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CRÍTICA E CLÍNICA Gilles Deleuze Trad.: Peter Pal Pelbart 1ªreimpressão:2004 Ed 34, São Paulo, Brasil Obs.: Não se fie neste resumo; ele é apenas um convite... Fie-se menos ainda no que está entre colchetes - [exemplo] -, pois são observações minhas, não do autor (à exceção, neste caso específico, do uso do Je e do Moi, para diferenciar os “Eus” a que se refere Deleuze no artigo sobre KANT) Os nomes dos capítulos, na seqüência, são links. Se você clicar no crtl e num desses links, vai direto para o artigo correspondente Por fim, a numeração dos parágrafos deste resumo segue a paragrafação original. PROLOGO 1 A LITERATURA E A VIDA 2. LOUIS WOLFSON, OU O PROCEDIMENTO 3. LEWIS CARROLL 4. O MAIOR FILME IRLANDÊS (FILM DE BECKETT) – NÃO ESTÁ RESUMIDO 5. SOBRE QUATRO FÓRMULAS POÉTICAS QUE PODERIAM RESUMIR A FILOSOFIA KANTIANA 6. NIETZSCHE E SÃO PAULO, D. H. LAWRENCE E JOÃO DE PATMOS 7. REAPRESENTAÇÃO DE MASOCH 8. WHITMAN 9. O QUE AS CRIANÇAS DIZEM 10. BARTLEBY, OU A FÓRMULA 11. UM PRECURSOR DESCONHECIDO DE HEIDEGGER, ALFRED JARRY

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Page 1: CRÍTICA E CLÍNICA  · Web viewGilles Deleuze. Trad.: Peter Pal Pelbart. 1ªreimpressão:2004. Ed 34, São Paulo, Brasil. Obs.: Não se fie neste resumo; ele é apenas um convite

CRÍTICA E CLÍNICA

Gilles DeleuzeTrad.: Peter Pal Pelbart

1ªreimpressão:2004Ed 34, São Paulo, Brasil

Obs.: Não se fie neste resumo; ele é apenas um convite...Fie-se menos ainda no que está entre colchetes - [exemplo] -, pois são observações

minhas, não do autor (à exceção, neste caso específico, do uso do Je e do Moi, para diferenciar os “Eus” a que se refere Deleuze no artigo sobre KANT)

Os nomes dos capítulos, na seqüência, são links. Se você clicar no crtl e num desses links, vai direto para o artigo correspondente

Por fim, a numeração dos parágrafos deste resumo segue a paragrafação original.

PROLOGO1 A LITERATURA E A VIDA2. LOUIS WOLFSON, OU O PROCEDIMENTO3. LEWIS CARROLL4. O MAIOR FILME IRLANDÊS (FILM DE BECKETT) – NÃO ESTÁ RESUMIDO5. SOBRE QUATRO FÓRMULAS POÉTICAS QUE PODERIAM RESUMIR A FILOSOFIA KANTIANA6. NIETZSCHE E SÃO PAULO, D. H. LAWRENCE E JOÃO DE PATMOS7. REAPRESENTAÇÃO DE MASOCH8. WHITMAN9. O QUE AS CRIANÇAS DIZEM10. BARTLEBY, OU A FÓRMULA11. UM PRECURSOR DESCONHECIDO DE HEIDEGGER, ALFRED JARRY12. MISTÉRIO DE ARIADNE SEGUNDO NIETZSCHE13. GAGUEJOU...14. A HONRA E A GLÓRIA: T.E. LAWRENCE – NÃO ESTÁ RESUMIDO15. PARA DAR UM FIM AO JUÍZO16. PLATÃO, OS GREGOS – NÃO ESTÁ RESUMIDO (É SÓ UMA FOLHA...)17. SPINOZA E AS TRÊS “ÉTICAS” – NÃO ESTÁ RESUMIDO (melhor a íntegra)

PRÓLOGO:

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1. Este conjunto de textos organiza-se em torno de determinados problemas: o

problema de escrever, por exemplo (o escritor, diz PROUST, inventa na língua uma nova

língua, uma língua estrangeira, traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas; arrasta

a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar). Mas o problema de escrever

é também inseparável de um problema de VER e de OUVIR: quando se cria outra língua no

interior da língua, ela tende para um limite “assintático”, “agramatical”, que se comunica

com seu fora. [NIETZSCHE, num textinho do Crepúsculo dos Ídolos, sobre a educação

Alemã, também fala em ver, ouvir e escrever]

2. O limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: é feito de visões e

audições não linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis.

3. Essas visões e audições não são um assunto privado, mas formam as figuras

de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas. É o delírio que as

inventa, como processo que arrasta a linguagem aos extremos. São acontecimentos na

fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em

nada mais desembocam, já não se vê nem se ouve coisa alguma através delas, exceto uma

noite que perdeu sua história. A literatura é uma saúde.

4. Esses problemas traçam um conjunto de caminhos; os textos e autores aqui

apresentados são tais caminhos. Alguns são impasses fechados pela doença. Toda obra é

uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual caminho exterior em virtude dos

caminhos e trajetórias interiores que a compõe, que constituem sua paisagem ou seu

concerto.

1. A LITERATURA E A VIDA

1. Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria

vivida. A literatura está antes do lado do informe, do inacabamento; escrever é um caso de

devir, que extravasa qualquer matéria vivida. É um processo, uma passagem de vida que

atravessa o vivível ou o vivido. A escrita é inseparável do devir. Ao escrever entramos num

devir menor, o qual tem sempre um componente de fuga que se furta à sua própria

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formalização. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas

encontrar a zona de vizinhança, de indiferenciação tal que a individualidade submerja, não

no impreciso ou no geral, mas no imprevisto, no não-preexistente, tanto menos determinado

numa forma quanto se singularizam numa população. O devir está sempre “entre” ou “no

meio”. A lingua tem de alcançar desvios “menores”, e todo desvio é um devir moral. Não

há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios

necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas.

2. Escrever não é contar as próprias lembranças, amores, sonhos ou fantasmas.

Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é a

eterna estrutura edípica que se projeta no real ou se introjeta no imaginário – uma simples

redução. Em regra geral, os fantasmas só tratam o indefinido como a máscara de um

pronome pessoal ou de um possessivo: “bate-se numa criança” se transforma rapidamente

em “meu pai me bateu”. Mas a literatura segue a via inversa, e só se instala descobrindo

sobre as aparentes pessoas a potência de um impessoal – não uma generalidade, mas uma

singularidade no mais alto grau (se singularizam numa população): um homem, uma

mulher, uma criança... Não com as duas primeiras, mas a partir da 3ª pessoa do singular é

que nasce a literatura – pessoa que nos destitui do pode de dizer “Eu”. Por certo, os

personagens literários estão perfeitamente individualizados: mas todos os seus traços

individuais os elevam a uma visão que os arrasta num indefinido como um devir potente

demais para eles. Não há literatura sem fabulação – não a qe projeta ou imagina um eu, mas

a que atinge essas visões, audições, que nos arrastam até os indefinidos, devires ou

potências.

3. Não se escreve co as próprias neuroses. A neurose, a psicose, não são

passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido,

colmatado. A doença não é processo, mas parada de processo. O escritor, enquanto tal, não

é doente, é antes médico, médico de si mesmo; escrever é um empreendimento de saúde.

Não que o escritos tenha uma saúde de ferro, mas ele goza de uma frágil saúde irresistível,

que provêm do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes, fortes demais para ele,

cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante

tornaria impossíveis.

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4. A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que

falta. Compete á função fabuladora inventar um povo. As lembranças próprias, no escrever,

fazem-se origem ou destinação de um povo que falta, eternamente menor, eternamente em

devir. Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento coletivo de

enunciação; é delírio, mas o delírio não diz respeito à pai-mãe: não há delírio que não passe

pelos povos, raças e tribos; todo delírio é “histórico universal”. Os dois pólos do delírio –

como saúde ou como doença - decidem o destino da literatura: é doença a cada vez que

erige uma raça pretensamente pura e dominante; é medida da saúde quando invoca essa

raça bastarda que não pára de agitar-se. Também aí um estado doentio ameaça sempre

interromper o processo, arrastando a literatura em direção á um fascismo contra o qual ela

luta.

5. A literatura produz na língua uma língua estrangeira, um devir-outro da

língua, uma minoração dessa língua maior. Criação sintática, estilo: tal é o devir da língua.

Literatura como destruição da língua materna; literatura como invenção de uma nova língua

no interior da língua: o terceiro aspecto diz respeito ao fato de que não se escava uma

língua estrangeira na língua sem que toda linguagem sofra uma reviravolta, seja levada a

um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem à língua

alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Idéias que o escritor vê e ouve

nos interstícios da linguagem. O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é

a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias.

2. LOUIS WOLFSON, OU O PROCEDIMENTO

1. LOUIS WOLFSON, autor de “Le schizo et Le langues”, chama-se a si

mesmo de “o estudante de língua esquizofrênico”. Esse impessoal esquizofrênico tem

vários sentidos e não indica unicamente, para o autor, o vazio do seu próprio corpo: trata-se

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de um combate em que o herói só pode apreender-se sob uma espécie anônima. Mas é

também um empreendimento científico, um protocolo de experimentação.

2. O que o estudante faz é traduzir segundo certas regras: dada uma palavra na

língua materna, encontrar uma palavra estrangeira com sentido e som ou fonemas comuns.

4. Para vencer as dificuldades, tal procedimento geral é aperfeiçoado em duas

direções: por um lado, em direção à um procedimento amplificado, associando as palavras

mais livremente umas às outras; por outro lado, em direção à um procedimento evoluído,

compondo independentemente grupamentos de fonemas, e abarcando, assim, um todo

maior, mesmo que não chegue à abarcar uma totalidade formalmente válida (pois a maneira

de tradução se resolve a cada vez),.

5. A psicose é inseparável de um processo lingüístico variável; o procedimento

é o próprio processo da psicose. RAYMOND ROUSSEL e JEAN-PIERRE BRISSET

utilizaram, como poesia, algo muito próximo do procedimento de WOLFSON.

6. Nos três casos, extrai-se da língua materna uma espécie de língua

estrangeira, mantidas as semelhanças fonéticas. Entretanto, enquanto ROUSSEL e

BRISSET questionam a referência das palavras ou a diferença entre as línguas, em

WOLFSON todas as línguas se reúnem para conservar um mesmo sentido e os mesmos

sons, mas destruindo sistematicamente a língua materna. Talvez seja esse o objetivo secreto

da lingüística, segundo WOLFSON: matar a língua materna. Em ROUSSEL o francês

deixa de ser uma língua materna porque esconde em suas palavras exotismos que suscitam

as “impressões da África” [e ele nos apresenta, criando, essa aproximação e

estranhamento ]; em BRISSET já não há língua-mãe; todas as línguas são irmãs [e sua

irmandade refere ao poder de criação e à diferença inerente às mesmas].

7. O que faz os livros de ROUSSEL e BRISSET serem literatura é que, entre a

frase original e a frase derivada pelo “procedimento”, há um desvio preenchido por

histórias maravilhosas [ver exemplos no livro]. Mas nada de semelhante em WOLFSON:

um vazio, uma distância vivida com patogênica subsiste entre a palavra a ser convertida e

as palavras de conversão. O procedimento gira em falso e não reagrega um processo vital

capaz de produzir uma visão. Por toda parte vazios subsistem, de tal modo que o único

acontecimento que se eleva é um desejado fim do mundo [a única “solução” final, para

WOLFSON].

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8. É, portanto, de duas maneiras que WOLFSON carece de um “simbolismo”:

de um lado, pela subsistência de distâncias patogênicas que nada vem preencher; de outro

lado, pela emergência de uma falsa totalidade, que nada pode definir [pois a tradução,

estendida e ampliada como dito acima, não se define por nenhuma regra, mas se regra a

cada caso, e portanto não constitui uma totalidade formalmente válida à nível científico,

que é o nível pretendido pelo autor].

9. Matar a língua materna é um combate de cada instante, e, em primeiro lugar,

com relação à voz da mãe.

11. Em quê consiste o combate?? Palavras maternas são a vida; línguas

estrangeiras são o Saber; WOLFSON mesmo o diz. E como justificar a vida, esse processo

que vive de sua própria dor e seus próprios gritos, tal como WOLFSON a apreende??

Somente pelo Saber. É preciso reunir todas as línguas estrangeiras num idioma total e

contínuo, contra a língua materna, que é o grito de vida.

14. O combate de WOLFSON tem ainda semelhança com o combate

empreendido por ARTAUD. ARTAUD, atacando a língua materna, arranca-lhe palavras-

sopro, assim como, atacando o organismo, extrai dele um corpo-sem-órgãos (corpo

cósmico, para além do corpo “materno” ou humano, demasiado humano).

16. Se a língua e o organismo combatidos por WOLFSON podem ser remetidos à

mãe (como o pólo “vida”), o seu duplo fracasso (a distância patológica que subsiste e a

constituição de totalidades ilegítimas) não deveria ser remetido ao pai? A psicanálise só

tem um defeito, o de reconduzir as aventuras da psicose a uma ladainha, o eterno papai-

mamãe. Mas o esquizofrênico não se insere nas categorias familiares, ele dreambula por

categorias mundiais, cósmicas. E o que ele chama de mãe é uma organização de palavras

que lhe puseram nos ouvidos e na boca. Não é minha língua que é materna, é a mãe que é

uma língua. O que se chama de Mãe é a vida. O que se chama de Pai é a estranheza, todas

essas palavras que eu não conheço e que atravessam as minhas. Não é o pai que fala as

línguas estrangeiras, as línguas estrangeiras é que são meu pai – em suma, o Saber.

17. A questão não é a do pai e da mãe; trata-se do corpo no qual ele vive, a

Terra, e do saber no qual ele evolui. É aí, no real, que os desvios patogênicos se cavam e as

totalidades ilegítimas se fazem, se desfazem. O estudante está doente do mundo, não de

pai-mãe; doente do real, não de símbolos.

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19. WOLFSON, com seu procedimento, está bastante próximo de ARTAUD.

Este superou a questão pai-mãe – já queria, indo além, acabar de vez com o juízo, descobrir

um novo continente1. Saber e vida já não se opõe: o que é a vida senão a aventura dos

elementos do saber?? O que é o saber senão as aventuras da vida dolorosa no cérebro dos

grandes homens?? Nós nos impomos pequenas dores para nos persuadirmos de que a vida é

suportável e mesmo justificável. Mas um dia o estudante de línguas encontra a revelação:

que a vida é injustificável, tanto mais quanto não precisa ser justificada... [mas fica nesse

meio caminho]. Se a vida e o saber já não se opõe [já não se distinguem: esse é o sentido do

“injustificável”, pois saber é criar sobre a ótica da vida, e a vida é esse saber criador

mesmo], em WOLFSON eles já não engendram novas figuras, figuras extraordinárias que

são as revelações do ser, o corpo cósmico, “inato”, do homem, o corpo-sem-órgãos, como

em ARTAUD.

20. Nisso é necessário o procedimento, o procedimento lingüístico. Todas essas

palavras contam uma história de amor, uma história de vida e de saber, mas essa história

não está designada ou significada pelas palavras, nem traduzida de uma palavra a outra.

Essa história é antes o que há de “impossível” na linguagem e que, por conseguinte, lhe

pertence tanto mais estreitamente: seu fora [isto é, visões e audições]. Só um procedimento

a torna possível, que remete à loucura. Por isso a psicose é inseparável de um procedimento

lingüístico que não se confundo com nenhuma das categorias conhecidas da psicanálise. O

procedimento impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele devasta as

designações, as significações, as traduções, mas para que a linguagem afronte enfim, do

outro lado de seu limite, as figuras de uma vida desconhecida e de um saber esotérico. O

procedimento é apenas a condição. Mas uma condição necessária. Chega às novas figuras

quem sabe transpor o limite. Talvez WOLFSON permaneça na margem, prisioneiro da

loucura, sem poder arrancar de seu procedimento as figuras que ele apenas entrevê, pois o

problema não consiste em ultrapassar as fronteiras da razão, e sim em atravessar como

vencedor as fronteiras da desrazão: então pode-se falar de “boa saúde mental”, mesmo que

tudo acabe mal.

1 Ver, adiante, escrito sobre o fim do Juízo.

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3. LEWIS CARROLL

01. Tudo em LEWIS CARROL começa por um combate horrível. É o combate

das profundezas. Os corpos se misturam, tudo se mistura numa espécie de canibalismo que

reúne o alimento e o excremento. Mesmo as palavras se comem. É o domínio da ação e da

paixão dos corpos. Nas profundezas, tudo é horrível, tudo é não-senso. Alice no pais das

maravilhas era para chamar-se inicialmente As aventura subterrâneas de Alice.

02. Porque CARROLL não conserva esse título?? É que progressivamente Alice

conquista as superfícies. Cria superfícies. Os movimentos de afundamento e entranhamento

dão lugar a leves movimentos laterais de deslizamento; os animais das profundezas tornam-

se figuras de cartas sem espessura. Com mais razão, Do outro lado do espelho investe a

superfície de um espelho. Puros acontecimentos escapam dos estados de coisa. Não se

afunda mais em profundidade, mas, à força de deslizar, passa-se para o outro lado [o não-

senso]. Porém, o mundo das profundezas ainda atroa sob a superfície e ameaça arrebentá-

la.

03. O terceiro grande romance de CARROL, Silvia e Bruno, opera mais um

progresso. Dir-se-ia que a antiga profundidade aplainou-se, converteu-se numa superfície

ao lado da outra superfície; duas superfícies coexistentes, nelas inscrevendo-se duas

histórias contíguas; não uma história dentro da outra, mas uma ao lado da outra, com

passagens constantemente sendo abertas entre elas, aproveitando um fragmento de frase

comum à ambas, ou então estrofes de uma canção admirável, que distribuem os

acontecimentos próprios à cada história e também são determinados por eles. Silvia e Bruno

é sem dúvida o primeiro livro que conta duas histórias simultaneamente. [aqui, o não-senso

é “lateral”, não “profundo”: está na própria superfície, no presente, e não na

profundidade, num passado edípico ou terrível, ou em algum tipo de mistério e exclusão]

04. Não que a superfície tenha menos não-senso que a profundidade. Mas não é

o mesmo não-senso. O da superfície é como a “cintilância” dos acontecimentos puros,

entidades que nunca terminam de chegar nem de retirar-se. Os acontecimentos puros e sem

mistura brilham acima dos corpos misturados, acima de suas ações e paixões emaranhadas.

Como um vapor da terra, depreendem na superfície um incorpóreo, um puro “expresso” das

profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem

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gato. Coube a CARROLL ter feito com que nada passasse pelo sentido, já que a

diversidade dos não-sensos é suficiente para dar conta do universo inteiro: a profundidade,

a superfície, o volume (ou a superfície enrolada).

5. SOBRE QUATRO FÓRMULAS POÉTICAS QUE PODERIAM RESUMIR A FILOSOFIA KANTIANA

“O tempo está fora dos gonzos...”

Shakespeare, Hamlet, I, 5

01. O gonzo indica a subordinação do tempo aos pontos precisamente cardinais

pelos quais passam os movimentos periódicos que ele mede. Enquanto permanece em seus

gonzos, o tempo está subordinado ao movimento extensivo: ele é sua medida, intervalo ou

número.

02. O tempo out of join significa a primeira grande reversão kantiana: é o

movimento que se subordina ao tempo, o tempo já não se reporta ao movimento que ele

mede, mas o movimento ao tempo que o condiciona. O tempo torna-se, assim, unilinear e

retilíneo, nele e por si mesmo, uma vez que impõe a todo movimento possível a sucessão de

suas determinações. O tempo deixa de estar curvado por um deus [o tempo circular dos

antigos] que o faz depender do movimento. E na tragédia, é Hamlet quem opera a reversão,

pois seu próprio movimento resulta tão-somente da sucessão da determinação, enquanto

que o herói anterior sofre em conseqüência de um movimento originário (ÉSQUILO) ou de

uma ação aberrante (SÓFOCLES).

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03. Não é a sucessão que define o tempo, mas o tempo que define como

sucessivas as partes do movimento tal como nele estão determinadas. As coisas se sucedem

em tempos diversos, mas são igualmente simultâneas ao mesmo tempo e permanecem num

tempo qualquer. Já não se trata de definir o tempo pela sucessão, o espaço pela

simultaneidade e a permanência pela eternidade. Permanência, sucessão e simultaneidade

são modos ou relações de tempo. Tudo o que muda e se move está no tempo, mas o tempo

ele mesmo não muda, não se move e tampouco é eterno. Ele é a forma de tudo o que muda

e se move, mas é uma forma imutável. Não uma forma eterna, mas justamente a forma

daquilo que não é eterno. Uma tal forma autônoma parece designar um profundo mistério:

ele reclama uma nova definição do tempo (e do espaço).

“Eu é um outro...”

Rimbaud, carta a Izambart, maio de 1871

Carta a Demeny, 15 de maio de 1871

04. Havia outra concepção antiga do tempo, como modo do pensamento ou

movimento intensivo da alma. O cogito de DESCARTES opera sua laicização: o “eu

penso” é um ato de determinação instantânea, que implica uma existência indeterminada

(eu sou) que a determina como a existência de uma substância pensante (eu sou uma coisa

que pensa). Mas como a determinação [eu penso] poderia incidir sobre o indeterminado [eu

sou] se não se diz de que maneira ele é “determinável”?Segundo KANT, é somente no

tempo, sob a forma do tempo, que a existência indeterminada torna-se determinável. O

tempo como forma da determinabilidade não depende, pois, do movimento intensivo da

alma [como queria aquela antiga noção de tempo], mas, ao contrário, a produção intensiva

da alma (ou de um grau de consciência no instante) é que depende do tempo. KANT opera

uma segunda laicização do tempo.

05. O EU (Moi) está no tempo e não pára de mudar: é um eu receptivo, que

experimenta as mudanças no tempo. O EU (Je) é um ato (eu penso) que determina

ativamente minha existência (eu sou), mas só pode determiná-la no tempo, como a

existência de um EU (Moi) passivo, receptivo e cambiante que representa para si tão

somente a atividade de seu próprio pensamento. O EU [Je, ativo] e o EU [Moi, passivo],

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estão, pois, separados pela linha do tempo que os reporta um ao outro sob a condição de

uma diferença fundamental. Minha existência jamais pode ser determinada como a d um ser

ativo e espontâneo, mas como a de um eu passivo que representa para si o EU [Je, ativo],

como um Outro que o afeta [o ato do pensamento??]. Estou separado de mim mesmo pela

forma do tempo e, contudo, sou um, pois o EU [Je, ativo, pensamento?] afeta

necessariamente essa forma [o EU, Moi, passivo, ser no tempo] ao operar sua síntese. A

forma do determinável faz com que o Eu determinado [Moi, passivo[ represente para si a

determinação como um Outro. Em suma, a loucura do sujeito corresponde ao tempo fora de

seus gonzos.

06. Para KANT, o EU [Je, ativo, pensamento?] não é um conceito, mas a

representação que acompanha todo conceito; e o EU [Moi, passivo] não é um objeto, mas

aquilo à que todos os objetos se reportam como à variação contínua de seus próprios

estados sucessivos e à modulação infinita de seus graus no instante. Nesse sentido, a

distinção compartimentada das matérias como objeto (ex.: a madeira) e das formas como

conceitos (ex.: o violino), divisão aristotélica ainda presente em RIMBAUD [pois o violino,

“conceito”, vem da madeira, “objeto”], dá lugar à continuidade de um desenvolvimento

linear sem retorno que necessita do estabelecimento de novas relações formais (tempo) e da

disposição de um novo material (fenômeno).

07. Se o EU [Je, ativo, pensamento?] determina nossa existência como a de um

eu passivo e cambiante no tempo, o tempo é essa relação formal segundo a qual o espírito

se afeta a si mesmo. O tempo, portanto, poderá ser definido como a possibilidade formal de

ser afetado por si mesmo. É nesse sentido que o tempo, Omo forma imutável que já não se

definia pela sucessão, aparece como a forma da interioridade, e o espaço, não mais se

definindo pela coexistência ou simultaneidade, aparece como forma de exterioridade,

possibilidade formal de ser afetado por outra coisa enquanto objeto externo. Isso equivale a

dizer que a exterioridade comporta tanta imanência (já que o espaço permanece interior ao

meu espírito) quanto a interioridade comporta transcendência (já que meu espírito em

relação ao tempo se encontra representado como um outro – a distinção Je – Moi). Não é o

tempo que nos é interior, nós é que somos interiores ao tempo. A interioridade não pára de

nos escavar a nós mesmos, de nos cindir, duplicar, ainda que nossa unidade permaneça2. 2 Quanto à toda essa questão do tempo, e da relação do tempo com a produção de subjetividade, ou da diferença na subjetividade, ver Bérgson, “Matéria e Memória”, ou “Evolução Criadora”, e o Bergsonismo, de

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“Que suplício ser governado por leis que não se conhece!...

Pois o caráter das leis tem necessidade assim do segredo sobre seu conteúdo...”

Kafka, A muralha da China

08. Vale dizer a lei, pois leis desconhecidas quase não se distinguem. Para a

consciência antiga, a lei é um representante do Bem; quando o verdadeiro Político está

ausente, deixa diretrizes gerais que os homens devem conhecer para se conduzirem.

09. KANT opera a reversão da relação entre lei e Bem, e assim eleva a lei á

unicidade pura e vazia; agora é o Bem que depende da lei. Essa lei não tem interioridade

nem conteúdo, pois tal a reconduziria novamente á um Bem. Ela é pura forma, e não possui

objeto. Ela não nos diz o que é preciso fazer, mas a forma moral de toda ação – cuja

máxima deve poder ser pensada sem contradição como universal e tendo por móvel essa

máxima. A lei se define, assim, pela pura forma da universalidade. Ela é desconhecida, pois

nela nada há a conhecer; ela é objeto de uma determinação puramente prática.

10. Se a lei é primeira, já não dispõe de meio algum para distinguir acusação,

defesa e veredicto, ou a sentença da execução. Ela confunde-se com sua marca em nossa

carne, não nos dando sequer um conhecimento último de nossas faltas. Ela, assim, nunca

nos considera quites – cada renúncia que operamos em prol da lei reforçando sua

aplicação, e não apaziguando-a. A cada instante a absolvição é apenas aparente. Como a lei

suspenderia seu segrego [sua indeterminação, que dilui o particular no universal] sem

tornar impossível a renúncia [instintual, da ordem da satisfação particular] de que ela se

nutre? Apenas num progresso ad infinitum, que, mais que nos conduzir ao paraíso, nos

instala no inferno aqui embaixo; ou a “absolvição aparente” ou a “moratória ilimitada”.

“Chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos...

Deleuze.

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um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos os sentidos...”

Rimbaud, idem

11. Ou antes um exercício desregrado de todas as faculdades. Nas duas

primeiras Críticas kantianas, as diversas faculdades subjetivas entravam em relações

sempre hierarquizadas entre si, essa hierarquização mantendo sua regulação e harmonia. Na

Crítica Da Razão Pura, dominava o entendimento. Na Crítica Da Razão Prática,

dominava a razão. Mas se ora uma, ora outra, das faculdades podiam dominar, elas podem

então relacionar-se de forma variável. Todas juntas devem ser capazes de relações livres e

sem regras nas quais cada uma vai até extremo de si mesma e todavia mostra assim sua

possibilidade de uma harmonia qualquer com as outras. Será a Crítica da Faculdade

Judicativa como a fundação do romantismo.

12. Assim surge a estética do Belo e do Sublime, onde o sensível vale por si

mesmo e se desdobra num pathos para além de toda lógica, que apreenderá o tempo no seu

jorro. Já não é o Afecto da Crítica da Razão Pura, que reportava o EU [moi, passivo] ao

EU [Je, ativo], numa relação regulada ainda segundo a ordem do tempo, e sim um pathos

que os deixa evoluir livremente para formar estranhas combinações enquanto fontes do

tempo. Já não é a determinação do EU [je]que deve juntar-se a determinabilidade do EU

[Moi] para constituir o conhecimento, agora é a unidade indeterminada de todas as

faculdades (Alma) que nos faz entrar no desconhecido.

13. O Belo propicia um acordo espontâneo entre o EU [Je] e o EU [Moi], um

acordo desregrado; o Sublime faz as diversas faculdades se oporem entre si e, desta

maneira, chegar ao seu limite, se relacionando nesse máximo de estranheza, no mais

profundo delas mesmas – como se abraçando desde sua distância. Formam-se

acordos/acordes essencialmente dissonantes; a dissonância é a grande descoberta da Crítica

da Faculdade Judicativa. Um exercício desregrado de todas as faculdades que vai definir a

filosofia futura, assim como para RIMBAUD o desregramento de todos os sentidos devia

definir a poesia do futuro.

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6. NIETZSCHE E SÃO PAULO,

D. H. LAWRENCE E JOÃO DE PATMOS

01. LAWRENCE intervém na discussão erudita dos que se perguntam se é o

mesmo João que escreveu um evangelho e o Apocalipse. A questão não é tanto a dos

indivíduos, mas dos tipos de homens: não é o mesmo tipo de homem nos dois textos. O

Evangelho é ainda aristocrático, individual, suave, amoroso, um tanto culto. O apocalipse é

coletivo, popular, inculto, rancoroso e selvagem. Cristo e o João do Evangelho inventavam

uma religião do amor (uma prática, uma maneira de viver, não uma crença); o Apocalipse e

João de Patmos trazem uma religião do poder (uma crença, uma maneira terrível de julgar).

03. LAWRENCE está muito próximo de NIETZSCHE. Em NIETZSCHE

aparece a grande oposição entre Cristo e São Paulo: Cristo, o mais doce, o mais amoroso

dos decadentes, que nos libertava de toda idéia de culpa, perseguição, recompensa, juízo;

São Paulo manteve Cristo na cruz, reconduziu-o a ela incessantemente, deslocando o centro

de gravidade para a vida eterna; sua técnica de tirania era a doutrina do Juízo.

LAWRENCE retoma a oposição, desta vez entre Cristo e João de Patmos, autor do

Apocalipse.

04. O empreendimento de Cristo é individual. O indivíduo não se opõe tanto á

coletividade em si; o individual e o coletivo se opõe em cada um de nós como duas partes

distintas da alma. Ora, Cristo se dirige pouco ao que há de coletivo em nós. Seu problema

era desfazer o sistema coletivo-Antigo Testamento, para libertar a alma individual desta

ganga; pensava que uma cultura individual bastaria para expulsar os monstros escondidos

na ama coletiva. Erro político. Deixava que nos virássemos com a alma coletiva, com o

poder, César agindo fora e dentro de nós. LAWRENCE diz que o personagem principal do

cristianismo é Judas, depois João de Patmos, depois São Paulo. Eles manifestam o protesto

da alma coletiva. O apocalipse faz valer a reivindicação dos pobres ou dos fracos, pois estes

não são, como se crê, os humildes ou os infelizes, mas esses homens muito temíveis que só

tem alma coletiva. O cristianismo será realmente o Anticristo. Ele violenta Cristo,

proporciona-lhe à força uma alma coletiva. Em contrapartida, propicia à alma coletiva uma

figura individual de superfície, o cordeirinho. O cristianismo fundou um novo tipo de

homem e um tipo de pensador que dura até hoje: o cordeiro carnívoro, [“fazido”], o

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cordeiro que morde e grita “Socorro, o que eu vos fiz? Era para vosso bem e para nossa

causa comum”. Esses cordeiros com pele de leão e dentes grandes demais já nem precisam

do hábito de sacerdote – conquistaram muitos meios de expressão, muitas forças populares.

05. O que a alma coletiva quer é o Poder, mas quer também a constituição de

um poder subterrâneo, um poder dos recantos, dos subúrbios; quer destruir o Poder que se

exerce às claras, e instaurar um poder dos rincões, escuro, subterrâneo. O poder muda

singularmente de natureza, de extensão, de distribuição, de intensidade, de meios e de fins.

Um contrapoder que é ao mesmo tempo um poder dos recantos e um poder dos últimos

homens. O poder passa a existir tão-somente como a longa política da vingança.

06. Ora, para esse empreendimento da alma coletiva será preciso inventar uma

nova raça de sacerdotes, pronta para voltar-se contra o sacerdote judeu, ainda muito local e

esperançoso, pouco derradeiro. Assim, o cristianismo vai imputar em Cristo um Eu

coletivo: o Apocalipse. Ele, que não julgava e não queria julgar, será convertido numa peça

essencial do sistema do Juízo. E o Apocalipse triunfou; jamais conseguimos sair do sistema

do Juízo.

07. O Apocalipse é um programa para a espera do povo eleito. Desloca-se o

centro de gravidade da vida para esse além-da-vida em que os eleitos “serão

recompensados”, todo um teatro de fantasmas sucede à ação, bem como à paixão e

imanência de Cristo. Fantasmas – expressão do instinto de vingança, arma da vingança dos

fracos [ligar esses fantasmas à psicanálise e seus fantasmas de interpretação – Melanie

Klein -, conforme texto de Deleuze sobre os “nômades”]

10. LAWRENCE definiu o cosmos de uma maneira muito simples: é o lugar dos

grandes símbolos vitais e das conexões vivas, a vida-mais-que-pessoal. Os judeus

substituem as conexões cósmicas pela aliança com Deus; os cristãos substituirão a vida

supra ou infra-individual pelo pequeno vínculo pessoal da alma com Cristo [e a psicanálise

suprimirá o cosmos em favor da vida ‘em família’...]. O Apocalipse mata o cosmo.

11. Quando os pagãos falavam em destruição, viam nisso sempre uma injustiça.

Mas agora é a destruição que se chama justa. Destruir tornou-se o ato mais essencial da

nova justiça. E nisso o Apocalipse conserva sua atualidade, nesta auto-glorificação

programada que destrói tudo ao redor, qualquer diferença; esse o seu parentesco com Hitler

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e alguns pensadores atuais (que querem erigir-se em centro monoteísta de razão e

justificação do mundo, destruindo-o ou retomado um suposto passado igual à eles mesmos).

18. O Apocalipse transforma o símbolo em alegoria. O símbolo é potência

cósmica concreta. Trata-se de um procedimento dinâmico para a ampliação, o

aprofundamento, a extensão da consciência sensível, é um devir cada vez mais consciente,

por oposição ao fechamento da consciência moral na idéia fixa alegórica. É um método do

Afecto, intensivo, uma intensidade cumulativa que marca unicamente o limiar de uma

sensação, o despertar de uma consciência: o símbolo não quer dizer nada, não é para ser

explicado nem interpretado, contrariamente à consciência intelectual da alegoria. É um

pensamento rotativo, em que um grupo de imagens gira cada vez mais rápido em torno de

um ponto misterioso, que se aprofunda. O símbolo é um turbilhão, ele nos faz voltear até

produzir esse estado intenso de onde surge a decisão. O símbolo é um processo de ação e

de decisão. Pois é assim que tomamos uma verdadeira decisão: quando giramos em nós

mesmos, sobre nós mesmos, cada vez mais rápido, “até que se forma um centro e saibamos

o que fazer”. A alegoria substitui o poder de decisão pelo poder do juízo.O símbolo é o

pensamento dos fluxos, contrariamente ao processo intelectual e linear do pensamento

alegórico. O apocalipse revela seu próprio objetivo: desconectar-nos do mundo e de nós

mesmos.

20. Parece a LAWRENCE que a desfiguração do cristianismo com relação à

Cristo não depende de uma simples negligência deste com relação à parte coletiva da alma,

mas deve ser buscada já na maneira com que ele amava. Havia no amor de Cristo uma

espécie de identificação abstrata, ou, pior ainda, um ardor de dar sem nada tomar. Cristo

não desejava conservar nada, nem a parte inviolável de si mesmo. Tinha algo de suicida.

No ardor de Cristo e na cupidez cristã, na religião do amor e na religião do poder, há a

mesma fatalidade: “Dei mais do que tomei, e também isso é miséria e vaidade... Não passa,

ainda, de uma outra morte... Agora ele sabia que o corpo ressuscita para dar e para tomar,

para tomar e para dar, sem cupidez.”3. LAWRENCE, em todas as suas obras, sempre

diagnosticou o pequeno clarão maldoso por toda parte, nos que tomam sem dar ou nos que

dão sem tomar. Cristo, São Paulo e João de Patmos completam um círculo, exterminando e

3 Lawrence, “O homem que morreu”.

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suicidando em si a alma individual e a alma coletiva, com autoglorificação por todos os

lados.

21. Então, salvar a alma individual e também a alma coletiva, mas como?

NIETZSCHE concluía o Anticristo com sua célebre Lei contra o cristianismo.

LAWRENCE exortou uma espécie de manifesto: deixar de amar. Opor ao Juízo do amor

“uma decisão que o amor jamais poderá vencer” (o que se vincula com o isolamento, com o

estar só). Salvar assim a parte individual de si mesmo. Pois o amor não é a parte individual:

é antes o que faz da alma individual um Eu. Ora, um Eu e algo para ser dado ou tomado,

que deseja amar ou ser amado, uma alegoria, um sujeito, não uma verdadeira relação. O

que é individual é a relação, é a alma, não o Eu. Deixar de pensar-se como um Eu para

viver-se como um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, dentro e

fora de si. Sexual e Simbólico, equivalentes, de fato, nunca quiseram dizer outra coisa: a

vida das forças ou dos fluxos [vinculo com Nietzsche, no Crepúsculo dos Ídolos, “o que

devo aos antigos”4]. No eu existe uma tendência para aniquilar-se. A alma, como vida dos

fluxos, é querer-viver, luta e combate. Não só a disjunção, mas também a conjunção dos

fluxos é luta e combate. O contrário da guerra: a guerra é o aniquilamento geral que exige a

participação do eu [ apocalipse], mas o combate rejeita a guerra, é conquista da alma. Tem-

se a parte inalienável da alma quando se deixa de ser um eu: é preciso conquistar essa parte

eminentemente fluente, vibrante lutadora.

22. O problema coletivo, então, consiste em instaurar, encontrar u reencontrar

um máximo de conexões. Pois as conexões (e as disjunções) são precisamente a física das

relações, o cosmos. Mesmo a disjunção é física, ela só existe como as duas margens, para

permitir a passagem do fluxo o sua alternância. Porém nós vivemos no máximo uma

“lógica” das relações; da conexão fizemos causa e efeito, do mundo físico dos fluxos 4 4. Dionísio só pode ser explicado a partir de um excedente de força. Somente nos mistérios dionisíacos ( o orgiasmo), na psicologia do estado dionisíaco vem à fala o fato fundamental do instinto helênico: sua “vontade de vida”. Quê responsabilidade o heleno assumia com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e santificado no passado; o sim triunfante à vida para além da morte e da mudança; a vida verdadeira enquanto o prosseguimento conjunto da vida através da geração, dos mistérios da sexualidade. Por isso mesmo o símbolo sexual era o mais louvável, a verdadeira profundidade do sentido no interior da devoção antiga. Na doutrina dos mistérios, o sofrimento é dito sagrado: as “dores da parturiente” sacralizam o sofrimento em geral – todo devir, todo crescimento, tudo o que se responsabiliza pelo futuro condiciona o sofrimento... Para que haja o eterno prazer da criação, para que a vontade de vida afirme a si mesma eternamente, é preciso também eternamente o “martírio da parturiente”. Tudo isso significa a palavra Dionísio

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abstraímos um reflexo feito de sujeito, objeto, predicado, relações lógicas. Extraímos assim

o sistema do juízo. A questão não é opor sociedade e natureza, natural e artificial. Mas a

cada vez que uma relação física for traduzida em relações lógicas será preciso dizer que o

mundo morreu e que a alma coletiva foi enclausurada num eu, seja o do povo ou o do

déspota. Não há retorno à natureza, só há um problema político da alma coletiva, as

conexões de que uma sociedade é capaz, os fluxos que ela suporta, inventa, deixa ou faz

passar. Pura sexualidade sim, se por isso entendemos a física individual e social das

relações.

7. REAPRESENTAÇÃO DE MASOCH

01. MASOCH não é um pretexto para a psiquiatria ou a psicanálise, nem sequer

uma figura particularmente marcante do masoquismo. É que a obra mantém à distância toda

interpretação extrínseca. Mais próximo de um médico do que de um doente, o escritor faz

um diagnóstico, mas é o diagnóstico do mundo; segue passo a passo a doença, mas trata-se

da doença genérica do homem; avalia as possibilidades de uma saúde, mas trata-se do

nascimento de um homem novo. Se os personagens, objetos e situações do masoquismo

recebem esse nome, é porque adquirem na obra de MASOCH uma dimensão desconhecida,

sem medida, que transborda inconsciente e consciência. O herói do romance está inflado de

potências que excedem sua alma tanto quanto seu meio. Portanto, o que é preciso

considerar em MASOCH são suas contribuições à arte do romance.

02. Em primeiro lugar, MASOCH desloca a questão do sofrimento. Ao fazer

com que lhe inflijam sofrimentos, o herói masoquista os subordina à um contrato. Diríamos

que se trata de desfazer o liame do desejo com o prazer: o prazer interrompe o desejo, de

modo que a constituição do desejo como processo deve conjurar o prazer e postergá-lo ao

infinito. O masoquista se utiliza da dor não para dela extrair prazer, mas si para remontar-

lhe o curso e constituir um processo ininterrupto de desejo. O essencial vem a ser a espera

ou o suspense côo plenitude, como intensidade física ou espiritual. MASOCH é o escritor

que faz do suspense a mola romanesca em estado puro, quase insuportável. A

complementaridade contrato-suspense infinito desempenha papel análogo ao do tribunal e

da “moratória ilimitada” em KAFKA.

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03. Em segundo lugar, o papel do animal. A psicanálise sempre ignorou a

relação do homem com o animal, pois via nisso figuras edípicas demasiado humanas. Os

personagens masoquistas não imitam o animal, atingem zonas de indeterminação, de

vizinhança, com ele. O romance inteiro torno-se romance de adestramento. É um ciclo de

forças. Também aí o mundo do suspense é percorrido por ondas.

04. As formações delirantes são como núcleos da arte. Mas uma formação

delirante não é familiar ou privada, é histórico-mundial. O importante, então, consiste em

saber quais regiões da História e do Universo são investidos por tal ou qual formação. Cada

formação delirante apropria-se de meios e momentos muito variados, juntando-os à sua

maneira. A obra de MASOCH é inseparável de uma literatura de minorias.

05. Uma literatura de minoria não se define por uma língua própria, mas por um

tratamento a que ela submete a língua maior. A língua é afetada por um tremor, que não é

psicológico, mas lingüístico: fazer a língua gaguejar; torná-la animal. Há diversos

procedimentos que o escritor pode distender através da língua para fazer dela um estilo. A

cada vez que a língua é assim afetada é a linguagem inteira que é levada ao seu limite,

musica ou silencio. O suspense dos corpos e o balbucio da língua constituem o corpo-

linguagem, ou a obra de MASOCH.

8. WHITMAN

01. Com muita segurança e tranqüilidade, W. diz que a escrita é fragmentária e

que o escritor americano tem o dever de escrever em fragmentos. Os americanos tem um

senso natural do fragmento; devem conquistar o sentimento de totalidade. Com os europeus

é o inverso: sentem naturalmente a totalidade, e devem conquistar o fragmento. O próprio

da América, mais que o fragmentário, é a espontaneidade do fragmento; lá a escrita é

naturalmente convulsiva – assim como a época e o país são convulsivos. A própria América

é feita de pedaços (estados federados) e diversos povos imigrantes (minorias), experiência

comum à América e ao escritor americano.

02. É o que confere à obra fragmentária o valor imediato de uma enunciação

coletiva. Não seria a literatura americana menor por excelência, ela que pretende federar

todas as minorias? É uma literatura popular, feita pelo “homem médio”, como criação da

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América, e não por “grandes indivíduos”. Desse ponto de vista o EU dos anglo-saxões,

sempre despedaçado, fragmentário, opõe-se ao EU substancial, total e solipsista dos

Europeus.

03. O mundo como conjunto de partes heterogêneas; como monstruário,

fragmentos, granulações. Selecionar os caos singulares e as cenas menores é mais

importante que qualquer consideração de conjunto. Mas é preciso que os fragmentos, as

partes notáveis, sejam extraídos por um ato especial – a escrita.

04. A lei do fragmento vale tanto para a Natureza como para a História, tanto

para a Terra quanto para a Guerra, tanto para o bem como para o mal. Se, entretanto, o

fragmento é dado em toda parte, um todo deve ser conquistado ou inventado. Quando fala

em seu estilo, fica claro que para W. uma espécie de todo deve ser construída, tanto mais

paradoxal quanto só surge depois dos fragmentos e os deixa intactos, não se propõe

totalizá-los5.

05. Essa idéia complexa depende de um princípio caro à filosofia inglesa, ao

qual os americanos darão um novo sentido e novos desenvolvimentos: as relações são

exteriores a seus termos... Por conseguinte, devem ser instauradas, inventadas. Pôr os

fragmentos em relações não preexistentes da Natureza e da História é o objeto da literatura

americana.

06. A Natureza não é forma, mas processos de correlação: ela inventa uma

polifonia, não é totalidade, mas reunião; ela é inseparável de todos os processos de

comensalidade, convivialidade, que se elaboram entre viventes heterogêneos de modo a

criar um tecido de relações moventes. As relações não são interiores a um Todo, é antes o

todo que decorre das relações exteriores em tal momento e que com elas varia.

07. O mesmo ocorre nas relações do homem com a natureza. E também nas

relações do homem com o homem. Aí também o homem deve inventar sua relação com o

outro: “Camaradagem” é a grande palavra de W. para designar a mais elevada relação

humana, uma relação feita de variabilidade, implicando um encontro com o Fora, uma

caminhada das almas ao ar livre, na “grande estrada”.

5 LAWRENCE critica WHITMAN por seu panteísmo e sua concepção de um Eu-todo, mas o saúda como o maior poeta americano porque, mais profundamente, WHITMAN canta as “simpatias”, isto é, as relações que se constroem no exterior.

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08. A sociedade dos camaradas é o sonho americano [História], e também a

realidade da literatura americana, sob os aspectos da espontaneidade do fragmentário e da

reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas ou criadas. Os fragmentos

espontâneos constituem o elemento através do qual ou em cujos intervalos se tem acesso às

grandes visões e audições refletidas da Natureza e da História.

9. O QUE AS CRIANÇAS DIZEM

01. A criança não pára de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por

trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essências à

vida psíquica.

02. FREUD, no entanto, reconduz tudo ao pai-mãe. É como se os pais tivessem

lugares ou funções primeiras, independentes do meio. Mas um meio é feito de qualidades,

substâncias, potências e acontecimentos. O meio se reflete naquele que o percorre, e

cruzam-se então suas subjetividades. Ora, os próprios pais são um meio que a criança

percorre, e cujo mapa ela traça. Eles só tomam a forma pessoal e parental como

representantes de um meio n’outro meio. A criança não está limitada aos pais, não chega

aos meios depois, e por derivação ou extensão. O pai e a mão não são as coordenadas de

tudo o que o inconsciente investe. Não existe momento algum em que a criança já não

esteja mergulhada num meio atual que ela percorre, em que os pais como pessoas só

desempenham a função de abridores/fechadores de portas, guardas de limiares, conectores

ou desconectores de zonas.

03. O próprio da libido é impregnar a historia e a geografia, organizar formações

de mundos e constelações de universos, derivar os continentes, povoá-los com raças, tribos

e nações. Mas a psicanálise parece ignorar a atividade cartográfica.

04. A libido não tem metamorfoses, mas trajetórias histórico-mundiais. Desse

ponto de vista, não parece que o real e o imaginário formem uma divisão pertinente; devem

ser antes como que duas partes, que se pode justapor ou sobrepor, de uma mesma trajetória.

Assim, os aborígenes da Austrália unem itinerários nômades e viagens em sonho. No

limite, o imaginário é uma imagem virtual que se cola ao objeto real, e inversamente.

05. Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da

psicanálise, que vincula profundamente o inconsciente e a memória, que incide sobre

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objetos e pessoas, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los,

autenticá-los. Com os mapas, ao contrário, não se trata de rememorar uma origem (pessoa u

objeto), mas de avaliar os deslocamentos.

06. Os mapas não devem ser compreendidos só em extensão, em relação á um

espaço constituído por trajetos. Existem também mapas de intensidade, de densidade, que

dizem respeito ao que preenche o espaço. Cartografa-se uma distribuição de afetos, uma

constelação afetiva. Também aí seria abusivo ver uma simples derivação de pai-mae, um

suplemento ou um somente-depois [isto é, algo que não valha em si, mas somente como

reflexo do pai-mae]. Pelo contrário, é o mapa de intensidade que distribui os afectos, cuja

ligação e valência constituem a cada vez a imagem do corpo [e não, como seria para a

psicanálise, a imagem edípica do corpo constituindo os afetos, em suas ligações e

valências].

07. Uma lista de afectos ou constelação, um mapa intensivo, é um devir: o

pequeno HANS é arrastado num devir-cavalo ao qual os pais se opõe (não é que forme uma

representação inconsciente do pai, com o cavalo); a psicanálise, entretanto, perde a cada

vez a relação do inconsciente com as forças. A imagem não é só trajeto, mas devir. Um

devir não é imaginário, assim como uma viagem não é real; é o devir que faz do mínimo

trajeto ou mesmo de uma imobilidade, uma viagem; é o trajeto que faz do imaginário um

devir6. Os dois mapas, dos trajetos e dos afectos, remetem-se um ao outro.

08. O que a libido investe é apresentado pelo artigo indefinido: um animal,

como qualificação de um devir ou especificação de um trajeto; um corpo ou um órgão,

como poder de afetar e de ser afetado; e mesmo personagens que impedem ou favorecem

um trajeto e seus afectos. Ao indefinido não falta nada, ele não carece de determinação.

Não se trata de defesas da consciência: o indefinido é a determinação do devir; não uma

generalidade, à qual falta definição, mas uma singularidade no mais alto grau – a

singularidade do devir - , ali onde nos tornamos um devir, atingindo uma zona de

vizinhança em que já não podemos distinguir-nos do que nos tornamos.

6 Tentativa de explicação: - porque uma viagem não é real?? Porque não basta alterar a sua posição no espaço para que alguma coisa aconteça; é preciso, antes, relacionar-se com forças diferentes; aí sim se está em “viagem”, se saiu do mesmo lugar. E essa relação com forças diferentes pode dar-se também no mesmo lugar. Por isso, também, o devir não é “imaginário”, porque é pura realidade imprescindível, e que não vem do sujeito, muito menos de seu Édipo, mas de um cosmos de forças ao qual podemos nos abrir.

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09. A arte também atinge esse estado celestial que já nada guarda de pessoal

nem de racional. Ela é feita de trajetos e de devires, por isso faz mapas, extensivos e

intensivos. Á sua maneira, ela diz o que as crianças dizem.

10. A arte é um processo impessoal, onde a obra se compõe de reuniões de

trajetórias e devires. Tal concepção é a única que pode arrancar a arte do processo pessoal

da memória, do ideal coletivo da comemoração: a arte arqueologia [que é também a da

psicanálise, com sua noção de sublimação].Ela mesma é uma viagem; ela insere-se em

meios não-preexistentes, em caminhos exteriores que, dependentes das relações internas da

obra, não preexistem à mesma. É como se alguns caminhos virtuais se colassem ao

caminho real, que assim recebe deles novos traçados, novas trajetórias. Um mapa de

virtualidades, traçado pela arte, se superpõe ao mapa real cujos percursos ela transforma.

Toda obra comporta uma pluralidade de trajetos que são legíveis segundo aqueles que são

retidos. Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros; ela torna sensível sua

presença mútua, e se define assim, invocando Dioniso como o Deus dos lugares de

passagem e das coisas do esquecimento.

10. BARTLEBY, OU A FÓRMULA

01. Bartleby não é uma metáfora do escritor, nem o símbolo de coisa

alguma. É um texto violentamente cômico, e o cômico sempre é literal. Mas em quê

consiste a literalidade da fórmula I wold prefer not to (preferiria não)?

02. Seu tom, seu maneirismo, sua solenidade, sua extravagância; o fato

de ter um término abrupto, NOT TO, que deixa indeterminado o que ela rechaça, tudo isso

lhe confere a mesma força, o mesmo papel que uma fórmula agramatical.

03. Segundo os lingüistas, a ‘agramaticalidade’ seria como que a forma

limite de uma série de variáveis gramaticais ordinárias. Não uma palavra-valise, como em

CARROLL, mas um “construção-valise”, uma construção-sopro, um limite ou um tensor.

A fórmula de Bartleby não seria desse tipo, limite de uma série tal como “preferiria isto,

preferiria não fazer aquilo, não é o que eu preferiria...”? Apesar de sua construção normal,

ela soa como uma anomalia.

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04. Mesmo que alguma particularidade venha preencher a fórmula,

determiná-la, a formula indeterminada é a que subsiste. Bartleby mesmo acrescenta: “I AM

NOT PARTICULAR”, não sou um caso particular, sucumbindo por sua vez sob o golpe da

grande fórmula indeterminada “prefiro não”.

05. A fórmula tem dez ocorrências principais; germina e prolifera. A

cada ocorrência, é o estupor em torno de Bartleby, e é o silencio deste, como se já tivesse

dito tudo e de chofre esgotado a linguagem. A cada ocorrência têm-se a impressão que a

loucura aumenta: não “particularmente” a de Bartleby, mas em torno dele.

06. Não há dúvida, a fórmula é arrasadora, devastadora, e nada deixa

subsistir atrás de si. Essencial é seu efeito sobre Bartleby: desde que disso Prefiro não

(cotejar, que é a primeira ocorrência), ele tampouco pode continuar copiando (que é o que

fazia quando foi chamado a cotejar). A formula-bloco tem por efeito não só recusar o que

Bartleby prefere não fazer, mas também tornar impossível o que ele fazia, o que ainda

supostamente preferiria fazer [pois ele ‘preferiria não fazer algo’ novo à fazer algo que já

faz, isto é, a forma da fórmula deveria querer dizer: “prefiro fazer o que já faço à fazer

essa novidade que me apresentam”; entretanto, como se verá, a fórmula não especifica

nem o que não quer, nem o que quer, mas torna ambos impossíveis].

07. A fórmula de Bartleby não é uma afirmação nem uma negação, O

advogado ficaria aliviado se Bartleby não quisesse, mas ele não recusa, tampouco aceita...

Não se prefere algo à algo: a fórmula recusa qualquer outro ato, mas também o ato que se

praticava quando do uso da fórmula, não sendo necessário sequer recusar este ato7. De fato,

ela torna o preferido e o não-preferido indiscerníveis. Cava uma zona de indiscernibilidade,

de indeterminação, que abole qualquer particularidade. Eu preferiria nada a algo: não uma

vontade de nada, mas o crescimento de um nada de vontade, Com isso, Bartleby ganhou o

direito de sobreviver, pura passividade paciente que sobrevive, enquanto um “sim” ou um

“não” seriam facilmente destruídos.

08. Talvez a fórmula cave na língua uma língua estrangeira. Sua regra

estaria numa lógica da preferência negativa: negativismo para além de toda negação. Esse 7 Para ficar mais claro: Bartleby, que foi contratado para copiar, estava, de fato, copiando, quando foi requisitado por seu chefe para cotejar (comparar) dois textos; aí ele responde com sua famosa fórmula: “preferiria não”. Subentende-se que esse “preferiria” quer dizer: “preferiria continuar copiando a ter que cotejar estes textos”. Entretanto, Bartleby não especifica o que ele preferiria NÃO fazer, nem o que ele preferiria Fazer; e assim, torna ambos impossíveis, indiscerníveis, como dirá Deleuze.

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ser estrangeiro na linguagem, que vento de loucura, qual sopro psicótico o produziu? É

próprio da psicose um procedimento que consiste em tratar a língua ordinária de modo a

fazê-la “restituir” uma língua original desconhecida, que arrastaria consigo toda linguagem.

Não é notadamente nisso que consiste a vocação esquizofrênica da literatura americana,

fazer escorrer a língua inglesa, introduzir um pouco de psicose na neurose inglesa, inventar

uma nova universalidade? Desse modo, um grande livro é sempre o avesso de um outro

livro que só se escreve na alma, com silêncio e sangue.

09. Bartleby não dispõe propriamente de um procedimento; contenta-se

com uma breve fórmula. No entanto, o efeito é o mesmo: cavar na língua uma língua

estrangeira, uma língua originária, inumana ou sobre-humana, e confrontar toda a

linguagem com o silêncio. Depois da fórmula não há nada a dizer: ela equivale a um

procedimento, supera sai aparência de particularidade.

11. A fórmula de Bartleby exclui qualquer alternativa; desarticula os atos de

fala segundo os quais um patrão pode comandar, e um amigo benevolente fazer perguntas

(desarticula os pressupostos a partir dos quais lançamos enunciados). Bartleby é um puro

excluído, ao qual nenhuma situação social pode ser atribuída (de fato, ele não nega a ordem

ou o conselho do amigo, o que o faria um revoltado mas ainda com um lugar social). A

fórmula destrói a razão na linguagem, sua lógica dos pressupostos – pois um patrão

“espera” ser obedecido, por isso “pede” (manda), um amigo benevolente espera ser

escutado. A fórmula desconecta as palavras, os atos, ambos; ela corta a linguagem de

qualquer referência [mesmo dos pressupostos. Por isso parece tão sem-lugar], em

conformidade com a vocação absoluta de Bartleby, ser um homem sem referências.

12. Bartleby é o homem sem referências, sem poses, sem propriedades, sem

qualidades, sem particularidades. Sem passado nem futuro, é instantâneo. A fórmula

“preferiria não“ tem, assim, como complemento indispensável, seu avesso “não sou

particular”. Todo o século XIX será atravessado por essa busca do homem sem nome,

regicida e parricida, Ulisses dos tempos modernos (“Sou Ninguém”8): o homem esmagado

e mecanizado das grandes metrópoles, de onde se espera, talvez, que saia o homem do

futuro ou de um novo mundo. E de MUSIL [autor de “O homem sem qualidades”] à

MELVILLE a derivação nos parece certa.8 Ligar com o filme “Dead Man”, de Jim Jarmusch. Será o filme uma grande epopéia americana, ou desse novo homem americano, dessa nova maneira de sentir e pensar à que Deleuze vincula uma revolução??

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15. E que estranha relação se estabelece entre Bartleby e o advogado. Serão

ambos loucos? Será um caso de loucura à dois, homossexualidade, identificação? Uma

identificação parece fazer com que intervenham três elementos, que podem alternar-se,

permutar-se> uma forma, imagem ou representação, modelo; um sujeito ao menos virtual; e

os esforços do sujeito para se apropriar da imagem, adaptar-se à ela e adaptá-la a si. A

imagem é por excelência uma imagem do pai, e o sujeito é um filho.

16. Muitos romances de MELVILLE parecem contar a história de uma

formação sob uma formação paterna. Mas a cada vez algo estranho se produz, que turva a

imagem, afeta-a de uma incerteza essencial, impede que a forma “pegue”, mas também

desfaz o sujeito, lança-o à deriva e elimina qualquer função paterna. Só então as coisas

começam a ficar interessantes. A função paterna se perde em favor de forças ambíguas

mais obscuras. O sujeito perde sua textura em favor de uma colcha de retalhos [ele mesmo

como coleção de forças, pathwork]que prolifera ao infinito. Um traço de expressão quebra

a linguagem e instaura uma zona de indeterminação, de devir.

17. É ainda um processo de identificação, mas em vez de seguir as aventuras da

neurose, tornou-se psicótico. Reagrupemos três características distintivas: o traço de

expressão, informal – o “preferiria não” – se opõe à imagem expressada [o modelo

paterno]; em segundo lugar, já não há um sujeito que se eleva até a imagem, com êxito ou

fracassando, mas sim uma zona de indistinção que se estabelece entre dois termos, uma

vizinhança extrema; já não é questão de mimese, porém de devir: AHAB não imita a baleia

[sua “imagem paterna”], ele torna-se MOBY DICK, entra na zona de vizinhança onde já

não pode distinguir-se dela e golpeia-se a si mesmo ao golpeá-la. Em terceiro lugar, a

psicose persegue seu sonho, assentar uma função de universal fraternidade que já não passa

pelo pai, que se constrói sobre as ruínas da função paterna, segundo uma linha autônoma de

aliança e de vizinhança que faz da mulher uma irmã, do outro homem um irmão. São as três

características do sonho americano, compondo a nova identificação, o novo mundo: o

Traço, a Zona e a Função9.

9 Essa mesma análise poderia ser aplicada ao filme Dead Man: de fato, a “confusão” do contador com William Blake seria o “traço de expressão”, isto é, a imagem que criaria no protagonista um devir e uma zona da indeterminação e vizinhança de si mesmo e desse homem americano do futuro, sobre-humano inumano, - poderiam ainda se tratar de outras vizinhanças – o que seria a Zona, a vizinhança da identidade pessoal com o devir esquizofrênico americano; finalmente, a Função, a criação de uma universalidade fraterna viria como conseqüência desse traço de expressão e desse devir ou vizinhança, nas últimas cenas

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19. A identificação não “serve” em MELVILLE. AO invés disso, ele invoca

constantemente dois pólos de personagens em sua própria psiquiatria: os monomaníacos e

os hipocondríacos, os demônios e os anjos. Num pólo, esses monomaníacos ou demônios,

como AHAB, que erigem uma preferência monstruosa, contra toda lei, levados pela

vontade de nada10; no outro pólo estão estes anjos ou santos hipocondríacos quase

estúpidos, vítimas de uma fraqueza constitutiva, mas também de uma estranha beleza,

petrificados por natureza e que preferem... absolutamente nenhuma vontade, um nada de

vontade a uma vontade de nada [como Bartleby e seu “preferiria não”]. Só conseguem

sobreviver tornando-se pedra, negando a vontade, e se santificando nessa suspensão. Ainda

que os dois tipos se oponham em todos os sentidos, uns traidores inatos e outros traídos por

excelência, uns pais monstruosos que devoram seus filhos, outros, filhos abandonados sem

pai, eles freqüentam o mesmo mundo... pertencem a essa NATUREZA PRIMEIRA de que

já falava Sade, natureza suprasensível, original, oceânica, que não está adstrita à nenhuma

lei – as leis sendo referidas à uma NATUREZA SEGUNDA. Tudo os opõe, e contudo,

talvez seja a mesma criatura, vista pelos dois lados.

20. Há ainda um terceiro tipo de personagem, o que está do lado da lei,

guardião das leis divinas e humanas que compõe uma NATUREZA SEGUNDA: é o

profeta. Segundo MELVILLE, os psicólogos não são capazes de adivinhar ou diagnosticar

a natureza primeira [relativa a um inumano ou sobre-humano]; somente o profeta os vê,

capta e compreende. Os profetas são, não obstante, os representantes da natureza segunda,

portam a imagem paterna. Identificam-se com ambos os representantes da natureza

primeira, mas não tem a estatura dos mesmos. São mais que tudo testemunhas, recitantes,

interpretantes. Há, finalmente, um problema que escapa a esse terceiro tipo de personagens,

mas que se resolve entre os outros dois.

21. MELVILLE também procura reivindicar os direitos de um irracionalismo

superior. De fato, porque o romancista se veria obrigado a explicar o comportamento de

do filme, nas figuras do Eterno Retorno [Nietzsche] e do Barco para a Morte [Lawrence], da preparação para a morte, que ainda nos avizinha – ou poderia... – entre outros, com a Vida, o elãn vital, o impulso original ou vontade de poder.

10 AHAB escolhe Moby Dick como caça, contrariando a lei dos baleeiros que ordena escolher a primeira baleia sã que aparecer; e com tal escolha põe em risco toda sua tripulação. Chega a pressentir que, depois dessa baleia, não haveria mais nada para ele; mas, como ele diz, “tanto pior”.

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seus personagens e a lhes dar razões se a vida, por sua vez, nunca explica nada e deixa nas

suas criaturas tantas obscuridades inexplicáveis? É a vida que justifica, ela não precisa ser

justificada. O romance inglês sente necessidade de racionalizar, e a psicologia é sem dúvida

a última forma do racionalismo. A psicanálise, a esse respeito, relançou as pretensões da

razão. O ato fundador do romance americano (como do russo) constitui em levar o romance

para longe das vias das razões, e dar nascimento a esses personagens suspensos no vazio,

que possuem fórmulas não explicativas, enigmáticas, e contudo não-arbitrárias, com uma

nova lógica, que não nos reconduz à razão, mas capta a intimidade da vida e da morte. O

romancista tem o olhar do projeta, não o do psicólogo.

22. MELVILLE diferencia ainda seus personagens em personagens

simplesmente particulares ou notáveis, que recebem influências do meio e o influenciam, e

tem características determinando sua forma, de sorte que suas ações e reações obedecem a

leis gerais, e portanto explicáveis pela psicolgoia, e personagens verdadeiramente

Originais, potente figura solitária que extravasa qualquer forma explicável, nem gerais nem

particulares, que escapam ao conhecimento, desafiam a psicologia.

23. Os originais são os seres da NATUREZA PRIMEIRA, mas são inseparáveis

do mundo, ou na natureza segunda, e aí exercem seus efeitos: revelam seu vazio, a

imperfeição das leis, a mediocridade das criaturas particulares. Os profetas, que não são

originais, são os únicos a reconhecerem seus vestígios. E os dois tipos de originais, os

demoníacos e os petrificados, MELVILLE quererá reuni-los no mesmo quadro.

24. Este o mais elevado problema que obseda a obra de MELVILLE:

reconciliar os dois originais, mas para isso também reconciliar o original e a humanidade

segunda, o inumano com o humano. Essa reconciliação passa pela dissolução da função

paterna; não existem bons pais, somente pais monstruosos e devoradores, e somente filhos

sem pai, petrificados; é o que mostra a obra de MELVILLE. É preciso que caia a máscara

do pai caridoso para que a NATUREZA PRIMEIRA se pacifique e se libere seu fruto, a

relação fraternal pura e simples. MELVILLE sempre desenvolverá a oposição radical da

fraternidade com a “caridade” cristã ou a “filantropia” paterna11. Liberar o homem da

11 Comparar, a este propósito, o esquema melvilliano e a psicanalise, verdadeira defensora da função paterna. Comparar, também, a função paterna e seu uso da castração e da culpa e Nietsche, com sua inocência do devir.

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função do pai, fazer nascer o novo homem, reunir o original e a humanidade, constituindo

uma sociedade dos irmãos como nova universalidade.

25. Como essa comunidade, o mais elevado problema, poderia ser resolvido?

Mas ele não está resolvido por si mesmo precisamente por não ser pessoal, por ser

histórico, geográfico, político? Não um assunto particular, não um fantasma edipiano, mas

um assunto coletivo, de todos os povos, um programa político. Essa comunidade é o sonho

americano: se o homem é o irmão do homem, se é digno de “confiança”, não o é por

pertencer a uma nação ou por ser proprietário, mas unicamente por ser Homem, quando só

tem consciência de si sob os traços de uma dignidade democrática, sem particularidades.

26. Tanto o comunismo russo quanto a sociedade dos irmãos americana – o

pragmatismo - são as duas expressões do messianismo do sec XIX.

27. O pragmatismo é uma tentativa de transformar o mundo e de pensa um

mundo e homem novos enquanto se forjam. A filosofia ocidental era o Espírito paterno que

se realizava no mundo como totalidade, e um sujeito cognoscente como proprietário. No

pragmatismo, trata-se da afirmação de um mundo em processo, em arquipélago, feito de

elementos que valem por si mesmos e, como tais, tem relações com os demais, onde o

conhecimento é substituído pela “confiança” – não crença num outro mundo, mas

confiança neste mundo aqui.

28. O pragmatismo é esse duplo princípio de arquipélago e de esperança. Ele

está sempre em luta contra as particularidades que opõe o homem ao homem e alimentam

uma desconfiança irremediável, e contra o Universal ou o Todo, a fusão das almas em

nome do grande amor ou caridade12. Contra a moral européia de salvação e da caridade,

uma moral da vida, em que a alma só se realiza tomando a estrada, exposta a todos os

contatos, formando com seus iguais acordos-acordes, sem outra realização além da

liberdade, sempre pronta a libertar-se para realizar-se13.

12 Ver crítica de Lawrence à Withman, em “Withman”, texto n.° 9, aqui mesmo, neste bat-canal.

13 Qual a diferença entre particularidades, que opõe homem à homem, e afirmação da diferença, que, em princípio, deveria reuni-los numa nova universalidade fraterna? Chuto, de minha parte, que particularidade remete à uma FORMA ESTÁVEL atribuída ao EU, ao EGO, ao sujeito; e diferença, ao contrário, remete à um DEVIR, a um amadurecimento, à uma complexificação NO tempo. A particularidade é um atributo DO ego; o devir, ao contrário, ocorre AO ego, o ego é tomado pelo devir, destroçado, transmutado.

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29. Para tanto é preciso uma nova perspectiva, o perspectivismo em

arquipélago; e o “percepto”, isto é uma percepção em devir, deve substituir o conceito,

como sinal de boa percepção, ouvido e vista [lembrar que o fim último da literatura é dar

visões e audições, isto é, ir além da linguagem]. Necessita-se de uma comunidade nova,

cujo s membros sejam capazes de “confiança”, isto é, dessa crença neles mesmos, no

mundo e no devir.

30. Os perigos da “sociedade sem pais” foram denunciados com freqüência,

mas o único perigo é o retorno do pai. A esse propósito, não se pode separar o fracasso das

duas revoluções, a americana e a soviética, a pragmática e a dialética: ambas viram o pai

retornar.

31. Mas no seio mesmo de seu fracasso, a revolução americana continua

relançando seus fragmentos, sempre fazendo fugir algo na linha do horizonte, assim como

MELVILLE, o escritor americano, ao qual o povo era indiferente, continuava em seu

fracasso mesmo ainda mais portador de uma enunciação coletiva que já não dependia da

história literária, preservando os direitos de um povo por vir ou de um devir humano.

Vocação esquizofrênica: mesmo catatônico e anoréxico, Bartleby não é o doente, mas o

médico de uma América doente, o novo Cristo ou o irmão de todos nós.

11. UM PRECURSOR DESCONHECIDO DE HEIDEGGER, ALFRED JARRY

01. A patafísica tem por objetivo a grande Virada, a superação da metafísica,

indo, para além ou para aquém, tão longe desta quanto a metafísica da física14. Desse modo,

pode-se considerar a obra de HEIDEGGER como um desenvolvimento da patafísica

conforme SOFROTATES e seu primeiro discípulo, JARRY. As grandes semelhanças

concernem ao ser do fenômeno, à técnica planetária e ao tratamento da língua.

02. i. Em primeiro lugar, como superação da metafísica, a

patafísica é inseparável de uma fenomenologia. O fenômeno já não pode definir-se como

uma aparência, tampouco como uma aparição (o que remeteria à HUSSERL e à uma

consciência ao qual aparecer). O fenômeno, ao contrário, é o que mostra a si mesmo em si

14 Outro exemplo dessa “grande Virada” está na proposta de Bérgson, explicitada por Deleuze em “Bergsonismo”

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mesmo. Ele não remete à uma consciência que o vê (e o poderia ver diferentemente), mas a

um Ser, ser do fenômeno, que consiste precisamente no mostrar-se. Esse ser do fenômeno –

o epifenômeno – é o objeto da patafísica. O fenômeno é que é percepção, o ente, a vida. O

Ser é pensar.

03. A metafísica é um erro que consiste em tratar o epifenômeno (o “mostrar-se”

do fenômeno) como um outro fenômeno, outro ente, outra vida. Na verdade, mais do que

considerar o ser como um ente superior, devemos pensá-lo como um Vazio ou Não-ente,

através de cuja transparência agitam-se as variações singulares. O ente barra o ser, inflige-

lhe a morte e o destrói; a vida – o ente, mata o pensamento – o Ser.Por isso não pensamos

ainda. Contudo , essa morte não provém do exterior: se o Ser é o mostrar-se do ente, ele

próprio [o ser] não se mostra e não para de retrair-se, estando ele próprio retirado. Melhor

ainda: retirar-se, retrair-se, é a única maneira pela qual ele [o ser, isto é, o mostrar-se do ser

enquanto “mostrar-se”] se mostra enquanto ser [ou seja, o “ser” do Ser é esse esconder-se

NO MOSTRAR-SE do ente].

04. ii. A metafísica inteira cabe no retraimento do ser, pois

confunde o ser com o ente. A técnica como dominação efetiva do ente é a herdeira da

metafísica: ela a completa, a realiza15.

05. Assim, se o problema é complexo, é porque em JARRY e em HEIDEGGER

a técnica não se contenta em acarretar o retraimento ou esquecimento do ser: o ser se

mostra igualmente na técnica pelo fato de que dela se retrai, enquanto dela se retrai. Mas

isto só pode ser compreendido patafisicamente (ontologicamente), não metafisicamente [e

por essa via, a técnica já permite uma superação da metafísica]. Não basta opor ser e

retraimento, já que o que define a perda do ser é antes o retraimento do retraimento [que é o

ser], ao passo que o retraimento constitui a maneira pela qual o ser se mostra. Donde se

compreende que a técnica planetária não é simplesmente a perda do ser, mas a

eventualidade de sua salvação.

06. O ser se mostra duas vezes: uma primeira vez em relação à metafísica, num

passado imemorial, visto que retraído de qualquer passado da história, e uma segunda vez

em relação à técnica, num futuro inassinável, pura imanência ou possibilidade de um

15 hipótese: porque a técnica, dominando o ente, controlaria seu mostrar-se; seria, portanto, igual ao ser. A técnica se equivaleria ao ser.

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pensamento sempre por vir. Em ambos os autores, esse Poder-ser, esse possível, para além

do ser, se relaciona com a técnica.

07. A ciência é técnica. Ela toma o tempo como variável independente; por isso

as máquinas são essencialmente máquinas de explorar o tempo. Dado esse caráter técnico, a

ciência primeiramente torna possível uma reversão patafísica do tempo: a sucessão passado,

presente, futuro, dá lugar à co-presença ou simultaneidade dos três, ser do passado, ser do

presente, ser do futuro. A presença é o ser do presente, mas também o ser do passado e do

futuro. Por isso a máquina começa transformando a sucessão em simultaneidade. O

Duração, segundo JARRY, “é o devir de uma memória” [uma conservação do passado no

presente que explora e abre o futuro. É uma reconciliação profunda entre a Máquina e a

Duração [esse conceito de Duração?]. É também uma revolução na relação entre homem e

a máquina, pois a relação passa a se dar entre a máquina e o ser do homem, dado que este é

mais potente que a maquina.

08. iii. O ser se mostra, mas enquanto não pára de retrair-se

(passado); o Mais e Menos que ser advém, mas enquanto não pára de recuar, de se

possibilitar (futuro). Isto significa dizer que o ser não sem ostra só no ente, mas em algo

que mostra seu inevitável retraimento; e o mais e menos que ser, em alguma coisa que

mostra sua inesgotável possibilidade. Essa coisa é o signo.

09. O pensamento de JARRY é antes de tudo teoria do Signo: o signo não

designa nem significa, mas mostra... Toda a questão é saber em quais condições o signo

assim compreendido é linguagem. A primeira condição é que se faça uma concepção

poética da linguagem, e não técnica ou científica. A ciência supõe uma diversidade que é

preciso ordenar, apreender em suas relações virtuais. Porém, ao contrário, em princípio

cabe considerar apenas duas línguas, uma viva e a outra morta, a segunda trabalhando a

primeira. Fazer o passado da língua [morta] atuar sobre seu presente, afetá-lo, para obter

uma língua diferente, o futuro da língua... [os três tempos simultâneos... máquinas de

simultaneidade?]

10. Não há que considerar a cientificidade dessas relações da língua. Ela opera

em favor de uma pura e simples Poesia, não da correção lingüística ou etimológica. Tais

procedimentos lingüísticos não devem ser medidos pela lingüística, mas comparados com

procedimentos como o de ROUSSEL, BRISSET ou WOLFSON. Trata-se antes de fazer o

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afecto produzir na língua corrente uma espécie de arrastamento, de gagueira, criando uma

nova língua.

11. Essa é a resposta [para as condições em que o signo se torna linguagem]: a

língua não dispõe de signos, mas adquire-os criando-os, quando uma língua age no interior

de outra língua para nela produzir uma língua insólita, quase estrangeira, que conduz toda a

linguagem a um limite. O limite da linguagem é a Coisa em sua mudez – a visão. A língua

cumpre assim sua missão, o Signo mostra a Coisa e efetua a enésima potência da

linguagem, pois “coisa alguma seja, ali onde a palavra falha”.

12. MISTÉRIO DE ARIADNE SEGUNDO NIETZSCHE

01. Dioniso canta:

“Sê prudente, ADIADNE!...

Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas:

Põe aí uma palavra sensata!

Não é preciso primeiro odiarmo-nos se devemos nos amar?...

Sou teu labirinto...”

02. ARIADNE está entre TESEU e DIONISO, passa de um para o outro. Guia

de TESEU no labirinto, descobrirá em DIONISO outro labirinto. NIETZSCHE pergunta:

“quem, além de mim, sabe quem é ARIADNE?”. A questão quem? não reclama pessoas,

não se refere à WAGNER, COSIMA, etc, mas à forças e quereres.

03. TESEU é o herói, hábil em decifrar enigmas, freqüentar o labirinto e vencer

o touro, homem sublime que prefigura a teoria do homem superior, cujos atributos

coincidem com os seus: espírito de gravidade, gosto em carregar fardos, desprezo pela

terra, impotência para rir e brincar, empreendimento de vingança.

04. Em NIETZSCHE, a teoria do homem superior é uma crítica que se propõe

denunciar a mistificação mais perigosa do humanismo. O homem superior pretende levar a

humanidade à perfeição, superar as alienações, realizar o homem total, pôr o homem no

lugar de Deus, fazer do homem uma potência que afirma. Mas o homem, mesmo o

superior, não sabe em absoluto o que significa afirmar; da afirmação só apresenta uma

caricatura: acha que afirmar é carregar, assumir, suportar uma prova; avalia a positividade

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pelo seu peso. O homem superior ignora que afirmar não é carregar a vida com o peso dos

valores superiores, mesmo heróicos, mas sim criar valores novos que façam a vida leve,

afirmativa.

05. Segundo NIETZSCHE, a Vontade de Potência tem duas tonalidades: a

afirmação e a negação, e as forças tem duas qualidades: a ação e a reação. O que o homem

superior apresenta como sendo a afirmação é, sem dúvida, o ser mais profundo do homem,

mas é apenas a combinação extrema da negação com a reação – o niilismo. O niilismo é o

que se faz carregar. As forças reativas são o que carrega. O homem superior invoca o

conhecimento. Mas o conhecimento é só o disfarce da moralidade. O fio no labirinto é o fio

moral. E a moral (ou o conhecimento, ou o humanismo) são o labirinto. E o homem se

carrega a si mesmo, ele se atrela sozinho, em nome dos valores heróicos, em nome dos

valores do homem.

06. O homem superior são vários, assume várias formas conforme o lugar que

ocupa na série do fio moral. Mas são todos a mesma coisa: são as potências do falso, como

se o falso remetesse necessariamente ao falso.

07. Enquanto ama TESEU, ARIADNE participa de seu empreendimento de

negação da vida. TESEU é o poder de negar, ARIADNE é a alma reativa, ou a força do

ressentimento.

08. Mas TESEU abandona ARIADNE. Quê significa isso? É que a combinação

entre vontade negativa [Teseu] e força reativa [Ariadne] não é a ultima palavra do niilismo.

Chega o momento em que a vontade de negação, seguindo adiante em sua lógica de

negação, rompe sua aliança com as forças reativas, indo assim até o fim de sua potência.

Mas nesse momento fundamental, é como se o niilismo acabado desse lugar ao seu

contrário: pois ao ir até o limite do que pode – a sua ultima negação -, a vontade de negação

torna-se afirmativa16, as forças reativas tornam-se ativas. A negação se transforma,

converte-s no trovão de uma afirmação pura, o modo polêmico e lúdico de uma vontade

que afirma e se põe a serviço de um excedente de vida. O niilismo “vencido por si mesmo”.

DIONÌSO é a verdadeira afirmação, a vontade afirmativa; ele nada carrega, não se carrega

de nada, mas alivia tudo que vive. Ele é o Leve, que não se reconhece no homem,

sobretudo no homem superior, mas só no além-do-homem. Era preciso que ARIADNE 16 Conforme a definição deleuzeana de Vontade negativa e de força reativa em “Nietzsche e a Filosofia”. Força ativa é aquela que vai até o limite do que pode.

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fosse abandonada por TESEU [assim como era preciso que as forças reativas fossem

abandonadas NO AVANÇO da Vontade Negativa], pois só assim o além-do-herói adviria [a

transvaloração].

09. Porque DIONISO tem necessidade de ARIADNE, ou de ser amado? [porque

a vontade afirmativa tem necessidade das forças negativas] É que DIONISO é o deus da

afirmação. Ora, é necessária uma segunda afirmação [Ariadne] para que a própria

afirmação seja afirmada. DIONISO é a afirmação do Ser, ARIADNE, a afirmação da

afirmação. O labirinto já não é o conhecimento ou a moral, mas o eterno-retorno [a ética da

intensidade afirmativa], representado pelas pequenas orelhas “redondas” de ARIADNE.

10. O labirinto pesado e arquitetônico de TESEU dá lugar ao labirinto leve,

“musical” [orelhas], de DIONISO. A gravidade da arquitetura dá lugar à leveza da musica,

que não tem gravidade nenhuma. Dioniso é bem o deus das arquiteturas que desabam17.

DIONISO já não conhece outra arquitetura que a dos percursos e trajetos. DIONISO é o

sem-lugar, por estar em todo lugar, sobre toda a Terra.

11. Mas porque opor os dois lados, como o verdadeiro e o falso? Em ambos,

DIONISO e TESEU, não se trata da mesma potência do falso? A arte não é a mais elevada

potência do falso, e por isso, DIONISO o mais falsário de todos? Entre o alto e o baixo, há

uma distância considerável, que deve ser afirmada. As potências do falso de TESEU dizem

respeito à FORMA: o que elas deixam escapar do original é justamente o processo de sua

CRIAÇÂO, o devir implicado em sua criação18. As potências do falso de TESEU (as várias

formas do homem superior) são apenas os mais baixos graus da Vontade de Poder. Como

eles a Vontade de Poder representa tão somente um querer-enganar, um querer-dominar

uma vida doente esgotada que brande próteses. Mesmo seus papéis são próteses para

manter-se em pé. Só DIONISO, o artista criador, dá testemunho de uma vida que jorra: ele

eleva a potência do falso a um grau que se efetua não mais na forma, mas na

transformação – “VIRTUDE QUE DÁ”, ou criação de possibilidades de vida:

17 Conforme MARCEL DETIENNE, “Dioniso a céu aberto”, e “As Bacantes”, de EURÍPEDES.

18 Como diria BERGSON, esse “incopiável “é o devir, o movimento vital que SE EXPRESSA numa forma determinada – esta, sim, copiável -, que é o objeto de arte. Mas o devir mesmo, o movimento da duração do qual resultou aquela forma-objeto, isso não são copiáveis... a rigor, são irrepetíveis, conforme ainda BERGSON, “A Evolução Criadora”]

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transmutação [transvaloração]. A Vontade de Poder é como a energia: diz-se “nobre” da

que está apta a se transformar; vil é a que só quer conservar-se.

12. Para ARIADNE, passar de TESEU a DIONISO é uma questão de clínica, de

saúde e de cura. Para DIONISO também: ele precisa de ARIADNE [as forças reativas]

para o advento do Eterno Retorno, que complementa a afirmação. Ser do devir, o Eterno

Retorno é o produto de uma dupla afirmação que faz retornar o que se afirma e só faz devir

o que é ativo [a afirmação DA DIFERENÇA, do devir, e a afirmação dessa afirmação;

repetir-se, ENQUANTO DIFERENÇA, é o ser do devir... o Eterno Retorno].

13. GAGUEJOU...

01. Diríamos que há duas possibilidades de marcar entonações na escrita: fazê-

lo, ou então dizê-lo sem fazê-lo.

02. Entretanto, há uma terceira possibilidade: quando dizer é fazer. É o que

acontece quando a gagueira [entonação, isto é, uma certa tensão afetivo-intensiva] já não

incide sobre palavras pré-existentes, mas ela própria introduz as palavras que ela afeta;

estas já não existem separadas da gagueira, que as seleciona e as liga por conta própria. Não

é o personagem que é gago, mas o escritor que faz gaguejar a língua, produz uma

linguagem afetiva, intensiva (não uma afecção daquele que fala). Isso não necessariamente

incide na forma de expressão da língua, exigindo uma forma própria, pois esta pode se

valer de um contexto intensivo, uma qualidade atmosférica que dá o sentida intensivo à

gagueira.

03. Se se considera a língua um sistema homogêneo em equilíbrio, definido por

termos e relações constantes, é evidente que os desequilíbrios ou as variações só afetarão as

palavras. Mas se o sistema se apresenta em desequilíbrio perpétuo, com termos que

percorrem, por sua vez, uma zona de variação contínua, então é a própria língua que se põe

a vibrar, a gaguejar, sem contudo confundir-se com a fala. Nesse caso, a língua só vai

confundir-se com a fala em se tratando de uma fala especial – a poesia, que arrastará a

linguagem até o seu limite.

04. Não se trata de multilinguismo: os grandes escritores não misturam línguas,

nem sequer uma maior e uma menor: eles inventam um USO MENOR da língua maior na

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qual se expressam inteiramente. Eles desequilibram a língua, segundo uma incessante

modulação, excedendo os poderes da fala e atingindo o poder da língua. Equivale a dizer

que o grande escritor sempre se encontra como um estrangeiro na língua em que se

exprime.

05. A língua está sujeita a um duplo processo: o das escolhas a serem feitas

(disjunção ou seleção dos semelhantes) e as seqüências a serem estabelecidas (conexão ou

consecução dos combináveis). Considerando a língua um sistema em equilíbrio, as

disjunções serão sempre exclusivas (cada palavra com UM sentido) e as conexões,

progressivas. Mas eis que, longe do equilíbrio, AS DISJUNÇÕES TORNAM-SE

INCLUSIVAS E AS CONEXÕES, REFLEXIVAS, segundo um andamento irregular que

concerne ao processo da língua e não mais ao curso da fala [ver exemplo da gagueira

intensiva].

06. BECKETT levou ao mais alto grau a arte das disjunções inclusivas, que já

não seleciona, porém afirma os termos disjuntos através de sua distância, sem limitar um

pelo outro nem excluir o outro do um, esquadrinhando e percorrendo o conjunto de toda

possibilidade. A gagueira criadora é o que faz a língua crescer pelo meio, ser um rizoma em

vez de uma árvore, o que coloca a língua em perpétuo desequilíbrio.

07. Há várias maneiras de gaguejar.

08. Já não se trata, na gagueira, de uma sintaxe formal ou superficial que regula

os equilíbrios da língua, porém uma sintaxe em devir, uma gramática do desequilíbrio.

Nesse sentido, ela tende a um fim, um limite que não é ele mesmo gramatical – os sopros

ou puras intensidades de ARTAUD, por exemplo – mas nem por isso os dois aspectos

deixam de ser correlativos: a tensão na língua e o limite da linguagem.

09. Ambos os aspectos se realizam segundo uma infinidade de tonalidades, mas

sempre juntos (a variação tensionada e o limite da linguagem). E assim como a nova língua

não é exterior à língua, tampouco o limite assintático é exterior à linguagem: é o fora da

linguagem, não está fora dela. É uma pintura com palavras, uma música de palavras, um

silêncio nas palavras; são puras visões, que constituem a finalidade última da linguagem. O

estilo, essa tensão, é a economia da língua.

10. Cada qual em sua íngua pode expor recordações, inventar histórias, enunciar

opiniões; por vezes até adquirir os meios adequados, chegando a possuir um belo estilo, que

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o converta em escritor apreciado. Mas quando se trata de escavar por baixo das histórias, de

rachar as opiniões, de atingir as regiões sem memória e de destruir o eu, já não bastam os

meios, todo meio é insuficiente, já não basta ser um “grande” escritor: o estilo torna-se tnão

estilo, a língua deixa escapar uma língua estrangeira, desconhecida, para atingir-se os

limites da linguagem e tornar-se outra coisa que não escritor.

15. PARA DAR UM FIM AO JUÍZO

01. Da tragédia grega à filosofia moderna, é toda uma doutrina do julgamento

que se vai elaborando e desenvolvendo. A tragédia grega é quem instaura primeiro um

tribunal. Kant erige um fantástico tribunal subjetivo. Em ruptura com a tradição judaico-

cristã, é SPINOZA quem conduz a crítica; e ele teve quatro grandes discípulos, que a

retomaram e relançaram: NIETZSCHE, LAWRENCE, KAFKA, ARTAUD. Os quatro

tiveram que padecer pessoalmente, singularmente, do Juízo. Conheceram esse ponto em

que a acusação, a deliberação, o veredicto, se confundem ao infinito.

02. NIETZSCHE soube destacar a condição do Juízo: “a consciência de ter uma

dívida para com a divindade”. O homem só apela para o Juízo, só é julgável e só se julga

quando sua existência está submetida a uma dívida infinita: o infinito da dívida e a

imortalidade da existência remetem um ao outro para constituir a “doutrina do Juízo”19.

Para os quatro autores alógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote, como

inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar20... Não se trata de adiar

indefinidamente o Juízo, mas, ao contrário, é o ato de levar ao infinito que torna o juízo

possível: este recebe sua condição de uma relação suposta entre a existência e o infinito na

ordem do tempo21. Mesmo o juízo de conhecimento envolve um infinito do espaço, do

tempo e da experiência que determina a existência dos fenômenos no espaço e no tempo.

19 Conforme NIETZSCHE, in “O Anticristo”.

20 Pensar “organização” aqui também em nível afetivo. Para Nietzsche, não há uma estrutura “em si” do ‘humano’; são várias as configurações possíveis, ainda mais se levarmos em conta que essa estrutura é aberta; se faz no presente e no tempo. A consciência, que para Nietzsche é uma REDE DE LIGAÇÃO entre as organizações (os sujeitos), uma parte que se torna comum no sujeito à força de se fazer entender (isto é, ouvir, comunicar, dizer), é quem faz essa ponte entre um sujeito (uma estrutura) que NÃO pensava em termos de julgamento (não PRECISAVA julgar para satisfazer sua estrutura) e o sujeito que, adquirira essa consciência (a consciência da culpa), doravante NECESSITA julgar.

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Nesse sentido, o conhecimento também implica uma relação específica entre a existência e

o infinito (é a “dívida” de novo).

03. Mas então o que se distingue do juízo?? A grandeza de NIETZSCHE está

em ter mostrado que a relação CREDOR-DEVEDOR ERA PRIMEIRA EM RELAÇÃO À

TODA TROCA [GM, II]. Começa-se prometendo, e a dívida não é contraída em relação

com um Deus [infinito], mas relativamente a um parceiro segundo forças que passam entre

as partes, provocam uma mudança de estado e nelas criam alguma coisa: o afecto22. Há,

portanto, uma Justiça que se opõe a todo Juízo, segundo a qual os corpos marcam-se uns

aos outros, a dívida se escreve diretamente no corpo, conforme blocos finitos que circulam

num território. Todo um sistema de crueldade, enfim, que enuncia as relação finitas do coro

existente com forças que o afetam, ao passo que a doutrina da dívida infinita determina as

relações da alma imortal com os juízos.

04. Os elementos de uma doutrina do Juízo supõe que os deuses concedam lotes

aos homens, recortando a existência em função deles, distribuindo-se os afectos e referindo-

os a formas superiores (que NIETZSCHE, junto de LAWRENCE, sempre criticará: a

pretensão de julgar a vida pelos valores superiores). Com o cristianismo, já não há mais

lotes, pois são nossos juízos que compõe nosso único lote, e tampouco há forma adequada

(ou não) ao lote [isto é, uma verdade, um bem, uma medida imanente], pois é o juízo de

Deus que constitui a forma infinita. No limite, lotear-se a si mesmo e punir-se a si mesmo

tornam-se características do novo juízo. Já não somos os devedores dos deuses pelas formas

(adequadas ou não aos lotes) ou fins, mas somos em todo nosso ser os devedores infinitos

de um Deus único. A doutrina do juízo derrubou e substituiu o sistema dos afectos.

05. O mundo do Juízo se instala como num sonho, pelo sonho. Mas repudiamos

o juízo e o sonho com a embriagues, em favor de uma maré mais alta. Contra o sonho, os

21 BERGSON critica justamente essa suposta primazia do infinito (ou do possível) diante do existente (do real). E BLAKE já dizia: “a eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo”.

22 O afecto é aquela coerção de si por si, intensiva, que permite ao homem prometer – prometer significando “responder por si como porvir”. O afecto é que cria uma “memória da vontade”, segundo a qual uma marca se fixa e faz valer seus direitos, rumo – rumo ao quê? A Justiça?? Não necessariamente... precisamente, rumo a uma determinação de si mais complexa, aonde o passado se integra ao presente e ao futuro do sujeito, no mesmo caldeirão, constituindo-o não apenas como filho do instante, mas em função de toda uma linha de relações NÃO SOMENTE espaciais, mas também TEMPORAIS... Mas essa complexificação se escreve com sangue, como ele diz.

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quatro autores mencionados opõe um sono sem sonhos, que percorre a noite e a habita com

uma claridade assustadora, que não é o dia, mas o Relâmpago, sono sem sonho que é

Insônia. E a Insônia restitui o sonho, mas não o de quem dorme, não o sonho do sono, mas

um sonho ao lado da insônia. Tal, precisamente, é o estado da embriagues dionisíaca.

06. O sistema físico da crueldade opõe-se ainda à doutrina teológica do juízo

sob um terceiro aspecto: no nível dos corpos. É que o juízo implica uma verdadeira

organização dos corpos, através da qual ele age; o juízo de Deus é precisamente o poder de

organizar ao infinito [o organizado julga os lotes do outro, conforme sua forma –

adequada ou não -, sendo a adequação uma organização]. Inteiramente outro é o corpo do

sistema físico. Primeiro porque ele NÃO é um “organismo”, estando privado dessa

organização dos órgãos pela qual se julga e se é julgado. O corpo do sistema físico é, assim,

um “corpo sem órgãos”, corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas,

limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade não-orgânica o atravessa, vitalidade

formada pela relação do corpo com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam e

vice-versa. Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu C-S-O é a maneira de escapar

ao juízo; definir o corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto

é, Vontade de Potência23.

07. Daí decorre uma quarta característica para o sistema de crueldade: o

combate, por toda parte, substituindo o juízo. Combate contra o juízo, mas também

combate no combatente, entre suas próprias partes. O combate contra o outro procura

destruir ou repelir uma força; o combate-entre, ao contrário, quer apossar-se de uma força

para fazê-la sua, enriquecer-se com ela, formar com ela um novo conjunto24. Os combates-

contra devem ser justificados por combates-entre, que determinam a composição das forças

no combatente. Tudo que e bom provém de um combate, já diziam NIETZSCHE e

LAWRENCE.

09. O combate é diferente da guerra. A guerra é somente o combate-contra, uma

vontade de destruição, de pura dominação, que para NIETZSCHE compõe o grau mais

baixo da Vontade de Potência, sua doença. O combate não passa por aí; ele é, ao contrário,

23 Nem precisa dizer que o corpo “organizado”, aqui, é o corpo da norma, da gorda saúde, e o C-S-O remete à loucura como criação, disrupção, etc. Novamente, “organização” pode ser pensado com relação também à estrutura afetiva.

24 Isso vale também para o casamento...

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essa poderosa vitalidade não-orgânica que completa a força coma força e enriquece aquilo

de que se apossa. O bebê apresenta essa vitalidade; nele a Vontade de Potência se expressa

muito mais precisamente que no homem de guerra, não há dúvida.

10. Uma potência é uma idiossincrasia de forças em que a força dominante se

transforma ao passar para as dominadas, e as dominadas ao passar para a dominante: centro

de metamorfose. É o que LAWRENCE denomina um símbolo, um composto intensivo que

vibra, que não quer dizer nada, mas nos faz girar ate captar em todas as direções o máximo

de forças possíveis, todas recebendo novos sentidos nessa relação. A decisão [no sentido de

LAWRENCE, ver art. 6 deste Critica e Clínica] não é um juízo, nem a conseqüência

orgânica de um juízo: ela jorra vitalmente de um turbilhão de forças que nos arrasta no

combate. Os quatro autores citados podem ser ditos simbolistas.

11. Ninguém se desenvolve por juízo, mas por combate que não implica juízo

algum.Cinco características nos pareceram opor a existência ao juízo: a crueldade contra o

suplício infinito, a embriaguez contra o sonho, a vitalidade contra a organização, a Vontade

de Potência contra um querer-dominar,o combate contra a guerra. O que nos incomodava

era que, aparentemente, renunciar ao juízo equivalia a igualar tudo, a perder os critérios

para estabelecer diferenças entre existentes. Mas não é antes o juízo que supõe critérios pré-

existentes [valores superiores], e preexistentes desde sempre [no infinito do tempo, ou

Deus, com relação ao qual teríamos, por isso, uma ‘dívida’], de tal maneira que não se

consegue apreender o novo, a criação? E o novo se cria vitalmente, através do combate, na

insônia do sono, não sem certa crueldade contra si mesmo; e nada disso resulta do juízo. O

juízo impede a chegada de qualquer novo modo de existência. Pois este se cria por suas

próprias forças, isto é, pelas forças que sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que

faz existir a nova combinação. Não temos que julgar os demais existentes, mas sentir se

eles nos convêm ou desconvêm. É um problema de amor e ódio, não de juízo. E não é

subjetivismo, pois colocar o problema nesses termos de força, e não em outros termos, já

supera qualquer subjetivismo.