e na mesma

intensidade em que as relações possam ser discutidas e refeitas nas suas seleções. A memória

não é uma grandeza dada, mas sim produzida e, nesse processo manifesta-se em um estado de

invenção. A seleção é um pressuposto da memória o que nos faz entender que ao escolher

dentro de condições se torna impossível a reconstrução absoluta de tempos e de espaços fixos.

A visita ao passado exercita a multiplicidade de falas, gestos e sentidos, providenciando o que

podemos apreender do mundo ou que representamos do mundo.

A visita ao passado não é uma prerrogativa exclusiva da ciência histórica. Os enredos

de Escolas de Samba o fazem, recriando tempos, falas e, recolocando em uma ordem

anacrônica, determinados temas que passam a ser representados na cultura negra. No caso dos

enredos, nem o tempo e nem o espaço precisam existir absolutamente, a invenção ou o ajuste

posicionado das questões reelabora a ordem de sentidos. Essa característica de um artefato da

cultura negra brasileira em dialogar com tempos, espaços e sentidos favorece a idéia de

cultural imaterial, o que na abordagem de François Hartog (2006) implica em um processo de

interlocução.

A ideia de Gianni Vattimo (1991) segue na compreensão de uma História dinâmica

entendendo que os sujeitos transitam e se localizam conforme as representações construídas,

não no tempo, mas de um tempo determinado. Então, a História como campo do saber se

pulveriza na medida em que produzimos olhares e representações sobre coisas que ocorreram

no tempo. “Não existe uma História única, existem sim imagens do passado propostas por

pontos de vista diversos, e é ilusório pensar que existe um ponto de vista supremo,

globalizante, capaz de unificar todos os outros”.(1991, p.11)

O tempo, nessa discussão sobre pontos de vista, é uma construção, uma invenção que

se desenvolve na dinâmica entre o sujeito e o mundo social. Não existe um tempo dado,

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intocado e estático, como um vácuo de tempo pairando sobre as cabeças e determinando

aleatoriamente os sentidos. E mesmo pressupondo uma situação desse nível, qual seria a

posição do sujeito e desse mundo social sem interferências, sem um chiado no dial? O mundo

pós-moderno coloca o tempo no universo de suas significações e nas suas possibilidades de

construir leituras.

As imagens, a Internet, a televisão, os MPs, o telefone e tudo o mais que permite ao

sujeito articular com os mundos mexeu, descaradamente, com o tempo pluralizando-o e

transformando-o em bites. As viagens podem ser ao passado, ao futuro e, quando interessante,

a um presente que pode ser lento ou perene, entre outras coisas. As reprises de seriados e

novelas sobrepõem tempos acavalando o passado e o presente. Em tempos de rádio-novela ou

mesmo nos primórdios da televisão as tramas duravam até dois anos, como foi o caso da

novela de rádio “O direito de nascer”. Hoje, em tempos pós-modernos, não conseguimos

lembrar ao certo quais novelas ocorreram no ano em que estamos. Os seriados de televisão

podem provocar vivências em ritmo lento ou podem em pouco tempo transitar por uma

infinidade de informações ou, ainda, venderem a idéia de uma vida em tempo real na TV. Os

programas de auditório, principalmente em sábados e domingos, as sobreposições de cenários,

atores e enredos; os filmes para cinema que são consumidos em casa pela via do DVD e feitos

em série ou etapas que confundem a ordem das estórias. Todas essas novidades do mundo em

que vivemos colocam o sujeito em um mix de tempo e espaço ao alcance das mãos.

A pós-modernidade10 lança a História em um campo do, possivelmente, novo, onde os

paradigmas da verdade, da cronologia sequencial e da soberania do saber histórico não têm

lugar, enquanto respostas únicas para os questionamentos sobre o passado. Se o pós-moderno

pode ser entendido como ressignificação de olhares, textos e análises, então a História precisa

lançar mão de outras formas de negociar o passado, que não sejam os duros documentos

oficiais e suas cronologias em convenções indiscutíveis.

O patrimônio pode existir nesta crítica de leituras sobre a História e das fontes que a

traduzem, pois articulado nas concepções de identidade, atua na impressão sobre o que e

quem nós somos. Então, o patrimônio imaterial possui está compreensão sobre permanências

e seleções que fazem a memória. O que é e como as coisas da herança se inserem na

explicação cultural de quem somos merecem recortes de articulação. Aquilo que é cultura

imaterial negra exercita a seleção de que seria a herança da cultura negra eleita e construtora

de identidade.

François Hartog (2006) coloca outro ingrediente na discussão sobre o tempo e os

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objetos da História. O autor aborda a relação útil entre memória e patrimônio, jogando a

recuperação estanque de realidades do passado aos leões, pois inclui nas opções da memória

as ações da economia de mercado. Para autores estruturalistas, parece inquestionável que a

economia de mercado, travestida ou traduzida em contradição de classes faça parte da

compreensão das estruturas e do desenvolvimento das relações sociais. François Hartog

(2006) passa ao largo das discussões sobre estruturas e formações sócio-econômicas para se

aproximar e destacar o caráter produtivo da cultura; assim, turismo, mercado, patrimônio e

memória atuam, também, nas preferências da análise histórica. A leitura do autor sobre o

patrimônio conduz o historiador para pensar seus focos e suas lentes, pois questiona a ação do

presente sobre o que é interessante no passado e inclui artefatos que poderiam ser

compreendidos como não pertencentes aos objetos e fontes tradicionais da ciência histórica.

Ainda, coloca o patrimônio como interlocutor, possível, de uma interpretação sobre o que

pode ou não ser o histórico, ou o que pode ou não ser memória e sendo o uso desta

prerrogativa um atenuante na construção de identidades.

[...] trata-se menos de uma identidade evidente e segura dela mesma do que de uma identidade que se confessa inquieta, arriscando-se de se apagar ou já amplamente esquecida, obliterada, reprimida [...]. Nesta acepção, o patrimônio define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve mais ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo sem ter podido saber. O patrimônio se apresenta então como um convite à anamnese coletiva. Ao "dever" da memória, com a sua recente tradução pública, o remorso, se teria acrescentado alguma coisa como a "ardente obrigação" do patrimônio, com suas exigências de conservação, de reabilitação e de comemoração. (HARTOG, 2006, p.266)

A cultura material e a cultura imaterial são usos da História e devem ser lidas em

contextos temporais e espaciais próprios. Dessa forma, François Hartog (2006) opera para o

patrimônio uma discussão sobre os seus próprios significados e utiliza para isso a oposição

entre ocidente e oriente. Embora na sua análise o caso japonês11 sirva mais como depoimento,

precisamos destacar que a imagem na memória supera qualquer reconstituição ou restauração

do material. A permanência da forma, como ressalta o autor, reside na capacidade de

atualização da imagem na memória ou, permitindo a liberdade da minha interferência no

exercício de François Hartog, posso dizer que a História, assim como a ideia de patrimônio,

está na direção de uma presentificação12 dos objetos.

O século XX é o que mais invocou o futuro, o que mais construiu e massacrou em seu nome, o que levou mais longe a produção de uma história escrita do ponto de vista do futuro, conforme aos postulados do regime moderno de historicidade. Mas, ele é também o século que, sobretudo no seu último terço, deu extensão maior à categoria do presente: um presente massivo, invasor, onipresente, que não tem

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outro horizonte além dele mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem necessidade. Um presente já passado antes de ter completamente chegado. Mas, desde o fim dos anos 1960, este presente se descobriu inquieto, em busca de raízes, obcecado com a memória. (HARTOG, 2006, P.270)

A discussão do autor serve para lembrar que o olhar e a lente não estão em um tempo

específico, mas podem estar colocados em qualquer tempo em que a cultura exerça a sua

capacidade produtiva para construir, no mínimo, as três dimensões conhecidas de

temporalidade: passado, presente e futuro. Isso significa que nenhuma das dimensões de

tempo pode realmente existir ou serem confirmadas como princípio lógico da História, sem

que algo as confirme como sentido. Entendo que a apropriação do passado, como tempo

fundamental da análise histórica, é uma conveniência científica de certificação, pois se torna a

dimensão localizada. Reforço o que já elaborei, em artigo publicado, que presente e futuro

não oferecem campo seguro para a análise histórica.

O presente é fluído pela sua velocidade, ele não existe senão no passado, nasce e se desenvolve como forma peremptória. O presente nasce morto. Resta-nos o passado com sua imponência e irredutível sabedoria do mistério. A memória é co-autora do passado, nela como em um labirinto transita o informativo das ações não mais existentes sistematicamente. A memória é assistemática e esquecida, acima de tudo pela fluidez do presente e pelo momento visionário do futuro. É neste emaranhado da memória, que não é individualmente nossa e que não dá conta do coletivo, onde nós professores de história tentamos existir. (SANTOS, 2005, p.219)

A atenção sobre a relação entre História, memória e tempo, que é desenvolvida no

trabalho de Fernando Catroga13 (2001), precisa eleger uma dimensão para análise histórica,

mesmo entendendo as armadilhas que o tempo na pós-modernidade pode oferecer para as

noções de passado, presente e futuro, ainda assim é interessante se manter na esfera do

passado para negociar os discursos da História. Nesse caso, segundo Fernando Catroga

(2001), o fórum de debate sobre a opção das dimensões reside na memória, que é vestígio do

e no tempo seja ele qual for e em qual dimensão do acontecido teve sua ocorrência. Existe um

recorte metodológico para a memória que sobrevive em sua funcionalidade no tempo, o que

garante que as seleções da lembrança venham a submergir em um cenário político e

representacional. A questão está em entender a eleição de momentos e eventos que ocorreram

em um tempo distante ou em tempos inexistentes, mas apropriados pra existirem em um

universo de utilidade. O vestígio é a capacidade de capturar pela recordação, que se apega aos

artefatos que representam o não vivido pelo historiador, então o artefato é uma janela que

normalmente está entreaberta para a rua, assim a memória é um conjunto de fragmentos de

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recordação conforme os ângulos de observação14. Fernando Catroga abre campo para essa

discussão quando diz:

A memória só poderá desempenhar a sua função social através de liturgias próprias, centradas em reavivamentos, que só os traços-vestígios do pretérito são capazes de provocar. Portanto, o seu conteúdo é inseparável dos seus campos de objectivação e de transmissão – linguagem, imagens, relíquias, lugares, escrita, monumentos – e dos ritos que o reproduzem. O que mostra que, nos indivíduos, não haverá memória colectiva sem suportes de memória ritualisticamente compartilhados. (CATROGA, 2001, P.48)

Roger Chartier (1991) lança luz sobre esta discussão dos caminhos metodológicos da

História e articula sobre as limitações das análises totalizantes que foram hegemônicas nos

estudos históricos, após a década de 50. Argumenta o autor que, embora tendo sido um

avanço na compreensão dos usos da História, as análises em questão reduziam as ações dos

sujeitos a um grande conjunto de relações, que ficavam borradas pelos discursos classistas.

Então, para colocar na pauta das análises da História, Chartier provoca perguntando sobre

como os estudos históricos totalizantes podem conceber o que ele chama de desvios culturais,

que segundo ele são elementos de uma nova possibilidade de fazer História, desde que

associados aos estudos de identidade, representação e práticas culturais.

[...] é impossível qualificar os motivos, os objetos ou as práticas culturais em termos imediatamente sociológicos e que sua distribuição e seus usos numa dada sociedade não se organizam necessariamente segundo divisões sociais prévias, identificadas a partir de diferenças de estado e de fortuna. Donde as novas perspectivas abertas para pensar outros modos de articulação entre as obras ou as práticas e o mundo social, sensíveis ao mesmo tempo à pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de materiais ou de códigos partilhados (CHARTIER, 1991, 177)

A discussão de Roger Chartier articula-se na relação entre uma forma essencializada

de produzir História, marcada por conclusões antecipadas de explicações balizadas pela

hegemonia das classes como recorte teórico e metodológico. A sugestão proposta, então, é o

emprego de outros materiais e códigos. Utilizando-se da proposta de Chartier e relacionando-

a aos estudos negros, é possível pensar na identidade e na tradição como estes códigos.

Seria interessante pensar na tradição como opção de metodologia histórica e crítica a

formas de “recuperação” de acontecimentos no tempo. A tradição em sua relação com um

passado apropriado pelo presente acaba por traduzir porque colocam no presente algumas

relações que passam a ser legíveis. Nesse processo de recorrer a tradição como permanência,

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precisamos entender que se trata de um anacronismo ou ao menos como coisa fora do lugar.

Mesmo sendo anacrônica, a tradição atua como ressignificante de identidades, na medida em

que forja sentido de grupo, o fato de estar fora de um lugar visível e recolocada em situações

de utilidade, deve implicar em formas de articulação com o que os sujeitos são e que

pretendem ser. Um estudo de história que privilegiar estudos não convencionais de

recuperação absoluta dos acontecimentos no tempo pode entender na tradição um recorte

metodológico e um sinal de alerta sobre as apropriações que o sujeito faz de coisas e ideias,

aparentemente, descoladas e deslocadas. Como destaca Stuart Hall (2004), a tradição possui

um ritual de retorno com caráter seletivo, implica em um retorno ao passado na busca de

sentidos do presente e, quando nessa viagem não são encontradas as ferramentas desejadas,

existe a possibilidade de trazer pedaços ou se exercitar em um processo de invenção. Essa

colocação não significa um elogio para a fraude ou a farsa, mas um aviso que na tradição

existe uma política que opera reelaborações de identidades. E que estudos históricos podem

trabalhar sobre os usos e desusos dessas ressignificações.

Em termos de estudos negros15, debruçar-se sobre movimentos de resistência e o

próprio sentido do movimento negro significa legar para a tradição um patamar de atenção

especial. Uma história negra é um simulacro de estudos negros mergulhados em um

amálgama social. A mistura representa a constituição de várias identidades articuladas em

memórias diferentes. Os movimentos de resistência atuam como memórias recuperadas, mas

com uma roupagem de circunstância. Entendo, então, que os movimentos de resistência

devem ser lidos como atos de ressignificação, pois representam as alternativas próprias de

determinados contextos em que decisões políticas de sobrevivência emergem nas articulações

culturais. Na Imprensa negra do final do século XIX e início do século XX ou nos

movimentos pela consciência negra da década de 40 do mesmo século, procurava-se no

passado e em sociedades negras africanas ou brasileiras, praticamente, representações idílicas

que atuavam na produção de um sujeito de e na origem. A ideia de uma mãe áfrica ou de um

Quilombo dos Palmares encobre determinadas características próprias de organizações

sociais e de sujeitos posicionados historicamente ou da diversidade que a África representa

para si mesma, quanto mais para significar as práticas culturais disseminadas pelo Atlântico

Negro16. Ainda conforme Stuart Hall (2004) convém discutir que mesmo questionáveis em

suas organizações e permanências, os movimentos de resistência se apropriam da tradição e

com ela provocam construções de identidades. E dessa forma exercem um caráter educativo,

ou seja, aos usuários da tradição sob este prisma cabe aprender sobre as representações.

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Expressões como Samba de Raiz ou Religião de Matriz Africana17 sugerem um princípio

comum, quase demiurgo, ou um saber sobre práticas que os sujeitos devem transitar.

No centro das permanências reside a memória, que pode estar na leitura das tradições,

em seu caráter disciplinador e definidor de heranças. A questão é que esse processo deve ser

significado em espaço e tempo em uma dinâmica de sobrevivência que pulveriza as

representações. Paul Gilroy (2001) articula esta idéia quando nos remete para as diferentes

formas de pensar e falar da cultura negra na existência de um Atlântico Negro. Nessa

pulverização, os afros-regionalismos significam novos ordenamentos de memórias e

narrativas que os negros elaboram sobre si mesmos.

Todas essas colocações sobre tradição e identidade significam que, juntamente com

os estudos sobre cultura, o historiador deve utilizar destas compreensões para produzir um

discurso histórico que se apresente como uma possibilidade de interpretação a partir de uma

posição de análise ou análise da posição, e não a análise final. As fontes, recurso tão caro ao

historiador, devem entender em sua seleção formas de aprendizagem que existam em

artefatos produzidos pela cultura. Então, aquilo que o sujeito produz em termos de cultura

material ou imaterial representa ao próprio e a determinadas relações que o artefato, como

texto que desvela, está na construção deste sujeito. Periódicos, imagens, propagandas,

encartes, construções artísticas, roupas, recursos do mundo virtual e todas as coisas que o

sujeito produz para refletir a ele mesmo implicam em fontes para o estudo histórico. Não

pretendo plagiar a frase clássica de uma coleção da editora Brasiliense dos idos de 1980,

onde se lia que “tudo é História”, modificando-a para “Tudo é fonte”, mas chamar a atenção

no sentido que as múltiplas representações do sujeito somente podem ser contempladas a

partir de múltiplos usos de fontes, atravessados por olhares possíveis em sua diversidade. A

sugestão, proferida nessa discussão, remete ao emprego de artefatos culturais que podem ser

lidos como textos e que ensinam ao sujeito modos de ser.

Toda essa fala sobre o sujeito deve levar em consideração as articulações de Henry

Giroux e Peter Mclaren (2001), que lembram que uma pedagogia crítica da representação

deve “dissolver a prática de essencializar o sujeito histórico”. Alicerçados pelas ideias de

Stuart Hall, os autores destacam que os sujeitos são envoltos em uma gama imensa de

diversidade, em que a abordagem generalizadora significa reduzir as explicações sobre o

sujeito em aspectos limitadores. As generalizações e as limitações são trechos de um mesmo

caminho, pois reduzem as variáveis para aquelas eleitas, enquanto que a palavra chave de

Stuart Hall é desconectar ou provocar novas conexões, que já nascem prontas para serem

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substituídas em função das possibilidades de visões construídas.

[...] uma pedagogia crítica da representação busca produzir verdades parciais, contingentes, mas necessariamente históricas, que fornecerão algumas das condições necessárias para a emancipação das muitas esferas públicas que formam nossa vida social e institucional, verdades que reconhecem sua natureza de construção social e sua historicidade e os arranjos institucionais e sociais que elas legitimam. (GIROUX; MACLAREN, 2001, 156)

A discussão sobre verdade já ocupou, com mais intensidade, os corredores do saber

filosófico, mas entendo que a abordagem de Henry Giroux e Peter Maclaren diz respeito a

verdades que devem ser concebidas na produção da ciência. Então, a fala sobre verdades está

direcionada, principalmente, a uma questão posicional, ou seja, de onde se vê e quais partes

podem ser contempladas. A posição de onde parte nosso olhar produz, também, olhares

específicos dentro da limitação possível de nossas posições.

Em termos de conclusão, entendo que a ciência da História deve reconhecer a

importância da posição no fazer histórico. As colocações sobre velocidade do tempo ou de um

tempo novo manuseado pelos sujeitos; a crítica sobre propostas essencializadoras; e, também,

conceber estudos sobre identidades e tradições, além do emprego de artefatos culturais como

fontes, ou melhor, ferramentas para dialogar a partir de posições que podem focar as lentes do

historiador. Em um mundo, onde o tempo e o espaço ganham códigos novos sobre si mesmo,

existe a obrigação da ciência histórica de desfocar e depois procurar formas para tornarem

mais nítidos os seus olhares.

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1 Historiador, Especialista em Sociologia e Mestre em Educação. Professor Convidado no Curso de Pós-graduação em Cultura Afro-brasileira da CESUCA e Professor no Curso de História da ULBRA. 2 Uma analogia metodológica e um exercício que lembra a alegoria da caverna de Platão, mas que de longe se propõe a insuflar discussões filosóficas. 3 No sentido que a flexibilidade e a contextualização concebem a cultura negra a possibilidade de se construir, conforme forem os processos de inter-relação com outras culturas ou circunstâncias. Então, não significa a mesma cultura negra marcada por traços diferenciadores, mas culturas negras que existem, exatamente, nos aspectos identitários que estes traços constroem. 4 O entre aspas é proposital e propõe uma crítica a possibilidade de se recuperar um passado, idéia que corrente em análises históricas tradicionais. 5 A idéia de <<verbo>> em seu sentido bíblico de princípio e criação de coisas. “No início era o verbo”6 Aviso aos movimentos negros (no plural): Isto não significa o demérito do Quilombo dos Palmares como experiência política, ele pode ser utilizado toda vez que for solicitado e tem sua importância na medida das articulações que significarem. 7 O interessante é que não temos imagens da figura de Zumbi. 8 Preciso destacar a importância dos Analles e da escola de Frankfurt para a teoria da História, mas entendo não ser necessário discorrer sobre esta fase da historiografia. 9 Estes eram os títulos de uma trilogia de coletâneas organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, publicações dos anos 80 do século XX.

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10 O tempo dos artefatos da cultura pós-moderna não bate com as cronologias oficiais 11 O caso japonês diz respeito à prática de construir templos e prédios que, em tempo determinado, devem ser destruídos com o objetivo de que uma réplica tome o seu lugar. 12 A idéia de presentificação está aqui elaborada como relação íntima entre passado e presente, desde que se entenda que o historiador está posicionado em seu contexto temporal. 13 Artigo já mencionado em parágrafo anterior para salientar as perigosas tramas da memória 14 Que assim serão definidos pelos historiadores e não pelos objetivadores do olhar, propiciando então um ângulo sobre o ângulo de observação. 15 Entendo que para quase todos os estudos étnicos. 16 Nesta discussão sobre critérios de seleção podemos retomar a discussão de François Hartog e Fernando Catroga quanto ao poder constitutivo dos usos da memória. E, também, pensar esta seleção pela quantidade e rapidez de informações que o mundo contemporâneo oferece. Nos dois casos o aviso é sobre a necessidade de pensar a história como leitura no e do tempo através de vestígios culturais que se produz sobre ele. 17 Os praticantes destas religiões no Brasil se auto-definem como de Nação, entendendo existir uma grande união invisível que caracterizassem as tantas diferenças que possuem, mesmo que as nações sejam tantas quantas foram as que produziram representações neste Brasil híbrido e plural. No 6º Seminário de Religiões Afro-brasileiras no Rio Grande do Sul a Afrobras colocou como tema a discussão sobre o Arissum (lugar depois da morte) e o resultado foi um embate entre Cabindas, Jejes e Oiós que não chegou a um termo de acordo devido as distintas leituras realizadas.