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CULTURA DE RUA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NEGRO E
O MOVIMENTO HIP HOP
Márcia Aparecida da Silva Leão*
Graduada em Ciências Sociais, com especialização em Psicologia Social e Mestre em Educação,
Administração e Comunicação. Associada ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais),
colaboradora da Casa do Hip Hop.
Não é difícil associar a palavra marginalização ao cenário humano e político que há
nas favelas, com moradias improvisadas, em geral afastadas do centro urbano. Sua origem
se dá em razão da desigualdade econômica que deixa milhões de brasileiros sem opção por
habitação, levando-os a invadir terrenos “abandonados”. Inicialmente as favelas são
montadas em madeira e próximas de locais de alto risco para a saúde como, por exemplo, as
localizadas junto de córregos ou de esgotos a céu aberto. Normalmente as favelas ficam nas
regiões periféricas e recebem alguma ajuda do governo ou de ONGs, que promovem uma
transformação aparente de lugar degradado para um lugar com casas de tijolos, formando
vilas e vielas. Exemplo disso são os atuais “Cingapura” ou núcleos habitacionais,
construídos e mantidos pelas prefeituras das metrópoles ou por instituições particulares.
No que diz respeito à característica humana, o favelado, em muitas situações, é
considerado um bandido, limitando-se o modo de viver como assaltante, sequestrador e
traficante de drogas. É como estigmatizar tudo o que estiver ligado à favela com sentido
marginal de transgressão, violência e diferença entre poder e potência, em relação aos
menos privilegiados da sociedade (pobres, assalariados, trabalhadores braçais e outros).
Analisando a paisagem que constitui as favelas podemos perceber que a dinâmica
macroeconômica1 se estabelece na microeconômica2 . Neste contexto a presença de um
elemento central impulsiona outro, de menor destaque, ao afastamento ou distanciamento
em relação a esse objeto centralizado. Este sistema nos leva a perceber um eixo de poder
norteando o modo de vida das pessoas, provocando diferenças em sentido amplo. Tanto no
aspecto social quanto no político ou econômico, a geopolítica, a história e a sociologia
puderam explicar, no decorrer dos séculos XIX e XX, por que a estratificação social ganhou
uma dimensão mais econômica e quais as conseqüências disto. Moldando diferentes
sociedades, moderna e contemporânea, a marginalização de culturas foi crescendo e
ganhando destaques: político, econômico e social.
1 Macroeconomia – ciência econômica que focaliza o comportamento do sistema econômico como um todo.
2 Microeconomia – ciência econômica que estuda o comportamento das unidades de consumo representadas
pelos indivïduos e pelas famílias; pelas empresas e suas produções e custos; pela produção e o preço dos
diversos bens, serviços e fatores produtivos. Para os conceitos sobre macroeconomia e microeconomia, ver Coleção Os Economistas. Dicionário de Economia. São Paulo: Nova Cultural, 1985, pp.251-252 / 275-276.
1 - As Minorias Nacionais
Analisando o sentido da palavra marginal pelo contexto geopolítico no panorama
mundial, podemos verificar que com o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, o
homem desenvolveu a necessidade de transformar o espaço político, implantando e
derrubando fronteiras remarcando limites territoriais que se materializaram através das
guerras, acordos, invasões, proclamações de independência e formação de blocos
econômicos, tudo em curto tempo, desde o fim das antigas monarquias nacionais3.
Só nos três últimos séculos o mundo assistiu a intensas transformações na paisagem
natural do globo. O processo de industrialização originou o crescimento populacional e a
urbanização, com fácil acesso a recursos tecnológicos. A ciência e a tecnologia ganharam
espaço. O princípio de uma reordenação geopolítica aconteceu após a finalização da
Segunda Guerra Mundial (1945), que foi um desdobramento da Primeira Guerra (1918).
Durante a Segunda Guerra, com a derrota do Eixo4 (Alemanha, Itália e Japão) e com
o enfraquecimento econômico e militar do Reino Unido e da França, os Estados Unidos
puderam reunir estratégias para se tornar em uma destacada força hegemônica do bloco
capitalista. Em contraponto, do outro lado do globo, a URSS (União das Repúblicas
Socialistas e Soviéticas), formada após a Revolução Russa (1917), liderava o bloco
socialista. Este fato deu-se a partir de 1922 quando, influenciada pelos ideais leninistas, a
Rússia e pequenas repúblicas formaram uma unidade política e econômica na Ásia. O
mundo, nesse momento, ficou dividido em dois grupos: de um lado, o capitalismo, cujas
características fundamentam a livre concorrência, entre outras atitudes de acúmulo do
capital, e de outro o socialismo, submetendo o modo de vida dos soviéticos a metas e planos
econômicos elaborados pelo Estado.
Esse fato provocou a Guerra Fria, que representou um confronto indireto embasado
no idealismo político da perspicácia e tecnologia de ponta e também na construção de armas
nucleares. Na conferência de Bretton Woods, realizada em julho de 1944, os Estados
Unidos, reunidos com 44 países aliados começaram um plano que visava a garantir a
reconstrução e a estabilidade da economia mundial após o término da guerra. Apesar da
participação de vários países, inclusive da URSS e do próprio Brasil nessa reunião, quem
dava as cartas, quem definia as regras do jogo eram os Estados Unidos. Ali foi definido um
novo padrão monetário, o padrão dólar-ouro, em substituição ao padrão ouro, vigente até
então. Foi a chamada reordenação econômica. É importante lembrar que na formação
3 Hobsbawwn, Eric J. A Era do Capital. . São Paulo : Paz e Terra, 1977, p. 345
4 Idem, p. 356.
geopolítica dos países destacava-se a hegemonia dos Estados Unidos da América como
grande potência econômica e política. Um exemplo disto foi quando, em 1947, esse país
lançou as bases da Doutrina Truman e do Plano Marshall. O presidente norte-americano
Harry Truman propôs a concessão de créditos para a Grécia e a Turquia com o objetivo de
sustentar os governos pró-ocidentais naqueles países. O pressuposto geopolítico da doutrina
era o de conter o avanço do socialismo nesses países.
O mundo foi conduzido pela bipolaridade na nova ordem mundial, e o capitalismo
concentrou-se nas nações que tinham o apoio político dos Estados Unidos. Outros países
eram socialistas e acompanhavam as regras da URSS. De fato, o que garantiu e sustentou a
bipolaridade foi a necessidade de garantir territórios para expandir o processo produtivo de
armas e manter uma paridade bélica também. Nesse contexto, a partir do momento em que
os países norte-americanos e soviéticos destacavam-se como potências econômicas e
políticas, as nações dependentes deles eram vistas de maneira marginalizada. Há aqui uma
análise generalizada, pois, a inserção internacional traz múltiplas necessidades de inovação
na organização da empresa, nas relações trabalhistas, nas vinculações entre setor público e
setor privado, descentralização regional, sustentabilidade ambiental e estratégia
educacional. Trata-se de fazer frente a mudanças que se sucedem nas empresas, nos setores
e países nos quais se processa o desafio da concorrência internacional.
A divisão do mundo em dois blocos fez surgir uma terceira posição (camuflada
em meio aos ideais capitalistas e socialistas). Os chamados países de Terceiro Mundo eram
a periferia dos Estados Unidos e da União Soviética. Neles havia e ainda há, quase sempre,
falta de autonomia do Estado. Realizam negociações, como empréstimo de dinheiro,
compra de matéria-prima e de tecnologia para desenvolver o nível de industrialização e
competir no mercado mundial. Esse sistema de dependência econômica e científica
acontecia muito mais entre os capitalistas ocidentais. Os países de Terceiro Mundo que
iniciaram a industrialização com atraso, dos quais o Brasil faz parte, passaram a ser vistos
como nações marginais, apresentando todos eles: mão-de-obra barata, elevado índice de
problemas sociais, dependência tecnológica de outros países e fraco abastecimento interno
com produtos nacionais. Em 1961 a OCDE (Organização de Cooperação e
Desenvolvimento Econômico) foi criada em substituição à OECE (Organização Européia
de Cooperação Econômica), fundada em 1948. Ambas foram instituídas para administrar e
distribuir ajuda pelo Plano Marshall (plano de ajuda econômica para acelerar a recuperação
dos países prejudicados pela guerra na Europa Ocidental).
Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália e Nova Zelândia foram admitidos, no
grupo, mesmo não pertencendo ao continente europeu. Sediada em Paris, a OCDE forma o
clube dos países mais ricos do mundo, os que mantêm um monopólio industrial e vivem da
comercialização deste monopólio ou de seus produtos resultantes. Atualmente é composto
por 29 países, dentre eles: México (1994), República Tcheca (1995), Hungria, Polônia e
Coréia do Sul (1996). Há a possibilidade do ingresso da Rússia e de Cingapura, por
demonstrarem um quadro de desenvolvimento favorável à política industrial e financeira do
mundo. O Brasil tem apresentado em seu resultado produtivo um avanço significativo no
processo industrial, porém, mesmo obtendo bons resultados, é remota a possibilidade de
tornar-se membro dessa entidade.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial o cenário político e econômico do mundo
estiveram voltados à superioridade dos Estados Unidos, portanto, visando a expansão do
capitalismo, inclusive em países ex-socialistas. O capitalismo realçou sua força e primazia
ditando regras e destacando quem tem poder e quem não tem, quem comanda e quem
obedece, e quem segue as determinações do BIRD (Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento) e do FMI (Fundo Monetário Internacional), ambos com sede em
Washington, que atuam até hoje movendo interesses financeiros dos Estados Unidos.
Sob o modo de produção capitalista, as relações entre os homens são marcadas pela
dominação e desigualdade, que separam dois tipos de países: os que têm controle e
dominam a propriedade dos meios de produção, e aqueles que lutam para ter autonomia
produtiva e expandir-se no comércio internacional. O desaparecimento de fronteiras
nacionais levou à inércia o papel do Estado-nação5. Empresas transnacionais provocaram o
acesso rápido às transformações no modo de produção, implantando tecnologia, e
permitiram a comunicação instantânea entre os países6. A abertura das fronteiras, assim
como a origem de muitos acordos entre blocos econômicos gerou o que conhecemos hoje
como globalização7.
A situação mostrando a concorrência entre as nações foi se fechando e destacando
os atores principais deste espetáculo de construção da desigualdade no mundo. A
concorrência ficou entre as empresas, sem a interferência direta do Estado nas negociações.
A política cambial desenfreou um processo de dependência do conhecimento tecnológico,
inter-relacionando técnicas de produção sempre mais rápidas, como as das chamadas
5 Castells, Manuel. A Sociedade em rede. , 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 152-159.
7 Sobre fatores que influenciaram a competitividade contemporânea e que se destacaram a partir da década de
70, ver: Velloso, op. cit, pp.38-55. 7 Castells, op. Cit., p. 152.
empresas multinacionais8. Controlar investimentos voltados ao avanço da ciência e
tecnologia (pesquisas) é o desejo das grandes empresas que almejam atingir determinados
mercados e consumidores, portanto, controlando espaços e regiões pela tecnologia moderna.
Neste caso, somente os países ricos têm condições de realizar este propósito de investir,
aplicar, dominar e enriquecer. Esta é a postura dos grandes empresários, que desde a
formação do primeiro bloco econômico vêm modificando cotidianamente o processo da
Divisão Internacional do Trabalho9. As marcas do novo milênio são a aceleração
tecnológica e a produção de novos conhecimentos. O ponto positivo de tudo isso é o acesso
rápido à informação, com informação sobre os produtos construídos em outros lugares do
planeta.
O mundo hoje se comunica em frações de milésimos de segundos, podendo-se,
digamos, saber se uma catástrofe que ocorre em outro lado do globo trará ou não
consequências para o local. Mas há também o lado negativo: os andamentos geopolíticos
que acontecem nos países, principalmente nas grandes potências econômicas, têm impacto
sobre vários aspectos da atualidade, que vão desde a degradação do meio ambiente até a
degradação da cultura humana. Comportamentos sociais e culturais dos países ricos são
copiados por muitas sociedades a partir do uso ilimitado do espaço geográfico dos países
em desvantagens. Enquanto os recursos naturais e a mão de obra são usados nos países
subdesenvolvidos, também neles são deixadas marcas culturais fortes, como indicadores de
comportamento universal. O modo de viver das pessoas segue um padrão de imposição10
sob o qual as sociedades menos favorecidas economicamente tentam se desenvolver, mas
dependem de uma política que funcione a seu favor. Logo, a desigualdade social se destaca
porque também passa a existir um sentido dual nos países de Terceiro Mundo, ou o
chamado mundo subdesenvolvido. Com recursos mínimos, seus investimentos são para o
capitalismo industrial e muito pouco para o capital humano. Países tentam alcançar o
mesmo padrão das potências mundiais (G7, grupo dos sete países mais ricos do mundo e a
Rússia) e, por isso, aumentam suas dívidas, contratam mão-de-obra especializada, pagam
exorbitâncias por maquinário, e os indivíduos que não estão preparados para acompanhar
este processo aumentam o índice de desemprego11.
8 Estrutura empresarial básica do capitalismo dominante nos países altamente industrializados. Caracteriza-se
por desenvolver uma estratégia internacional a partir de uma base nacional, sob a coordenação de uma direção
centralizada. 9 Pochmann, Márcio. O Emprego na Globalização. São Paulo: Boitempo, 2001, p.111.
10Trata-se de referência à definição de Émile Durkheim (1858-1917) sobre a “coerção social”, em que a
sociedade como coletividade, organiza, condiciona e controla as ações individuais.In:Oliveira, Pérsio Santos
de. Introdução à Sociologia. São Paulo: Ática, 2001, p.13. 11
Sobre o desaparecimento dos postos de trabalho ver: Pochmann,. Op. cit. pp.77-89.
“O mundo é muito mais desigual, diz Annan”, esta é a manchete do jornal Folha de
S.Paulo, noticiada em 13 de junho de 2004, um dia antes do encontro entre os G77 (grupo
dos países em desenvolvimento). Foi o 11º Encontro da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). O secretário-geral da ONU, Kofi Annan,
relatou em discurso que “a triste verdade é que o mundo hoje é um lugar muito mais
desigual do que há 40 anos”.
Isso significa que a formação de centros e periferias12 nacionais é a conseqüência
direta da globalização e a marca geográfica das diferenças, uma vez que se marginaliza o
espaço que não pode acompanhar o processo de crescimento econômico do mundo, ou
ainda, que está em processo de desenvolvimento, mas encontra barreiras burocráticas e de
aceitação institucional. É o que vem ocorrendo com países como o Brasil e a África do Sul,
por exemplo, que têm no meio do caminho espaços hegemônicos da Europa e Estados
Unidos da América, representados também em blocos econômicos, como é o caso do
NAFTA (North América Free Trade Agreement), da União Européia e do Japão. Todos são
diariamente destaques da mídia e buscam romper limites comerciais e manter o forte
domínio e poder econômico, político e social sobre nações da América Latina, da África e
de alguns países da Ásia, nas proximidades do Oriente Médio. Os grandes sustentam seus
interesses e dominam os países mais fracos os quais são marginalizados e excluídos de
qualquer acordo mundial13.
2 – As Minorias Culturais e Sociais
Sendo a cultura considerada por antropólogos como bens materiais de um modo
geral, como utensílios, ferramentas, moradias, meios de transporte, comunicação, e também
como bens não materiais, como as representações simbólicas, os conhecimentos, as crenças
e os sistemas de valores, isto é, o conjunto de normas que orientam a vida da sociedade, a
produção cultural da humanidade acaba se tornando registro histórico do seu
desenvolvimento14. Toda cultura é suficiente para os fins a que se propõe, embora
12
Expressões usadas por geógrafos para explicar espaços geográficos no contexto do comércio internacional, definindo: centros nome dado aos países ricos e industrializados, e periferias nome dado aos países pobres com
fraco processo industrial. 13
A competitividade por mercados pode ser avaliada e, portanto, podendo-se definir quais são os países fortes e
os países fracos através de alguns itens importantes: a) nível de renda per capita; b) índice de exportações; c) peso relativo das despezas públicas; d) grau de inserção no mercado internacional; e) exportação de recursos
naturais; f) cobertura e desempenho educacional; g) investimento em pesquisa e desenvolvimento; e h) crescimento do produto per capita. Todos estes itens podem ser melhor analisados no trabalho desenvolvido
por Fajnzylber, Fernando. Progresso técnico, competitividade e mudança institucional. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1991, p. 39. 14
De acordo com o sociólogo inglês Raymond Williams, a palavra cultura vem do latim “colere” e define inicialmente os seguintes sentidos: Cultivo das plantas, animais e terra (agricultura), cuidado com os deuses
eventualmente traduzidas em questões não resolvidas, vale dizer, toda cultura tem a ver com
a formação de uma sociedade urbana ou rural, dotada de conflitos ou não. Com a
industrialização em larga escala a partir do século XIX e a expansão imperialista pelo
mundo, a cultura das sociedades, eruditas ou populares, foi cedendo lugar à indústria
cultural.
Cada povo tem uma cultura própria, cada sociedade elabora o seu modo de viver e
recebe influência de outra, e assim promove um estilo e modo de vida particulares que
caracterizam cada sociedade. Assim, ao nascer, um indivíduo recebe traços culturais do seu
grupo, conhecido como identidade cultural15.
A indústria apresenta no mercado uma série de produtos atraentes para o consumo
dos elementos da sociedade, e estes passam a agir em função do consumo desses produtos,
possibilitando um enorme mercado consumidor em potencial. Atraída pelos produtos
oferecidos pela indústria cultural, forma-se a chamada sociedade de consumo, o que dá
origem também à cultura de massa. A indústria cultural, ao divulgar produtos culturais de
diferentes origens, possibilita o contato com diferentes camadas sociais. O fator responsável
por este processo é a comunicação. Os meios de comunicação, expandidos pela indústria
através da Internet, telefones, mídia em geral, criaram um campo estético e voltado ao
comportamento da sociedade.
A cultura no mundo foi sendo marginalizada a partir da dinâmica e poder
econômico dos países exportadores dessas tecnologias. O próprio mercado consumidor deu
às indústrias poder para criar inovações tecnológicas mais avançadas e condicionar o grupo
social a usar o que for novidade no mercado comercial. A chamada sociedade
informacional16 passou a dizer quais as culturas centrais do mundo e que, por conseguinte,
servem como modelo às diferentes classes sociais do planeta. As questões maiores são:
Quem é o indivíduo da sociedade que tem acesso a esses recursos e tecnologia? Quem é o
indivíduo visível da sociedade que está incluído no processo de desenvolvimento da Ciência
e Tecnologia? Desde o modo de falar, agir, costumes alimentares, vestimentas, leitura,
filmes, músicas e outros, os grupos sociais vão realizando uma ação seletiva, excluindo e
colocando à margem social todos os indivíduos que não acompanham a dinâmica industrial
e cultural de um lugar.
(culto), e ancestrais (memória). Hoje, a sociedade usa a palavra para designar aquele que “cultiva ( no sentido de desenvolver, praticar, cultuar) a inteligência, as artes e o conhecimento”. Para analisar o conceito, ver
Santos, José Luiz. O que é Cultura. São Paulo: Brasiliense,1989, pp.89-1. 15
A expressão identidade cultural foi usada por Brandão, Antonio Carlos, Fernandes, Milton, em Movimentos
culturais da juventude.. São Paulo, Moderna, 1990, pp. 9-12. 16
Expressão desenvolvida por Castells, op. cit.
A transformação do capitalismo e a pouca atuação do Estado produziram uma
fórmula poderosa de expressões de identidade coletiva17 e possibilitaram também a origem
de movimentos ativistas em prol da singularidade da resistência à cultura tecnoeconômica
do mundo globalizado, ou simplesmente em resistência ao processo de invisibilidade étnica
a que muitos indivíduos da sociedade são submetidos, como é o caso dos afro-brasileiros.
Segundo Muniz Sodré,
a Identidade impõe-se tradicionalmente como algo que se predica
(representacionalmente) a um sujeito, como uma propriedade ou um
atributo do ser. Predica-se, por exemplo, que cada ente ou cada homem
é uno consigo mesmo, cada um é ele próprio. Mas esta predicação, que
até agora nos parece sociologicamente, antropologicamente tão
evidente, é problemática em termos filosóficos... (...) impulsos no
sentido de uma cultura transnacional por efeito da globalização
financeira e comercial, que redistribui a capacidade de produção e
substitui a concepção de “território nacional” pela de mercado. O
pensamento da identidade sempre pressupôs uma estabilidade espacial:
em várias línguas, o “eu sou” coincide com “eu estou” (inglês, alemão,
francês e outras). A identidade reflete uma certa opacidade do sujeito ou
uma expectativa de fechamento da subjetividade diante das mudanças,
mas também diante do “outro” (seja dentro ou fora do grupo). Com a
troca do enraizamento espacial pela aceleração temporal (transportes,
telecomunicações), a estabilidade identitária perde força18
.
Os acontecimentos geopolíticos e históricos que ocorreram no século XX, a partir
do comércio internacional e da nova divisão do trabalho, apontam para um crescimento
gigantesco e, aparentemente, irreversível em relação ao modo de comportamento social dos
grupos no mundo. A marginalização de culturas e identidades aparece quando na sociedade
há indivíduos que não estão preparados para fazer parte da cultura de massa ligada à
tecnologia e aos avanços apresentados, ou quando ainda permanecem na cultura de origem,
ou mesmo quando expressam sinais de perda da identidade social por ter sua cultura
dizimada por outras sociedades. A globalização surge como um processo social, político e
econômico, que gerou fatos sociais no mundo inteiro19. Nas palavras de Jordi: “A pobreza e
17
Castells, em O Poder da Identidade (2002), discute com muita propriedade o assunto sobre a origem de movimentos ativistas no mundo todo. 18
Sodré, Muniz. Claros e Escuros. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 25. 19
Estivil, Jordi, et. al. Pobreza y Exclusión en Europa – Nuevos instrumentos de investigación.. Barcelona:
Hacer, 2004. Trata-se da apresentação de alguns instrumentos de investigação para resolver questões de exclusão social na Comunidade Européia. Os autores abordam exemplos de como a intervenção do Estado foi
a exclusão se agravam e se espalham no mundo inteiro. Também afetam a milhões das
pessoas na Europa. Ninguém pode permanecer fora destes processos sérios que remetem à
busca de instrumentos do conhecimento pessoal20 .”
Castells analisa o pensamento de M. Weber, cujo ensaio clássico The Protestant
Ethic and the Spirit of Capitalism “continua sendo o marco de qualquer tentativa teórica
para entender a essência das transformações cultural-institucionais que introduzem um novo
paradigma de organização econômica na história
Para se ter uma ideia do poder e expansão da globalização, basta observar a força
das outras instituições sociais que também regulam posturas e culturas no comportamento
do indivíduo, como a Igreja, a Família e a Escola. A educação cumpre um papel
fundamental, formando e informando indivíduos da sociedade para o trabalho. A partir do
trabalho, do modo de produção, principalmente da cultura, tudo e todos que forem
diferentes do padrão cultural desenvolvido por uma determinada economia passam a ser
marginalizados. Historicamente, o capitalismo se constituiu na Europa ocidental, mas sua
expansão derrubou barreiras políticas, transformou sociedades, fez desaparecer símbolos
que dividiam o mundo em capitalista e socialista. A tecnologia empregada, hoje e
monopolizada pelas grandes potências industriais também é expressão do fator de mudança
das sociedades, é a grande responsável pela presença de novos atores sociais, de novos
contratos sociais, é a grande responsável por possíveis mobilizações sociais pela coerção
dos grupos.
No âmbito da economia social de mercado, criada a partir da divisão internacional
do trabalho, as pessoas seguem regras para desenvolver o trabalho com capacitação e
conhecimentos. São regras estabelecidas pelo desenvolvimento tecnológico dos espaços em
que propõem ação coletiva e determinam o trabalhador ideal para o mercado de trabalho. A
chamada terceira fase da Revolução Industrial, iniciada com o casamento da eletrônica com
a informática, no final da Segunda Guerra Mundial, começou a provocar desespero em
trabalhadores. A revolução high-tech trouxe o desemprego institucional e o crescimento
econômico sem emprego tornou-se uma realidade da qual não se pode fugir. É uma das
faces do neoliberalismo cuja concorrência individual tem distanciado, cada vez mais, a
sociedade pobre , da possibilidade de ter uma vida confortável e tranquila.
crucial para amenizar a expansão da pobreza nos países, provenientes da economia e do crescimento
imigratório. 20
Idem, p.15.
O crescente estado de miséria, as disparidades sociais, a extrema concentração de
renda, os salários aviltantes, o desemprego em massa, a fome absoluta que agride milhões
de brasileiros, a desinformação, o analfabetismo, a doença crônica pela desnutrição, a
mortalidade infantil, a violência, e muitos outros fatos colocaram o Brasil no ranking das
nações sul-americanas que mais marginalizam sua sociedade. Com suas duas faces21, o País
alimenta o processo desenvolvimentista e tecnológico sustentando indústrias nacionais e
recebendo empresas de outros lugares, enquanto a face humana e social não recebe nenhum
tipo de investimento e continua em desvantagem em relação aos trabalhadores que foram
preparados para mudar sua cultura e seu modo de viver.
O desenvolvimento da industrialização no Brasil, a partir da década de 30, criou
condições para a acumulação do capital, o que pode ser verificado através da
redefinição do papel do Estado na economia22. A política econômica posta em prática,
no entanto, não tinha a preocupação de gerar empregos. A constante importação de
tecnologia trouxe ao País, depois de 182 anos após a Independência, a expressão mais
clara de dominação econômica e social. O Brasil conseguiu um grau significativo de
industrialização, mas sem romper com o subdesenvolvimento, pois os investimentos até
hoje são realizados no processo produtivo e pouco se faz pelo social. A sociedade
brasileira aprendeu a viver com um salário mínimo ou, em muitos casos, a viver do
trabalho informal. O desenvolvimento urbano distanciou o trabalhador assalariado dos
grandes centros investidores e financeiros. Sem preparo, o assalariado descobriu-se
abandonado em periferias e disposto a lutar pelo mínimo de infra-estrutura que o Estado
pode lhe dar. O desemprego impera e gera ramificações, como lembra Marcio
Pochmann em O emprego na Globalização: “O desemprego aberto tende a ser
inexpressivo, pois preponderam estratégias de sobrevivência que marcaram a escassez
de ocupação para todos23.” Assim, fica em evidência quem forma as minorias sociais do
País (migrantes regionais, afrodescendentes que por questões históricas sempre
apareceram na sociedade brasileira como minorias indígenas24 e outros). A dificuldade
desses indivíduos para conseguir trabalho no mercado é muito grande. Esta situação tem
21
O chamado dois Brasis representa no contexto geopolítico dos espaços a parte rica do Brasil, com desenvolvimento industrial e agropastoril moderno, contendo alta tecnologia, e por outro lado, a outra face
brasileira que mantém produções arcaicas e economia atrasada. 22
A partir desse momento o Estado passou a se empenhar na criação das condições possíveis para o
desenvolvimento industrial (regulamentação de leis trabalhistas, fixação de preços, subsídios, investimentos em infra-estrutura na criação das indústrias de base – siderúrgicas). 23
Pochmann, op. cit., p 82. 24
A expressão minoria passou a ser usada no século XX para designar as camadas sociais sofredoras, que
obtiveram perdas a partir da exploração político-econômica pelo trabalho; portanto, não existe nenhuma relação deste conceito com valor quantitativo.
avançado a cada e isto tem provocado o aumento do trabalho informal, como mostra a
tabela abaixo: Tabela 1
Taxas de variações anuais brasileiras no período de 1996 a 1999 ·
Fonte: FGV
Observe-se que o índice de trabalho informal vem aumentando em 0,8%, o que
significa que muitos indivíduos para sobreviver buscam alternativas no trabalho informal,
sem registro em carteira e contando com todas as instabilidades possíveis. Ser o que o
outro não é, ser diferente do outro pode ser a resposta para explicar o que significa
marginalização. Tanto no contexto geopolítico como nos contextos histórico e social, as
marcas do que é diferente foram sendo deixadas e demarcando os centros, a saber, tudo que
é importante e está em destaque. Os centros mobilizam o mundo, moldam padrões de
comportamento e estabelecem o modo de viver da maioria das pessoas. Igualmente as
periferias ficaram em destaque, mas para apresentar o que o mundo não pode seguir. Tudo
que é desprezível na avaliação político-econômica do mundo e que atrapalha, portanto, deve
ser camuflado, exonerado. A expressão mais forte deste contraste está no rápido e suntuoso
crescimento urbano.
Tabela 2
Porcentagens de crescimento por renda
Porcentagem de crescimento Período
- 3,6% ao ano na renda
média 1990 – 1993
+ 8% ao ano na renda
média 1993 – 1996 (plano Real)
- 0,3% ao ano na renda
média
1996 – 2001 (conseqüências
do plano Real)
Fonte: FGV
Desemprego Aumento de 12,5% (+12,5%)
Informalidade Aumento de 0,8% (+0,8%)
Renda
proveniente do
trabalho
Decréscimo de 2,79% (-2,79%)
Renda de
outras fontes Decréscimo de 1,37% (-1,37%)
Pobreza Decréscimo de 0,53% (-0,53%)
A tabela acima demonstra quanto o ganho do brasileiro vem caindo e
impossibilitando as pessoas que já vivem em situação econômica precária de terem alguma
oportunidade de concorrer igualmente no sistema capitalista tecnoeconômico. A diferença
no modo de produção sempre existiu na história do Brasil, e pelo contexto cultural, a
origem de favelas e cortiços foi consequência da desigualdade social e econômica na
sociedade brasileira25. A falta de perspectiva de trabalho faz dessas pessoas que sobrevivem
nas periferias elementos humanos condenados a viver marginalizados pelo resto da vida,
ainda que seus descendentes possam mudar em grau menor o processo de pobreza e miséria
desses lugares26.
O modo de viver caracteriza-se como uma espécie de feudalismo moderno em que,
dentro das periferias, as pessoas conseguem sobreviver através da troca de serviços.
Grandes empresários podem, sim, cair na escala social e tornar-se pobres e, quem sabe, até
um favelado numa situação de falência total dos negócios, porém o oposto será muito mais
difícil, ou seja, um pobre favelado ascender economicamente será difícil de acontecer, a não
ser que se torne um excelente jogador de futebol ou um famoso cantor de rap, no caso dos
afro-brasileiros cujo isolamento social é maior. A mobilidade social para quem vive nas
periferias das grandes metrópoles, como é o caso de quem vive na capital de São Paulo, na
zona leste ou zona sul, por exemplo, é praticamente impossível de acontecer. Resta-lhe
apenas a alternativa de buscar uma identidade social e mostrá-la como elemento importante
para manter a coletividade do grupo, garantindo que atores sociais permanentes no processo
de socialização não sejam transformados. Uma identidade que indique um certo
etnocentrismo e multicultura idade ao mesmo tempo.
3 – As Minorias Étnicas: o Negro
Muitas interpretações sobre as relações étnicas no Brasil foram analisadas de
maneira simplista e sem muitas indagações, por acreditarem alguns estudiosos que o
racismo brasileiro, realmente segue um padrão democrático se comparado a outros países
cuja segregação é mais radical. Teóricos como Gilberto Freyre, por exemplo, chegaram à
conclusão de que os preconceitos existentes não teriam uma ação drástica. É a idéia
desenvolvida em torno da sua obra Casa Grande e Senzala sobre democracia racial, no qual
25
Sobre o assunto ver o artigo “ Favelas urbanas, favelas rurais”, publicado em francês na revista Carnets de Lénfance, da United Children’s Fund (UNICEF), em1968. 26
Sobre a exclusão social em conseqüência da globalização ver Forrester, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 30-32.
escravos e seus senhores conviviam, seguindo cada qual sua função social. Muitos teóricos
também chegaram à conclusão de que no Brasil, especificamente em São Paulo, os
preconceitos são de classes sociais sob a aparência de preconceito de cor. Octavio Ianni, em
entrevista à revista Estudos Avançada da USP, analisando o preconceito racial afirma que
“é preciso reconhecer que um mergulho na história social do Brasil mostra que durante a
escravatura formou-se uma poderosa cultura racista”. Diz ainda que: “Essa idéia, em grande
medida, já está em Caio Prado Júnior. Em seu livro A Formação do Brasil Contemporâneo
há um estudo primoroso sobre o que foi o escravismo na formação da colônia, inclusive
com desenvolvimentos fundamentais em termos do que é a sociabilidade, cultura e o
contraponto escravo-e-senhor” 27.
O conceito de marginalização, usado por muitos sociólogos para determinar
quais são os atores sociais que estão à margem da sociedade industrial, também é muito
usado por antropólogos, sobretudo nos Estados Unidos para explicar o desenvolvimento
cultural de grupos. São rotulados de marginais os grupos ou comunidades cuja integração
no processo de produção é inexistente ou precária. Os indivíduos que, por exemplo,
dificilmente encontram empregos estáveis – em geral apontados como habitantes das
favelas nas cidades formam um subproletariado inferior, conforme já citado neste capítulo.
O conceito de marginalização em seus sentidos sociológico e econômico tem sido
empregado para analisar as relações inter-étnicas28 de lugares como São Paulo, por
exemplo, cuja economia alavancou o processo desenvolvimentista do Brasil, concentrando
parques industriais, dando origem a cinturões verdes e do leite, e concentrando grande
manifestação do setor terciário na economia Octavio Ianni argumenta:
A questão racial parece um desafio do presente, mas trata-se de algo
que existe desde há muito tempo. Modifica-se ao acaso das situações,
das formas de sociabilidade e dos jogos das forças sociais, mas reitera-
se continuamente, modificada, mas, persistente. Esse é o enigma com o
qual se defrontam uns e outros, intolerantes e tolerantes, discriminados
e preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados e dominantes,
em todo mundo. Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de
forma particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a
fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade,
27 Ianni, Octavio. Dialética das relações raciais. São Paulo: Caderno Estudos Avançados 18 (50), 2004, p. 21. 28
Estudar a questão étnica do negro não é apenas analisar as pessoas de cor no Brasil. A denominação é ampla no sentido de englobar tanto indivíduos de cor muito escura, quanto os mulatos. Lembrando que a situação do
mulato no Brasil sempre foi diferente da posição dos indivíduos da pele muito escura, porém a expressão negro não específica trata da dimensão cultural desta coletividade.
diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e
alienação 29
.
A Abolição da Escravatura modificou a estrutura socioeconômica do País, pois fez
desaparecer a relação senhor-escravo, urbanizou cidades como São Paulo que já recebia um
fluxo imigratório bastante considerável, particularmente de italianos após 1870, todavia os
antigos escravos não apresentavam condições de se adaptarem às novas exigências
urbanas30. Dessa maneira, foram lançados a uma camada social inferior à dos imigrantes,
com desvantagem na concorrência do mercado de trabalho. Segundo Queiroz:
(...) Daí se pretender que os antigos escravos teriam formado uma
camada econômica e socialmente marginal à sociedade brasileira,
após a abolição; marginalização que se estenderia também ao setor
político, pois, analfabetos, não podiam participar das eleições (...)
É, contudo, um pouco arriscado pretender que a população negra
brasileira tivesse passado, com a abolição, a constituir um
subproletariado urbano e rural, em situação de marginalidade para
com as estruturas socioeconômicas e políticas. Mesmo no auge do
período da escravidão não era internamente homogênea, nem do
ponto de vista étnico, nem do ponto de vista do prestígio das
ocupações, nem do ponto de vista da instrução e conhecimentos31
.
O crescimento do racismo em relação à população negra no Brasil não é um fato
isolado. Há registros de que a sociedade africana sofreu com isto desde os finais da Idade
Média, quando foram muitas as argumentações que puderam justificar a discriminação
contra o negro. Manifestação e segregação ligadas às questões religiosas, políticas,
econômicas e sociais aconteceram em fase de muitas mudanças.
O negro alforriado não tinha para onde ir e incomodava a sociedade, a elite
brasileira e francesa com a mendicância, pois estava livre, mas não tinha emprego e nem
crédito social. A conquista da liberdade deixou afro-brasileiros numa situação precária e
miserável. O desejo imediato de muitos libertos era o de se afastar do lugar que durante
anos causou-lhes sofrimentos e traumas. Portanto, sem trabalho e sem ganho suficiente para
um modo de vida decente o negro foi descartado da possibilidade de inserir-se na sociedade
29
Ianni, Octavio, ibidem. 30
Era a camada social que pouca oportunidade teve para aprender um ofício. Sobre o tema ver o artigo A Evolução dos direitos civis. Davis, Darien J. Afro-brasileiros hoje. São Paulo: Selo Negro, 2000, pp. 31-35. 31
Queiroz, Maria Isaura Pereira de. Cultura, Sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/EDUSP, 1978, p. 238.
como um cidadão, foi povoando as áreas mais afastadas dos grandes centros urbanos e
como consequência tornou-se suspeito de qualquer ato ilícito na sociedade. Há centenas de
casos nos quais negros eram presos sem nenhuma razão concreta, simplesmente eram alvo
fácil na mira de policiais. Acusados de arruaceiros, ladrões, vagabundos e muitas vezes,
sem provas concretas, afrodescendentes tinham a morte como sentença decretada.
Infelizmente, esta realidade atravessou o tempo e ainda hoje, principalmente na periferia a
opressão policial é intensa. O negro é sempre o principal suspeito durante numa operação
policial e muitas vezes a suspeita vira fatalidade, como mostra a manchete da Folha de S.
Paulo na figura abaixo:
Foto 1 - Folha de São Paulo (Manchete).
Fonte: IBGE
Usando números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os
professores Gláucio Soares e Doriam Borges da Universidade Cândido Mendes, do Rio de
Janeiro, realizaram pesquisa, relacionando taxas de vitimização de brancos e negros na
sociedade brasileira. Para chegar ao resultado apresentado na manchete acima a Folha de S.
Paulo publica em 14 de agosto de 2004, no caderno Cotidiano, a matéria intitulada “Retrato
do Brasil”, de responsabilidade do repórter Mário Hugo Monken. Os resultados da pesquisa
confirmam uma tendência demonstrada em outros estudos de que é maior a probabilidade
de morte de negros do que de brancos no Brasil 32. Segundo a Folha, para os pesquisadores
a baixa legitimidade da polícia, da justiça e do sistema político contribui para aumentar a
violência. A verdade é que o estigma ainda faz do negro a grande vítima fatal da sociedade
como um todo e a cada instante a idéia de desigualdade não é desmistificada pela mídia, ao
contrário, são muitos os veículos que apontam a tendência de ligar a criminalidade ao
personagem negro33.
32
Ver Mapa da Violência 4, divulgado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento). 33
Abramo, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 30.
As palavras cultura e ideologia fazem parte do nosso cotidiano. Estão na televisão,
nas propagandas, nas canções, são mencionadas nos jornais, nos debates políticos, enfim
aparecem em várias situações da sociedade. Na concepção sociológica existe uma
complementação a respeito da cultura e da ideologia. Estão expressas na relação idéias
versus contexto, e no caso da comunidade negra, cuja cultura foi alterada a partir dos
contextos sociopolítico e econômico da chamada revolução burguesa, podemos deduzir que
devido à economia de mercado e ao desenvolvimento das organizações burocráticas,
culturalmente criou-se uma espécie de despersonalização do negro a partir da complexidade
urbana.
Assim, foram sendo lançados nas periferias os elementos negros deixados à margem
da organização urbana. Este distanciamento colocou o afrodescendente na escala inferior de
oportunidades para o trabalho. No complexo espaço geográfico, o acesso do afro-brasileiro
aos setores centralizados, na região metropolizada, caracterizou-se por inúmeros sacrifícios,
desde a dependência de transporte intermunicipal até a necessidade de infra-estrutura que se
encontra na cidade. Por razões óbvias, o negro aumentou o índice de desempregados nas
áreas urbanas. O problema do negro brasileiro é que ele nunca foi analisado pela
contribuição genética, mas pela aparência (análise fenotípica), que causa maior impacto na
sociedade. Contribuições como as de Oracy Nogueira34, Nina Rodrigues, Florestan
Fernandes e do próprio Octávio Ianni revelam que os elementos fenotípicos ficam em maior
evidência quando se trata do assunto racismo no Brasil. Este fator se agrava mais ainda
quando o problema é a inserção do negro na sociedade. Ver o exemplo do gráfico de uma
empresa financeira:
Gráfico 1
Fonte: ABN AMRO Bank. Programa Diversidade. Documento Interno.
Total Considerado: 25.340 funcionários. Base: março/2002. Elaboração: Observatório Social.
34 Nogueira, Oracy. Negro político, político negro. São Paulo: Edusp, 1992. Rodrigues, Nina. Os Africanos no
Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977, p.273. - Bastide, Roger & Fernandez, Florestan. Brancos e negros
em São Paulo, 3ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1971, p. 41.
O gráfico acima representa uma parcela mínima da participação do negro no quadro
de funcionários. Este problema ocorre em todos os setores produtivos do País, até mesmo
no setor agrário onde o negro formava a maioria dos empregados. As chances são muito
poucas por ainda existir em pessoas que acreditem na incapacidade intelectual e social do
negro. Estudos ligados às questões genéticas têm possibilitado análises e discussões em
relação às cotas universitárias e em relação às ações afirmativas sobre quem é e o que é o
negro no Brasil35, mas não reforçam ou justificam a desigualdade social a partir do quesito
cor, e muito menos enriquecem as razões que levam muitas pessoas no mundo a
verdadeiramente acreditarem numa democracia racial no Brasil.
O quesito cor, nos censos demográficos desde o século XIX, vem sendo uma
preocupação do governo brasileiro. O reconhecimento das questões étnicas é antigo e segue
os padrões rígidos da ideologia do embranquecimento da sociedade, principalmente com o
processo imigratório no País, o que deixou à margem da sociedade os indivíduos negros,
que por razões obvias negou a própria identidade para poder alçar oportunidades nos
contextos social e econômico. Quando questionados em recenseamento sobre sua cor,
muitos negros não respondem à pergunta como deveria e se autoclassificam como brancos,
mesmo nos casos em que o recenseador observa a cor mais escura da pele do entrevistado.
A chamada inserção do negro na sociedade ainda é muito utópica, fazendo com
que elementos étnicos afrodescendentes se esforcem ao máximo, em todos os sentidos,
seja na concepção profissional, pessoal, acadêmica, para serem aceitos na sociedade de
classes. O negro não pode ser bom, tem que ser o melhor se quiser ser inserido no
contexto social. As exigências são maiores no caso dos afro-brasileiros, pois devem
provar que têm competências e habilidades. A tabela a seguir mostra a quantidade da
população por cor e raça no Brasil, de 1976 até o ano 2000. Na classificação aparecem
as cores branca, preta, parda, amarela e indígena, demonstrando de imediato o mosaico
humano que existe no País. A cor parda, relacionada ao mestiço, tem um número
bastante significativo e muito próximo do número total da cor branca. A cor preta tem
um valor menor do que as cores branca e parda. Isto pode significar num contexto
imaginário que se o processo de miscigenação continuar a crescer, a cor preta tenderá a
cair mais ainda e o elemento cultural negro ficará na dependência da auto-identidade do
mulato. Foi por este caminho que aos poucos a identidade do negro foi desaparecendo,
35
Outra contribuição para a revista Estudos Avançados, da USP, foi a de Pena, Sérgio D. J. e Bortolini, Maria
Catira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? São Paulo: Instituto de Estudos Avançados 18 (50), fevereiro de 2003, p. 31.
uma vez que, o mulato passou a ser integrado na população como uma extensão da etnia
branca. Sendo assim, o elemento de pigmentação mais escura ficou em maior evidência
na marginalização social.
Tabela 3
População residente total no Brasil
Branca Preta Parda Amarela Indígena Ignorada
1976 105.812.121 59.710.748 8.865.753 33.072.352 2.800.827 1.362.441
1980 116.166.610 64.088.363 6.960.685 43.962.056 663.309 - 492.197
1987 133.401.378 75.302.634 7.411.158 49.832.941 827.550 - 27.095
1988 135.987.875 75.184.619 7.359.601 52.713.980 695.503 - 34.172
1989 138.365.204 76.940.860 6.964.270 53.733.073 720.128 - 6.873
1990 141.580.018 78.006.437 6.934.553 55.888.474 749.898 - 656
1991 143.101.990 75.008.252 7.196.798 59.573.006 625.308 186.208 512.418
1992 145.447.491 78.566.067 7.815.932 58.332.749 616.904 111.276 4.563
1993 147.616.459 80.130.866 7.484.798 59.043.944 757.959 172.268 26.624
1995 151.922.545 82.786.996 7.481.957 60.740.011 732.444 161.465 19.672
1996 154.024.906 85.313.774 9.179.039 58.605.653 650.787 249.645 26.008
1997 156.128.003 84.900.699 8.133.673 62.252.713 604.923 219.565 16.430
1998 158.232.252 85.450.823 9.005.764 62.554.751 841.444 362.890 16.580
1999 160.336.471 86.626.719 8.645.506 64.043.050 742.372 261.740 17.084
2000 166.209.968 89.861.160 10.192.582 63.636.888 858.236 541.460 1.119.643
Fonte: IBGE, PNADs 1987 até 1999 e CDs 1980, 1991 e Tabav 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Ano Total (1)
Cor/Raça
A busca por identidade e participação da comunidade negra no processo de luta
contra o racismo e preconceito de cor no País será o assunto do próximo capítulo, uma vez
que, muitos elementos da sociedade, hoje, são tratados por diversos nomes, como moreno,
preto, “negro”, mulato, escurinho, moreno-escuro, e, contudo, nenhuma dessas
denominações esclarece realmente quem é o indivíduo negro inserido na sociedade e como
se identifica culturalmente. É como expressou Sueli Carneiro, em um trabalho apresentado
em reunião do Grupo Internacional e Consultoria 36:
Como resultado da maciça miscigenação e da igualdade expressa em
medidas legais, a ideologia da democracia racial no Brasil induziu
negros e brancos a acreditar que a inferioridade social dos negros se
deve à sua própria incompetência. A ideologia da democracia racial
disfarçou o fato de que os métodos utilizados no Brasil, na África do
Sul e nos Estados Unidos, embora distintos, atingiram os mesmos
resultados. Os bantustões da África do Sul e os guetos dos Estados
Unidos são redefinidos no Brasil como favelas, e todos são
habitados principalmente por negros.
36
Iniciativa Comparativa de Relações Humanas. Para Além do Racismo. Atlanta, EUA:SEF, Southern Education Foundation, 2000, p. 26.
Hoje não é tão diferente assim, de conformidade com a matéria da Folha de S.
Paulo publicada em junho de 2004:
Foto 2 – jornal Folha de S. Paulo.
Fonte IBGE
Os dados do gráfico que representa toda a população brasileira (atual) em amarelo, a
população branca em branco, e a população negra em preto nos revelam, na reportagem de
Antônio Góis, da sucursal do Rio de Janeiro, que o drama do desemprego e da renda
precária também tem nuances de cor. Segundo o IBGE, da população preta ou parda
ocupada, 11% estavam empregados em março nos chamados serviços domésticos e 10% na
construção civil. Entre brancos, essas porcentagens eram de 5% e 6%. O estudo mostra que
a desigualdade é enorme, e que após 116 anos de abolição a desigualdade racial continua
evidente no mercado de trabalho.
Vítimas da concorrência imperialista, da bipolaridade e da globalização, o negro e
outras minorias não tiveram a oportunidade de construir um modelo social próprio, original,
porquanto lhes foi negado o direito de expressar verdadeiramente a sua identidade. A
negação de uma cultura surge desde o indivíduo não admitir que tem cabelos crespos, até a
condição e não admitir o jeito negro de ser. O próprio negro tem necessidade de aceitação
social, o que o leva a negar, inclusive, a própria origem. Para quem é branco e pobre a
dificuldade para manter-se num mercado altamente competitivo é muita, mas o afro-
brasileiro, que se acostumou com o trabalho pesado e com o analfabetismo37 no sistema
“técnico-científico informacional” 38, acomodou-se à ideia de que jamais terá oportunidades
na vida por ser negro, por ser descendente de escravos, e principalmente por morar em
periferias.
37
Analfabetismo em muitos sentidos, como o educacional, o institucional e o social. 38
Expressão usada por Milton Santos em um artigo sobre A natureza do espaço e o papel da informação, analisado por Ivan Lazzari Mendes em 8 de abril de 2000.
Trata-se de uma rede de marginalização na qual se desencadeou um capitalismo
cruel que derrubou, lá no fim da corda, o grupo social sem forças para reagir ao processo
global, que foi sendo substituído por imigrantes, e hoje, por trabalhadores especializados em
conhecimento técnico-científico. A mulher negra, então, em todo o estigma construído em
torno da sua sexualidade, evidentemente deixou de ter qualquer oportunidade para se inserir
no mercado de trabalho como uma especialista. O trabalho como empregada doméstica foi e
ainda é a única chance para buscar recursos e sobrevivência. Mesmo assumindo o controle
da casa, a mulher negra luta por cidadania e dignidade, encaminhando os filhos ao sonho de
terem algum dia uma vida melhor em relação a ela própria e aos seus antepassados
africanos e afro-brasileiros. A necessidade de se auto-afirmar no contexto social já não faz
parte só do universo afro, mas de todo indivíduo pobre. Entretanto o negro, além da falta de
recursos, ainda luta para construir uma identidade sólida e positiva no mercado de trabalho
e na política econômica. A população do continente africano e todos os seus descendentes
espalhados pelo mundo têm sempre sofrido, com o racismo, e muitas argumentações foram
levantadas para tentar provar a incapacidade racional e física do homem negro39, porém
foram simples retóricas para justificar a ideologia inferior da raça negra no mundo todo.
A luta por sobrevivência em lugares afastados deixou muitos negros à margem de
alcançar sua “liberdade” moral, e só não efetivaram esse objetivo porque a ideologia racista
e antiga do sistema político-econômico da Europa afastou tal possibilidade. Na música, nas
letras, no conhecimento popular e científico, e em muitas outras situações o
afrodescendente construiu talentos e habilidades. Apesar de inserido na cultura brasileira,
tradicionalmente como elemento que contribuiu no vocabulário, na culinária e até mesmo
na religião, a sociedade afro-brasileira carregou o estigma que a história lhes reservou, ou
seja, foram se desenvolvendo como grupo social voltado para os trabalhos domésticos e
braçais.
Em 13 de maio de 1997, o Congresso Brasileiro modificou a Lei nº 7,716 (lei que
regula os crimes de racismo no Brasil em consonância com a Constituição de 1988),
substituindo-a pela Lei nº 9.459 cuja mudança do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848 de
dezembro de 1940, que permaneceu inalterada na Constituição de 1988). Apresenta uma
emenda do Artigo I que diz “Os crimes de preconceito de cor ou de raça serão punidos de
acordo com a lei” e passou a ser redigida da seguinte maneira: “Os crimes de discriminação
ou preconceito segundo raça, cor, etnia, religião ou origem nacional”. Adicionalmente, o
Artigo 2º enfatiza que “quem praticar induzir ou iniciar algum tipo de discriminação ou
39
Esta assunto está muito bem documentado e refenciado em: Fredrickson, op. cit., p. 110.
preconceito por raça, cor, etnia ou religião, sofrerá pena de três anos e multa”. Até muito
recentemente, o Brasil evitava maneira sistemática apresentar imagens de afro-brasileiros
como símbolos nacionais. Hoje, os afrodescendentes são sub-representados entre
profissionais de gerenciamento alto e médio, na televisão, no cinema e na mídia em geral.
Estão super-representados em empregos de baixa remuneração, nas favelas e nas prisões.
Do pequeno número de negros que conseguiu superar os obstáculos e obteve uma boa
educação, muitos concentraram vários desafios na vida profissional por causa da raça. Ao
celebrar os 500 anos do aniverário da chegada dos portugueses no Brasil foram necessário
lembrar que a colonização esteve baseada na subjugação dos povos africanos e indígenas e
de seus descendentes.
Afinal, desde a Abolição o negro só quis e pretendeu conquistar a sua cidadania e o
reconhecimento da sua importância na sociedade, incorporando valores dos brancos,
conforme se pode observar nas fotos a seguir:
Foto 3 – Primeira comunhão de garoto negro.
Fonte: arquivo pessoal
A foto mostra um garoto, José Guilherme Pinheiro, em sua primeira comunhão
(1949). É importante destacar que um dos padrões da cidadania do afro-brasileiro foi o de
deixar no passado qualquer influência dos ritos africanos e associar-se a uma nova religião:
a umbanda ou catolicismo. O próprio Gilberto Freyre narra esse fato na obra Casa Grande
& Senzala.
Foto 4 – Família reunida.
Fonte: arquivo pessoal
A foto registra um grupo de pessoas da mesma família, mas de gerações diferentes.
Dessas pessoas fazia parte Marcelo Carlos da Silva, ainda garoto, que mais tarde serviria no
Exército, iria casar-se e constituir uma família de nove filhos, mas só conseguiria se
preocupar com sua formação aos 50 anos de idade, quando resolveu estudar e conquistar
alguns certificados como o do ensino fundamental, do ensino médio, e de técnico em
Administração de Empresas.
Foto 5 – Alunos de classe média baixa.
Fonte: arquivo pessoal
A foto mostra um grupo de alunos da Escola Estadual Antônio Alcântara Machado,
no Ipiranga, em São Paulo. Neste grupo também está presente Marcelo Carlos da Silva, que
teve de interromper seus estudos para ajudar no orçamento familiar. Na foto aparecem
alunos de classe média baixa, que estão calçados, enquanto os outros, de classe inferior
(negros ou não), pobres e carentes, estão descalços.
Foto 6 – Casamento de médico com professora.
Fonte: arquivo pessoal
Na foto há o registro de um casamento (1934) entre elementos negros que
alcançaram um status social: ele, Osvaldo Santiago, formou-se em medicina, e ela, Zélia
Santiago, formou-se professora. Foram morar no Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca.
Foto 7 – Uma mulher negra.
Fonte: arquivo pessoal.
A foto mostra uma negra que há muito não via sua irmã moradora da cidade de Casa
Branca, interior de São Paulo e procurou um estúdio de fotos para registrar sua imagem e
enviar como presente e lembrança à irmã (1922). Divina Narciza Oliveira, seu nome de
solteira, tornou-se Divina da Silva ao conhecer Manuel da Silva, músico e pedreiro. Ela,
quituteira, conseguiu construir com o marido a própria casa no Ipiranga, e lá viveram até
seus últimos dias de vida.
As fotos acima representam momentos de cidadania, ou pelo menos uma
tentativa de integração na sociedade e serem dignos sem a sensação humilhante da servidão.
Também podem ser considerados, evidentemente, exemplos de negros que lutaram para
conseguir no anonimato a cidadania de uma maneira bem simples. Pobres, mas podendo
circular livremente sem o medo de sofrer o ônus da escravidão. Conforme depoimentos de
familiares das pessoas que aparecem nessas fotos, elas não conseguiram fugir desses
problemas porque mesmo sendo honestas carregavam na pele a cor do pecado. A opressão
da sociedade, e da polícia era tão intensa que constantemente marcas do desrespeito e da
desigualdade estavam presentes, sempre havendo o estigma gerado pela sociedade burguesa
de mostrar a inferioridade da raça negra. A argumentação sobre raças foi usada por
cientistas europeus para categorizar os diferentes aspectos físicos de povos que viviam em
partes distantes do mundo. A raça começou, então, como um conceito geograficamente
derivado, e com o passar do tempo foi-se hierarquizando em capacidades e valores da
humanidade. E em nome da ciência os diferentes tipos humanos foram sendo classificados
em superiores e inferiores, sem haver qualquer reforço argumentativo de que a única raça
existente no mundo é a humana. É importante refletir sobre as palavras de Florestan
Fernandes:
Um muro de incompreensão e de hostilidade oculta separava o “negro
de brim” do “negro de elite”. O pior é que essa incompreensão anulava
os efeitos construtivos da classificação social de uma parcela da
população de cor e ajudava, decisivamente, a perpetuar a posição
heteronímica da “raça negra” na estrutura da sociedade inclusiva. Em
consequência, as alterações de status socioeconômico somente
beneficiavam os indivíduos envolvidos, sendo nulas do ponto de vista
da situação e do prestígio da comunidade a que pertenciam. Os efeitos
da mobilidade social vertical não se refletiam sequer no alargamento
do horizonte cultural do medo, porque a ausência de canais regulares
de comunicação impedia a provocação das experiências individuais
dentro dessa área no meio negro40
.
40
Fernandes, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes; vol. 1 – Ensaios 34. São Paulo: Ática, 1978, pp.240-241.
No Brasil, o encontro de muitas raças e culturas caminhou para o inverso que
ocorreu em muitos outros lugares, cuja segregação se estabeleceu. Raças diferentes se
misturaram e desenvolveram registros impressionantes na história cultural do Brasil. O
negro também deixou sua marca, porém nada tão expressivo a ponto de colocá-lo em lugar
de destaque na sociedade brasileira. Na culinária, na religiosidade, na arte e nos
seguimentos em que pode estabelecer uma marca cultural, o afro-brasileiro representou
dado expressivo no que se refere às questões geofolclóricas, mas não significativo no
quadro econômico e político do País. Quase todas as contribuições negras ao
desenvolvimento da sociedade brasileira ficaram abandonadas nos quilombos, nas favelas,
nos cortiços, nas periferias.
No meio social e elitizado, a presença do afro-brasileiro é quase imperceptível a
invisibilidade do afrodescendente cresceu em função da democracia racial, em nome de
uma aceitação tolerável e nada comprometedora. Reconhecem o direito do negro de
trabalhar na atividade braçal, mas não podem compreender a participação dos negros nas
atividades científicas. Consequência da evolução econômica e tecnológica? Ou
simplesmente consequência direta do processo de urbanização que, de uma forma ou de
outra, gerou uma sociedade com ideais culturais e urbanos bastante definidos41?
Para Castells, a ideologia urbana possui profundas raízes sociais. Ela não fica
inserida apenas nos registros acadêmicos, mas se intensifica pela cabeça e modo de viver
das pessoas nos lugares em desenvolvimento. Portanto, desde o princípio da chamada
revolução urbana, as cidades foram crescendo de acordo com o crescimento e exigência das
sociedades. Foram criando a evolução vertical do comportamento humano e caracterizando
a assimetria social de cada indivíduo envolvido no sistema como um todo42. Mas não houve
o envolvimento do negro, não houve evolução acadêmica em grande escala com
representações afrodescendentes. Na verdade, o negro ficou à margem de tudo.
4. A Periferia
A origem de grandes metrópoles provoca o surgimento de moradias mais afastadas
dos centros urbanos e são denominadas periferias. Esta é a concepção da geografia para
explicar o modo de vida de sociedades que perdem poder econômico e são obrigadas a
41
Sobre este assunto conferir: Velho, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno Urbano 4a ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979, p. 90. 42
De forma bastante complexa e analiticamente desenvolvido, o assunto sobre sistema urbano na visão da sociologia contemporânea, ver: Castells, A Questão... op. cit.
buscar uma alternativa de vida para sobreviver. O crescimento de periferias é resultado da
desigualdade econômica originada do avanço capitalista em diversos espaços do globo.
Esses grupos mais afastados tendem a formar comunidades que sobrevivem graças a ajuda
mútua.
As comunidades periféricas vão crescendo e se justapondo no espaço que ocupam.
Afirmando sua própria identidade, as minorias imprimem marcantes diferenças na realidade
atual à medida que reivindicam direitos e contestam certas normas sociais ante a exclusão, e
organizam movimentos na intenção de conquistar a cidadania. Geralmente as manifestações
das comunidades se originam da própria avaliação negativa que trazem na consciência por
meio de atitudes submissas e declarações de incapacidade produtiva, e também da
discriminação e segregação que recebem das sociedades mais privilegiadas no contexto
liberal dos fatos históricos e da geopolítica no mundo43. Este processo faz, no universo das
periferias, muitos indivíduos não acreditarem no trabalho comunitário e partirem para a
criminalidade ou mendicância. Portanto, fica fácil formar o conjunto: morador de periferia,
vida de favelado, crime e muita pobreza, como aparece no início deste capítulo, pensando
na marginalização de minorias como um Processo Social44 e não como uma cultura imposta
pela sociedade em rede.
As relações do tipo comunitário, como eram nos quilombos cuja participação de
todos os indivíduos voltados ao bem-estar do grupo era importante, assumem hoje um papel
fundamental na busca pela cidadania. Nos quilombos atuais, o processo de subsistência
ainda é muito forte. Produzem o que vão consumir e com muita dificuldade conseguem
recursos para as tarefas. A vida em comunidade nas metrópoles implica construir relações
simbólicas a partir do compromisso ético com um projeto existencial e político, isto é, um
contrato de cidadãos livres que almejam sucessos individuais e que precisam do grupo para
alcançar seus objetivos. Porém, o individualismo é mais forte. A despeito de estarem na
mesma esfera de dificuldades para viver, as pessoas que moram nas favelas ou na periferia
são testemunhas oculares e até mesmo protagonistas de inúmeras violências cometidas
pelos que querem chegar aos seus objetivos num tempo mais curto. Desrespeitando regras e
valores humanos, as comunidades periféricas são marcadas pela pobreza e sofrimentos
43
Destaca-se aqui uma observação sobre a função estrutural da linha do tempo, instrumento da história que marca a passagem das Eras, períodos e anos. Para cada transição entre pré-história, Idade Antiga, Idade
Medieval, Idade Moderna, Idade Contemporânea e liberalismo, houve mudanças significativas no sistema econômico para a sobrevivência, e no sistema político para controle e organização de sociedades, sofrendo
conseqüências diretas todos os indivíduos em níveis e lugares diferentes. 44
Expressão da sociologia contemporânea para justificar modos de convivência social. A análise sobre
Processo Social leva à verificação de que existem duas formas para a convivência em grupo ocorrer: a 1ª é o processo de comunhão ou processo associativo, e a 2ª é o chamado de processo social de conflito ou
dissociativo. Ou seja, ou o grupo social se une e luta por direitos através da comunidade, ou apresentará manifestações de conflitos e de não entendimentos no grupo.
diários com falta de comida, dinheiro e perspectivas para um futuro melhor. Portanto, é
muito comum encontrar nesses locais casos que envolvem tráfico de drogas, alcoolismo,
prostituição, gravidez precoce, esposas sem maridos, filhos sem pais presentes, crianças
criadas pelas avós. Os jovens começam a fumar muito cedo, e em geral estudam até a 4ª
série do ensino fundamental em escolas que reúnem um corpo docente precário. Aliás, o
patrimônio dessas escolas é constantemente roubado por jovens infratores. Mas morar na
periferia também tem suas vantagens. Apesar do convívio diário com o desânimo e muita
tristeza, os moradores estão sempre atentos aos acontecimentos no local. Assim, sem
perceberem, numa comunicação verbal e rápida estão sempre se protegendo. As notícias
dos fatos ocorridos chegam rápido até as famílias. A política da boa vizinhança é realizada
de uma forma curiosa quando espalham banquinhos nas calçadas (quando as prefeituras as
constroem) para beber e observar em grupo a movimentação da comunidade. Por isso
sabem se há estranhos chegando ou saindo do lugar ou mesmo descrevem com muita
precisão se há alguém doente no bairro, quem morreu e quem se mudou de casa; sabem até
quem apanhou do marido.
Para muitos moradores de periferia, essa atmosfera de cuidados com a vida alheia de
certa forma os protege, porque estão atentos a qualquer movimento fora da rotina, para
avisar os vizinhos. Não se preocupam com as etiquetas sociais porque se consideram pobres
e abandonados pelo governo afinal, é comum a falta de leitos em hospitais, falta de escolas
e estrutura para saneamento básico decente. Os moradores se unem e se previnem de algum
contratempo, não revelando à polícia quando alguém comete algum crime. Há casos em que
criam um código de ética entre moradores e bandidos para receberem proteção, na falta de
profissionalismo e cumprimento do dever dos policiais.
É comum cenas de mulheres discutindo e usando palavras de baixo calão por causa
de brigas de crianças, assim como é natural observar com frequência a presença de homens
velhos, mal vestidos, caídos pelas sarjetas das ruas após uma boa bebedeira. Estas pessoas
somam seus problemas e os descarregam com muita adrenalina em algum escândalo, em
alguma confusão. É na periferia que crescem as estatísticas a respeito de crianças que
sofrem violência dos pais ou de padrastos e madrastas, o que provoca, de fato, a procura
destes menores por abrigo nas ruas. A paisagem da periferia, com suas ruas de terra (a
maioria), ainda conta com a presença do comércio itinerante, ou mesmo com um sistema de
troca de serviços para garantir a sobrevivência. Acumulam-se contas, pois compram fiado,
sob a promessa de pagar em outro momento, porém sem saber se poderão saldar tal dívida.
Há casos de moradores que se aproveitando da falta de infraestrutura criam galinhas,
plantam verduras e legumes, cujo risco à saúde é muito grande, porque sempre
desenvolvem as culturas perto de córregos contaminados, infectando a terra e o ar, cuja
água é usada para lavar roupa, cozinhar e beber.
Com destaque, os jovens se reúnem em muitos momentos: para jogar bola, ouvir
música rap, samba ou pagode, axé e reggae, em lajes de casas não acabadas, ou mesmo
quando alguém coloca caixas de som na rua e exibe músicas em alta potência. Reúnem - se
também em botecos tocando pagode ou forró45, e estão sempre criando parcerias.
5. A Periferia em Diadema
Desde o início, o processo de ocupação de Diadema teve um fator fundamental: sua
localização geográfica entre o litoral vila de São Vicente e o planalto vila de São Paulo de
Piratininga. Foi a existência de uma via de ligação entre São Bernardo e Santo Amaro que
proporcionou a chegada de uns poucos moradores ainda no século XVIII.
As avenidas Antônio Piranga e Piraporinha originaram-se desses caminhos
primitivos. Não obstante a proximidade geográfica com a capital, até os anos 50 do século
XX a cidade pouco sentiu os efeitos das transformações produzidas pela industrialização em
São Paulo. Até então, Diadema não tinha nenhuma importância econômica regional. Foi nas
cidades localizadas ao longo da ferrovia Santos- Jundiaí, principal via de circulação de
mercadorias na época, que ocorreu a expansão industrial paulista até a década de 40,
especialmente em São Caetano, Santo André e Mauá.
Após a década de 50, o sistema de escoamento da produção, feito até então pelos
eixos ferroviários, entrou em declínio, e o governo passa a optar pelos circuitos rodoviários.
A Via Anchieta, inaugurada em 1947, representou uma nova fase da industrialização
paulista e da implantação do capitalismo no Brasil. Em São Bernardo, ao longo dessa
estrada instalaram-se grandes indústrias multinacionais, e em Diadema, principalmente
pequenas e médias empresas nacionais que produziam na sua maioria, objetos
complementares para as multinacionais.
Em 1948, com a Lei nº 233, criou-se o distrito de Diadema. As transformações
ocorridas a partir dos anos 50 na região do ABCD paulista (abertura de estradas,
industrialização, migrações, novos loteamentos, crescimento das cidades) despertaram o
interesse das lideranças políticas da região de Diadema. Havia o entendimento de que a
mudança de distrito para município favoreceria o desenvolvimento do lugar. Aprovado o
45
A presença de nordestinos nas periferias se confunde com o histórico dos afrodescendentes. Ambos são grupos excluídos da sociedade em rede e das representações culturais.
processo de emancipação pela Assembleia Legislativa, ocorreu um plebiscito em
24/12/1958. As pessoas residentes há mais de dois anos no local votariam a favor ou contra
a emancipação. Participaram cerca de 300 eleitores e a emancipação venceu por pequena
margem, apenas 36 votos. Em 1959 realizaram-se as primeiras eleições para os poderes
Executivo e Legislativo do município de Diadema. E no dia 10/1/1960, com a posse do
primeiro prefeito, vice-prefeito e vereadores, instalou-se oficialmente o novo município46
.
Foto 8 – Vista de Diadema
Fonte: Centro de Memória de Diadema
Foto 9 – Praça Castelo Branco
Fonte: Centro de Memória de Diadema
46
A história da cidade de Diadema aparece no corpo do texto em fragmentos extraídos de documentos fornecidos pelo Centro de Memória de Diadema.
As fotos representam a cidade de Diadema, município de São Paulo, em dois
momentos: na foto 8, em 1960, a cidade já como município, porém sem infraestrutura,
preparando-se para conquistar a emancipação em relação à cidade de São Bernardo do
Campo. E o processo desenvolvimentista através da construção de inúmeras estruturas
urbanas que atendem à população em suas necessidades está representado na foto 9
(2000)47
. Diadema é uma cidade que cresceu em pouco tempo, tem apenas 45 anos de
idade. Este crescimento deu-se por conta do grande número de população que migrou de
outras regiões metropolitanas em busca de custo de vida mais barato. Mas, a infraestrutura
da cidade não acompanhou o crescimento populacional e como seria de se esperar a s
consequências foram as habitações desestruturadas e a expansão regional formando
periferias (lugares distantes).
5.1. Movimentos populares em Diadema
O contexto histórico da cidade abriu espaço para lutas pela ampliação de direitos
sociais como saúde, educação, moradia, transporte, levando a população na direção do
Estado, em conjunto com as outras cidades industriais da região – Santo André, São
Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. O surgimento das primeiras organizações e lutas
populares ocorreu no final dos anos 70. No Brasil a situação da população pobre e
trabalhadora era de repressão, instituída pelo golpe militar de 1964 e especialmente pelo
Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968. O cotidiano dos trabalhadores era muito
cerceado, uma vez que suas práticas reivindicatórias passavam a ser consideradas
subversivas. Era nas comunidades eclesiais de base, nas reuniões clandestinas dos
sindicatos, nos clubes de mães e nas Sociedades Amigos de Bairros que homens, mulheres e
jovens, na maioria das vezes tendo a Igreja como elo comum, se reuniam para falar de seus
problemas. As propostas eram diversas: organizar bazares de pechincha, cursos de
alfabetização e de aprendizagem doméstica, mutirões, ajudar uma comunidade mais pobre e
discutir os problemas do bairro, como falta de água, luz, asfalto, posto de saúde e a questão
da violência. Dedicando-se a esses trabalhos, as pessoas se davam conta das duas
realidades, de suas potencialidades e possibilidades de mudanças.
47
As informaçòes sobre a história de Diadema e sobre as lutas sociais foram obtidas do site: www.diadema.sp.gov.br. Acessado em: 08 de mar. 2004.
Um importante fator a considerar é que os movimentos de reivindicação são
potencialmente questionadores e politizadores, mas os seus limites de atuação são
previamente definidos, ou seja, a conquista de serviços. Além do mais, a ascensão dos
partidos de oposição ao poder, em diversos momentos tem gerado desmobilização dos
movimentos, seja devido à grande cooptação que os movimentos sofreram, seja porque as
reivindicações já foram de alguma maneira atendidas48
.
Diadema foi considerada uma periferia dentro da cidade de São Paulo e em
comparação com São Bernardo do Campo e Santo André, em sua dimensão e crescimento
geográfico, com representações demográficas marcantes, constituindo outras periferias na
própria cidade, conforme demonstra a tabela seguinte:
Tabela 4
Evolução da população de Diadema por bairros.
Fonte: (1) Censo Demográfico 91 -IBGE
(2) Censo da Prefeitura de Diadema (3) Estimativa PMD
(4) Censo Demográfico 2000 - IBGE
48
Informações obtidas do Centro de Memória de Diadema e organizadas pelo Departamento de Comunicação da Prefeitura.
Bairros 1991(1) 1994(2) 1995(3) 2000 (4)
Campanário 27.702 31.382 31.572 22.092
Canhema 19.668 17.580 17.687 28.894
C. Grande 28.173 34.316 34.523 34.651
Centro 39.775 37.676 37.904 43.170
Conceição 27.788 28.534 28.707 38.122
Eldorado 28.820 33.326 33.528 38.270
Inamar 17.408 18.378 18.489 22.782
V. Nogueira 32.072 28.281 28.452 33.215
Piraporinha 15.590 13.940 14.025 21.808
Serraria 21.250 21.215 21.344 27.911
Taboão 47.041 46.220 48.511 45.474
Total 305.287 310.848 314.742 356.389
Apesar das lutas sociais e das conquistas estruturais para a cidade, o surgimento
dessas microperiferias em Diadema provocou novos problemas sociais, principalmente
para os afro-brasileiros, cuja presença é marcante na cidade. O medo da rejeição levou
muitos jovens ao abandono da sua identidade social e étnica. Mais adiante nesta
dissertação serão vistas a formação e a estrutura da comunidade nesta cidade, em
parceria com a Prefeitura Municipal. Será constatado como os afro-brasileiros buscam
sua cidadania através do movimento Hip Hop.
A história do Hip Hop em Diadema vem do início dos anos 1990, mas bem antes a dança
break já fazia parte do cotidiano dos jovens da cidade. Como sempre, garotos livres e
descompromissados com qualquer tipo de trabalho, ou não, e estudantes de escola pública, a
maioria vivendo o problema o universo da falta de professores, com inúmeras aulas vagas,
eram freqüentadores dos chamados bailes black, oferecidos nos finais de semana, a partir
das noites de quinta e sexta-feira. Durante a semana, quando não havia bailes, ficavam pelas
ruas reunidos.
Pelas conversas informais e debochadas, muitas vezes embaladas ao som do funk e
do rap49, chamavam a atenção fazendo muito barulho, risadas, marcando presença, ou
mesmo pichando muros e fachadas com spray de tintas. Mas o que estes grupos mais
gostavam de fazer era reunir-se para treinar passos de dança e exibir-se nos bailes.
Preparavam-se para o que é hoje um princípio das atuais batalhas de b.boys. Nos bailes funk
davam verdadeiros shows nas pistas livres para exibições dos grupos. Este cenário nos
Estados Unidos recebeu o nome de soul trainer, e aqui no Brasil os jovens começaram a
seguir o mesmo modelo, ou seja, todas as pessoas do baile, que estivessem na pista, tinham
que abrir espaço para os dançarinos se exibirem. Este estilo de arte e diversão chegou ao
País pela chamada company soul ainda na década de 1970, e era a divulgação da dança de
James Brown que seria seguida pelos afrodescendentes nos salões de festas.
Os jovens integravam-se socialmente a grupos ou duplas e tomavam as pistas com
seus passos criativos. Muitos criavam seu próprio grupo, e uniformizados apresentavam-se
nos bailes black com passos marcados. A maioria apresentava passos ensaiados durante a
semana. Quem arrancasse mais aplausos e delírio do público saía vitorioso. Enquanto
ocorriam as apresentações, as pessoas se divertiam batendo palmas ao ritmo da música, e
mesmo sem se conhecerem acompanhavam ou criavam outros passos para iniciar uma
gigantesca manifestação popular.
49
Seguindo o modelo norte-americano, nos encontros sempre havia algum garoto com rádios ou toca-fitas.
Alguns jovens tinham em mãos, antes de entrar na festa, convites ou circulares
como os modelos abaixo. Muitas vezes, durante os bailes, representantes de equipes de
festas black iniciavam a distribuição desse material. Numa época sem Internet, msn e blogs,
esta atitude era sobremaneira eficiente, pois, quem recebia o convite tratava logo de
espalhar a notícia sobre o próximo baile. Em razão de muitos afrodescendentes cultuarem
personalidades como James Brown, Public Enemy, Marvin Gaye, Billy Paul, Aretha
Franklin, Dianna Ross, Gladis Knight e até mesmo Michael Jackson, e muitos outros
artistas negros norte-americanos na década de 1970, poucos valor se dava à música negra
brasileira, ou seja, a garotada ouvia com mais freqüência as músicas estrangeiras mas com o
surgimento de artistas brasileiros que cantavam versões destas músicas de fora, aos poucos
as preferências foram mudando. É importante lembrar que a música desempenhou um papel
fundamental na comunidade afro-brasileira e mesmo ouvindo músicas de outro país a
inspiração e influência africana não ficaram de fora. Sob a forma de samba, afoxé e músicas
folclóricas a chamada música negra foi se estruturando em ritmos conhecidos como funk,
charme (uma espécie de música romântica) e rap.
Figura 5 – Evento no Clube dos Estudantes.
Fonte: Arquivo pessoal de King Nino Brown.
Figura 6 – Evento no Clube dos Estudantes.
Fonte: Arquivo pessoal de King Nino Brown.
Figura 7 – Evento na Praça da Moça em Diadema.
Fonte: Arquivo pessoal de King Nino Brown.
Todavia, artistas como Tim Maia, Cassiano e Jorge Benjor, que cantavam a beleza
da mulher negra e valorizavam o negro como ser cultural, eram apreciados pelos
adolescentes dessa época.
E outros também, como Carlos da Fé, Bebeto, Paulo Diniz, Gerson King Combo,
Tony Tornado, Banda Black Rio, Trio Esperança, Sandra de Sá, e muitos mais que
pregavam o amor, a paz e a confraternização entre os irmãos de cor. Na década de 1990 os
artistas mudaram, e personalidades como Tupac, Ice Cube, Snoop-Dog, Dr. Dren, Eminen e
outros internacionais ganharam espaço no universo rap transformado em Hip Hop por
Afrika Bambaataa. No Brasil, grupos como Racionais MC, Thaíde e Dj Hum foram
conquistando o respeito nacional e ganhando adeptos para o mundo do rap. Com o som
mais eletrizante, menos romântico e caracterizando a realidade da periferia, esses artistas
desempenharam um papel fundamental no processo de conscientização da população afro-
brasileira. Mesmo quando o artista era internacional, através dos clips havia a percepção de
uma realidade vinda dos guetos norte-americanos, por exemplo.
King Nino Brown, um assíduo frequentador dos bailes de São Paulo e Diadema,
enxergou longe, viu nos grupos breaks e nos garotos as habilidades dos elementos de arte
do Hip Hop. Começando um trabalho de conscientização, a exemplo de Afrika Bambaataa,
o admirador Nino Brown, juntamente com outros seguidores, entre eles Marcelinho Spin,
Sueli Chan e Nelson Triunfo, Levy (secretário do Departamento de Cultura da Prefeitura de
Diadema), Mônica, Maria Laudia, coordenadoras do Centro Cultural Canhema, procuraram
o órgão competente da Prefeitura a fim de pedir emprestado o espaço dos centros culturais
para realizar ensaios, palestras e encontros. Esta aproximação teve início em 1993.
Passaram a instalar a partir daí, oficinas culturais e workshops específicos, mas desejavam
antes de tudo ter um lugar onde pudessem centralizar a filosofia Hip Hop e dar ao
movimento um teor educativo.
A aproximação do poder público com o movimento aconteceu em 1994. Foram
convidados: a iniciar as oficinas de break, Nelson Triunfo; para as oficinas de Dj, nada
menos que Dj Hum, hoje famoso no mundo artístico e na mídia; Marcelinho Back Spin
orientou as oficinas de MC e no grafite, os Gêmeos, que faziam sucesso em São Paulo por
transformarem a Avenida Paulista pichada em espaço da arte de rua.
Figura 8 – Notícia sobre a Casa do Hip Hop.
Fonte: arquivo pessoal King Nino Brown.
O Centro Cultural Canhema (nome do bairro onde se localiza) constituiu-se
gradativamente em um ponto de encontro dos adeptos do Hip Hop da cidade. Por isto, em
31 de julho de 1999 foi lançado o projeto “Casa do Hip Hop”, aprofundando ainda mais o
espaço e a cultura de rua. Felizmente, essa cultura nascida na periferia tem se fortalecido
como alternativa para inúmeros jovens pobres, que quase não têm opções culturais e
profissionais. O projeto, em parceria com a Prefeitura de Diadema, possibilita ao
adolescente, no término da oficina a que compareceu tornar- se um oficineiro também ou
mesmo adquirir uma formação para trabalhar em outros centros culturais da cidade. Vale
dizer, será contratado pela própria Prefeitura para ser um repassador daquilo que aprendeu.
O jovem se torna um multiplicador do seu aprendizado e se compromete a repassar todo o
seu conhecimento a outros jovens, também da periferia, que não tiveram a oportunidade de
frequentar as oficinas oferecidas nos centros culturais.
O projeto deu tão certo que o processo multiplicador rompeu fronteiras e chegou a
lugares, antes jamais imaginados como espaços para jovens da periferia, como se pode
constatar na publicação seguinte:
Figura 9 – Notícia sobre a Casa do Hip Hop.
Fonte: Arquivo pessoal de King Nino Brown.
A junção de forma organizada de cultura e cidadania dá ao jovem a possibilidade de
criar, trocar e transmitir informações, numa convivência decente e digna. As noções de
respeito, reflexão e educação fazem com que os alunos atuem como conquistadores de
consciências, levando para outros locais a experiência adquirida. Isto permite o surgimento
de diversas iniciativas no interior de São Paulo e de outros Estados brasileiros, como Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, e Rio Grande do Sul.
A transformação dos jovens está sendo tão evidente que alguns profissionais da área
da educação tentam associar o fazer pedagógico da educação formal com o movimento50,
embora poucos sejam os registros, documentos e a bibliografia a respeito da cultura Hip
Hop. Por ser um fato recente na história desenvolvimentista do País e da América, é escassa
a literatura encontrada sobre o assunto. Quando muito, há alguns livros: Afro-brasileiros,
hoje (Selo Negro, 2000) ou Ser Negro no Brasil, Hoje (Ática, 1989), que reservam alguns
parágrafos para refletir sobre a cultura Hip Hop, mas nenhum capítulo contém uma análise
mais complexa, mesmo com toda a expansão dessa cultura nas periferias.
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50
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