crônicas de história da medicina

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    SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

    REZENDE, JM. À sombra do plátano:crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: EditoraUnifesp, 2009. 408 p. ISBN 978-85-61673-63-5. Available from SciELO Books.

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição -Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative CommonsReconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    À sombra do plátanoCrônicas de história da medicina

    Joffre Marcondes de Rezende

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    Presidente Ruth Guinsburg Conselho Editorial Benjamin Kopelman(representante da Fap) Cynthia A. Sarti( campus Guarulhos) Durval Rosa Borges(presidente da Fap) Erwin Doescher( campusSão José dos Campos) Marcia Couto( campus Baixada Santista) Mauro Aquiles La Scalea( campus Diadema) Plinio Martins Filho(editor) Ruth Guinsburg( campus Vila Clementino) Editor-assistente Fabio Kato

    .Estudo Anatômico do Movimento do Coração e do Sangue nos AnimaisW H

    . À Sombra do Plátano: Crônicas de História da Medicina J M R

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    Joffre Marcondes de Rezende

    À SO MBRA DO P LÁTANOCrônicas de His tór ia da Medic ina

    P R E F Á C I O

    U L Y S S E S G . M E N E G H E L L I

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    Dedico estas crônicas à memória de

    Ivolino de VasconcellosLycurgo Santos FilhoCarlos da Silva Lacaz

    pioneiros e incentivadores dos estudos dehistória da medicina no Brasil

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    SUMÁRIO

    Prefácio ................................................................................................

    . A Árvore de Hipócrates ................................................................ . O Símbolo da Medicina ................................................................. . O Juramento de Hipócrates ........................................................... . Dos Quatro Humores às Quatro Bases ......................................... . Curar Algumas Vezes, Aliviar Quase Sempre, Consolar Sempre ..... . A Neurologia na Antiguidade ....................................................... . As Grandes Epidemias da História ................................................. . A Crença na Autointoxicação por Estase Intestinal e sua História .... . O Enigma da Respiração: Como Foi Decifrado ............................ . Breve História da Anestesia Geral ................................................ . O Ato Médico Através da História ............................................... . A Institucionalização do Ensino Médico ..................................... . O Machismo na História do Ensino Médico ............................... . Modismos na História da Medicina .............................................

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    . O que Montaigne Pensava dos Médicos eda Medicina de sua Época ..........................................................

    . Episódio Macabro no Ensino de Anatomia .................................. . Que Relação Tem Júlio César com a Operação Cesariana? .......... . A Primeira Operação Cesariana em Parturiente Viva ................... . O Falso Caminho das Tiites e Peritiites ................................... . Os Construtores da Moderna Medicina ...................................... . Úlcera Péptica e a Ilusão do Conhecimento:

    Um Exemplo de Falácia das Evidências em Medicina .................. . O Desao da Febre Amarela ....................................................... . Varíola: uma Doença Extinta ....................................................... . Maculo: a Estranha Doença dos Escravos Africanos .................... . Eijkman, o Detetive do Beribéri ................................................... . Fleming, o Acaso e a Observação ................................................. . Ambroise Paré, o Cirurgião que Não Sabia Latim ........................ . O Trágico Destino de Miguel Servet ............................................. . A Obsessão de John Hunter ........................................................ . As Flores de Miss Cooke e a Descoberta da Digital ..................... . A Alergia de Miss Hampton e as Luvas Cirúrgicas ....................... . A Descoberta dos Raios-X e seu Lado Pitoresco ..........................

    . Como um Tratador de Cães Contribuiu parao Progresso da Radiologia ........................................................... . A Vida Breve de Alguns Personagens Famosos

    da História da Medicina .............................................................. . A Medicina na Passagem do Milênio .......................................... . Providencial Coincidência na História do Odismo .................... . Mal de Engasgo e Doença de Chagas:

    A Solução de um Quebra-cabeças ............................................... . Fritz Koeberle e seus Estudos sobre a Doença de Chagas ............ . Carlos Chagas, a Centelha do Gênio ........................................... . Adolpho Lutz, uma Vida Dedicada à Ciência .............................. . Arthur Neiva, Inteligência e Cultura a Serviço da Nação ............ . Gaspar Vianna, Mártir da Ciência e Benfeitor da Humanidade ... . Rocha Lima, Embaixador da Medicina Cientíca Brasileira ....... . Henrique Aragão, um Nome Festejado na Austrália.....................

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    . Pirajá da Silva, Árbitro de uma Contenda Cientíca .................... . Eduardo Etzel, uma Vida de Ricas Vertentes ................................ . Evaristo de Paula, um Nome Esquecido na História da

    Descoberta da Doença de Chagas ............................................... . O Primeiro Periódico Médico do Brasil ........................................ . História de uma Controvérsia: Tiroide ou Tireoide? .................... . Por Que de Outubro é o “Dia dos Médicos”? ........................

    Créditos das Imagens .........................................................................

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    P R E F Á C I O

    Este livro é mais uma contribuição que o prof. Joffre Marcondes de

    Rezende, professor emérito da Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Goiás, dá à cultura de nosso país. Trata-se de uma coletâneade crônicas sobre história da medicina que o autor escreveu ao longo de suavida e que mostra uma outra face de seus pendores e de suas atividades, alémda prática clínica e da docência em gastroenterologia. Algumas delas sãoinéditas e muitas outras já publicadas em diferentes órgãos de divulgação.Dado o valor que estas crônicas têm, seria uma lástima se permanecessemdispersas no tempo e no espaço. Reunidas agora neste livro, o leitor terá aoportunidade de desfrutar de todas elas, sem a necessidade de procurá-lasindividualmente em veículos de publicação que podem ser de difícil acesso ecom a tranquilidade de que, em sendo de história, jamais se desatualizam.

    As crônicas que o leitor vai encontrar neste livro abordam variadostemas históricos de todas as épocas, desde a Antiguidade até a atualidade,sendo dignas de nota aquelas referentes à medicina brasileira, algumas coma participação do próprio autor. O livro contém, também, vários relatos

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    biográcos, inclusive os de personagens com as quais o autor conviveu outeve relações de amizade.

    O título que foi escolhido para a obra é muito sugestivo, pois, anunciao seu conteúdo evocando a gura de Hipócrates. À semelhança do pai damedicina que, à sombra do plátano ainda existente na pequena praça nocentro da cidade grega de Cós, ensinava aos seus discípulos, no século a.C., a surgente medicina baseada na racionalidade, o mestre Joffre contaao leitor uma série de tópicos de história da medicina que o ajudam a com-preender como o saber médico se formou, e a conhecer pontos fascinantes eaté curiosos das descobertas que determinaram inequívocos progressos nestaárea do conhecimento. Não faltam temas polêmicos e de defesa da classemédica, bem como, os modismos que muitas vezes a medicina adotou. Em sualeitura, o leitor poderá vericar muitos exemplos de como fatos e conceitoslongamente arraigados na mente das pessoas, mesmo as mais brilhantes,podem dicultar a aceitação dos avanços trazidos pelas novas descobertas,acomodando-se, incondicionalmente, com a “verdade” estabelecida e refu-tando, insensatamente, a novidade que a contraria. Não vou tecer nenhumcomentário sobre qualquer das crônicas para que o leitor possa, por si, ter oprazer de desvendar seus conteúdos sem qualquer ideia preconcebida e paranão interferir com minha opinião no juízo crítico que fará. Opino, entretanto,

    que são pontos altos deste trabalho, pela felicidade com que o autor transmiteo entendimento dos temas e pela sua originalidade, os capítulos “Dos QuatroHumores às Quatro Bases”, “Úlcera Péptica e a Ilusão do Conhecimento:Um Exemplo de Falácia das Evidências em Medicina” e “Mal de Engasgo eDoença de Chagas: A Solução de um Quebra-cabeças”.

    À Sombra do Plátano é um livro de História da Medicina não no estilotradicional de descrição longitudinal ou transversal da evolução de concei-tos e progressos havidos, seguindo uma trajetória mais ou menos contínuaatravés do tempo. Também, não é com a leitura deste livro que o leitor vaiconhecer toda a história da medicina, uma vez que são feitas apenas crôni-cas sobre eventos isolados ou sobre marcantes personagens desta ciência.E não há necessidade de ler suas cinquenta crônicas na sequência propostapelo autor, pois uma pode não ter nada a ver com a precedente e nem coma subsequente. O leitor pode escolher os assuntos que lhe pareçam maisinteressantes e, sem prejuízo do conjunto, desfrutar da leitura.

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    A Árvore de Hipócrates

    Na ilha de Cós, na Grécia, bem no centro da cidade, há uma árvore milenar,

    Platano orientalis, conhecida como “a árvore de Hipócrates”. À sua som-bra, segundo a tradição, Hipócrates reunia-se com seus discípulos (Major, ,p. ). É hoje um local de visita obrigatória para os turistas. Não importa saberse é ou não o mesmo plátano do século a.C., à sombra do qual Hipócratesfazia suas preleções. O importante é seu valor simbólico, assinalando o localde nascimento da medicina racional e cientíca que sucedeu à medicina mágicae sacerdotal dos povos primitivos, e uma lembrança do maior legado que nosdeixou Hipócrates e sua escola – os princípios éticos que constituíram as basesda deontologia médica e conferiram dignidade ao médico (Aguirre, ).

    Das raízes do plátano de Hipócrates brota a seiva que alimenta e vivica osseus ramos. Suas folhas se renovam a cada primavera, assim como os sucesso-res de Hipócrates se renovam a cada geração. Os ideais que nela se retratam,porém, permanecem vivos, a indicar os valores perenes da medicina: a buscada verdade, o respeito à vida, o amor à arte médica, a solidariedade humana,o desejo de servir, a conduta digna, o interesse sincero pelos que sofrem.

    A árvore de Hipócrates ( Platano orientalis ).

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    Tal como a árvore que resiste às intempéries e segue vicejante, assimtambém a medicina mantém sua trajetória através dos séculos, vencendoas diculdades e produzindo frutos. Nem sempre a estrada percorrida foiretilínea. Falsos caminhos foram trilhados e, a seguir, abandonados, com acorreção de rumo, no rme propósito de desvendar os mistérios da vida eos enigmas das doenças.

    Nesta longa caminhada da medicina no tempo, muitas foram as doutri-nas e teorias que embasaram a prática médica e muitos foram os episódiosque marcaram a sua história: episódios que reetem a centelha do gênio,que revelam a resistência a toda ideia inovadora, que mostram a faláciado raciocínio lógico e as limitações da inteligência humana; episódios queidenticam as descobertas feitas ao acaso, por intuição ou serendipidade;episódios pitorescos e circunstâncias felizes que concorreram para o pro-gresso da medicina. E também episódios dramáticos oriundos dos atributosnegativos do ser humano, manifestados por incompreensão, inveja, ambição,intolerância, arrogância e prepotência.

    Em todo o percurso houve erros e acertos, avanços e retrocessos. Este livroé uma modesta coletânea de crônicas que relatam alguns desses episódios,seus personagens, e as concepções que nortearam o pensamento médico emcada época. São crônicas isoladas, sem um ordenamento temático, muitas das

    quais já publicadas na imprensa médica ou divulgadas através da internet.Em nenhum momento assumimos a ingênua postura de criticar, combase nos conhecimentos atuais, os fatos, teorias e doutrinas que imperaramno passado. Narramos os acontecimentos de maneira objetiva, sem emitirelementos de juízo, na certeza de que todos os participantes da jornadaderam o melhor de si na época em que viveram, convictos da correção dosfundamentos que balizaram suas decisões e condutas.

    Uma das qualidades essenciais do médico é a humildade para compreen-der o passado e reconhecer que muitas verdades do presente poderão serrenegadas como errôneas no futuro.

    Referências Bibliográcas

    A , J. A. C.El Legado de Hipocrates. Buenos Aires, El Ateneo, .M , R. H.A History of Medicine. Oxford, Blackwell Scientic Publications, .

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    O Símbolo da Medicina*

    Osímbolo tradicional da medicina consiste em um bastão com uma ser-

    pente em volta. Representa o deus da medicina da civilização gregaclássica, Asclépio. Em todas as esculturas e representações, recuperadas nasescavações arqueológicas ou preservadas nas ruínas dos templos a ele dedica-dos, o deus está segurando em uma de suas mãos um bastão com a serpente.

    O simbolismo do bastão e da serpente tem dividido as opiniões dos his-toriadores da medicina. As seguintes interpretações têm sido admitidas:

    Em relação ao bastão: árvore da vida, com o seu ciclo de morte e renas-•cimento; símbolo do poder, como o cetro dos reis e o báculo dos bispos;símbolo da magia, como a vara de Moisés; apoio para as caminhadas,como o cajado dos pastores.Em relação à serpente: símbolo do Bem e do Mal, portanto da saúde•e da doença; símbolo da astúcia e da sagacidade; símbolo do poder de

    Bastão de Asclépio.

    * Conferência de abertura do Congresso Brasileiro de História da Medicina, São Paulo, dez. .

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    to, a quem também se atribuía a invenção da escrita. Em antigas prensasutilizadas para impressão tipográca encontra-se o caduceu de Hermescomo gura decorativa.

    . Outro fato que certamente colaborou para estabelecer a confusão entreos dois símbolos é o de se conferir o mesmo nome decaduceuao bastão deAsclépio, criando-se uma nomenclatura binária de caduceu comercial e cadu-ceu médico. Este erro vem desde o século e persiste até os dias de hoje.

    Em , o exército francês fundou um jornal de cirurgia e de medicinachamadoLe caducée, no qual estão estampadas duas guras estilizadas dosímbolo de Asclépio, com uma única serpente (Friedlander, ).

    Desde então, a palavra caduceu tem sido usada para nomear tanto osímbolo de Hermes como o bastão de Asclépio.

    . O fato que mais contribuiu para a difusão do caduceu de Hermes comosímbolo da medicina foi a sua adoção pelo Exército norte-americano comoinsígnia do seu departamento médico. As justicativas e argumentos para essaadoção são falhas, inconsistentes, e denotam, no mínimo, desconhecimento daiconograa mitológica por parte dos que detinham o poder para promover amudança. As informações que se seguem sobre este episódio foram colhidas emgrande parte no livro de Walter Friedlander,The Golden Wand of Medicine.

    O caduceu fora usado, entre e , como emblema no uniforme de

    trabalho do pessoal de apoio nos hospitais militares dos Estados Unidos paraindicar a condição de não-combatente. Em este emblema foi substituídopor uma cruz vermelha idêntica a da Cruz Vermelha Internacional, fundadana Suíça em . Os ociais médicos usavam nas dragonas as letras M. S.(Medical Staff ). Em , as letras M. S. foram substituídas por M. D. (MedicalDepartment ). O Departamento Médico, contudo, possuía o seu próprio brasãode armas com o bastão de Asclépio, desde (Chevalier e Gheerbrant, ).

    Em março de , os ociais médicos passaram a usar um emblemainspirado na cruz dos cavaleiros de São João, ou cruz de Malta, cujo sim-bolismo em heráldica é o de proteção, altruísmo e honorabilidade.

    Em de março de , o capitão Frederick P. Reynolds, comandan-te da Companhia de Instrução do Hospital Geral em Washington propôssubstituir a cruz de Malta pelo caduceu.

    O general G. Sternberg, chefe do Departamento Médico, deu o seguintedespacho: “A atual insígnia foi adotada após cuidadoso estudo e é atual-

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    mente reconhecida como própria desta corporação. A alteração proposta,portanto, não é aprovada”.

    Em de junho do mesmo ano, o capitão Reynolds endereçou nova cartaao chefe do Departamento, refazendo sua proposta com novos argumentos.Em certo trecho de sua carta diz o seguinte:

    Desejo particularmente chamar a atenção para a conveniência de mudar ainsígnia da cruz para o caduceu e de adotar o marrom como a cor da corporação,em lugar do verde agora em uso. O caduceu foi durante anos a insígnia de nossacorporação e está inalienavelmente associado às coisas médicas. Está sendo usadopor várias potências estrangeiras, especialmente a Inglaterra. Como gura, deve-sereconhecer que o caduceu é muito mais gracioso e signicativo do que o atualemblema (cruz de Malta). O verde não tem lugar na medicina.

    Nesse ínterim, houve mudança na chea do Departamento Médico eesta segunda carta foi recebida pelo general William Henry Forwood, quenão somente aprovou a proposta, como providenciou a confecção da novainsígnia. O desenho elaborado tem sete curvaturas das serpentes, o quetambém revela desconhecimento do caduceu tradicional, que contém, nomáximo, cinco espirais.

    Os argumentos usados pelo capitão Reynolds revelam sua confusãoentre os dois símbolos. O caduceu jamais fora a insígnia da corporação,mas do pessoal de apoio (steward ) dos hospitais. O bastão de Asclépioe não o caduceu é que está historicamente associado à medicina. Tantona Inglaterra, como na França e na Alemanha, os serviços médicos dasforças armadas utilizavam o bastão de Asclépio em seus emblemas e nãoo caduceu de Hermes.

    Finalmente, a cor verde tem sido usada em conexão com a medicina,tanto assim que no Brasil o anel de médico tem, incrustada, uma pedraverde – esmeralda ou imitação.

    O argumento de ordem subjetiva de que a gura do caduceu tem estéticamais agradável que a cruz de Malta ou o bastão de Asclépio é irrelevante,porquanto não diz respeito ao signicado de tais símbolos.

    Deste modo, o caduceu foi implantado e se mantém até hoje comoinsígnia do Corpo Médico do Exército norte-americano, o que muito

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    contribuiu, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial ( - ),para a sua difusão, dentro e fora dos Estados Unidos, como símboloda medicina (Friedlander, ).

    A Marinha norte-americana adotou igualmente o caduceu como emble-ma de seu corpo médico, ao contrário da Força Aérea, que mantém em seuemblema o bastão de Asclépio.

    Os Serviços de Saúde Pública dos Estados Unidos, por sua vez, adotaram

    um antigo emblema do Serviço Médico da Marinha, no qual o caduceu se cruzacom uma âncora e cujo simbolismo anterior era o do comércio marítimo.O primeiro comentário desfavorável à decisão do Departamento Médico

    norte-americano apareceu sob a forma de editorial em nal de julho de na publicaçãoMedical News. Desde então, de tempos em tempos, surgemartigos na imprensa médica, ora justicando, ora condenando o uso docaduceu como símbolo da medicina.

    Em , o tenente-coronel McCulloch, bibliotecário do DepartamentoMédico, fez o seguinte comentário: “Eu penso que, neste país, nós pres-tamos muito pouca atenção ao lado histórico e humanístico das coisas.O caduceu de Mercúrio agora em uso na gola da blusa do uniforme doCorpo Médico não tem qualquer signicado médico” (McCulloch Jr., ,pp. - ).

    Fielding Garrison, notável historiador da medicina nos Estados Unidose também tenente-coronel do Corpo Médico no período de a ,

    Caduceu de Hermes.

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    procurou defendera posterioria adoção do caduceu pelo DepartamentoMédico a que servia. Inicialmente, alegou que se tratava de um símbolo admi-nistrativo para caracterizar os militares não combatentes, reconhecendo queo símbolo autêntico da medicina era o bastão de Asclépio. Posteriormente,procurou justicar o uso do caduceu como símbolo médico com base nosachados arqueológicos da civilização mesopotâmica.

    Nas escavações realizadas em Lagash fora encontrado um vaso talhadoem pedra sabão, de cor verde, dedicado pelo governador Gudea ao deusNiginshzida, ligado à medicina. Neste vaso há duas serpentes dispostasde maneira semelhante a do caduceu de Hermes. Garrison refere-se à -gura comocaduceu babilônico, que teria precedido o caduceu da civili-zação grega (Garrison, , pp. - ).

    A verdade é que toda a cultura médica ocidental baseia-se na civili-zação grega. Todos os aspectos conceituais, técnicos e éticos da prossãomédica, tiveram seu berço na Grécia com a escola hipocrática. Foi naGrécia que a medicina deixou de ser mágico-sacerdotal para apoiar-se naobservação clínica e no raciocínio lógico. O símbolo mítico de Asclépio,o bastão com uma única serpente, representa a medicina grega em suasorigens e nenhum outro símbolo, muito menos o caduceu de Hermes,deverá substituí-lo.

    Em , S. L.Tyson escreveu um artigo na revistaScientic Monthly,no qual dizia: “o errôneo símbolo da prossão médica, é, na realidade, o dodeus dos ladrões” (Tyson, ). Em resposta, Garrison voltou a armarque o caduceu fora adotado no Departamento Médico do Exército comosímbolo dos não-combatentes e considerou a questão como “uma fútil con-trovérsia” (Friedlander, ).

    O Army Medical Department acolhe a seguinte explicação para a adoçãodo caduceu de Hermes como símbolo da medicina: “Com suas raízes na mi-tologia, o caduceu tem sido historicamente o emblema dos médicos, simboli-zando conhecimento, sabedoria, presteza e habilidade” (Internet, ).

    Parece evidente a confusão entre o Hermes da mitologia grega tradicionale o Hermes Trismegistus, o deus Thoth da mitologia egípcia.

    A Associação Médica Americana manteve o símbolo de Asclépio emseu emblema, assim como a maioria das sociedades médicas regionaisnorte-americanas de caráter cientíco ou prossional. De associações

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    médicas estaduais que utilizam a serpente em seus respectivos emblemas, usam o bastão de Asclépio. São elas as dos estados de Alabama, Califórnia,Flórida, Geórgia, Idaho, Illinois, Kansas, Kentucky, Massachusetts, Michigan,Mississippi, Missouri, Nebraska, New Hampshire, Novo México, NovaYork, Dakota do Norte, Oklahoma, Oregon, Pensilvânia, Utah, Wisconsine Wyoming. O caduceu é usado pelas associações dos estados de Maine eVirgínia Ocidental.

    A Organização Mundial de Saúde, fundada em , como não poderiadeixar de ser, adotou o símbolo de Asclépio. A Associação Médica Mundial,reunida em Havana em , adotou um modelo padronizado do símbolode Asclépio para uso dos médicos civis.

    As organizações médicas de caráter prossional e de âmbito nacionalde vários países, que possuem emblema com serpente, adotam, em suagrande maioria, o símbolo de Asclépio, a começar pela Associação MédicaAmericana, já citada. Entre as associações que assim procedem citaremosas do Brasil, Canadá, Costa Rica, Inglaterra, França, Alemanha, Suécia,Dinamarca, Itália, Portugal, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, paísesdo Sudeste Asiático, China e Taiwan.

    Sociedades de história da medicina, sociedades cientícas de especiali-dades médicas, faculdades de medicina, revistas médicas e até empresas de

    seguro-saúde, como a aliança Blue Cross–Blue Shield, utilizam o símbolode Asclépio.É óbvio que todo símbolo pode ser estilizado, porém não pode ser subs-

    tituído por outro. Como estilizações originais do símbolo de Asclépio po-demos citar os seguintes exemplos:

    o da Associação Paulista de Medicina e o da Academia Brasileira de•Medicina Militar, em que o bastão toma a conguração de uma espada;o da Escola Paulista de Medicina, em que o bastão é o próprio tronco•de uma árvore;o da Sociedade Espanhola de Medicina do Trabalho, em que o bastão•assume a forma de uma chave-inglesa como instrumento de trabalho;o da Associação Brasileira de Educação Médica, em que o bastão é uma•tocha, simbolizando a luz do saber;o da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em que a serpente assume•o formato de um nó cirúrgico.

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    Algumas poucas organizações médicas de âmbito nacional utilizam ocaduceu de Hermes em seus emblemas, ou em sua forma original, ou mo-dicado, tais como as da Coreia, Hong Kong e ilha de Malta.

    O caduceu de Hermes, estilizado, foi também adotado pelo ServiçoMédico da Royal Air Force, da Inglaterra, divergindo do Serviço Médicodo Exército, que mantém seu clássico emblema com o símbolo de Asclépiodesde .

    Variantes do caduceu têm sido igualmente utilizadas, resultantes de duasalterações introduzidas no modelo original: a primeira delas consiste emeliminar uma das serpentes, mantendo as asas, tal como nos emblemasda American Gastroenterological Association e da Facoltà di Medicina eChirurgia, de Florença; a segunda, conservando as duas serpentes e elimi-nando as asas, como nos emblemas da Società Italiana di Medicina Internae da Associação Médica da Malásia.

    Nos Estados Unidos, onde é mais difundido o caduceu de Hermes comopretenso símbolo da medicina, o mesmo é usado em algumas poucas uni-versidades e sociedades médicas, sendo mais comum o seu emprego emhospitais e instituições públicas e privadas ligadas à saúde.

    Segundo um levantamento realizado até , o caduceu é usadoprincipalmente pelas empresas que gerenciam planos de saúde naquele

    país, chegando a % de quantas utilizam a serpente em seus emblemas(Friedlander, ).No dizer de Geelhoed, o caduceu tornou-se um símbolo evocativo da

    situação atual da medicina, em que os aspectos econômicos e comerciaisda saúde se sobrepõem aos aspectos humanos, o que é inaceitável. Paraaqueles que desejarem preservar os ideais da tradição médica só há umsímbolo verdadeiro, que é o de Asclépio.

    Como sugeriu Tyson, o símbolo de Hermes poderia ser usado, no má-ximo, em carros funerários, já que uma das atribuições de Hermes era a deconduzir os mortos à sua morada subterrânea (Tyson, ). Fora dessecontexto, o caduceu de Hermes, como símbolo médico, é uma heresia.

    As críticas desfavoráveis ao seu uso como símbolo da medicina persis-tem até o presente, como demonstram os comentários a seguir, veiculados,respectivamente, em , e .

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    ou por má-fé, passou a usar o símbolo do comércio como ilustração quandose refere a notícias médicas” (Lázaro da Silva, , pp. - ).

    Também ossoftwares destinados a hospitais e consultórios médicos, impor-tados dos Estados Unidos, ou neles inspirados, muito têm contribuído para apropagação do caduceu, ao utilizá-lo como identicador de sua destinação.

    Lamentavelmente, o caduceu como símbolo da medicina já pode serencontrado em nosso país em revistas e sociedades médicas de fundaçãomais recente, emsitesda internet dedicados à medicina, e até mesmo emimpressos de algumas universidades.

    Cremos ser necessária uma campanha de esclarecimento, sobretudo nasfaculdades de medicina, junto aos estudantes do curso de graduação, no sen-tido de alertá-los sobre o único e verdadeiro símbolo da medicina: o bastão deAsclépio com uma só serpente. O caduceu de Hermes, símbolo do comércio,deve ser visto como um símbolo impróprio aos nobres ideais da medicina.

    Referências Bibliográcas*

    B , J. S.Mitologia Grega. a ed., Petrópolis, Vozes, , vol. .C , A.Histoire de la médecine. Paris, Payot, .C , J. & G , A.Dicionário de Símbolos. a ed., Rio de Janeiro, José

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    mar. .E , E. J. & E , L.Asclepius: Collection and Interpretation of

    Testimonies. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, .ENCYCLOPAEDIA BRITTANNICA. Chicago, .E , A. & M , A.Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des

    mots. a ed., Paris, Ed. Klincksieck, .F J ., J. W. “The Serpent as a Medical Emblem”.Marquette Medical Review, ,

    pp. - , .F , G.The Egyptian Hermes. New Jersey, Princeton University Press, .F , W. J.The Golden Wand of Medicine. Westport, Greenwood Press, .

    * Das fontes bibliográcas citadas, merece destaque o livro de Walter J. Friedlander,TheGolden Wand of Medicine,cuja leitura recomendamos a todos os interessados no assunto.

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    — —

    G , F. H. “The Babylonian Caduceus”.Military Surgeon, , pp. - , .G , G. W. “The Caduceus as a Medical Emblem: Heritage or Heresy?”.Southern

    Medical Journal, , pp. - , .

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    American College of Physicians, .I – Medical corps. Disponivel em http://usmilitary.about.com Acesso em o

    out. .K , C.Asklepios: Archetypal Image of the Physician’s Existence. London, Thames

    and Hudson, .L , C. “The Healing Serpent: The Snake in Medical Iconography”.The Ulster

    Medical Journal , , pp. - , .L S , A. “Símbolo da Medicina”.Boletim Informativo do Colégio Brasileiro

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    the American Medical Association, , pp. - , .

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    O Juramento de Hipócrates*

    Em uma pequena ilha do mar Egeu, na Grécia, próximo ao litoral da

    Ásia Menor – a ilha de Cós – oresceu no século a.C. uma escolamédica destinada a mudar os rumos da medicina, sob a inspiração de umpersonagem que se tornaria, desde então, o paradigma de todos os médi-cos: Hipócrates.

    A escola hipocrática separou a medicina da religião e da magia, afastouas crenças em causas sobrenaturais das doenças e fundou os alicerces damedicina racional e cientíca. Ao lado disso, deu um sentido de dignidadeà prossão médica, estabelecendo as normas éticas de conduta que devemnortear a vida do médico, tanto no exercício prossional, como fora dele.

    Na coleção de livros contemporâneos da escola hipocrática, conhe-cida comoCorpus Hippocraticum, há sete livros que tratam exclusiva-mente da ética médica. São eles: Juramento, Da Lei, Da Arte, Da Antiga

    * Reproduzido daRevista Paraense de Medicina, vol. ( ), pp. - , .

    Hipócrates, visto por um artista bizantino,c. .

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    Os demais manuscritos conhecidos do juramento de Hipócrates sãotodos dos séculos e . Embora sejam equivalentes, vericam-se mínimasdiferenças de redação.

    Há atualmente na ilha de Cós uma fundação, a Fundação HipocráticaInternacional de Cós, que é, ao mesmo tempo, museu e centro de pesquisassobre a medicina hipocrática. Nesta fundação, preserva-se um texto idênticoao que se encontra no livroAncient Medicine, de Edelstein, que, por sua vez,o transcreveu da obraCorpus Medicorum Graecorum, editada em Berlimpor Heiberg, em (Edelstein, , p. ).

    Traduções do Texto Original

    A partir dos manuscritos já referidos, foram feitas traduções do juramentode Hipócrates em latim, hebraico, árabe e nos demais idiomas.

    Duas traduções em inglês e duas em francês tornaram-se clássicas e têmservido de referência para as versões em outros idiomas.

    As versões clássicas em inglês são a de Francis Adams, de , transcritana coleção Harvard Classic, vol. , de , e a de W. H. S. Jones, que seencontra na coleção Loeb Classical Library, desde (Adams, ; Jones,

    , pp. - ). As versões em francês são a de Littré, de , e a de

    Daremberg, de (Littré, , p. ; Daremberg, , pp. - ).Transcrevemos a seguir a tradução de Adams, em inglês, e a de Littré,em francês.

    The oath by HippocratesI swear by Apollo the physician, and Aesculapius, and Health, and All-heal,

    and all the gods and goddesses, that, according to my ability and judgment, I willkeep this Oath and this stipulation – to reckon him who taught me this Art equallydear to me as my parents, to share my substance with him, and relieve his necessi-ties if required; to look upon his offspring in the same footing as my own brothers,and to teach them this art, if they shall wish to learn it, without fee or stipulation;and that by precept, lecture, and every other mode of instruction, I will impart aknowledge of the Art to my own sons, and those of my teachers, and to disciplesbound by a stipulation and oath according to the law of medicine, but to noneothers. I will follow that system of regimen which, according to my ability and

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    Reprodução do livro de Edelstein,Ancient Medicine.

    judgment, I consider for the benet of my patients, and abstain from whatever isdeleterious and mischievous. I will give no deadly medicine to any one if asked,nor suggest any such counsel; and in like manner I will not give to a woman apessary to produce abortion. With purity and with holiness I will pass my life andpractice my Art. I will not cut persons laboring under the stone, but will leavethis to be done by men who are practitioners of this work. Into whatever houses Ienter, I will go into them for the benet of the sick, and will abstain from every vol-untary act of mischief and corruption; and, further from the seduction of femalesor males, of freemen and slaves. Whatever, in connection with my professionalpractice or not, in connection with it, I see or hear, in the life of men, which oughtnot to be spoken of abroad, I will not divulge, as reckoning that all such shouldbe kept secret. While I continue to keep this Oath unviolated, may it be granted tome to enjoy life and the practice of the art, respected by all men, in all times! Butshould I trespass and violate this Oath, may the reverse be my lot.

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    Serment d’Hippocrate Je jure, par Apollon, médecin, par Esculape, par Hygie et Panacée, par tous

    les dieux et toutes les déesses, les prenant à témoin, que je remplirai, suivant mes

    forces et ma capacité, le serment et l’engagement suivants: je mettrai mon maîtrede médecine au même rang que les auteurs de mes jours, je partagerai avec lui monavoir, et, le cas échéant, je pourvoirai à ses besoins; je tiendrai ses enfants pour desfrères, et, s’ils désirent apprendre la médecine, je la leur enseignerai sans salaire niengagement. Je ferai part des préceptes, des leçons orales et du reste de l’enseigne-ment à mes ls, à ceux de mon maître, et aux disciples liés par un engagement et unserment suivant la loi médicale, mais à nul autre. Je dirigerai le régime des maladesà leur avantage, suivant mes forces et mon jugement, et je m’abstiendrai de tout malet injustice. Je ne remettrai à personne du poison, si on m’en demande, ni ne pren-drai l’initiative d’une pareille suggestion; semblablement, je ne remettrai à aucunefemme un pessaire abortif. Je passerai ma vie et j’exercerai mon art dans l’innocen-ce et la pureté. Je ne pratiquerai pas l’opération de la taille, je la laisserai aux gensqui s’en occupent. Dans quelque maison que j’entre, j’y entrerai pour l’utilité desmalades, me préservant de tout méfait volontaire et corrupteur, et surtout de la sé-duction des femmes et des garçons, libres ou esclaves. Quoi que je voie ou entendedans la société pendant l’exercice ou même hors de l’exercice de ma profession, jetairai ce qui n’a jamais besoin d’être divulgué, regardant la discrétion comme un

    devoir en pareil cas. Si je remplis ce serment sans l’enfreindre, qu’il me soit donnéde jouir heureusement de la vie et de ma profession, honoré à jamais parmi les hom-mes; si je le viole et que je me parjure, puissè-je avoir un sort contraire!

    Em português há várias traduções, a maioria baseada nos textos clás-sicos em inglês ou francês, e outras feitas diretamente do texto grego, hojefacilmente acessível em reproduções impressas.

    Transcrevemos a tradução em português de Bernardes de Oliveira, autordo livro A Evolução da Medicina até o Início do SéculoXX, baseada notexto inglês de Jones (Bernardes de Oliveira, , p. ):

    Juramento de Hipócrates Juro por Apolo Médico, por Esculápio, por Higeia, por Panaceia e por todos

    os deuses e deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com meusconhecimentos e meu critério, este juramento: Considerar meu mestre nesta arte

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    igual aos meus pais, fazê-lo participar dos meios de subsistência que dispuser,e, quando necessitado com ele dividir os meus recursos; considerar seus descen-dentes iguais aos meus irmãos; ensinar-lhes esta arte se desejarem aprender, sem

    honorários nem contratos; transmitir preceitos, instruções orais e todos outrosensinamentos aos meus lhos, aos lhos do meu mestre e aos discípulos que secomprometerem e jurarem obedecer a Lei dos Médicos, porém, a mais ninguém.Aplicar os tratamentos para ajudar os doentes conforme minha habilidade e mi-nha capacidade, e jamais usá-los para causar dano ou malefício. Não dar venenoa ninguém, embora solicitado a assim fazer, nem aconselhar tal procedimento. Damesma maneira não aplicar pessário em mulher para provocar aborto. Em purezae santidade guardar minha vida e minha arte. Não usar da faca nos doentes comcálculos, mas ceder o lugar aos nisso habilitados. Nas casas em que ingressarapenas socorrer o doente, resguardando-me de fazer qualquer mal intencional,especialmente ato sexual com mulher ou homem, escravo ou livre. Não relatar oque no exercício do meu mister ou fora dele no convívio social eu veja ou ouça eque não deva ser divulgado, mas considerar tais coisas como segredos sagrados.Então, se eu mantiver este juramento e não o quebrar, possa desfrutar honrariasna minha vida e na minha arte, entre todos os homens e por todo o tempo; porém,se transigir e cair em perjúrio, aconteça-me o contrário.

    Em todos os idiomas, as traduções oferecidas diferem entre si em algunsaspectos relativos à linguagem empregada, embora mantenham todas onúcleo central dos preceitos que compõem o juramento.

    Analisando-se o teor de várias traduções, vericamos que as diferençasexistentes entre elas se encontram principalmente em algumas passagens eno signicado de determinadas palavras gregas, que não encontram equiva-lentes em outros idiomas ou, o que é mais comum, na sua polissemia, quepermite um leque de opções na língua de chegada.

    Selecionamos dez das mais acreditadas versões em português, sendo oitodo Brasil e duas de Portugal, para um estudo comparativo de como aquelaspalavras foram traduzidas. As versões utilizadas foram as seguintes:

    Brasil: Flamínio Fávaro,• Livro de Medicina Legal;Ivolino de Vasconcelos,Instituto Brasileiro de História da Medicina;a tradução de René Lacletepara a História da Medicina, de Arturo Castiglioni; Bernardes de Oliveira,A Evolução da Medicina até o Início do SéculoXX ; Otacílio Carvalho

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    Lopes,A Medicina no Tempo;Alexandre Correa,Revista Paulista deMedicina (abr. ); Conselho Regional de Medicina do Estado de SãoPaulo (Cremesp); Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).Portugal: tradução baseada em Edelstein e F. Guerra; tradução baseada•em Littré.O primeiro exemplo encontramos nas palavrasdynamin kaí krísin, ex-

    pressão empregada em duas passagens, uma no primeiro parágrafo e outrano terceiro parágrafo do texto original em grego.

    No primeiro parágrafo:

    Expressão utilizada Número de traduções poder e razão

    habilidade e julgamento poder de discernimento conhecimento e critério força e aptidão força e inteligência capacidade e discernimento

    No terceiro parágrafo:

    Expressão utilizada Número de traduções habilidade e julgamento saber e razão autoridade e discernimento habilidade e capacidade força e juízo poder e entendimento força e inteligência melhor parecer

    O segundo exemplo temos na expressãodiaitémasi te khrésomai, queabre o terceiro parágrafo.Diaite, em grego, tanto signica ‘‘dieta’’ como‘‘regime de vida’’.

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    Expressão utilizada Número de traduções pessário abortivo medicação abortiva

    remédio abortivo substância abortiva (sem referência)

    Outra passagem que apresenta diferenças marcantes nas várias versõesé a do antepenúltimo parágrafo, onde se lê no original grego:aphrodisionérgon epi te gynaikeion somáton kaí andreion... Nas dez versões em portu-guês foram usadas as seguintes traduções:

    Expressão utilizada Número de traduções

    sedução de mulheres e de homens prazeres do amor com mulheres ou com homens sedução de mulheres e homens sedução de mulheres e de rapazes sedução, sobretudo os prazeres do amor contatos sexuais com mulheres e homens comércio voluptuoso, seja com mulher ou homem

    ato sexual

    Vemos que todas as versões citadas afastaram-se da tradução literal. Aexpressãoaphrodision érgon tem o sentido de “ato erótico”, e gynaikeionsomáton kaí andreion,“corpo de mulher e de homem”. A tradução maispróxima do texto seria “ato libidinoso em corpo de mulher ou de homem”.O ato libidinoso difere de “sedução” e de “prazeres do amor” e nem sempreculmina com o “ato sexual”. Pode ser praticado com ou sem participaçãoda outra pessoa.

    Das traduções citadas, a que mais se aproxima do texto original é “co-mércio voluptuoso, seja com mulher ou homem”. “Comércio”, no entanto,subentende o concurso de ambas as partes, enquanto “ato” pode ser unila-teral. Em traduções francesas, usa-se a expressãoentreprise voluptuese. Emuma versão em espanhol, o tradutor se refere tão somente à “seducción delas mujeres jóvenes, libres o esclavas”.

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    No penúltimo parágrafo, a expressãobíon anthrópon foi traduzida doseguinte modo:

    Expressão utilizada Número de traduções vida dos homens comércio da vida vida do homem convívio social convívio da sociedade (sem referência)

    Estas diculdades e variações de tradução são comuns a todos os idiomas.O importante é que o tradutor consiga transmitir a ideia contida no texto ori-ginal de forma expressiva e com a máxima exatidão. O juramento é simbólicoe impregnado de sacralidade, qualquer que seja a sua tradução. O importante éo compromisso que o recém-formado assume perante sua própria consciênciae a sociedade de cumprir os preceitos éticos contidos no juramento.

    Formas Resumidas do Juramento

    Textos abreviados do juramento têm sido utilizados em diferentes países eidiomas, tendo em vista a extensão do texto original para leitura duranteuma solenidade festiva como a da conclusão do curso médico.

    Na França, é corrente um modelo abreviado conhecido como juramentode Montpellier, certamente oriundo de uma das mais antigas e celebradasescolas médicas da França – a de Montpellier. O texto original em francêsdeste juramento tem a seguinte redação:

    En présence des maîtres de cette école et de mes condisciples, je prometset je jure d’être dèle aux lois de l’Honneur et de la Probité dans l’exercice dela Médecine.

    Je donnerai mes soins à l’indigent et n’exigerai jamais un salaire au-dessus demon travail. Admis dans l’intérieur des maisons, mes yeux ne verront pas ce quis’y passe, ma langue taira les secrets qui me seront conés et mon état ne servirani à corrompre les moeurs, ni à favoriser le crime.

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    Reconnaissant envers mes maîtres, je tiendrai leurs enfants et ceux de mesconfrères pour des frères, et s’ils devaient apprendre la Médecine ou recourir à messoins, je les instruirais ou les soignerais sans salaire ni engagement.

    Si je remplis ce serment sans l’enfreindre, qu’il me soit donné de jouir heureu-sement de ma vie et de ma profession, honoré à jamais parmi les hommes; si je leviole et que je me parjure, puissé-je avoir un sort contraire.

    Posteriormente surgiu um modelo ainda mais sintético com o seguintetexto (Carpenter e Mangin-Lazarus, , pp. - ):

    En présence des Maîtres de cette Faculté, de mes chers condisciples et selon latradition d’Hippocrate, je promets et je jure d’être dèle aux lois de l’honneur etde la probité dans l’exercice de la Médecine.

    Je donnerai mes soins gratuits à l’indigent, et n’exigerai jamais un salaire audessus de mon travail. Admis dans l’intérieur des maisons, mes yeux ne verront pasce qui s’y passe, ma langue taira les secrets qui me seront conés et mon état neservira pas à corrompre les moeurs ni à favoriser le crime. Respectueux et recon-naissant envers mes Maîtres, je rendrai à leurs enfants l‘instruction que j’ai reçuede leurs pères.

    Que les hommes m’accordent leur estime si je suis dèle à mes promesses. Que

    je sois couverte d’opprobre et méprisé de mes confrères si j’y manque.

    Observamos que no modelo de Montpellier, um novo compromisso foiintroduzido: o de atender gratuitamente os pobres e o de ser moderado nacobrança dos honorários. Por sua vez, outros preceitos enumerados no textooriginal não foram mencionados, cando subentendidos nas expressões ge-néricas de “ser el às leis da honra e da probidade no exercício da medicina”e de “não corromper os costumes, nem favorecer o crime”.

    Na língua inglesa também se encontram formas abreviadas do juramentoque não seguem exatamente a mesma linha do modelo francês. Vamos citar,como exemplo, o texto usado no New York Medical College:

    I do solemnly swear by whatever I hold most sacred, that I will be loyal to theprofession of medicine and just and generous to its members.

    That I will lead my life and practice my Art in uprightness and honor.

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    Nunca me servirei da prossão para corromper os costumes ou favorecer ocrime. Se eu cumprir este juramento com delidade, goze eu, para sempre, a minhavida e a minha arte, com boa reputação entre os homens.

    Se o infringir ou dele afastar-me, suceda-me o contrário.Comparando-se as duas versões, vê-se que a única diferença consiste na

    substituição, no segundo parágrafo, da locução pronominal “o que” pelalocução “os quais”.

    Na primeira versão, “o que” refere-se ao enunciado na frase anterior, ouseja, expressa a intenção do médico de guardar sigilo em relação aos “se-gredos que me forem revelados”. Na segunda versão, a locução pronominal“os quais”, no plural, tem como antecedente “os segredos que me foremrevelados”. Ora, não faz o menor sentido fazer “dos segredos que me foremrevelados” “preceito de honra”. É fora de dúvida que esta construção estágramaticalmente incorreta e deve ser abandonada em favor da primeira.

    O Juramento de Hipócrates nas Escolas Médicas Brasileiras

    No sentido de vericar como se situa na atualidade o juramento de Hipócratesem nosso país, realizamos uma pesquisa junto às escolas médicas brasileiras,solicitando que nos fornecessem o texto utilizado na solenidade de forma-

    tura do curso médico. Enviamos uma carta-circular, em nome da SociedadeBrasileira de História da Medicina, a faculdades e recebemos respostade . Destas, três não especicaram o texto em uso, razão pela qual serãoincluídas nesta análise somente faculdades.

    O resultado desta pesquisa evidenciou que apenas três das usam ojuramento por extenso em sua forma original e que a maioria utiliza o mo-delo simplicado de uso corrente, conforme o quadro abaixo:

    Modalidades de texto em uso Faculdades %

    Texto simplicado , Mais de um texto , Texto por extenso , Textos próprios , Texto por extenso, modicado , Declaração de Genebra ,

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    Das seis faculdades que utilizam mais de um texto, cinco incluem a for-ma simplicada, que é, assim, adotada em faculdades ( , %). Destas,apenas nove ( , %) usam a redação correta com a locução pronominal“o que”, enquanto dezoito ( , %) empregam a locução pronominal “osquais” e uma ( , %), “aos quais”.

    “Atualização” do Juramento de Hipócrates

    No século , o progresso cientíco e o avanço tecnológico da medicina,aliados à evolução do pensamento e dos costumes, trouxeram novos concei-tos e novos aspectos relativos à ética médica, e a validade do juramento deHipócrates passou a ser questionada, se não em seu signicado simbólico,pelo menos em seu conteúdo. Surgiram, então, numerosas propostas no sen-tido de “atualizar” ou “modernizar” o texto do juramento. Essa tendênciase acentuou nos últimos anos.

    As alterações sugeridas visam, principalmente, a compatibilizá-lo coma bioética e adaptá-lo à problemática decorrente da prática médica atual,com o objetivo de evitar a conivência dos médicos com as falhas dos atuaissistemas de saúde, sempre que houver prejuízo para os doentes, e com osinteresses nanceiros da indústria farmacêutica e de equipamentos médicos,

    que procuram inuenciar a conduta do médico.As modicações introduzidas contemplam a autonomia do paciente;justiça social e mercantilização da medicina; afrouxam as obrigações dos dis-cípulos para com seus mestres; substituem a proibição por regulamentaçãodo aborto; e suprimem o item referente à operação de calculose vesical.

    Deixando de lado as inúmeras propostas de caráter pessoal, listamosapenas aquelas oriundas de entidades de maior representatividade. As prin-cipais foram:

    . Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial ( )

    . Texto de Brighton, Estados Unidos ( )

    . Código de Deontologia Médica da França ( )

    . British Medical Association ( )

    . Carta do Prossionalismo Médico ( )A Declaração de Genebra, a mais antiga e conhecida de todas, tem sido

    utilizada em vários países na solenidade de recepção aos novos médicos

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    inscritos na respectiva Ordem ou Conselho de Medicina. A versão clássicaem língua portuguesa tem a seguinte redação:

    Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade.Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão.Praticarei a minha prossão com consciência e dignidade.A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.Respeitarei os segredos a mim conados.Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da pro-

    ssão médica.Meus colegas serão meus irmãos.Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou

    sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes.Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo

    sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leisda natureza.

    Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra.

    Em , a Assembleia Geral da Associação Médica Mundial mo-dicou ligeiramente o texto. Sua versão em português cou com a se-

    guinte redação:

    No momento de me tornar um prossional médico:Prometo solenemente dedicar a minha vida a serviço da Humanidade.Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos.Exercerei a minha arte com consciência e dignidade.A saúde do meu paciente será minha primeira preocupação.Mesmo após a morte do paciente, respeitarei os segredos que a mim fo-

    ram conados.Manterei, por todos os meios ao meu alcance, a honra da prossão médica.Os meus colegas serão meus irmãos.Não deixarei de exercer meu dever de tratar o paciente em função de

    idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalida-de, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições sociais oueconômicas.

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    Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais farei uso dos meus conheci-mentos médicos contra as leis da Humanidade.

    Faço essas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra.

    O texto de Brighton foi elaborado por um grupo de eticistas, médicose não médicos, reunidos em Brighton, Estados Unidos, em (Value ofLife Committee Inc., s.d.).

    O texto do Código de Deontologia Médica da França foi estabelecidoem lei pelo decreto n. - , artigo , de de setembro de (OrdreNational des Médecins, s.d.).

    O texto proposto pela British Medical Association em dá ênfaseà autonomia do paciente, admite o aborto, desde que permitido em lei epraticado dentro de princípios éticos, e inclui o consentimento esclarecidodo paciente para a sua participação em qualquer investigação cientíca(Gersten Institute, s.d.).

    O último documento citado, a Carta do Prossionalismo Médico, nãose destina a substituir o juramento de Hipócrates; é, antes, um verdadeirocódigo de conduta do médico. Foi elaborado em conjunto por diversasinstituições médicas norte-americanas e a Federação Europeia de MedicinaInterna, tendo sido divulgado em fevereiro de simultaneamente nas

    revistasLancet e Annals of Internal Medicine. Compõe-se de três princípiose dez compromissos, que se acham resumidos nos seguintes itens:

    Princípios. Prioridade ao bem-estar do paciente. Autonomia do paciente. Justiça social

    Compromissos. Competência prossional. Sinceridade com os pacientes. Sigilo prossional. Apropriado relacionamento com os pacientes. Qualidade do atendimento. Facilidade de acesso aos cuidados médicos

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    . Distribuição justa de recursos nanceiros alocados à saúde

    . Atualização cientíca

    . Integridade nos conitos de interesse. Responsabilidade prossional

    A pergunta que se impõe é: deve o juramento de Hipócrates ser modi-cado ou substituído por outro documento?

    Em foi feita uma pesquisa na classe médica brasileira, por amos-tragem, sobre se o juramento de Hipócrates deveria ou não ser modicado(Rodrigues, ). O resultado foi o seguinte:

    Deve permanecer inalterado %Deve ser modicado %Deve ser ignorado %

    Também pensamos como a maioria. Julgamos que o juramento deHipócrates não deve ser “atualizado” nem “modernizado”, e sim comple-mentado por outros instrumentos hábeis, como declarações, regulamentose códigos de Deontologia Médica.

    Vimos que atualmente se dá preferência à versão simplicada do juramen-

    to que não desce a normas especícas, porém mantém, em linhas gerais, oespírito que presidiu a sua criação e os fundamentos da ética médica, o que otorna válido em qualquer época. Atualizá-lo seria violentá-lo. O juramento deHipócrates é uma obra de arte e sabedoria, só comparável às mais altas criaçõesda espírito humano e, por isso mesmo, deve ser considerado patrimônio dahumanidade e permanecer intocável, como um marco na história da medicina.

    Referências Bibliográcas

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    delimitam o espaço habitável. Na visão de Ezequiel aparecem quatro ani-mais com quatro faces e quatro asas. A cada passagem do Apocalipse surgeo número quatro: são quatro cavaleiros, quatro pragas principais, quatroanjos, quatro emblemas das tribos de Israel, quatro muralhas de Jerusalém,quatro cantos da Terra.

    O cruzamento de um meridiano com um paralelo divide a Terra emquatro partes. Por isso encontramos na história referências aos quatro ma-res, quatro reinos, quatro ventos, quatro partes do mundo. Quatro são ospontos cardiais: norte, sul, leste, oeste; quatro são as estações do ano: verão,outono, inverno, primavera; quatro são as fases da lua: cheia, minguante,nova e crescente; quatro são as fases da vida: infância, juventude, maturi-dade e velhice.

    Na psicanálise o número quatro se revela no seu simbolismo. Jung re-conhece no quaternário o arquétipo da totalidade dos processos psíquicosconscientes e inconscientes e enumera quatro funções fundamentais da cons-ciência: o pensamento, o sentimento, a intuição e a sensação (Chevalier eGheerbrant, ), e Mira y Lopez se refere aos quatro gigantes da alma:o medo, a ira, o amor e o dever.

    É natural, portanto, que os lósofos gregos da escola pitagórica tenhamimaginado o universo formado por quatro elementos: terra, ar, fogo e água, do-

    tados de quatro qualidades, opostas aos pares: quente e frio, seco e úmido.A transposição da estrutura quaternária universal para o campo da bio-logia deu origem à concepção dos quatro humores do corpo humano. Oconceito de humor (khymós, em grego), na escola hipocrática, era de uma subs-tância existente no organismo, necessária à manutenção da vida e da saúde.Inicialmente, fala-se em número indeterminado de humores. Posteriormente,verica-se a tendência de simplicação, reduzindo-se o número de humo-res para quatro, com seu simbolismo totalizador: o sangue, a euma, a bileamarela e a bile negra, conforme se lê no livroPeri physion anthropoy(DaNatureza do Homem):

    O corpo do homem contém sangue, euma, bile amarela e bile negra – esta é anatureza do corpo, através da qual adoece e tem saúde. Tem saúde, precisamente,quando estes humores são harmônicos em proporção, em propriedade e em quan-tidade, e sobretudo quando são misturados. O homem adoece quando há falta ou

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    excesso de um desses humores, ou quando ele se separa no corpo e não se une aosdemais. (Cairus, )

    Admite-se que a crença na existência de uma bile negra tenha sido fruto da

    observação clínica nos casos de hematêmese, melena e hemoglobinúria.Segundo a doutrina dos quatro humores, o sangue é armazenado no

    fígado e levado ao coração, onde se aquece, sendo considerado quente eúmido; a euma, que compreende todas as secreções mucosas, provém docérebro e é fria e úmida por natureza; a bile amarela é secretada pelo fígadoe é quente e seca, enquanto a bile negra é produzida no baço e no estômagoe é de natureza fria e seca.

    O número quatro no macro e no microcosmo.

    A doutrina dos quatro humores encaixava-se perfeitamente na concepçãolosóca da estrutura do universo. Estabeleceu-se uma correspondência entreos quatro humores com os quatro elementos (terra, ar, fogo e água), comas quatro qualidades (frio, quente, seco e úmido) e com as quatro estaçõesdo ano (inverno, primavera, verão e outono).

    Bile Amarela

    Colérico M e l an c ó l i c o

    S a n g u

    í n e o

    Fleumático

    BileNegraSangue

    Fleuma

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    O estado de saúde dependeria da exata proporção e da perfeita misturados quatro humores, que poderiam alterar-se por ação de causas externasou internas. O excesso ou deciência de qualquer dos humores, assim comoo seu isolamento ou miscigenação inadequada, causariam as doenças como seu cortejo sintomático.

    Segundo a concepção hipocrática da patologia humoral, quando umapessoa se encontra enferma, há uma tendência natural para a cura; a natureza(Physis) encontra meios de corrigir a desarmonia dos humores (discrasia),restaurando o estado anterior de harmonia (eucrasia).

    Este processo se realiza em três etapas nas doenças agudas:apepsia, pepsia (cocção) ecrisis. A crisis tem tendência a ocorrer em dias certos,o que levou Hipócrates a estudar os dias críticos de várias enfermidades(Castiglioni, , pp. - ).

    A recuperação do enfermo acompanha-se da eliminação do humor exce-dente ou alterado. O médico pode auxiliar as forças curativas da natureza,retirando do corpo o humor em excesso ou defeituoso, a m de restauraro equilíbrio. Com esta nalidade, surgiram os quatro principais métodosterapêuticos: sangria, purgativos, eméticos e clisteres.

    Galeno, no século d.C., com o prestígio de sua autoridade, revitalizoua doutrina humoral e ressaltou a importância dos quatro temperamentos,

    conforme o predomínio de um dos quatro humores: sanguíneo, eumáti-co, colérico (decholé, bile), melancólico (demelános, negro +cholé, bile).Colérico, portanto, é aquele que tem mais bile amarela, e melancólico, oque tem mais bile negra. Transfere-se, desse modo, para o comportamen-to das pessoas, a noção de equilíbrio e harmonia dos humores (Diepgen,

    , p. ). As expressões “bom humor”, “mau humor”, “bem-humorado”,“mal-humorado” são reminiscências dos conceitos deeucrasiae discrasia.

    A doutrina da patologia humoral guiou a prática médica por mais dedois mil anos e só começou a perder terreno com a descoberta da estruturacelular dos seres vivos graças ao desenvolvimento da microscopia. Os ór-gãos e os tecidos deixaram de ser considerados como massas consistentesresultantes da solidicação dos humores e passaram a ser vistos comoaglomerados de células individuais, adaptadas à natureza e função de cadaórgão (Virchow, ). Coube a Rudolf Virchow ( - ) estabeleceras bases da nova patologia, fundamentada nas alterações celulares causadas

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    pelas doenças. A milenar doutrina da patologia humoral foi substituída pelapatologia celular, o que representou um marco na evolução da teoria e daprática da medicina.

    Ao mesmo tempo, o estudo da embriologia e do processo de divisãocelular levou à descoberta das estruturas intracelulares, em especial do nú-cleo, dos cromossomas, dos genes, e, nalmente, do (ácido desoxirri-bonucleico), substância primordial de todas as formas de vida, aquela queencerra o código genético, dene os caracteres hereditários e assegura acontinuidade das espécies.

    A identicação cristalográca e química do permitiu identicar asua estrutura helicoidal e pode ser considerada um dos feitos mais notáveisda pesquisa biológica.

    Na complexidade e diversidade das diferentes formas de vida, uma sur-presa: o ressurgimento do número quatro nas quatro bases que integramo : adenina, timina, guanina e citosina. Todos os seres vivos – animais,plantas, bactérias e muitos vírus – são o resultado de diferentes sequen-ciamentos e combinações dessas quatro bases na dupla hélice do . Eas quatro bases, por sua vez, são formadas de quatro elementos químicos:carbono, oxigênio, hidrogênio e nitrogênio.

    No dizer do prof. Spyros Marketos, presidente da Fundação Internacional

    Hipocrática de Cós, o modelo quaternário da escola hipocrática mos-trou-se compatível com as recentes descobertas da biologia molecular(Marketos, , pp. - ).

    Referências Bibliográcas

    C , H. “Da Natureza do Homem”.História, Ciência, Saúde-Manguinhos, vol. , no , jul.-out. .

    C , A.A História da Medicina. São Paulo, Cia. Editora Nacional, .C , J. & G , A.Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José

    Olympio, .D , P.Historia de la Medicina. a ed., Barcelona, Labor, .M , S. G. “Hippocratic Medicine and Philosophy at the Turn of the th Century”.

    Proceedings of the st International Medical Olympiad , vol. , .V , R. L. K.Die cellularpathologie.Berlin, A. Hirschwald, .

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    Curar Algumas Vezes,Aliviar Quase Sempre,Consolar Sempre*

    Este aforismo dene o compromisso do médico para com os doentes e

    foi consagrado como divisa da própria medicina. É frequentementeatribuído a Hipócrates (Druss, , pp. - ; Goldbloom, ). Poderiatalvez ter sido inspirado na medicina hipocrática, mas não é encontrado noslivros que integram oCorpus Hippocraticum.

    Há duas traduções das obras de Hipócrates que são clássicas: a traduçãofrancesa de Littré e a tradução inglesa de Jones.

    No livro Peri Tékhne (Da Arte), Hipócrates dene a medicina e seuprincipal objetivo da seguinte maneira:

    Quant á la médecine (car c’est d’elle qu’il sagit) j’en vais faire la demonstra-tion; et d’abord la dénissant telle que je la conçois, je dit que l’objet en est, engénéral, d’écarter les souffrances des malades et diminuer la violence des maladies,tout en s’abstenant de toucher à ceux chez qui le mal est le plus fort; cas placé

    * Apresentado ao Congresso Brasileiro de História da Medicina, Goiânia, - out. .

    Gravura O Socorro ao Doente , de Crispin de Passe, o Velho (séculoXVII ).

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    comme on doit le savoir, au-dessus des ressources de l’art(Hipócrates, , p., tradução francesa de Littré).

    First I will dene what I conceive medicine to be. In general terms, it is to doaway with the sufferings of the sick, to lessen the violence of their diseases and torefuse to treat those who are overmastered by their diseases, realizing that in suchcases medicina is powerless(Hipócrates, , p. , trad. inglesa de Jones).

    Com base nas versões clássicas de Littré e de Jones o texto poderia serassim traduzido em português: “Quanto à medicina, tal como eu a concebo,penso que o seu objetivo, em termos gerais, é o de afastar os sofrimentosdo doente e diminuir a violência das suas doenças, abstendo-se de tratar osdoentes graves para os quais a medicina não dispõe de recursos”.

    Vemos que a preocupação do autor se concentra em aliviar os sofrimen-tos do paciente e diminuir a gravidade das doenças. Não foi dada ênfaseà cura, que, na época de Hipócrates, como ele mesmo ensinava, dependiaprimordialmente das forças da natureza (Physis). As doenças seguiam o seucurso natural, tinham seus dias críticos e o papel do médico era “auxiliar anatureza” para obter a cura.

    Também não há menção a “consolar”; ao contrário, o médico deveria

    abster-se de tratar os doentes graves, para os quais a medicina não dispõede recursos (Hipócrates, ). No comentário sobre o livroDa Arte, Littrérefere-se ao caráter desumano dessa prática. Era uma tradição da medicinagrega não acolher no Asklepeion, que era um misto de hospital e templo con-sagrado a Asclépio, deus da medicina, os doentes terminais ou incuráveis.

    É evidente que, não sendo da época de Hipócrates, o referido aforismo éde data posterior. O apelo ao sentimento piedoso de solidariedade humanacomo missão adicional do médico nos faz crer na inuência do cristianismo.Do mesmo modo que os deuses da mitologia grega foram substituídos porCristo no juramento de Hipócrates, assim também o médico deveria cuidardos doentes sem possibilidade de cura (consolar sempre).

    Nas referências mais antigas o aforismo data do século xv e está redigi-do em francês: “Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours”.Possivelmente a frase em francês já é uma tradução do latim medieval. Háem latim uma sentença semelhante: “medicus quandoque sanat, saepe lenit

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    et semper solatium est” (O médico às vezes cura, muitas vezes alivia e sempreé um consolo) (Rezende e Silva, , p. ).

    Do francês o aforismo foi traduzido para outras línguas. Em inglês: “Tocure sometimes, to relieve often, to comfort always”; em italiano: “Guarirequalche volta, alleviare spesso, confortare sempre”; em espanhol: “Curaralgunas veces, aliviar frecuentemente y consolar siempre”.

    Em português, ao contrário do francês e do inglês, a frase tem sido re-digida com algumas variações de palavras.

    . Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar frequentemente, consolar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes e consolar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar outras, consolar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre.

    . Curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar outras, cuidar sempre.

    . Curar às vezes, aliviar com frequência, consolar sempre.

    . Curar algumas vezes, aliviar o sofrimento sempre que possível, con-fortar sempre.

    A tradução que mais se aproxima do original francês é a do item :‘‘Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre’’.Em alguns artigos veiculados pela imprensa médica e em vários textos

    que se encontram na internet seus autores atribuem equivocadamente apaternidade desse aforismo a autores de épocas mais recentes, tais comoTrudeau, Osler, Holmes, Peabody, Nothnagel, como nos exemplos que seseguem. Dentre todos, Trudeau é o mais citado: “Curar algumas vezes, aliviaroutras, cuidar sempre – uma lição secular do dr. Edward Trudeau, que nãodevemos esquecer” (Neubarth, , pp. - ); “A psicoterapia foge umpouco ao mandamento obrigatório na medicina: ‘Curar às vezes, aliviar comfrequência, consolar sempre’ (Francis Trudeau)” (Edelweiss, s.d.).

    Edward Linvingstone Trudeau ( - ) foi um médico norte-ame-ricano que se dedicou ao tratamento da tuberculose e fundou um sanatóriopara tuberculosos em Saranac Lake, nos Estados Unidos. Ele foi de umadedicação extrema aos doentes em uma época em que ainda não havia

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    tratamento especíco para esta enfermidade. Em , seus ex-pacientes sequotizaram e erigiram, junto ao sanatório, um monumento em sua memória,em cujo pedestal foi gravado o aforismo em francês “Guérir quelquefois,soulager souvent, consoler toujours”. As pessoas mal informadas julgamque ele foi o autor da frase.

    Outros dão a autoria a Osler, como neste registro: “Com o ressurgimen-to dos cuidados paliativos volta a fazer sentido a expressão de Osler [...]‘Curar às vezes, aliviar com frequência, consolar sempre’” (Nunes, s.d.).William Osler ( - ) foi o maior clínico do século , tendo sido umdos fundadores da Faculdade e Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, queserviu de modelo para a implantação da moderna medicina norte-americana.Além de docente e pesquisador, Osler destacou-se por sua preocupação como lado humano da medicina e suas citações do aforismo foram atribuídasà sua própria autoria.

    “Curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre –Oliver Holmes” (Siqueira, ). Oliver Wendel Holmes ( - ), alémde médico, foi um apreciado escritor e poeta. Realizou estudos sobre a fe-bre puerperal e sugeriu o nome de anestesia para a descoberta de WilliamThomas Morton.

    “Como já dizia Francis Peabody: to cure sometimes, to relief often and

    to confort always” (Simplicíssimo, ). Francis W. Peabody ( - ),médico norte-americano, foi um paradigma de dedicação aos pacientes eescreveu um trabalho que se tornou clássico sobre a humanização da me-dicina, intitulado “The care of patient”, publicado em .

    “O médico tem de curar algumas vezes, aliviar muitas e consolar sempre. Écom base nesse ensinamento de Nothnagel, que estudantes do curso de Medicina[...] desenvolvem o Projeto de Vivência na Integração Médico-Paciente, oProvimp” (Madeiro, ). O nome de Hermann Nothnagel ( - ),médico alemão que viveu de a , cou consagrado naNothnagel’sEncyclopedia of Practical Medicine, do início do século .

    Em conclusão, todas as referências citadas são improcedentes: não seconhece o autor da frase, nem quando a mesma foi usada pela primeira vez.O citado aforismo aorou naturalmente como síntese da própria medicinae do compromisso do médico para com a humanidade sofredora.

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    Referências Bibliográcas

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    www.malomar.com.br/textos/texto a.htm, acesso em dez. .G , D. S. ‘‘Language and Metaphor”.Bulletin of the Canadian Psychiatric

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    A Neurologia na Antiguidade*

    Na Medicina Hipocrática

    O nome de neurologia, oriundo do gregoneuron, nervo, elógos, estudos,foi usado pela primeira vez por Thomas Willis, em (Lawrence Jr., , p. ). Como especialidade autônoma, data do século . Antesdisso, desenvolveu-se lentamente, como parte da clínica médica, e encon-tramos os seus primórdios já na medicina da Antiguidade clássica, emparticular na medicina hipocrática.

    Entende-se por medicina hipocrática aquela cuja descrição se encontra nacoleção de cerca de setenta livros que formam oCorpus Hippocraticume queteriam sido escritos, em sua maioria, nos séculos e a.C. Muitos desseslivros são considerados de autoria do próprio Hipócrates, enquanto outros sãoatribuídos a discípulos seus e a outros autores (Sigerist, , pp. - ).

    * Publicado em parte na revistaNeuro-Press, vol. , n. , pp. - , , e noBoletim daAcademia Brasileira de Neurologia, , .

    Giovanni Andrea della Croce, - , retrata uma cirurgia de cabeça.

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    Os conhecimentos sobre o sistema nervoso na medicina hipocrática sãomuito decientes. As noções de anatomia e siologia são precárias; sabia-seque o cérebro é formado de duas metades separadas por uma membranae que faz continuidade com a medula espinhal. De acordo com a teoriahumoral, o cérebro seria a fonte da euma ou pituíta, um dos quatro hu-mores do corpo, de cujo equilíbrio, miscigenação e repartição no organismodependeria o estado de saúde.

    As meninges eram bem conhecidas pela oportunidade que oferecia otratamento cirúrgico dos casos de traumatismo craniano. A trepanaçãoera usada com frequência. O livroPeri ton en kephalei tromaton(DosFerimentos na Cabeça) dá as indicações precisas para o uso do trépano emcasos de fraturas dos ossos cranianos, com instruções detalhadas sobre omanuseio do instrumento, como ilustra o seguinte passo: “Durante a ope-ração, retira-se com frequência o trépano para mergulhá-lo em água friapor causa do seu aquecimento; o trépano aquecido determina pela rotaçãonecrose maior do que a causada pelo trauma” (Hipócrates, , p. ).

    O atendimento dos casos de traumatismo craniano permitiu estabelecer oentrecruzamento das vias motoras em relação aos hemisférios cerebrais. Nocitado livro encontra-se a seguinte observação: “As convulsões aparecem namaior parte dos casos de um dos lados do corpo; se a ferida é do lado esquerdo

    da cabeça, as convulsões aparecem do lado direito do corpo, se a ferida é dolado direito da cabeça, aparecem do lado esquerdo do corpo. Alguns casossucumbem em estado de apoplexia” (Idem).

    O cérebro é reconhecido como o centro receptor das sensações. No livroPeri topon ton kata anthropon (Dos Lugares no Homem) encontra-se aseguinte observação a propósito dos sentidos da audição e do olfato:

    A membrana meníngea é perfurada no ponto através do qual nós ouvimos.[...] Esta é a única perfuração da membrana que recobre o cérebro. Na região dasnarinas não há perfuração, mas uma espécie de porosidade, semelhante a umaesponja; por esta razão uma pessoa ouve a uma distância maior do que aquela emque ele sente os odores (Hipócrates, , p. ).

    A palavraneuroné aplicada principalmente aos tendões, que eram con-fundidos com os nervos. Conheciam-se apenas os nervos mais facilmente

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    identicáveis como o óptico, o acústico, o trigêmeo, o vago, o plexo braquiale os nervos cubital e ciático (Lawrence Jr., , p. ).

    O estado de coma é mencionado em vários relatos de casos clínicos,alguns com recuperação da consciência e outros precedendo o óbito. Emqualquer situação, o coma é considerado sinal de mau prognóstico, comose lê no livroProrretikon . (Predição): “Em um paciente com respira-ção curta, ofegante, voz débil e que está febril, o calafrio é um sinal fatal;aqueles que estão em coma estão igualmente em mau caminho” (Hipócrates,

    , p. ).As manifestações neurológicas do tétano são bem caracterizadas, como

    no relato do seguinte caso que se encontra no livroEpidemiai pempton(Epidemias, ):

    O homem é atingido nas costas por uma seta pontiaguda, logo abaixo dopescoço; a ferida era aparentemente insignicante. Algum tempo depois de reti-rada a seta, no entanto, ele se estirou para trás como aqueles acometidos deopis-thótonos. E sua mandíbula cou rígida; se colocava líquido na boca e tentavadeglutir, o líquido retornava pelas narinas. Seu estado se deteriorou e ele morreudois dias depois (Hipócrates, , p. ).

    A disfagia faríngea em outras condições mórbidas é descrita no livroEpidemiai deuteron(Epidemias, ): “Os doentes [...] não podem ingerirbebidas ou o fazem com diculdade. O líquido penetra nas cavidades nasaisse eles insistem. E eles têm voz nasalada” (Hipócrates, ).

    Na opinião de expertos na interpretação de textos doCorpus Hippocra-ticum, a paralisia descrita poderia corresponder à que ocorre na difteria.

    A paraplegia e a tetraplegia consequentes de lesões da medula espinhalpor traumatismo da coluna vertebral são referidas no livroPeri arthron,

    (Das Articulações):

    Nos casos de queda ou impacto de um grande peso geralmente há um gran-de deslocamento de uma ou mais vértebras, o que acarreta a morte ou produzretenção de urina e de fezes; os membros inferiores perdem calor e estas lesõessão geralmente fatais. Mesmo se os pacientes sobrevivem eles apresentam in-continência da urina e têm fraqueza e torpor das pernas; quando a lesão ocorre

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    mais acima há perda das forças e completo torpor de todo o corpo (Hipócrates,, pp. - ).

    Um dos livros da coleção (Peri ieres nousou) é inteiramente dedicado àepilepsia, chamada na época de doença sagrada. O autor deste livro com-bate a ideia de uma causa sobrenatural para a epilepsia, considerando-auma doença de causa natural, como as demais enfermidades. Na introdu-ção do livro leem-se as seguintes palavras: “A doença sagrada não é maissagrada do que as outras doenças [...] Aqueles que atribuem o caráter so-brenatural a esta doença igualam-se aos magos, encantadores, charlatães eimpostores, que assumem ares de piedade e muito saber, lançando a culpana divindade como pretexto para ocultar a sua ignorância” (Hipócrates,

    a, pp. - ).A sede da doença é localizada no cérebro, considerado um centro im-

    portante na gênese das doenças. O autor admite o caráter hereditário daepilepsia e reconhece sua maior gravidade quando a mesma tem início nainfância. Descreve a seguir os pródromos das crises convulsivas, o estado demal, e menciona o aparecimento da epilepsia em adultos após traumatismoscranianos. Procura explicar a etiopatogenia da epilepsia com base na teoriahumoral, que então guiava o pensamento médico e o raciocínio clínico.

    As convulsões esporádicas que acompanham as hipertermias nas criançasnão escaparam à observação do autor do livroPrognostikon (Prognóstico):“Convulsões na vigência da febre ocorrem mais comumente em crianças debaixa idade, antes dos sete anos; crianças de mais idade e adultos não sãoatacados, a não ser em casos graves” (Hipócrates, b, pp. - ).

    A apoplexia que se manifesta na ausência de traumatismo craniano émencionada no livroPeri physon(Do Ar Inspirado). O autor deste livro dáuma interpretação inteiramente fantasiosa da sua etiopatogenia. Diz ele: “Aapoplexia é também causada pelo ‘ar’. Quando o ar se introduz através docorpo, as partes afetadas perdem a sensibilidade. Assim, se uma grande quan-tidade de ar percorre o corpo inteiro, o paciente