cultura, dialética e hegemonia pesquisas em educacao

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Coletânea de textos sobre pesquisas em educação na perspectiva dialética

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    faz um percurso que parte de uma fala socializada, com a funo de comunicao, para depois, em fases mais avanadas de sua aquisio, ser internalizada e servir ao prprio sujeito, como ferramenta cognitiva, que passa a utilizar a palavra como instrumento de pensamento, permitindo uma interao mais completa da pessoa no mundo (VYGotSKY, 1986).

    Vygotsky chamou a fala internalizada de discurso interior: pensar, para ele, seria falar consigo mesmo. tal discurso tem a funo de dar suporte aos processos psicolgicos mais complexos, como pensamento, planejamento para aes, etc. Isso nos leva a refletir sobre a formao dos sujeitos nicos e criativos que, mesmo imersos no social, constroem trajetrias e vivenciam experincias pessoais singulares na sua relao com o mundo e, principalmente, com as pessoas. os conceitos de mediao e internalizao so fundamentais para entendermos a dupla origem - material e biolgica do desenvolvimento humano (VYGotSKY, 1996).

    desenvolvimento e aprendizagem

    Conhecimento , para esse autor, o conjunto de significados que a humanidade vai, historicamente, produzindo e tais significados vo construindo e constituindo a conscincia do homem.

    Dito de outro modo, na abordagem vygotskyana existe uma relao bastante estreita entre aprendizagem e desenvolvimento. A aprendizagem alimenta o processo de desenvolvimento, e na cultura e na histria, por meio de aprendizagens, marcadas por significaes sociais, que o indivduo se constri, ativamente, como sujeito de seu mundo.

    Vygotsky afirmou que a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento humano. Seu ponto de partida foi admitir que o aprendizado comea na criana, nas primeiras interaes

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    com seus outros sociais mais ntimos, ou seja, muito antes de ela ir para a escola (VYGotSKY, 1998a).

    Moll (1996) acrescenta que o vocbulo, em russo, abrazovanie (educao), usado por Vygotsky para explicar a relao entre aprendizagem e desenvolvimento, enfatiza um processo de formao provocado por foras externas. Segundo Moll, ao procurarmos uma definio para a palavra abrazovanie, encontraremos o termo obuchenie, que implica um duplo processo de ensino-aprendizagem, uma transformao mtua de professor e aluno [...] (p. 25).

    tais inquietaes sobre o processo de ensino-aprendizagem (obuchenie) aparecem em Vygotsky, por volta de 1922, quando o, at ento, crtico literrio, torna-se professor na Escola Pedaggica de Gomel. Ele comeou a observar que a estrutura psicolgica da mensagem (seja literatura ou ensinamento), a partir de um ponto de vista introspectivo (seus prprios sentimentos), era diferente de sua perspectiva de professor, que passa a lidar com as diferenas interindividuais das maneiras como um texto literrio ou um ensinamento era compreendido pelos diversos alunos (VaN DEr VEEr; VaLSINEr, 1999, p. 43).

    as razes que o intrigavam, ento, diziam respeito estrutura psicolgica das mensagens e ao domnio do simblico, presente, tanto na crtica literria quanto na Psicologia das interaes pessoais, ou seja, o papel dos processos psicolgicos na organizao da vida de uma pessoa (VaN DEr VEEr; VaLSINEr, 1999, p. 47).

    No ltimo ano e meio de sua vida, Vygotsky volta suas atenes e pesquisas para a relao entre educao e desenvolvimento em geral. Nesse perodo surge a abordagem sistmica, das zonas de desenvolvimento, que mais tarde seria consagrada como a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Segundo Vasconcellos (1998), houve vrias tentativas conceituais de Vygotsky para o que hoje conhecemos como zona de desenvolvimento proximal, porm, em todas elas, a nfase sempre recaa na participao do contexto scio-histrico-cultural no processo de desenvolvimento e aprendizagem da criana. Para Vygotsky, a interao entre os diferentes membros da cultura favorece a criao da ZDP. Esses membros podem ser adultos ou crianas de mesma idade ou de idades prximas, porm com capacidades e habilidades sociais diferentes. ao estar em contato com outros sujeitos, a criana no s desenvolve sentimentos, posturas corporais e sociais como tambm transforma seu nvel de desenvolvimento potencial em nvel de desenvolvimento atual (ou real).

    Vygotsky defendia a ideia de que, quando falamos no nvel de desenvolvimento de uma criana, estamos falando de, pelo menos, dois nveis de desenvolvimento, o atual e o potencial (VYGotSKY, 1995).

    a zona de desenvolvimento proximal se caracterizaria por uma certa tenso entre o nvel de desenvolvimento atual (aquilo que o sujeito j capaz de fazer e que pode ser observado pelo grupo social) e o nvel de desenvolvimento potencial (as funes intrapsquicas que o sujeito possui, mas que esto imersas em suas potencialidades). a resultante dessa tenso seria um novo nvel de desenvolvimento atual. assim, a criana tem um desempenho quando realiza alguma atividade sozinha, mas esse desempenho pode ser ampliado ou sofrer regresso quando realizado em companhia de um parceiro (criana ou adulto) mais ou menos experiente.

    a zona de desenvolvimento proximal a distncia entre o nvel de desenvolvimento real, que se costuma determinar atravs da soluo independente de problemas, e o nvel de desenvolvimento potencial, determinado atravs da soluo de problemas sob a orientao de um adulto ou em

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    colaborao com companheiros mais capazes (VYGotSKY, 1998a, p. 112).

    o desenvolvimento infantil em Vygotsky visto de forma prospectiva, isto , vai alm das aparentes capacidades apresentadas pelas crianas. Na zona de desenvolvimento proximal, o nvel de desenvolvimento atual encarado como fonte de possibilidades para o amadurecimento de funes embrionrias no indivduo592 e no como fim ltimo do processo de desenvolvimento (VaSCoNCELLoS; VaLSINEr, 1995).

    tudge (1996) nos mostra que Vygotsky no entendia o desenvolvimento humano como uma linha contnua, unidirecional, indo das habilidades menos competentes para as mais competentes. Concepes tradicionais da zona de desenvolvimento proximal preveem sempre a melhora dos parceiros menos competentes, mas, para ele:

    Uma interpretao mais ampla da zona de desenvolvimento proximal, na qual a zona se estenderia no somente frente da criana, mas por toda sua volta, pediria o desenvolvimento dos parceiros menos competentes, mas uma regresso para os parceiros mais competentes, j que o contexto social no qual os dois tipos de parceiros esto situados bastante diferenciado (tUDGE, 1996: p. 158).

    apesar da zona de desenvolvimento proximal ser, geralmente, relacionada ao processo de ensino-aprendizagem escolar, Vygotsky deixa brechas em sua formulao para pensarmos a zona de desenvolvimento proximal em contextos sociais mais gerais. relaes sociais

    59 2 Vygotsky chama essas funes embrionrias de brotos ou flores do desenvolvimento, ao invs de frutos do desenvolvimento (VYGotSKY, 1998, p. 113).

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    mltiplas formam contextos sociais de aprendizagem e desenvolvimento, assim como de transmisso de normas e valores culturais. Moll e Greenberg (1996), em sua pesquisa sobre atividades produtivas familiares e aprendizagem escolar, identificaram pedagogias familiares, isto , organizaes sociais identificveis para a aprendizagem (MoLL; GrEENBErG, 1996, p. 115-117).

    Vasconcellos (1998), ampliando a formulao de Vygotsky para a noo de zona de desenvolvimento proximal, afirma que: [...] o sujeito social, mesmo se sozinho, sempre estar num mundo mediado por recursos scio-culturais tais como objetos, organizao espacial, eventos, linguagem [...] (p. 4).

    assim, ainda que o sujeito, na execuo de uma tarefa, se encontre sozinho, essa aparente solido estar sempre mediada pela cultura. o ambiente social sempre dinmico, sendo palco de negociaes, mesmo que seja do sujeito com ele prprio, em que h constante quebra de sentido e significado das coisas para construo de novos sentidos e significados.

    Vygotsky abre possibilidade para pensarmos essa questo quando diz que:

    o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criana. No brinquedo, a criana sempre se comporta alm do comportamento habitual de sua idade, alm de seu comportamento dirio; no brinquedo como se ela fosse maior do que na realidade (VYGotSKY, 1998a, p. 134).

    Dizer que um sujeito pode criar a zona de desenvolvimento proximal sozinho, requer, como dissemos, certa ampliao da compreenso dessta noo. Parece-nos que a zona de desenvolvimento proximal, tal como postula Vygotsky, inicialmente, depende da presena de um parceiro mais experiente. No entanto, se pensarmos no papel mediador dos

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    signos e instrumentos culturais, podemos dizer que a criana estabelece uma zona de desenvolvimento proximal, na realizao de uma tarefa, se esses elementos mediadores lhe permitirem ir alm da situao concreta (VYGotSKY, 1995).

    as Contribuies de vygotsky para a eduCao

    a abordagem vygotskyana traz, para o mbito das discusses em torno da Educao e da Psicologia, questes relativas ao processo ensino-aprendizagem, interao professor-aluno e interao de crianas com idades prximas ou no. Como dissemos anteriormente, ao implicar a gnese social, no processo de desenvolvimento e aprendizagem, Vygotsky anuncia a importncia de se promover, no contexto educacional, situaes que possam ser partilhadas com outros parceiros e, na partilha, transformadas (VYGotSKY, 1998b).

    Para ele, a escola um lugar privilegiado para o desenvolvimento, pois favorece o aparecimento de situaes onde nvel de desenvolvimento potencial se transforma em atual. a criana ao entrar em contato com outras crianas e adultos torna-se mais capaz para resolver situaes-problema que a princpio lhes parecem estranhas ou impossveis. a escola propicia a incorporao de diferentes instrumentos culturais s distintas culturas pessoais.

    [...] companheiros diferentes, com propostas sociais e emocionais diferentes, permitem diferentes modos de interagir, nos diferentes momentos de desenvolvimento .... Eles organizam suas interaes... a partir de medidas prprias, ajustando-se uns aos outros em diferentes nveis: motor, afetivo, social e intelectual (VaSCoNCELLoS; VaLSINEr, 1995, p. 13).

    o paradigma vygotskyano redimensiona o valor das interaes sociais no contexto escolar e do professor, enquanto mediador e

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    participante dessas interaes. a interao da criana com uma pessoa mais experiente, nesse caso, o professor, pode transformar a relao da criana com o objeto do conhecimento. Porm, longe de postular uma pedagogia diretiva para a educao (oLIVEIra, 1995), Vygotsky destaca a importncia da escola para o desenvolvimento das crianas, pois nela os processos pedaggicos so processos intencionais de aprendizagem.

    Na escola, onde o aprendizado o prprio objetivo de um processo que pretende conduzir a um determinado tipo de desenvolvimento, a interveno deliberada um processo pedaggico privilegiado. os procedimentos regulares que ocorrem na escola demonstrao, assistncia, fornecimento de pistas, instrues so fundamentais para a promoo de um ensino capaz de promover o desenvolvimento. a interveno do professor tem, pois, um papel central na trajetria dos indivduos que passam pela escola (oLIVEIra, 1995, p. 12).

    No entanto, para Vygotsky, o aprendizado orientado para os nveis de desenvolvimento que j foram atingidos ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento global da criana, pois, o bom aprendizado somente aquele que se adianta ao desenvolvimento (VYGotSKY, 1998b, p. 116-117). Ele assinala a importncia da criao de ZDPs no contexto escolar.

    o professor pode e deve atuar como mediador proporcionando situaes que criem a zona de desenvolvimento proximal, atravs de planejamentos educacionais, de forma a promover um avano no aprendizado das crianas. Isso ocorre atravs do ensino, das brincadeiras e das interaes das crianas entre si, com os adultos educadores e no contato com os elementos fsicos (brinquedos, objetos e mveis) do ambiente e sua organizao (espao para manifestaes afetivas, corporais, emocionais de cada criana).

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    Esse ponto apresenta-se particularmente interessante, pois propostas pedaggicas tm apregoado a importncia de se manter crianas trabalhando em pares ou em pequenos grupos, como se isso, por si s, provocasse a melhoria na aprendizagem. a nfase dada por Vygotsky no est no fato da outra pessoa ser mais ou menos competente, mas, principalmente, se a interao e o ambiente em que ela se d fortalece, como capacidade individual, aquilo que a criana s consegue realizar com ajuda de outra pessoa.

    a ZDP pode ser construda no apenas pelos esforos propositais de quem instrui uma criana, mas tambm pela estruturao cultural do ambiente, de tal maneira que a criana em desenvolvimento , a qualquer tempo, guiada por seu ambiente no uso dos elementos ambientais que esto correntemente na ZDP. [...] No apenas a instruo, mas tambm o indivduo que aprende pode definir a ZDP, tendo em vista que um ambiente vital culturalmente estruturado proporciona o meio estimulador para a construo da ZDP pela prpria criana e, por isso mesmo, do desenvolvimento futuro da criana (VaLSINEr apud MoLL; GrEENBErG, 1996, p. 320).

    Esse planejamento do ambiente educacional, baseado nos conhecimentos que cada educador tem a respeito das habilidades das crianas no seu grupo ou faixa etria, deve ser construdo levando-se em conta muito mais o que as crianas podem fazer e no apenas o que elas j fazem. o arranjo espacial dos lugares destinados s crianas pode constituir-se numa fonte de possibilidades de desenvolvimento se estiver favorecendo sua ida alm da situao real e concreta (SaNtaNa, 2000).

    o valor atribudo s interaes e ao processo de desenvolvimento delineado pela zona de desenvolvimento proximal coloca

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    as diferenas, a heterogeneidade, como fator essencial na constituio da psicologia humana. So exatamente as diferenas de nveis de desenvolvimento, crenas, comportamentos, valores, experincias que tornam possveis a ajuda mtua e a partilha de situaes concretas (rEGo, 1995).

    Com a noo de ZDP, Vygotsky rompe com a idEia, comum a seu tempo, de estgios universais e sequenciais de desenvolvimento e indica um novo lugar para as interaes e o papel do educador no processo de desenvolvimento e aprendizagem. Para Vygotsky, a simples insero das crianas em ambientes informadores, ou o amadurecimento de funes no garante o caminho do desenvolvimento (VYGotSKY, 1998b). Para ele, a criana agente ativo e construtivo do seu desenvolvimento, tornando-se sujeito social, cultural e histrico, em processo perene de interao e reconstruo de seu meio social.

    ao postular as implicaes da instruo sistematizada (escolarizada), Vygotsky nos aponta que, na interao adulto-criana, no s as crianas adquirem novos conhecimentos, mas tambm os adultos tm seus saberes reformulados ao p-los em dilogo com parceiros de nveis culturais e de desenvolvimento diferenciados: as crianas. assim, a zona de desenvolvimento proximal o processo pelo qual a aprendizagem e o conhecimento impulsionam o desenvolvimento humano, em todas as etapas da vida.

    refernCias bilbliogrfiCas

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    CoLE, M.; SCrIBEr, S. Introduo. In: VYGotSKY, L. A

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    Formao Social da Mente. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998a, p. 01-18.

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    KoNDEr, L. O que dialtica. 27 ed. So Paulo: Brasiliense, 1998. (Coleo Primeiros Passos, 23)

    MoLL, L. C. (org.). Vygotsky e a educao: implicaes pedaggicas da psicologia scio-histrica. Porto alegre: artes Mdicas, 1996.

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    oLIVEIra, M. K. o Pensamento de Vygotsky como Fonte de reflexo sobre a Educao. Cadernos CEDES/Papirus, So Paulo, n. 35, p. 9-14, 1995.

    PINo, a. o Conceito de Mediao semitica em Vygotsky e seu

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Papel na Explicao do Psiquismo Humano. Cadernos CEDES, So Paulo, n. 24, p. 32-43, 1991.

    rEGo, t. C. r. a origem da Singularidade Humana na Viso dos Educadores. Cadernos CEDES, So Paulo, n. 35, p. 79-93, 1995.

    rIVIrE, a. La psicologia de Vigotski. Madrid: Visor, 1985.

    rIVIrE, a. El concepto de conciencia en vigotski y el origen de la psicologia histrico-cultural. In: SIGUN, M. (org.) Actualidad de Lev S. Vigotski. Barcelona: anthropos Ed. Del Hombre, 1987. Cap. 5, p. 128135.

    SaNtaNa, C. C. G. Vygotsky e a arquitetura das interaes: um estudo sobre o arranjo espacial em educao infantil. Niteri, 2000. Dissertao de Mestrado Ps-Graduao em Educao / UFF.

    tUDGE, J. Vygotsky, a zona de desenvolvimento proximal e a colaborao entre pares: implicaes para a prtica em sala de aula. In: MoLL, L. C. (org.). Vygotsky e a educao: implicaes pedaggicas da psicologia scio-histrica. Porto alegre: artes Mdicas, 1996. Cap. 6, p. 151-168.

    VaN DEr VEEr, r.; VaLSINEr, J. Vygotsky: uma sntese. 3 ed. So Paulo: Edies Loyola, 1999.

    VaLSINEr, J. Developmental Psychology in the Soviet Union. The Harvester Press, 1988.

    VaSCoNCELLoS, V. M. r. Zona de desenvolvimento proximal: a brincadeira na creche. In: FrEItaS, M. t. a. (org.). Vygotsky um sculo depois Juiz de Fora/MG: EDUFJF, 1998. Cap. 4, p. 47-72.

    VaSCoNCELLoS, V. M. r.; VaLSINEr, J. Perspectiva Co-construtivista na Psicologia e na Educao. Porto alegre: artes Mdicos, 1995.

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    VYGotSKY, L. A Formao Social da Mente. So Paulo: Martins Fontes, 1998a.

    VYGotSKY, L. O Desenvolvimento Psicolgico na Infncia. So Paulo: Martins Fontes, 1998b.

    VYGotSKY, L. Teoria e Mtodo em Psicologia. So Paulo: Martins Fontes, 1996.

    VYGotSKI, L. Obras Escogidas III. Problemas de Psicologia General. Madrid: Visor Distribuciones, 1995.

    VYGotSKY, L. Thought and Language. The MIt Press. The Genetic roots of Thought and Speech, 1986. cap.4.

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    as contribuies de vygotsky e bakhtin nas pesquisas em

    educao60Maria Teresa de Assuno Freitas61

    apresentando as questes

    Como pesquisadora e professora de um Programa de Ps-Graduao em Educao, tenho vivido e enfrentado os desafios de fazer e orientar pesquisas. o que se pretende com a pesquisa? a quem ela serve e para qu? Como escolher ou privilegiar uma determinada abordagem de pesquisa? qual o referencial metodolgico mais adequado para as questes postas hoje na educao? Essas e muitas outras indagaes se apresentam diante de ns no exerccio da pesquisa.

    que respostas encontrar? Essas questes aguam a reflexo e levam ao enfrentamento dos referenciais hegemnicos que tm orientado a pesquisa brasileira nas cincias humanas, na educao. Sem pretenses de realizar um levantamento histrico, vou situar numa viso rpida a presena de trs grandes referenciais que tm marcado o trabalho de pesquisa nessa rea.

    60 Este texto foi baseado no artigo publicado pela autora na revista Vertentes da UFSJ com o ttulo: A pesquisa em educao: questes e desafios.61 Doutora em Educao PUC-rio , Professora da Faculdade de Educao/UFJF e do Programa de Ps-Graduao em Educao/UFJF Pesquisadora do CNPq e da Fapemig.

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    REFERENCIAISINVEStIGatIVoS POSITIVISTA INTERPRETATIVISTA CRTICO

    Finalidade da investigao

    a explicaoo controlea predio

    a formulao de leis gerais.

    a compreenso, interpretao.

    No s compreender,

    mas transformar. No movimento

    da compreenso, a interpretao

    como possibilidade de mudana.

    Realidadeobjetiva e apreensvel

    No apreensvel diretamente, mas uma construo dos sujeitos

    em interao com a realidade.

    Construo dos mltiplos sujeitos que

    nela interagem, incorporando o

    conflito.

    Relao do pesquisador com o objeto da pesquisa

    Neutra e independente

    de valores

    So valorizadas as relaes influenciadas por fatores subjetivos

    que marcam a construo de

    significados. os valores do pesquisador influenciam na seleo do problema, da teoria

    e do mtodo.

    Desejo de mudana,

    compromisso com a

    emancipao humana.

    Produto final

    Explicao causal,

    generalizaes, analises

    dedutivas e quantitativas. Possibilidades de reproduo

    do evento

    anlises indutivas e qualitativas. Pesquisador construtor da realidade

    pesquisada.

    Interpretao = criao subjetiva

    anlises contextualizadas

    indutivas, qualitativas.

    So valorizados processos sociais coletivos. Crtica dos valores dados

    No Brasil, foi com a emergncia da Ps-Graduao nos anos 60, e depois com sua expanso, que de fato se configura um

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    quadro no qual a pesquisa educacional ganha visibilidade em seu campo especfico. Em seu incio, as pesquisas educacionais se pautaram especialmente no referencial positivista, prprio das cincias naturais e exatas que j tinham tradio no meio acadmico. Esse referencial esteve e est ainda muito presente em nossa formao de pesquisadores. tendo como finalidade da investigao a explicao, o controle, a predio, a formulao de leis gerais e considerando a realidade como objetiva e apreensvel, entende a relao do sujeito conhecedor com o objeto de pesquisa como neutra, independente de valores. o que interessa na perspectiva positivista a explicao causal, as generalizaes, anlises dedutivas e quantitativas, centradas nas possibilidades de reproduo do evento.

    o referencial interpretativista, que assume destaque a partir da dcada de 80, coloca como finalidade da investigao a compreenso e a interpretao, tendo a convico de que o real no apreensvel diretamente, mas, sim, uma construo dos sujeitos que entram em relao com ele. assim, o que valorizado, na relao do sujeito com o objeto de investigao, so as relaes influenciadas por fatores subjetivos que marcam a construo de significados que emergem no campo. So produzidas anlises indutivas, qualitativas, centradas sobre a diferena. Nessa perspectiva, os valores do pesquisador influenciam na seleo do problema, da teoria e dos mtodos de anlise. o pesquisador torna-se um construtor da realidade pesquisada pela sua capacidade de interpretao entendida como uma criao subjetiva dos participantes envolvidos nos eventos do campo. Essa abordagem, ao conceber a realidade como construda pelos sujeitos que com ela se relacionam, assinala j uma mudana, uma contraposio em relao ao modelo positivista e racionalista.

    o referencial crtico, que emerge a partir dos anos 70 e ganha fora sobretudo nos anos 80, tem como finalidade da investigao no apenas o compreender, mas principalmente o transformar.

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    No movimento de compreenso, identifica o potencial de mudana a partir de atitudes de interveno. Compreende a realidade como uma construo dos mltiplos sujeitos que nela interagem, incorporando o conflito. a relao do pesquisador com o objeto de pesquisa marcada pelo desejo de mudana, pelo compromisso com a emancipao humana. Suas anlises contextualizadas, indutivas, qualitativas, centradas na diferena se assemelham s do modelo interpretativista, mas valorizam a importncia dos processos sociais coletivos. H, pois, uma preocupao com a crtica dos valores dados, das ideologias. Esto presentes a os aportes do materialismo histrico.

    Em relao a esses referenciais investigativos, so percebidas em nosso meio acadmico educacional insatisfaes e indefinies. Crticas so feitas, de um lado, ao modelo positivista e de outro abordagem interpretativista. H, ainda, uma descrena quanto s possibilidades atuais da perspectiva crtica. Diante desse quadro, novas perguntas se formam e inquietam. Se no adotarmos as anlises objetivas do positivismo nem as construes interpretativas das anlises subjetivas, o que colocar no lugar? Existe um espao para o referencial crtico centrado na importncia dos processos sociais coletivos? Enfim, essas situaes so um indicativo de uma crise dos referenciais da investigao educativa?

    formulando respostas

    Em uma tentativa de resposta, penso que, para uma melhor compreenso das questes formuladas, preciso ir sua gnese e refletir sobre o fenmeno em movimento e evoluo, em sua historicidade, como o sugere Vygotsky (1991) ao escrever sobre o mtodo em pesquisa. Para este autor:

    Estudar alguma coisa historicamente significa estud-la no processo de mudana; esse o requisito bsico do mtodo dialtico. Numa pesquisa, abranger o processo de

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    desenvolvimento de uma determinada coisa, em todas as suas fases e mudanas do nascimento morte significa, fundamentalmente, descobrir sua natureza, sua essncia, uma vez que somente em movimento que um corpo mostra o que (VYGotSKY, 1991, p. 74).

    as questes que apresentei no item anterior assinalam a existncia de uma crise nos prprios referenciais tericos das cincias humanas e, portanto, tambm dos referenciais da investigao em educao. Para compreender essa crise, busco apoio em uma anlise feita por Frigotto (2004). Para ele, essa crise tem a sua gnese na prpria crise atual do sistema capitalista, que acompanhada de uma fora destrutiva de direitos, e na crise da teoria social para apreender a natureza dessa sociabilidade e as formas de nela intervir. Frigotto aponta, apoiando-se em Mszaros (2003), que o que est em crise a relao social que funda o modo de produo capitalista, e a partir da destaca trs dimenses articuladas dessa crise: a) esgotamento da sua capacidade civilizatria; b) capacidade exponencial de produzir mercadorias, concentrao de riqueza e de poder e sua incapacidade de distribuir e de socializar a produo para o atendimento das necessidades humanas bsicas; e c) a hipertrofia do capital financeiro especulativo que ameaa o pilar fundamental do capital: a propriedade privada (2004, p. 6). Essas dimenses acabam por sinalizar que o capital j no tem o que colocar em seu lugar seno a barbrie e o aniquilamento das bases sociais e materiais da vida humana (FrIGotto, p. 7). Na mesma linha de pensamento Ghedin e Franco (2006) assinalam que vivemos num mundo em que o ser-sujeito se transforma em ser-objeto na perspectiva do positivismo. Essa transformao de ser- sujeito em ser-objeto operada dentro do sistema capitalista fazendo com que essa objetivao se mostre como um processo que se reproduz naturalmente no interior de nossa sociedade.

    primeira vista, tais constataes podem levar a uma atitude de pessimismo e de impotncia diante da situao que se apresenta.

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    Impotncia que pode gerar um no fazer, uma acomodao. No entanto, preciso buscar novas possibilidades, descobrir sistemas alternativos. E a esteja talvez o papel transformador da teoria e da investigao social e educativa: ter acuidade para compreender essa crise do capital e vislumbrar os indcios em que se aglutinam os interesses e as foras, capazes de produzir uma alternativa de relaes sociais. Essa no apenas uma questo de ordem terica e poltica, mas, fundamentalmente, uma questo tica.

    Pensando sobre essa situao, compreendo que as teorias so parte da realidade social e ao mesmo tempo interferem sobre a mesma. Elas refletem e retratam essa realidade. as teorias so organizadas a partir de textos, de uma linguagem que reflete e retrata o mundo. Portanto, elas no s descrevem o mundo, mas constroem, na dinmica da histria, diversas formas de nele intervirem. todo o conhecimento produzido nas cincias humanas tem seu ponto de partida e chegada nos processos da vida humana historicamente construdos. assim, no dizer de Frigotto (2004), o materialismo histrico, por ser uma concepo ontolgica, histrica e cientfica, consegue

    ir raiz da condio humana, no interior das relaes sociais capitalistas, de forma mais abrangente e radical em relao s demais concepes e teorias vigentes. tambm e por conseqncia, este instrumental crtico permite revelar a natureza anti-social e anti-humana das relaes capitalistas (p. 3).

    E isso tem implicaes com a pesquisa na rea da educao. o que apontam Ghedin e Franco (2006) ao dizerem que a responsabilidade de toda pesquisa fazer o conhecimento avanar. Indicam que para tal preciso dominar o contedo, os conceitos, os mtodos e os procedimentos de cada rea que se investiga. Insistem em mostrar que a relao dessa dinmica com a realidade que torna o processo investigativo cada vez mais

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    complexo e exigente. a realidade complexa e o conhecimento sobre ela nem sempre acompanha essa complexidade. Essa aproximao entre a complexidade da realidade e do conhecimento que torna exigente o processo investigativo. os autores (GHEDIN e FraNCo, 2006) comentam ainda sobre o esforo da Educao e das Cincias Humanas para conseguir avanos nesse sentido, reinventando metodologias que procuram dar conta da complexidade exigida pelos objetos que se busca conhecer. Pesquisar refletir sobre a realidade. Ns tornamos os problemas evidentes quando permitimos que falem por intermdio da pesquisa e do pesquisador. Nisso est uma relao de intimidade conflitante entre sujeito e objeto pesquisado, e isso que possibilita o conhecimento, a explicao e a compreenso de uma dada realidade. Da que pesquisar/estudar um compromisso poltico, assumindo eticamente os destinos de nossa sociedade.

    refletir e investigar as formas diferenciadas de conhecimento e seus modos de produo e construo por meio de alternativas de pesquisa em Educao de fundamental importncia no momento em que a liberdade perde seu espao para o desconhecimento, a ignorncia, o fundamentalismo e a corrupo. Predominantemente, a pesquisa h de se propor como instrumento fomentador de conscincias e aes crticas, que no s compreendam a existncia e o mundo de modo diferente, mas que procurem produzir uma existncia e um mundo qualitativamente melhor (GHEDIN; FraNCo, 2006, p. 19).

    a pesquisa qualitativa de abordagem sCio-HistriCo-Cultural: uma alternativa possvel?

    Compreendendo que o conhecimento historicamente construdo e que a pessoa est implicada em sua construo, vejo que a escolha de um referencial terico tem a ver com a viso de homem e de mundo do pesquisador. Se o homem para o

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    pesquisador um ser scio-histrico, ativo, transformador, criador de significaes, isso se refletir certamente em sua maneira de pesquisar, de produzir conhecimento e, portanto, na escolha de um referencial terico de trabalho. Se o pesquisador v o mundo em seu acontecer histrico, em uma dimenso de totalidade sem separar conhecer/agir, cincia/vida, sujeito/objeto, homem/realidade, escolhe como norteadores de seu trabalho referenciais tericos de base scio-histrico-cultural capazes de fornecer os meios para se compreender no coisas e fragmentos de coisas, mas a prpria condio humana. refletindo sobre a realidade do homem e do mundo contemporneo, nesse momento de barbrie criada pelas relaes postas pela sociedade capitalista, numa globalizao que mais fragmenta que une, e buscando alternativas viveis de restaurar no homem sua humanidade, procuro para as cincias humanas referenciais que no tenham deles expulsado o sujeito, mas que, centrando-se no sujeito, o vejam inserido no mundo e na histria; desse modo, abordagens que focalizem a realidade humana em uma perspectiva de totalidade e nela se impliquem buscando formas alternativas de superao.

    Esses argumentos justificam por que me identifico com as teorias de autores como Vygotsky e Bakhtin. Suas teorias, fundamentadas no materialismo histrico dialtico, foram gestadas a partir de suas insatisfaes e crticas em relao aos reducionismos das concepes empiristas e idealistas indicando perspectivas de super-los.

    Vygotsky (1991), insatisfeito com o que chamou de a crise da psicologia de seu tempo cindida entre a mente e o corpo, entre os aspectos internos e externos, prope uma teoria psicolgica capaz de conceber conscincia e comportamento como elementos integrados de uma mesma unidade. Em sua crtica aos modelos psicolgicos objetivistas e subjetivistas apresentou mais do que uma terceira via, um caminho que constitua uma verdadeira ruptura, mostrando a necessidade de um paradigma unificador

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    que restabelecesse a integrao ausente. assim, elaborou sua teoria social do desenvolvimento compreendendo o sujeito como constitudo no a partir dos fenmenos internos ou como produto de um reflexo passivo do meio, mas construdo nas relaes sociais via linguagem (FrEItaS, 1994).

    Bakhtin (1988,2003) se preocupou em criticar, em diferentes disciplinas, as vises dicotmicas e fragmentrias, opondo a elas uma viso integradora. o que faz em relao lingstica de seu tempo, que no o satisfaz, por valorizar na linguagem apenas os sistemas abstratos de normas ou a expresso monolgica isolada, privilegiando de um lado a objetividade de um sistema lingstico abstrato e inerte e de outro a lngua enquanto criao individual. Procura a superao dessas posies fragmentrias considerando que a interao verbal a realidade fundamental da lngua (BaKHtIN, 1988, p. 30) e constri assim o que chamou de uma metalingstica ou translingustica. tambm, diante da psicologia, critica o subjetivismo e o objetivismo, que isolam aspectos internos e externos, privilegiando ora o fisiolgico, ora a vivncia interior, propondo como alternativa uma psicologia de base sociolgica na qual considera a conscincia individual como um fato scioideolgico. Bakhtin (1988) concebe, assim, que o psiquismo se situa num entrelugar: entre o organismo e o mundo exterior, e a forma de mediar a relao entre os dois se materializa nos signos, na linguagem.

    assim, se esses dois autores constroem suas teorias numa perspectiva de superao dialtica de modelos j existentes, que contribuies podem trazer para a pesquisa educacional?

    trabalhando com a perspectiva scio-histrico-cultural h vrios anos, realizando pesquisas e orientando dissertaes por ela fundamentadas, essa questo foi se fazendo presente, levando-me a formular algumas tentativas de respostas em um esforo de reflexo e estudo, que se evidenciaram em alguns textos por mim produzidos (FrEItaS, 2000, 2002, 2003). Neles,

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    preocupei-me em discutir como a perspectiva scio-histrico-cultural pode representar um caminho significativo para uma forma outra de produzir conhecimento no campo das cincias humanas. Considerei, ainda, que essa perspectiva terica traz implicaes que se refletem nas caractersticas processuais e ticas do fazer pesquisa em cincias humanas, exigindo uma coerncia do pesquisador na concepo e uso dos instrumentos metodolgicos para a coleta e anlise de dados, bem como na construo dos textos com a discusso dos achados.

    outros pesquisadores (aMorIM, 2001, 2002, 2003; JoBIM; SoUZa, 2002, 2003; KraMEr, 2002, 2003; rEY, 1999; BoCK et al., 2001),assumindo essa mesma posio, tambm se dedicaram a produzir trabalhos que tm contribudo para aprofundar questes relacionadas ao tema.

    Em um destes meus trabalhos anteriores (FrEItaS, 2002), defendi que a abordagem scio-histrico-cultural, ao compreender que o psiquismo constitudo no social num processo interativo possibilitado pela linguagem, pode permitir o desenvolvimento de alternativas metodolgicas que superem as dicotomias objetivo/subjetivo, externo/interno, social/individual. tambm ao assumir o carter histrico-cultural do sujeito e do prprio conhecimento como uma construo social, esse enfoque consegue opor aos limites estreitos da objetividade uma viso humana da construo do conhecimento. Para Vygotsky (1991), uma das metas da pesquisa conservar a concretude do fenmeno estudado, sem ficar nos limites da mera descrio, isto , sem perder a riqueza da descrio, avanar para a explicao. Considerando que o que faz da atividade psquica uma atividade psquica a sua significao, Bakhtin (2003) tambm assume que o estudo nas cincias humanas no pode se restringir a explicar os fenmenos pela sua causalidade, mas deve se preocupar tambm em descrev-los. Em Luria (1983), colaborador de Vygotsky, h tambm uma preocupao em encontrar um mtodo de pesquisa compatvel com o homem

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    concreto e social integrando a compreenso da realidade com uma anlise racional e explicativa. Esses autores veem, portanto, a necessidade de uma pesquisa que focalize concretamente os fatos, aliando a compreenso explicao. Dessa maneira, considero que a abordagem scio-histrico-cultural aponta para uma outra maneira de produzir conhecimento, envolvendo a arte da descrio complementada pela explicao, enfatizando a compreenso dos fenmenos a partir de seu acontecer histrico, no qual o particular considerado uma instncia da totalidade social. a pesquisa, nessa orientao, vista, pois, como uma relao entre sujeitos, portanto dialgica, na qual o pesquisador e pesquisado so partes integrantes do processo investigativo e nele se ressignificam.

    retomando agora, a questo apresentada no incio desse item, sobre as contribuies que as teorias de Vygotsky e Bakhtin podem trazer para a pesquisa educacional, considero que possvel dizer, que esses autores realizam uma verdadeira ruptura epistemolgica ao pensarem as cincias humanas para alm do conhecimento objetivo, ampliando o conceito de cincia, concebendo e interpretando os fatos humanos numa forma outra que inclui as dimenses tico e esttica (FrEItaS, 1996, p. 170, grifos nossos).

    um dilogo Com os referenCiais da pesquisa eduCaCional

    Como se situa essa forma de produzir conhecimento que anuncia para as cincias humanas uma forma outra de pesquisa, em relao aos referenciais de investigao positivista, interpretativo e crtico? Como eles se diferenciam na relao sujeito/objeto de pesquisa?

    Vygotsky e Bakhtin criticam os paradigmas hegemnicos de sua poca que, em uma preocupao com a cientificidade das cincias humanas, coisificam o sujeito. Essa crtica especialmente dirigida ao paradigma positivista que em sua convico de que a realidade objetiva e apreensvel, considera a cincia como

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    um conhecimento positivo, verdadeiro, obtido sob condies controladas. Essa perspectiva acaba por divorciar cincia e vida, conhecer e agir, homem e realidade. a partir desse quadro, impossvel pensar a pesquisa como um encontro entre sujeitos, uma vez que a relao a de um pesquisador (sujeito) que deve colocar em suspenso sua subjetividade, adotando atitudes neutras para enfrentar no um outro sujeito, mas um objeto explicado por suas relaes de causa e efeito.

    Nas palavras de Faraco (1996), Bakhtin, contrapondo-se a essa reificao e fragmentao do homem, se dispe a pensar a pesquisa como uma forma de compreender a prpria condio do homem. olhando para as cincias humanas e as naturais/exatas, Bakhtin (2003) reconhece que elas se diferenciam principalmente na relao que estabelecem com seu objeto de estudo. enfrentando esse aspecto diferenciador que ele se arrisca a dizer que as cincias naturais/exatas representam uma forma monolgica do conhecimento.62 Monolgica, no sentido de que apenas uma voz se faz ouvir: a do pesquisador, que assume uma atitude contemplativa, de quem observa e se expressa sobre o objeto observado. Como este no tem voz, no falante, mas falado. Na situao de pesquisa, apenas o pesquisador o sujeito, aquele que contempla o objeto e fala sobre ele.

    Bakhtin (2003) se contrape ao pensamento positivista que considera os fatos sociais como coisas compreensveis pela via da observao e da experimentao, afirmando que o texto o ponto de partida das disciplinas das cincias humanas: onde no h texto, tambm no h objeto de pesquisa e de pensamento (p. 307). Considerar o homem independentemente dos textos que cria significa, portanto, situ-lo fora do mbito das cincias humanas (FrEItaS, 2002). Para Bakhtin (2003), essas

    62 preciso atentar para o fato de que Bakhtin est afirmando esse monologismo das cincias exatas no no seu todo, mas apenas no que se refere relao com o seu objeto, que, por ser coisa, no pode falar, no pode dirigir-se ao pesquisador.

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    cincias tm como objeto o homem, um ser social que fala e se expressa. No sendo coisa, nem fenmeno natural, o homem est sempre falando, criando textos. No h possibilidades de se chegar at o homem, sua vida, seu trabalho, sua luta, seno atravs dos textos sgnicos criados ou por criar. a ao fsica do homem tem de ser compreendida como um ato, porm o ato no pode ser compreendido fora de sua expresso sgnica que por ns recriada. quando estudamos o homem procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado (BaKHtIN, 2003, p. 319).

    por tudo isso que, nas cincias humanas, o pesquisador no pode se limitar ao ato contemplativo, pois, diante de si, h um ser que tem voz e precisa falar com ele, estabelecer uma interlocuo.

    Inverte-se, desta maneira, toda a situao que passa de uma interao sujeito-objeto para uma relao entre sujeitos. De uma orientao monolgica passa-se a uma perspectiva dialgica. Isso muda tudo em relao pesquisa, uma vez que investigador e investigado so dois sujeitos em interao. o homem no pode ser apenas objeto de uma explicao produto de uma s conscincia, de um s sujeito, mas deve ser tambm compreendido, processo esse que supe duas conscincias, dois sujeitos, portanto dialgico (FrEItaS, 2002, p. 24-25).

    Dilogo marcado pela perspectiva da alteridade, do reconhecimento do outro como um no eu diferente e essencial conclusividade do prprio eu. Conclusividade essa que se torna possvel a partir do movimento exotpico dos interlocutores. Esse movimento compreendido atravs do conceito de exotopia elaborado por Bakhtin no interior de sua arquitetnica dialgica. o outro que fora de mim tem condies de ver em mim aquilo que no consigo ver a meu respeito. Esse excedente de viso do outro que permite que se complete a viso que tenho de mim.

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    quanto ao referencial interpretativista, no h propriamente uma crtica explcita dos tericos scio-histrico-culturais, havendo inclusive pontos de contato entre as duas abordagens como a preocupao com a compreenso, a construo de significados, a construo do real pelos sujeitos envolvidos etc. No entanto, no referencial interpretativista, o pesquisador, ao interrogar-se diante do outro, tomando a cultura como objeto de descrio analtica e de reflexo interpretativa, continua ainda numa posio privilegiada em relao produo do conhecimento sobre o outro. Como afirma Bernardes (2003):

    no/pelo texto interpretativo (seja o representativo do final da pesquisa ou mesmo de dirios e notas de campo) que exerce a sua autoridade, ora absorvendo totalmente o ponto de vista do outro, ora reduzindo-o ao seu prprio ponto de vista (p. 80).

    Sem pretender ignorar a dimenso social presente na perspectiva interpretativista, principalmente nas correntes antropolgicas ps-modernas, no posso deixar de assinalar que a sntese entre a objetividade e a subjetividade ainda permanece um pouco distante. a interpretao acaba por enfatizar o plano subjetivo. Nesse sentido, poderia atribuir ao modelo interpretativista as crticas que Vygotsky faz ao subjetivismo psicolgico e Bakhtin, ao subjetivismo idealista em relao lingustica. Bakhtin tambm, no texto Por uma filosofia do ato (1999), apresenta uma reflexo que pode subsidiar uma crtica dos traos subjetivistas do modelo interpretativista. Para ele, a ciso entre o contedo de um ato e a realidade histrica da existncia faz com que este perca a sua capacidade de ser valorado, pois s um ato em sua totalidade real e participa no acontecimento unitrio do ser. Na perspectiva scio-histrica, o sujeito, apesar de singular, sempre social e a compreenso se d na inter-relao pesquisador/pesquisado. Esse movimento interlocutivo um acontecimento constitudo pelos textos criados, pelos enunciados que so

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    trocados. os sentidos construdos emergem dessa relao que se d numa situao especfica e que se configura como uma esfera social de circulao de discursos. os textos que dela emergem marcam um lugar especfico de construo do conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridade, possibilitando o encontro de muitas vozes que refletem e retratam a realidade da qual fazem parte. assim, de acordo com o pensamento de Bakhtin (1988, 1992), a compreenso um evento dialgico, pois, sendo responsiva, exige uma participao ativa dos interlocutores. a compreenso responsiva que, na ao de ouvir a voz do outro, contm em si o grmen de uma resposta, transcende a uma mera empatia. Essa apenas um dos momentos do processo compreensivo, o momento subjetivo, que, sozinho, incompleto. apenas colocar-se no lugar do outro, procurar ver como ele se v no pode proporcionar o conhecimento do ser nico em seu acontecer. Como afirma Bakhtin (1999): S minha posio exotpica, que me d um excedente de viso em relao ao outro pode me levar a compreend-lo com sua relao a mim no acontecimento singular do ser (p. 23)63. Isso no pressupe abstrair-me de mim mesmo, mas, pelo contrrio, exige a minha participao responsvel. Bakhtin (1992), ao falar sobre o excedente de viso que se tem em relao ao outro, descreve muito bem esse processo:

    Devo entrar em empatia com esse outro indivduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o v; colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, contemplar o horizonte dele com o excedente de viso que desse meu lugar se descortina fora dele, convert-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha viso, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (p. 23).

    63 traduo livre da edio em espanhol.

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    Essa volta ao seu lugar indispensvel ao pesquisador, pois consiste no momento mais importante do processo compreensivo, o momento da objetivao, no qual me afasto da individualidade apreendida na empatia retornando a mim mesmo, para focaliz-la do lugar em que me situo. Sem este retorno no h compreenso, mas apenas identificao. Essa volta ao seu lugar que permite ao pesquisador ter condies de dar forma e acabamento ao que ouviu e complet-lo com o que transcendente sua conscincia. Deste lugar fora do outro, portanto exotpico, que o pesquisador pode ir construindo suas rplicas que, quanto mais numerosas forem, indicam uma compreenso mais real e profunda (BaKHtIN,1988, p. 132). a compreenso bakhtiniana implica duas conscincias, dois sujeitos, sendo, desse modo, uma forma de dilogo: consiste em opor ao interlocutor a sua contrapalavra. S na corrente dessa comunicao que possvel que se construam sentidos. Sentidos cuja apreenso, na tica de Vygotsky (1991), s se dar ao compreendermos as foras fundamentais que os constituram, ou seja, seus determinantes. o papel do pesquisador no consiste, pois, em simplesmente descrever e compreender a realidade, como quer o referencial interpretativista, mas em construir um conhecimento que desvele a realidade a partir dos textos que emergem nas interlocues da situao de pesquisa. Da que o encontro dos sujeitos se faz no s no plano individual como acontece no referencial interpretativista, mas, sobretudo, social, um encontro de culturas, de contextos.

    Colocamos para a cultura do outro novas questes que ela mesma no se colocava; nela procuramos respostas a essas questes, e a cultura do outro nos responde, revelando-nos seus novos aspectos, novas profundidades do sentido. Sem levantar nossas questes no podemos compreender nada do outro de modo criativo ( claro desde que se trate de questes srias, autnticas). Nesse encontro dialgico de duas culturas elas no se fundem nem se confundem; cada uma mantm a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente. (BaKHtIN, 2003, p. 366).

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    a proximidade da pesquisa de abordagem scio-histrico-cultural com o referencial crtico se faz evidente pela sua fundamentao comum: o materialismo histrico dialtico.

    as categorias metodolgicas da dialtica, numa perspectiva materialista, permitem o movimento da aparncia para a essncia; do emprico e abstrato para o concreto; do singular para o universal a fim de alcanar o particular; permitem tomar as totalidades como contraditrias. aliadas noo de que o sujeito ativo, em relao com o objeto, histrico, tais categorias respondem necessidade de conhecimento do diverso, das particularidades, do movimento, sem cair no relativismo e sem perder o sujeito, que, assim entendido, necessariamente integral, pleno. Permitem, ao mesmo tempo, explicar e compreender (GoNaLVES, 2001, p. 124).

    o mtodo dialtico constitui-se, pois, como uma alternativa metodolgica que, ao assinalar a possibilidade de superao da dicotomia sujeito-objeto, indica a necessidade e a possibilidade de transformao da sociedade. ao romperem com os limites da cientificidade, Vygotsky e Bakhtin propem uma sntese dialtica entre os referenciais positivista e interpretativo. Esta sntese dialtica pode ser encontrada no interior do referencial crtico. Enquanto o referencial positivista est fundado na explicao e o interpretativista na compreenso, o crtico tem como finalidade a transformao. Ele parte da realidade visando mudana pela interveno. Se para Bourdier (1998), a pesquisa realizada para compreender, no sentido bakhtiniano a compreenso ativa, respondente e, dessa forma, pesquisar tambm pode ser visto como transformar. Para Frigotto (1987), a dialtica materialista se explicita

    ao mesmo tempo como uma postura, um mtodo de investigao e uma prxis, um movimento de superao e de transformao. H, pois, um trplice movimento: de crtica,

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    de construo do conhecimento novo e da nova sntese no plano do conhecimento e da ao (p. 10).

    Para esse autor, portanto, a reflexo terica sobre a realidade no uma reflexo diletante, mas uma reflexo em funo da ao para transformar. a pesquisa de abordagem scio-histrico-cultural, ao passar da descrio e compreenso do que o outro apresenta para uma compreenso ativa, vai mais alm, gerando uma resposta ao visto, ao dito e no dito. E essa resposta implica em ajudar o outro a avanar, a caminhar, a sair do lugar. assim, a pesquisa deixa de ser somente diagnstico para ser pesquisa interveno.

    Como compreender a pesquisa educacional como um encontro entre sujeitos que pode se desenvolver de forma a levar a uma ressignificao de seus participantes? qual o sentido da interveno nesse processo? Como interferir sem determinar? Mais do que compreender como assumir isso na prtica?

    a prpria perspectiva histrico-cultural que subsidia uma reflexo em resposta a essas questes. Bakhtin (1985), no conjunto de sua arquitetnica, conjuga uma preocupao tica e esttica na formao humana. Considera o homem como uma unidade responsvel: o ato de conhecer enquanto um ato tico me integra com todo o seu contedo na unidade de minha responsabilidade por meio da qual eu vivo e atuo efetivamente ( 1999, p. 20). assim, o acontecimento nico de ser se realiza atravs de mim e atravs dos outros, pois a unicidade singular de cada um no pode ser concebida seno na vivncia participativa. Portanto, a vida em sua totalidade um ato tico complexo no qual ser em sua qualidade de acontecer se concretiza no encontro do eu com o outro.

    Consideraes finais

    Em sntese, no referencial positivista, o pesquisador se coloca

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    em uma situao de iseno diante da realidade, enquanto, no referencial interpretativista o pesquisador se detm em olhar a realidade e construir dela uma interpretao. Diferentemente, no referencial crtico, existe da parte do pesquisador um compromisso com a transformao da realidade. Essa a posio da perspectiva scio-histrico-cultural: compreenso que se realiza no encontro entre sujeitos. Encontro que tensiona e que faz emergir as contradies. Encontro que leva a um comprometimento, uma vez que ser no mundo compromete. Fazer pesquisa, pois, no um ato solitrio e individual. antes de tudo um ato responsvel. qual o nosso compromisso enquanto educadores e pesquisadores? que sociedade queremos e precisamos construir? a pesquisa educacional est a servio de quem e do qu? que pesquisas estamos produzindo em nossas universidades e em nossos programas de ps-graduao? a partir delas, que realidade estamos desvelando e compreendendo? que possibilidades esto apontando para uma interveno transformadora da realidade? quais as indicaes de alternativas para os problemas numerosos e graves da educao? Nossas pesquisas esto dando subsdios para novas polticas educacionais mais emancipatrias e democrticas? ao responder a essas questes, estaremos refletindo sobre o sentido histrico, social, poltico e tcnico de nossas pesquisas. que esse exerccio crtico sobre a produo de conhecimento na rea da educao possa nos levar a aes consequentes e responsveis.

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    produo do conhecimento no contexto da escola. Cadernos de Pesquisa, So Paulo, n. 116, p. 61-80, jul. 2002.

    KraMEr, S. autoria e autorizao: questes ticas na pesquisa com crianas. Cadernos de Pesquisa, So Paulo, n. 116, p. 41-60, jul. 2002.

    ______. Entrevistas coletivas: uma alternativa para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa em cincias humanas. In: FrEItaS, M. t. a; JoBIM E SoUZa, S.; KraMEr, S. (org.). Cincias humanas e pesquisa. Leituras de Mikhail Bakhtin. So Paulo: Cortez, 2003.

    LUrIa, a. r. Uno sguardo sul passato. Considerazioni retrospettive sulla vita di uno psicologo sovietico. Firenze: Giunti Barbra, 1983.

    MSZroS, I. Para alm do capital. So Paulo: Boitempo, 2003.

    rEY, F. G. La investigacin cualitativa en psicologia. rumbos y desafios. So Paulo: Educ, 1999.

    VYGotSKY, L. A formao social da mente. So Paulo: Martins Fontes, 1991.

    ______. Obras escogidas. Madrid: Visor, 1995. v. 3.

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    questes sobre metodologia de pesquisa

    Cludia Maria Mendes Gontijo64

    introduo

    a partir do final da dcada de 1980, as pesquisas, no campo da educao, passam a ser fecundadas por orientaes da perspectiva histrico-cultural na Psicologia e da perspectiva bakhtiniana de linguagem. Porm, ainda na dcada de 1990, o estudo, principalmente dos trabalhos de Vigotski, era difcil, pois as obras traduzidas do ingls para o portugus dificultavam a compreenso dos pressupostos essenciais que orientam os estudos desse autor. Entretanto, a conciliao da leitura desses trabalhos com a leitura dos textos de Leontiev e de Luria nos ajudou a no perder de vista a vinculao epistemolgica que orienta os estudos de Vigotski.

    interessante notar que preferimos utilizar a denominao histrico-cultural para nos referirmos aos trabalhos de Vigotski e seus colaboradores. Conforme assinala Pino (2005) e o prprio Vigotski, no manuscrito traduzido com o ttulo Psicologia concreta do homem, a noo de histria e de cultura fundamental nas teorizaes de Vigotski. So exatamente esses conceitos que diferenciam a perspectiva histrico-cultural de outras vertentes tericas no campo da Psicologia, notadamente, as de carter biopsicologizante.

    ao estudar a alfabetizao em uma perspectiva histrico-cultural, fomos percebendo que esse tipo de estudo implicava vrios

    64 Professora da Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de Educao, Departamento de Linguagem, Cultura e Educao. Integrante da linha de pesquisa Educao e Linguagens do Programa de Ps-Graduao em Educao.

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    desafios: o primeiro diz respeito a que estudos dessa natureza levariam necessariamente ao rompimento com concepes de alfabetizao que se tornaram hegemnicas no Brasil. o segundo diz respeito apropriao de conceitos essenciais para compreenso da alfabetizao. o terceiro desafio era construir, a partir da perspectiva desses autores, uma metodologia apropriada investigao do processo de apropriao da linguagem escrita, portanto, adequada ao objeto de estudo e, tambm, teoria que orientava os estudos.

    a definio de uma abordagem metodolgica que leve em conta a perspectiva terica que orienta o estudo no uma tarefa fcil para o investigador; porm necessria para garantir uma busca profunda e radical das determinaes e mediaes histricas que constituem o fenmeno social a ser destacado na pesquisa (GoNtIJo, 2003, p. 24).

    assim, este texto ser dividido em trs partes. Na primeira, abordaremos conceitos centrais da perspectiva histrico-cultural que tm orientado os nossos estudos no campo da alfabetizao. Na segunda, trataremos das questes metodolgicas e, na terceira, analisaremos dados de uma pesquisa que teve por finalidade investigar a apropriao da escrita pelas crianas em fase de alfabetizao escolar. Essa pesquisa foi desenvolvida nos anos de 2002 e 2003 e os resultados do trabalho foram publicados no livro A escrita Infantil (GoNtIJo, 2008).

    os ConCeitos de apropriao e de mediao 65

    Vigotski iniciou a elaborao dos seus estudos na dcada de vinte, portanto, em um momento em que surgia a grande crise na Psicologia em funo do choque entre as duas direes tomadas nesse campo. Segundo Luria, no texto O problema da linguagem e a conscincia, a crise

    65 o texto que compe este item foi publicado, primeiramente, no livro intitulado A criana e a linguagem escrita (GoNtIJo, 2003).

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    consistiu em que a psicologia praticamente dividiu-se em duas disciplinas independentes. Uma, a psicologia descritiva ou psicologia da vida espiritual (Geisteswissenschaftliche Psychologie), reconhecia as formas superiores complexas da vida psquica, mas negava a possibilidade de sua explicao e limitava-se sua fenomenolgica ou descrio. a outra, a psicologia explicativa ou cientfica natural (Erklrende Psychologie), entendia que sua tarefa era a construo de uma psicologia cientificamente fundamentada, mas se limitava explicao dos processos psquicos elementares, negando-se, em geral, a qualquer classe de explicaes das formas mais complexas da vida psquica (LUrIa, 1987, p. 20, grifos do autor).

    a sada da crise, de acordo com Luria (1987), estava na conservao do estudo das formas mais complexas de conscincia pela Psicologia, mas garantindo o seu enfoque materialista, ou seja, que essas formas complexas originam-se da atividade real dos seres humanos. assim, Vigotski, na busca de construo de uma nova Psicologia fundada nos pressupostos do materialismo histrico, formula uma sada para a grande crise vivida pela Psicologia:

    para explicar as formas mais complexas de vida consciente do homem imprescindvel sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do comportamento categorial, no nas profundidades do crebro ou da alma, mas sim nas condies externas da vida e, em primeiro lugar, da vida social, nas formas histrico-sociais da existncia do homem (Luria, 1987, p. 20-21).

    Segundo Leontiev,

    a concepo tradicional do psiquismo distingue dois tipos

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    de fenmenos e processos. os primeiros so fenmenos e processos interiores, que encontramos em ns; as imagens sensveis, os conceitos, as sensaes e tambm os processos de pensamento, da imaginao, da memorizao voluntria, etc. (1978, p. 140),

    e os outros so fenmenos e processos que constituem o mundo da matria e da extenso. So a realidade concreta que circunda o homem, o prprio corpo deste, os fenmenos e processos fisiolgicos que se realizam nele. Este conjunto constitui o domnio do fsico, o mundo da extenso (p. 140). Nessa viso, somente os primeiros, pelo seu carter supostamente subjetivo, seriam objetos de estudo da Psicologia. Por outro lado, a separao entre os fenmenos internos e externos tambm serviu de base para a elaborao de um sistema psicolgico que se dedicou a estudar os fenmenos ou reaes que so visveis no homem. Vigotski contrape-se s vises que se baseiam na ideia de um psiquismo como essncia com existncia prpria. Para esse autor, as funes psquicas formam-se nos indivduos a partir das relaes que estes estabelecem com as outras pessoas e, portanto, por meio da mediao sgnica que possibilita os processos de comunicao.

    a proposio de que a linguagem e, desse modo, as significaes refletidas nela so mediadoras do processo de constituio nos indivduos particulares do desenvolvimento histrico-cultural possibilitou romper concepes que isolavam a atividade intelectual da atividade exterior, considerando a primeira como manifestao de um princpio espiritual particular o mundo da conscincia, oposto ao mundo da matria e da extenso (LEoNtIEV, 1978, p. 117). Essa concepo idealista que ope esprito e matria influenciou determinadas correntes da Psicologia que postulam a oposio e a independncia da atividade intelectual/interior em relao atividade prtica/externa.

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Marx j havia dito que a atividade consciente tem origem na atividade prtica dos seres humanos, pois dessa atividade vital originam-se as formas de conduta humana independentes dos motivos biolgicos. Vigotski, ento, busca as razes da atividade psicolgica nos signos que se constituem na atividade material e social. Nesse sentido, procurando explicar como as funes sociais se convertem em funes, o prprio indivduo enfatiza os processos semiticos que tm existncia e se constituem nas relaes sociais.

    Porm o pressuposto de que a explicao das formas superiores do psiquismo deve ser buscada nas formas de vida socialmente constitudas no pode conduzir interpretao de que o ser humano fruto da realidade, exercendo um papel passivo em frente a ela. o mundo com o qual as pessoas se relacionam, por intermdio das outras pessoas, uma realidade criada pelos humanos, numa atividade em que estes modificam a natureza, a si mesmos, aos seus semelhantes.

    Nesse sentido, Vigotski ressalta que o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores subordinado s regularidades histricas. Estar subordinado s regularidades histricas, no significa estar apenas comprometido com o passado, mas essa uma condio que se define por sua projeo no futuro. a concepo de histria do desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, presentes nos estudos de Vigotski e, anteriormente, na obra de Marx, conduz, portanto, centralidade da prxis humana, atividade distinta da atividade animal por ser duplamente livre: das determinaes biolgicas e hereditrias e para produzir de maneira planejada e premeditada.

    Vigotski, no trabalho intitulado A conscincia como problema da psicologia do comportamento, assinala que a novidade do comportamento humano em relao ao comportamento animal o fato de o homem [...] [adaptar] ativamente o meio a si mesmo, enquanto os animais adaptam-se passivamente ao

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    meio (VIGotSKI, 1996, p. 65). Segundo o autor,

    a aranha que tece a teia e a abelha que constri as colmias com cera o faro por fora do instinto, como mquinas, de um modo uniforme e sem manifestar nisso uma atividade maior do que nas outras reaes adaptativas. outra coisa o tecelo ou o arquiteto. Como diz, Marx, eles construram previamente sua obra na cabea; o resultado obtido no processo de trabalho existia idealmente antes do comeo do trabalho (1996, p. 65).

    a partir dessa viso de histria, Vigotski entendeu que a atividade essencial humana se baseia no uso de instrumentos e dos signos, mas enfocou o signo, pois nele est a possibilidade de compreenso da gnese dos processos psquicos. a utilizao dos signos proporciona uma reorganizao dos processos naturais que se desenvolvem no indivduo, potencializando-os, transformando-os e possibilitando um maior controle sobre o seu prprio comportamento e dos outros.

    Dessa forma, as crianas no se apropriam dos resultados do desenvolvimento histrico imediatamente. Esse processo mediado pelas relaes que so estabelecidas com as outras pessoas no decorrer de suas vidas. Vigotski (1987) diz que por meio dos outros que nos convertemos em ns mesmos, o que significa dizer que toda atividade interna foi antes externa, foi para as outras pessoas o que para ns. Para esse autor, falar que uma funo foi externa falar que ela foi social: qualquer funo psquica superior foi externa, porque foi social antes de ser interna; antes de ser propriamente uma funo psquica consistiu em uma relao social entre duas pessoas (VIGotSKI, 1887, p. 161, traduo nossa). Essa ideia uma parfrase da sexta Tese de Marx que diz:

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Feuerbach converte a essncia religiosa na essncia humana. Porm a essncia humana no uma abstrao inerente ao indivduo singular. Em sua realidade efetiva, ela o conjunto das relaes sociais. Feuerbach, que no entra na crtica desta essncia real efetiva, conseqentemente obrigado: 1. a fazer abstrao da histria e a fixar o sentimento religioso para si, e a pressupor um indivduo humano abstrato-isolado. 2. a essncia s pode ento ser percebida como gnero, como universalidade interna, implcita, ligando os numerosos indivduos de maneira natural (LaBICa, 1990, p. 33, grifos do autor).

    assim, Vigotski afirmou que la naturaleza psicolgica del hombre constituye um conjunto de relaciones sociales, trasladadas al interior y que se han convertido en funciones de la personalidad y en formas de su estructura (1987, p. 162). a parfrase da sexta Tese deve ser compreendida como a afirmao do carter mediado dos processos psicolgicos, porque as significaes, funo do signo, s existem entre as pessoas. importante ressaltar ainda que as significaes no perdem o seu carter social quando se tornam prprias de um indivduo particular. Em Marx, a ideia da no oposio entre o social e o individual apontada, no terceiro de seus Manuscritos econmico-filosficos (1844):

    Mesmo quando eu sozinho desenvolvo uma actividade cientfica, etc., uma actividade que raramente posso levar a cabo em directa associao com outros, sou social, porque enquanto homem que realizado tal actividade. No s o material da minha actividade como tambm a prpria inguagem que o pensador emprega que me foi dado como um produto social. a minha prpria existncia actividade social. Por conseguinte, o que eu prprio produzo para sociedade que o produzo e com a conscincia de agir como ser social (p. 195, grifos do autor).

    Nesse sentido, o indivduo um ser social, porque todas as produes humanas que se encontram fora dele e que constituem

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    o requisito fundamental para a humanizao das novas geraes so produtos da vida social.

    De acordo com Leontiev, Vigotski introduziu na Psicologia a ideia de que o principal mecanismo do desenvolvimento psquico, na criana, o mecanismo da apropriao das diferentes espcies e formas sociais de actividade historicamente constitudas (1978, p. 155, grifo nosso). Essa categoria, oriunda da tradio filosfica marxista, contrape-se ao conceito de adaptao e equilibrao para explicar o desenvolvimento do psiquismo.

    a adaptao, segundo Leontiev, o processo de modificao das faculdades e caracteres especficos do sujeito e do seu comportamento inato, modificao provocada pelas exigncias do meio (1978, p. 320, grifo do autor) e, por isso, no explica o desenvolvimento no indivduo das aquisies da herana cultural. a apropriao, no entanto, o processo que tem por resultado a reproduo pelo indivduo de caracteres, faculdades e modos de comportamentos formados historicamente (p. 320, grifo do autor).

    Para Leontiev, a natureza do homem ao mesmo tempo natural e social (1978, p. 160), pois sem as propriedades naturais resultantes do desenvolvimento biolgico, o desenvolvimento scio-histrico, provavelmente, no seria possvel. os mecanismos hereditrios e inatos so, portanto, condies que tornam as apropriaes possveis sem, contudo, determinar a sua composio ou a sua qualidade especfica, pois os resultados da prtica social e histrica dos homens so sempre um vir-a-ser.

    Ento, a apropriao s se torna possvel se as relaes das crianas com o mundo das criaes humanas forem mediatizadas pelas relaes com as outras pessoas. Por sua vez, as relaes entre pessoas se realizam por intermdio da linguagem, sendo, desse modo, relaes de comunicao. Dessa forma, a linguagem que medeia as relaes entre as crianas e o mundo humano, mas ela tambm que medeia as relaes das crianas e as

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    outras pessoas. a comunicao to essencial para o processo de apropriao que Leontiev (1978), recorrendo ao curso de Piron sobre a hominizao, comenta que, se fossem destrudas todas as pessoas adultas da face da terra e s restassem as crianas pequenas e as objetivaes, a histria seria interrompida e teria que ser recomeada, pois a continuidade da histria deve-se transmisso para as novas geraes da cultura humana por meio da comunicao que se desenvolve entre as pessoas.

    Contudo, a linguagem no apenas um meio de comunicao entre os homens. ao longo do desenvolvimento histrico, ela passa a refletir a realidade na forma de significaes, pois ela sintetiza/cristaliza as prticas sociais, sendo, dessa maneira, simultaneamente, objeto de conhecimento e mediadora do processo de apropriao das produes humanas.

    Vigotski (1987) assinala que a inveno e o uso dos signos apresentam uma analogia com a inveno e o uso de instrumentos, pois ambos expressam o carter mediado das relaes humanas. os signos nasceram da necessidade de os homens se comunicarem com os seus parceiros e de intervirem sobre eles e os instrumentos resultaram da ao do homem sobre a natureza. Desse modo, signos e instrumentos so mediadores das relaes construdas pelos prprios homens para garantir a continuidade da histria e a reproduo da espcie. No entanto, o autor assinala que a analogia entre o signo e o instrumento no deve levar identificao desses conceitos, pois eles se diferem quanto orientao: o instrumento um diretor da atividade externa do homem e, por isso, est dirigido para o domnio da natureza, enquanto o signo um meio de interveno sobre si mesmo e sobre as outras pessoas e, dessa forma, est dirigido para a atividade interna. Vigotski (1987) chama de signo qualquer estmulo criado artificialmente pelo homem que seja um veculo para o domnio da conduta alheia ou prpria. a especificidade da conduta humana resulta desta atividade fundamental: criao e utilizao de signos.

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    o mtodo instrumental ou HistriCo-gentiCo

    o mtodo instrumental foi elaborado por Vigotski para estudar o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores. Ele um mtodo histrico-gentico que proporciona a investigao do comportamento de um ponto de vista histrico (1996, p. 98). o autor chama a ateno para que o mtodo instrumental nada tem em comum (exceto o nome) com a teoria da lgica instrumental de J. Dewey e outros pragmatistas (p. 99). Esse mtodo, segundo Vigotski,

    no estuda apenas a criana que se desenvolve, mas tambm aquela que se educa [...]. a educao no pode ser qualificada como do desenvolvimento artificial da criana. a educao o domnio artificial dos processos de desenvolvimento. a educao no apenas influi em alguns processos de desenvolvimento, mas reestrutura as funes do comportamento em toda sua amplitude (1996, p. 99).

    Nesse sentido, o mtodo instrumental estuda o processo de desenvolvimento natural e da educao como um processo nico e considera que seu objetivo descobrir como se reestruturam todas as funes naturais de uma determinada criana em um determinado nvel de educao (1996, p. 96). assim, o mtodo instrumental

    procura oferecer uma interpretao de como a criana realiza em seu processo educacional o que a humanidade realizou no transcurso da longa histria do trabalho, ou seja, pe em ao as foras naturais que formam sua corporeidade [...] para assimilar desse modo, de forma til para sua prpria vida, os materiais que a natureza lhe brinda (1996, p. 96).

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Segundo Vigotski (1997), para estudar os processos psquicos necessrio, antes de tudo, provoc-los, cri-los e analisar o modo como transcorrem e se formam. Com isso, criar situaes em que as crianas foram estimuladas a escrever textos em diferentes momentos do ano escolar. as tarefas de produo levaram em conta os pressupostos do mtodo histrico-gentico, ou seja, estavam alm das capacidades j aprendidas pelas crianas e propiciaram a utilizao/criao de mecanismos auxiliares para a sua realizao. Dessa forma, no incio do estudo (2002), as crianas ainda no haviam aprendido a ler e a escrever. Durante as tarefas propostas, elas eram incentivadas a escrever textos produzidos oralmente com a orientao de que deveriam escrever com ateno, pois a escrita deveria auxili-las a lembrar dos textos registrados.

    Luria (1988), ao estudar a pr-histria da escrita, optou por procedimentos metodolgicos que consistiam na produo de registros, elaborados de modo a possibilitar a lembrana de um contedo: a tarefa era recordar uma srie de palavras ou frases que no podiam ser reproduzidas oralmente sem a ajuda de um mecanismo auxiliar. Esse encaminhamento possibilitou ao autor observar o desenvolvimento da escrita, ou os processos pelos quais os sujeitos passaram at chegar a utilizarem marcas, pontos, desenhos, etc. como smbolos, identificando as condies que possibilitaram, portanto, o surgimento de grafias expressivas. as crianas participantes do trabalho desenvolvido pelo autor no estavam inseridas em um processo de escolarizao, aprendendo o sistema de smbolos, convencionalmente, usado para escrever. alm disso, o desenvolvimento dos registros produzidos pelas crianas foi observado em condies em que foram necessrias intervenes especficas; em outras palavras, foram introduzidos no contedo das frases e palavras escritas pelas crianas fatores (forma, quantidade, cor etc.) que proporcionaram o surgimento das grafias expressivas.

    os estudos que temos realizado, assim como o de Luria,

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    enfocaram a funo mnemnica ou de registro da linguagem escrita, mas, diferentemente dos estudos desse autor, as crianas envolvidas participavam de atividades desenvolvidas em instituies escolares que visavam ao ensino e aprendizagem da linguagem escrita. ademais, no foram escolhidos previamente textos, frases ou palavras a serem escritos pelas crianas. optamos por incentivar a produo oral de textos e o registro das sentenas que compunham esses textos.

    a produo de texto foi priorizada porque possibilita aos indivduos, historicamente situados, a enunciao de seu ponto de vista sobre a realidade, pois o discurso produzido pelas crianas, no texto escrito, no uma mera reproduo dos discursos j constitudos e nem mesmo uma produo nica de um indivduo particular. os textos se constituem articuladamente s formas j constitudas de perceber e pensar a realidade e se renovam em cada discurso (GoNtIJo, 2001, p. 39).

    De modo geral, o trabalho de produo de textos desenvolvido pelas crianas foi orientado seguindo-se os seguintes procedimentos:

    a) as crianas eram estimuladas a produzir oralmente textos sobre temticas de seu interesse e sobre as quais tinham o que dizer. Esses textos eram registrados pela pesquisadora.

    b) aps a produo e registro, a pesquisadora lia o texto para que as crianas se certificassem de que tudo que disseram estava escrito. alm disso, era explicado para a criana que o registro do texto produzido oralmente auxilia a lembrana do que foi dito por elas.

    c) Em seguida, as crianas eram estimuladas a escrever as sentenas do texto com a recomendao de que deveriam faz-lo com ateno, pois, ao final do registro, deveriam lembrar o texto com o auxlio da escrita. Nesse sentido,

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    ficou estabelecido, desde o incio do registro, a sua finalidade.

    e) Finalmente, era perguntado s crianas se a escrita ajudava a recordar o contedo do texto. Diante das respostas afirmativas, era solicitada a leitura do texto e, em caso de respostas negativas, era pedido que as crianas justificassem a resposta.

    a apropriao da linguagem esCrita

    os resultados dos estudos mostraram a pertinncia de se empreender estudos orientados pela perspectiva histrico-cultural no campo da alfabetizao. Em primeiro lugar, porque permite pensar que a apropriao da linguagem escrita nas crianas no um processo linear e de constante aperfeioamento. alm disso, como veremos, no processo de elaborao da escrita a criana mobiliza conhecimentos, experincias, dialoga consigo mesmo.

    Um dado que me pareceu muito importante, no momento de desenvolvimento das pesquisas, foi o fato de algumas crianas escreverem o texto e, ao mesmo tempo, elaborarem no plano verbal o que pensavam que deviam escrever ou como deviam escrever. assim, ser tomada para anlise uma sequncia de atividades em que a criana exterioriza, por meio da linguagem oral, o modo como elaborava a escrita.

    Ser analisada uma sequncia de trs atividades de escrita desenvolvidas pela menina MI, nos anos de 2002 e 2003. Na primeira, foi proposto que ela escrevesse um texto, a partir de uma sequncia de quadrinhos sem escrita (FUrNarI, 1993). Naquele momento, o uso da histria em quadrinhos se tornou pertinente, pois, desse modo, a criana teria sobre o que escrever. Veja, ento, o texto escrito pela criana:66

    66 Mostraremos a escrita produzida pela criana e, em seguida, transcreveremos o texto que motivou a escrita.

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    Pirulito

    o gato e a bruxa estavam chupando pirulito.

    a formiga estava em cima do banco.

    Ela pegou o pirulito da bruxa.

    a bruxa pegou a sua varinha de estrela e fez uma mgica para sumir com a formiga.

    a formiga virou um elefante e o pirulito cresceu grande.

    (Setembro de 2002)

    Se forem tomadas as ideias de Ferreiro e teberosky (1989) para a anlise do texto, pode ser dito que a criana diferenciou as sequncias de letras ao compor cada sentena. as diferenciaes so de carter qualitativo e quantitativo, pois no foram repetidas letras em uma mesma sequncia e foi utilizado um nmero mnimo e mximo de letras para escrev-las. Segundo essas autoras, esses critrios formais definem a interpretabilidade

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    de um escrito. Porm o modo como a criana realizou o trabalho de produo das sentenas do texto proporciona reflexes sobre outros aspectos. alm disso, as explicaes construdas por Ferreiro e teberosky (1989) para a construo desses princpios ou critrios podem/devem ser (re)discutidas levando-se em conta as experincias das crianas com a escrita e como elas elaboram essas experincias.

    a atividade realizada por MI durou em torno de quarenta minutos, porque ela estava muito preocupada em quantas letras escrever, em diferenciar as letras em cada segmento e, sobretudo, lembrar as formas e os nomes das letras. Ela escreveu o texto com dez letras e, mesmo sabendo o nome de algumas, no conseguia lembrar as suas formas. Veja a transcrio que se segue:

    P o ttulo o pirulito.

    C pra fazer pirulito?

    P para escrever o pirulito... o ttulo o pirulito.

    C o pirulito comea com E e com U... o pirulito comea com umas letrinha... quatro letrinhas... se voc adivinhar pode acertar as letrinhas [a partir da segunda frase, canta].

    P Ento... pirulito tem quatro letrinhas... escreve as quatro letrinhas da palavra pirulito [...].

    C Como que as letrinhas dele?

    P Pensa quais so as letrinhas e escreve do jeito que voc sabe.

    C a letra do pirulito comea com a... mais diferente dele.

    P Ento escreve.

    C. [Escreve a letra a]. tem mais uma letrinha que comea

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    Bernd Fichtner, Erineu Foerste, Gerda Margit Schtz Foerste e Marcelo Lima - Orgs.

    com pirulito [...] comea com E... o pirulito comea com mais uma letra... e... comea com a letra... comea... pirulito comea com a... como que faz pirulito... ento a gente pode escrever... na minha casa tem um monto de coisa pra escrever... na minha casa vende qualquer coisa... tem aquele quadrado... tem aquele negcio que bota assim... que escreve nos quadrado... ...

    P MI, voc precisa escrever pirulito... voc j colocou uma letra... voc falou que pirulito tem quatro letras... quais as letras que esto faltando para escrever pirulito?

    C Se eu pr trs letras... vai dar trs letras...

    P Ento escreve.

    C Eu no sei tambm... eu num sei se num sei... o C eu no sei... eu sei... o C mais diferente... comea com a.

    P Ento pe o C.

    C qual o C? Como o C?

    P Pensa e lembra como o C [...] olha o C no seu nome.

    C Ento assim... o C... comea com mais uma letrinha.

    P Ento... escreve.

    C o L mais diferente... [escreve a letra N].

    P tem mais alguma letra na palavra pirulito?

    C Hum... hum... tem que comea com M... M mais diferente dos trs...

    P Ento coloca.

    C [Escreve a letra M].

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    Cultura, dialtica e hegemonia: Pesquisas em educao

    Dessa forma, diante da proposta de escrita do ttulo do texto, a criana perguntou se era para fazer o pirulito. a sua inteno era desenhar o pirulito, mas no estava certa se era isso que deveria fazer. Por isso, fez a pergunta. Diante da resposta que deveria escrever, no teve dvidas, disse que a palavra pirulito deveria ser composta com quatro letras. o problema era, ento, descobrir como se escrevia cada letra. Ela lembrou os nomes das letras a, C, L e M. No entanto, s soube escrever a letras M e a. interessante verificar, ainda, como a criana verbalizou oralmente o que pensava e os esforos mobilizados para lembrar as letras. Lembrar as formas das letras se tornou a atividade cognitiva fundamental. Para isso, mobilizou experincias: o pirulito comea com umas letrinha... quatro letrinhas... se voc adivinhar pode acertar as letrinhas. Ela conversou com ela mesma na tentativa de lembrar as formas das letras. assim, pode ser observada uma intensa atividade discursiva e cognitiva cuja finalidade era lembrar as formas das letras. a linguagem no se apresentou completa e clara, mas certamente se fazia compreensvel para a criana, pois constituda de elementos das suas experincias. visvel a atividade mental que se revela na dialogia, no discurso, na conversa que realiza consigo mesma. Disse que deveria escrever quatro letras, porque, de acordo com suas experincias escolares, a palavra era composta de quatro slabas. importante verificar o que ocorreu na escrita das sentenas:

    P o gato e a bruxa estavam chupando pirulito.

    C. [olha para os lados]. Comea com mais uma letrinha... n? Mas a letrinha dele comea com... mas diferente da J...

    P Escreveu o gato e a brux