crônicas de allaryia vol.07 - oblívio (felipe faria)

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  • FICHA TCNICA

    Ttulo: Crnicas de Allaryia Oblvio

    Autor: Filipe Faria

    Copyright ' by Filipe Faria e Editorial Presena, Lisboa, 2011

    Ilustrao da capa: Samuel Santos

    Composio, impresso e acabamento: Multitipo Artes

    Grficas, Lda.

    1. a edio em papel, Lisboa, Fevereiro, 2011

    Reservados todos os direitos

    para a lngua portuguesa

    EDITORIAL PRESENA

    Estrada das Palmeiras, 59

    Queluz de Baixo

    2730-132 BARCARENA

    E-mail: [email protected]

    Internet: http://www.presenca.pt

    E-mail do autor: [email protected]

  • DEDICATRIA

    A quem gosta do que escrevo, por me ter permitido continu-ar um sonho.

    A quem no gosta do que escrevo, por no me ter ignorado.A quem me ignorou, por no ter deixado que

    o (relativo) sucesso me subisse cabea.

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  • PRLOGO

    O Pilar do Mundo estourou numa exploso decores e sons que se fizeram sentir como algo defsico no imo da alma que por ele era arrastada. AEssncia, que a reivindicava como sua, clamavapor ela como uma me por um filho perdido e re-gressado, perseguindo o rasto de memrias efragmentos de emoes que a alma deixava paratrs na sua lancinante trajectria pelas guasetreas. Como um naco de minrio exposto a umcido, a psique era desnudada por sucessivas vag-as que lhe dissolviam todas as impurezas com querevestira o seu mago ao longo de uma vida ter-rena, impurezas essas que vogavam perdidas pelaincolor vastido como detritos que se de-sagregavam em p, reduzindo-se sua insigni-ficncia perante a esmagadora realidade do centrode toda a existncia.

    Desagregada, a alma limitava-se a seguiraquele que sentia ser o seu rumo predeterminado,resignada com o destino ao qual sabia no poderescapar, vergada pelo peso da sua dvida anmica.Era apenas uma questo de tempo at se ver com-pletamente desnudada, desprovida dos artifciosterrenos com os quais fora revestida, e alcanar

  • por fim a derradeira paz, tornando-se parte de umsublime todo...

    E, contudo, isso tardava a acontecer.Algumas impurezas mostravam-se particular-

    mente slidas e resistentes, outras pareciam estara enterrar-se mais fundo, cada vez mais fundo,penetrando o mago da alma e despertando-a coma pungente dor de memrias de uma existnciaque no mais desejava recordar... ou pelo menosassim o julgava. Assim fora induzida a acreditarpela inevitabilidade da sua situao, pelo conform-ismo induzido atravs da promessa de eterna paze do fim de todo o sofrimento. Mas havia algomais, algo do qual se ia lentamente dando conta,conforme singrava pelo mar etreo.

    O Pilar perseguia-a. No estava simplesmentea clamar por ela, mas a acoss-la com o frenticodesespero de um predador imobilizado que pro-vara o sangue da presa e que agora a via escapar-se-lhe por entre os colmilhos. A alma rebulia rumoa um destino incerto e, embora no vogasse porvontade prpria, to-pouco estava a ser conduzidapelo apelo do Pilar. As memrias que se in-crustavam no seu mago como estilhaosdespertavam-lhe outras recordaes, reminiscn-cias de uma anterior existncia que de algumaforma sabia ter sido a sua. Essas relembranastraziam consigo toda uma outra percepo acercadaquilo que lhe estava a acontecer e davam

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  • relevncia quilo que os febricitantes fragmentosde memrias tentavam despertar a suaidentidade.

    Uma vida... um passado... um nome...Allumno?Sim, era esse o seu nome: essa peculiar com-

    binao de sons que jamais se faria ouvir nosepulcral silncio do Pilar do Mundo, essa palavrainteiramente desprovida de sentido por si s, eque contudo agora adquiria uma importncia quenunca lhe fora concedida em vida. Havia o eu novazio, havia algo mais alm do olvido absoluto quelhe parecia estar predestinado, e essa sbita e in-esperada certeza despertou uma conscincia queno mais devia existir e que contudo perseveravacontra todas as probabilidades.

    Sim, ele era Allumno ou pelo menos aquiloque dele restava. Arrancado sua carcaa mortale assolado por foras que pretendiam absorver to-do e qualquer vestgio da sua anterior existncia,via-se agora impelido por um mpeto arrebatadorque, em termos terrenos, o deixava um passo frente do Pilar que tentava clamar a sua alma.

    Ao milenar a morder-lhe a carne dos dedosat ao osso, sangue quente a escorrer sobre metalfrio que racha o legado de um mentor, um amigo,um pai... Uma exploso, a realidade adesemaranhar-se, o prprio ar a ser virado do

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  • avesso quando a fronteira entre o sagrado Pilar e oprofano mundo terreno estilhaada...

    Seltor. Aewyre. Um assomo de pnico e ur-gncia, sensaes mundanas das quais h muitoque deveria ter sido despido, mas que lheafogueavam a alma com um ardor caracteristica-mente mortal que evidentemente ainda no oabandonara. Allumno tentou encontrar o centro datempestade que era a sua alma, focar-se em algoestvel a meio da voragem em seu redor de modoa conseguir concentrar-se, mas tal no era pos-svel. Transpusera a fronteira entre o Pilar eAllaryia, terara a Frico e via-se agora pro-jectado pela inexorvel fora de uma exploso quesacudira os alicerces de toda a existncia. O factode a sua alma no ter sido esfiapada era um mil-agre, mas a partir do momento em que quebrarauma das regras fundamentais do mundo como asEntidades o haviam concebido no mais poderiasaber com o que deveria contar. Mesmo to per-functrias reflexes eram-lhe custosas, pois junta-mente com a conscincia da sua identidade veiouma percepo que teria avassalado qualquer sen-tido terreno, dado que, ao singrar pela fronteiraentre o Pilar e Allaryia, Allumno via-se literalmenteentre dois mundos.

    No s estava ciente do silencioso fervilhar vi-tal do tumulto do Pilar, cuja equanimidade foraposta em causa pelas aces de Seltor, como

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  • tambm se via espectador involuntrio daquilo quese passava em Allaryia, vislumbrando eventos auma velocidade difcil de acompanhar, medidaque ia figurativamente girando em torno do mundoque conhecia e que de alguma forma pareciachamar por ele. Tanto uma perspectiva como aoutra seria mais que o que uma mente humanaseria capaz de conceber ou suportar com os seusmeros cinco sentidos, mas Allumno sentia-se sim-ultaneamente como parte de um todo e algo com-pletamente parte de tudo o resto. Os ciclpeosmovimentos dos segmentos do Pilar eram para elecomo o lento girar da roda de um moinho; aEssncia crua que este movimento produziaafigurava-se-lhe como o manar de uma infindanascente; e os ecos da acesa guerra entre os di-varoth e os uman contra os acirrados azigothfaziam-se sentir de alguma forma na silente imen-sido do Pilar.

    J Allaryia era algo de completamente difer-ente, como no poderia deixar de ser. O mundoque j fora o seu estava tenso, expectante, e pair-ava nele algo que deixou Allumno profundamentedesassossegado. Sacrificara-se para acabar com aameaa dO Flagelo de uma vez por todas epoupar Aewyre, mas as gavinhas de Sombra queainda coleavam pelo Pilar eram prova de que operigo ainda no passara.

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  • Um novo assomo de pnico apoderou-se delee o mago tentou freneticamente estender a suapercepo alm dos vislumbres que a sua desen-freada trajectria lhe permitia, alm das cenas queno lhe diziam respeito: exrcitos que eram mobil-izados em terras que desconhecia; perturbaesnos segmentos do Pilar, onde hostes de azigothzumbiam em fria; cidades que desconhecia comas gentes em pnico devido terra que tremia eao silncio dos deuses... nada disso lhe in-teressava. Allumno conseguiu reunir o egosmonecessrio para procurar apenas aquilo que lhe in-teressava, mas esse mesmo egosmo apelou aosseus mais bsicos instintos, distraindo-o com pre-ocupaes para ele bem mais prementes. Em queestado se encontrava? Tratar-se-ia da manifest-ao espiritual que por tantas vezes assumira,mas mais descontrolada devido aos efeitos dorasgo que criara entre Allaryia e o Pilar? Seriaapenas o processo natural da absoro da alma deum mago aps o fenecimento do corpo deste?

    No, a sua presente condio no lhe im-portava. Fosse como fosse, sabia que estava apen-as a adiar o inevitvel e que o Pilar acabaria even-tualmente por cobrar aquilo que lhe era devido.Como tal, restava-lhe aproveitar da melhor formao tempo que lhe fora inesperadamente concedido.O Flagelo estava vivo e havia que fazer algo,

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  • qualquer coisa, o que lhe fosse possvel... acomear por tentar perceber o que se passara.

    Paisagens passaram a toda a velocidade aosseus lados como pinturas esborratadas a escorrer-em cor e o mago tentou orientar-se a meio damultitude de localidades que no conhecia. O maisdifcil foi focar-se unicamente em Allaryia e excluirda sua abrangente viso tudo o que estivesse rela-cionado com o Pilar inicialmente pareceu-lheimpossvel distinguir ambas as perspectivas difu-sas, pois os sentidos do mago estavam estran-hamente unificados e no havia forma aparente deos focar numa direco particular, at porque essadistino era inexistente naquele estranho nexoentre Allaryia e o Pilar. A nica forma que encon-trou de direccionar a sua ateno foi situar ambasas perspectivas numa relao arbitrria de es-querda e direita, e ignorar a sucesso de imagensque apareciam direita.

    No era um paradigma fcil de manter, sobre-tudo em constante movimento e relativa velocid-ade a que tudo se estava a passar. Por mais quetentasse, Allumno no conseguia parar e o mx-imo que conseguia fazer era orientar a sua tra-jectria, seguindo as referncias visuais que j porvrias vezes se tinham repetido. Era como se esti-vesse a dar voltas a Allaryia e, entretanto, j ofizera as vezes suficientes para conseguir ter ummnimo de sentido de orientao. Aqui, o cume de

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  • uma montanha ao longo de cujos contrafortesviajara em Laone. Ali, as muralhas de uma cidadenamuriquana pela qual passara. Alm, aquela queparecia ser a desolada expanso das Estepes deKaratai. Acol, a sinistra orla de ciprestes mortosde Moorenglade.

    Perto, cada vez mais perto, singrando vezaps vez por vistas e panoramas familiares, atque por fim avistou Allahn Anroth a encimar Ul-Thoryn do alto do seu altivo monte. Os tectos dacidade pareciam atapetados por uma nvoa... no,fumo. Fumo de fogo. Havia casas a arder. Mas noimportava, no fora por isso que ali viera. At aopalcio, ento, deixando para trs a alvuracoroada de tijolos que era a cidade, rumo a AllahnAnroth, onde tudo acontecera.

    Havia sem dvida algo de estranho no palcio,uma perturbao essencial que inclusive no nexodo Pilar se fazia sentir. Vibraes discordantesafectavam Allumno, mesmo no seu presente es-tado, e uma fora antagnica atraco do Pilarpermitiu-lhe um breve refolgo da incessanteperseguio levada a cabo pelas imutveis leisdeste. Alvio passageiro, pois cedo a sua desgover-nada rbita o arrancou dali, forando o mago aorientar-se novamente para voltar e observar opalcio com mais ateno.

    Desta feita, concentrou-se numa tentativa dese manter por mais tempo num nico local,

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  • procurando resvalar nas paredes da realidade demodo a permanecer perto de Allahn Anroth. A suatentativa foi razoavelmente bem-sucedida e omago conseguiu entrar no palcio. Homens e mul-heres aflitos, caos nos corredores, a HosteDourada em movimento pelas escadarias. Davean-orn? Irrelevante. O importante era saber o queacontecera a Aewyre...

    Ao chegar sala das masmorras onde se derao fatdico acontecimento, Allumno foi abrupta-mente travado, acometido por um vgado essen-cial, uma ondulao anloga dos anis da super-fcie de gua quebrada por uma pedra. O rasgoencontrava-se ali presente e a fria da anomaliaera tal que o mago teve de se deixar levar pelompeto da sua trajectria, temendo por momentosque todo e qualquer trao da sua existncia fosseali desfeito.

    Resoluto, acabou por conseguir voltar e, destavez, conseguiu resistir voragem do rasgo e ob-servar a cena. Lhiannah, Worick e Taislin. O frag-mento da Lana de Istegard, com o qual rachara agema anmica, alojado numa pedra deformada. EAewyre? Ancalach? Ali, as peas da armadura re-gencial empilhadas no cho rachado.

    Oh, no... Deuses, no... O seu sacrifcio...teria sido em vo?

    O desnimo do mago abalou a resistncia queexercia e este foi novamente expulso pela violenta

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  • e constante emanao do rasgo, que o lanouuma vez mais ao seu desgovernado percurso. Ser-ia possvel? No, isso no queria dizer nada. Vira aarmadura desfeita, mas de Ancalach no houveraqualquer sinal. O Flagelo nunca conseguiria em-punhar a Espada dos Reis, logo, a ausncia de am-bos tinha de significar alguma coisa, qualquercoisa.

    Movido por uma pontada de tipicamente hu-mana esperana, quis procurar Aewyre, mas o seuprotegido no tinha como se distinguir na vastidodo Pilar e mesmo Ancalach era um mero farol ameio de um oceano cujas dimenses ultrapas-savam a compreenso humana. O mago lanou-seento em busca dO Flagelo, cuja existncia semanifestava no Pilar na forma de oleosos veios depenumbra que desaguavam numa imensa sombraque lhe dava um sinistro relevo. O maldito estavavivo, disso no havia dvida, mas podia ser que oplano do seu mestre tivesse resultado. Podia t-loaprisionado ou incapacitado de alguma forma queno tivessem previsto...

    Mas no. Seltor no se encontrava preso nasombra do Pilar. Encontrava-se no Pilar, sim, masno estava de forma alguma aprisionado. A suamanifestao sombria movia-se ao longo dos veiosnegros, fazendo-os pulsar como veias empoladasde sangue coagulado, e Allumno seguiu-a temer-ariamente, acompanhando sem qualquer difi-

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  • culdade a velocidade qual O Flagelo se deslo-cava. No pensou sequer naquilo que Seltor lhepoderia fazer caso sentisse a sua presena, poisduvidava de que isso fosse possvel, e seguiu-ocom a tenacidade de um sabujo. Naes inteirasfluram numa torrente de cores e sons, e o contin-ente era como uma vasta tela ensopada pelasguas etreas do Pilar a desfazer-se diante dadesenfreada corrida do mago. Uma sucesso deimagens que deixou Allumno plenamente ciente dasua ignorncia ao dar-se conta de que desconheciaa maior parte delas, das colinas de Nolwyn, at-ravs das planuras de Thyr, sobre os picos nevo-sos da Cinta que sobranceavam a fronteira entre aWolhynia e Tanarch, passando pela devassadaSirulia e seguindo ao longo do Istmo Negro, atpor fim cessar em Asmodeon.

    A anciana fortaleza das Entidades no ap-resentou qualquer entrave ao mago, que na suapresente condio se sentia capaz de quebrar to-das as barreiras enquanto se mantivesse con-sciente. Nem mesmo as sempiternas proteceserigidas evos atrs por Sirul, Luris e Siris o podiamalcanar e Allumno penetrou no antro do mal queera Asmodeon, pronto para tudo em busca de res-postas. Porm, nada o poderia ter preparado paraa viso que se formou a partir da sombra queextravasou do Pilar para Allaryia, para a forma queesta assumiu. Uma forma que o mago conhecia

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  • muito bem. Uma forma que ditava o fim dequalquer rstia de esperana que pudesse at en-to ter nutrido.

    Aewyre.De incio, Allumno no compreendeu, no con-

    seguiu associar aquilo que via quilo que sabia queno podia ser. Aquele era o corpo de Aewyre.Aquela era Ancalach, a espada que ele empun-hava. Mas aquele no era Aewyre. Era O Flagelo.Pelos deuses, no sabia como, mas aquele era OFlagelo no corpo de Aewyre. E empunhava Anca-lach. Os j de si confusos sentidos de Allumno es-tavam a transmitir-lhe uma impossibilidade e omago viu-se absolutamente subjugado pela enor-midade daquilo que se recusava a aceitar. Assimaturdido, foi facilmente arrastado para longe dali,para longe daquele lugar de pesadelos onde o piorde todos acabara de se confirmar.

    Perdeu a noo do eu, daquilo que compunhaa realidade como a conhecera, e deixou-se ar-rastar sem rumo pelo Pilar fora, para longe de tocruel revelao. Seria possvel? Tanto sofrimento,tantas mortes, tantos sacrifcios... para nada?Aewyre, o seu protegido, a ltima esperana detodos, tombara ante O Flagelo e fora... possudopor ele? Como era possvel? Como poderia isso teracontecido?

    Caindo em si, o mago reuniu coragem e de-terminao suficientes para regressar a

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  • Asmodeon, praticamente ignorando o incessantechamamento do Pilar. No podia ser. Simples-mente no podia ser... e contudo ali estava ele sua vista: Aewyre, tal como se lembrava dele, mascom os olhos injectados de um negrume lquido esombras a revolutearem sua volta, cingindo-lheo corpo como o envolvedouro de um recm-nas-cido. Esmagado por aquilo que acabara de perce-ber, o mago conseguiu apenas observar enquantoa penumbra assumia a forma de uma armaduraebanizada, revelando Seltor em todo o seu negroesplendor, empunhando a nica arma capaz de omatar.

    Allumno no conseguiu aguentar e viu-senovamente arrancado da cena com um repeloque o lanou em desesperada deriva pelo nexoentre o Pilar e Allaryia. O pior acontecera de umaforma que o mago jamais teria conseguido prever.Estava tudo acabado e mais valia deixar-se ab-sorver pelo Pilar, permitir que todos os traos dasua existncia fossem apagados e diluir as suasangstias no doce nctar do oblvio...

    E, contudo, a esperana essa obstinadachama de vela que recusava apagar-se mesmoquando submergida por um oceano no lhe per-mitiu baixar os braos e entregar-se ao desespero.Tinha de haver algo que pudesse fazer, algo quepudesse ajudar os seus companheiros contra OFlagelo... contra...

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  • Aewyre.Como era possvel? Depois de Aezrel, depois

    de Zoryan, como podia o destino exigir que maisalgum que era querido ao mago tivesse de sesacrificar no combate contra Seltor? A tremendainjustia fez com que a chama da vela explodisseem fria e inflamasse o mago, que raivejou pelonexo fora, deixando para trs um rasto gritanteque mais ningum conseguiria ouvir. Apetecia-lherebentar algo, mas no conseguiu reunir Essncia.Apetecia-lhe embater contra algo slido, mas nohavia nada na fronteira entre Allaryia e o Pilar quelho permitisse. Apetecia-lhe desaparecer de vez spara no se ver confrontado com to horrvel situ-ao, poder cauterizar os seus olhos, cravar os de-dos nos ouvidos e ser consumido pelo desesper-ante fogo que dentro dele ardia at que as suascinzas se dissipassem no Pilar.

    Mas no podia. No sem fazer algo primeiro,por muito que isso lhe custasse, por muito ftilque tal lhe pudesse parecer no grande esquema detudo o que acontecera e estava por acontecer.Antes de desaparecer, Zoryan julgara-o pronto afazer sacrifcios, e era para isso mesmo que Al-lumno se preparava. Mais um sacrifcio. Mais um.Chorou lgrimas etreas de raiva e desgosto, e re-lampagueou pelo nexo fora, rindo com a ironia dasituao ao ver Allaryia escorrer ao seu lado comouma infinda tela imperfeita de cores diludas. A

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  • sua vontade era mandar o continente para os In-fernos, ao mesmo tempo que se predispunha afazer mais um sacrifcio para salvar todas aquelasformigas desorientadas que polvilhavam as pais-agens que o mago desconhecia.

    Urgia que se despachasse, pois poderia mudarde ideias. Poderia hesitar, repensar a situao,ponderar opes que sabia serem inexistentes.Havia que agir quanto antes, tal como o fizera aoarrancar a gema da testa, condenando o seumestre ao seu havia muito adiado destino.

    Sirulia, Wolhynia, Tanarch e Thyresborrataram-se no rasto do mago enquanto esteregressava a Nolwyn, dirigindo-se novamente a Ul-Thoryn, o seu antigo lar. Pelo caminho, ignorou aplenamente visvel agitao em Lennhau, onde jcirculavam rumores sobre a morte de lorde Tylon,e o assentar das hostes de Vaul-Syrith, cujos cor-cis de guerra escarvavam o cho com energia porgastar aps a retirada do seu exrcito. Todas asintrigas palacianas que tanto tinham pesado nasdecises de Aewyre e dos seus companheirospareciam agora insignificantes ao mago, merasmesquinhices. Que os assinalados bares e bar-onesas lutassem pelo pedao de terra que sep-arava o seu domnio do de outrem e o regassemcom sangue que essa safra lhes trouxesse bomproveito. De nada lhes serviria enquanto O Flagelo

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  • tivesse rdea solta para levar avante os seus ne-fandos desgnios.

    Tinha de o impedir, custasse o que custasse.Todos os sacrifcios at ento feitos no podiamter sido em vo. Nem que, para os legitimar,tivesse de fazer um ltimo.

    Ul-Thoryn desemaranhou-se como umatapearia desfeita e o mago singrou por Allahn An-roth adentro, pulsando de poder medida que iareunindo os resqucios de Essncia que ainda jul-gava possuir. A sua face contorceu-se numa caretade esforo e concentrao ao faz-lo enquanto seaproximava do rasgo, cuja dissonncia essencialse fez sentir antes de sequer o avistar.

    Essncia e pura energia anmica entrecho-caram com as agonizadas retores da profundaferida que fora infligida ao Pilar, e Allumno quasepde jurar que o rasgo se dilatou como uma pu-pila exposta a luz repentina.

    No era muito aquilo que se propunha fazer,mas mais no conseguiria. Restava-lhe apenas es-perar que bastasse para que ao menos a esper-ana em Allaryia no morresse.

    Allumno lanou-se sobre Taislin.

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  • A CIDADE ENLUTADA

    Taislin sobressaltou-se com um arquejo aosentir um arrepio trepar-lhe pela espinha at nuca, deixando na sua cabea a breve sensao deque ingerira algo demasiado gelado. O burriklevantou-se de sbito, virando por alguma razo acabea para a parede adjacente, que bojava comouma barriga grvida. Nela cintilava algo quaseimperceptvel, algo pequeno em cuja superfciemetlica incidia a luz aliengena oriunda do vrticeque se contorcia no ar. Taislin ficou a olhar para olucilante pedao, questionando-se por que razo asua ateno fora para ali atrada, alheando-o detudo o mais que o rodeava, incluindo Worick eLhiannah.

    A princesa estava ajoelhada no cho com ascostas das desfalecidas mos cadas sobre ascoxas descobertas, olhando para as peas daarmadura regencial empilhadas a poucos passosdela. O azul dos seus olhos parecia diludo pelaslgrimas que lhe tinham colado as pestanas, e oterror daquilo que acabara de presenciarempalidecera-lhe as faces, acentuando mais aindaa vermelhido do hmido nariz. A seu lado, umno menos chocado Worick procurava confort-la,

  • apertando-lhe o ombro com uma mo enquantoempunhava com a outra o martelo descado, queparecia pesar mais devido ao sangue negro quenele luzia. O thuragar rachara com a cabea doseu martelo a de um pesadelo no havia outraforma de definir aquilo que se passara havia pou-cos instantes e o peso de uma maldade milenarparecia tolher-lhe a fora do brao. No souberaque era sequer possvel combater pesadelos com oao de um martelo e, embora tivesse sentido ossoa ceder diante da arma, tinha perfeita conscinciade aquele estava longe de haver terminado.

    O arquejo de Taislin passara despercebido,nenhum dos companheiros disse palavra alguma,e o marulhar do vrtice reinava incontestado nacela arruinada. O ar estalava e crepitava a es-paos, e a voragem etrea enervava-se comlampejos no seu cerne multicolorido, apresentandouma viso quase hipntica que contudo forava osolhos ao ponto de ser impossvel nela os fixar, masnenhum dos companheiros o tentou sequer fazer.Lhiannah fitava as peas da armadura regencial nocho, como se esperasse que Aewyre pudesse es-tar escondido debaixo delas. Worick estava de-masiado preocupado com o estado da princesa ecom o sangue dO Flagelo que maculava o seumartelo, temendo que este tivesse sidoamaldioado. Taislin at partilhava de algumas daspreocupaes dos seus companheiros, mas o

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  • objecto cintilante detinha toda a sua ateno, e oburrik deu consigo a aproximar-se da parede. Nohavia nenhuma razo aparente para o estar afazer e, contudo, o brilho suscitava-lhe o interessecomo o faria com uma pega.

    Ests bem, cachopa? ouviu-se por fim avoz de Worick, embora aos ouvidos de Taislin estasoasse distante e indistinta. Tambm, nem eracom ele que estava a falar, por isso no tinha delhe prestar ateno...

    Os seus passos silenciosos passaram com-pletamente despercebidos ao thuragar, que sacu-dia Lhiannah ao de leve pelo ombro. Taislin apro-ximou-se da parede bojuda e percebeu ento queo objecto que o atrara era um pedao de metal in-crustado na pedra. No havia nele absolutamentenada de extraordinrio e, contudo, o burrik nopodia deixar de se aproximar para o ver mais deperto.

    Lhiannah... Lhiannah, melhor sairmos da-qui disse Worick, que comeava a despertarpara a realidade e a dar-se conta da situao emque se encontravam. Haviam escapado com vidaaO Flagelo, mas aquele vrtice deixava-o nervosoe expectante, alm de que temia que a cela est-ivesse estruturalmente danificada e lhes pudessedesabar em cima a qualquer instante. Lhiannahmal ouviu, at porque o thuragar falava para o seusurdo ouvido esquerdo, e continuou a fitar as

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  • peas da armadura com a mesma expresso cho-cada. Madeixas de cabelo tinham-se soltado dasua tiara prateada e pendiam-lhe diante da caracomo os chorosos ramos de um salgueiro outonal,abanando ao sabor das sacudidelas de um cadavez mais apreensivo Worick.

    Igualmente desinteressado daquilo que osrodeava, Taislin s tinha olhos para o fragmentode metal, no qual distinguia agora traos desangue a secar. primeira vista parecia umasimples lasca de ao que ali fora parar em res-ultado da imploso que se dera na cela, mas algonela evidentemente chamara a sua ateno... algonela fez com que o burrik desembainhasse um dosseus muitos punhais para tentar desencrav-la daparede. Com atentos olhos felinos de grandes pu-pilas negras, Taislin inseriu a ponta da lminanuma das rachas na pedra que radiavam do frag-mento nela incrustado, raspando e forando com atesta franzida.

    O que que ests a a fazer, cagalhoto?Pe-te a andar! disse-lhe Worick, despertandopor fim e puxando Lhiannah com mais fora pelatnica vermelha. V, cachopa. Vamos sairdaqui.

    Taislin ouviu o thuragar, mas ignorou-o e con-tinuou a raspar a racha com o punhal, tanto in-sistindo que a lmina acabou por se partir com umseco e agudo rudo metlico, o que fez com que o

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  • burrik se encolhesse por reflexo. Resoluto, desem-bainhou outro punhal, crispando os dedos no caboe erguendo o brao com um olhar determinadoque no conseguiria explicar se algum lhe per-guntasse porqu. O pomo da sua arma embateucom fora contra a ponta saliente da lasca, que oamolgou, mas o impacto foi forte o suficiente parao desalojar da pedra.

    Arre, mas ests surdo? praguejou Worickao ouvir o tinir do pedao de metal no cho. Anda da, pedras te partam!

    Enquanto o dizia, o thuragar levantava Lhian-nah fora sem que esta apresentasse qualquerresistncia, cingindo-lhe a cintura com o braolivre enquanto manejava o martelo de formaameaadora na direco de Taislin.

    do Allumno... disse este em surdina,falando to baixo que Worick no o conseguiuouvir atravs do incessante marulhar sideral dovrtice. Reconhecia agora o fragmento como alasca da Lana de Istegard que o mago portaraconsigo, e que anteriormente tinham usado paradescobrir o paradeiro de Ancalach.

    O que que ests para a a dizer? rosnouWorick, alando o corpo frouxo de Lhiannah, quese deixou simplesmente levar com o mesmo olharperdido.

    do Allumno repetiu o burrik,ajoelhando-se para pegar no ensanguentado

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  • fragmento de metal, que fitou durante alguns ins-tantes antes de sacudir a cabea e piscar os olhoscomo se tivessem entrado ciscos em ambos.Quando tornou a abri-los, a sua expresso eramais de confuso que propriamente de reconheci-mento, e Taislin olhou sua volta e para Worick,como se no percebesse o que estava ali a fazer.

    O Allumno est morto, porra... disse othuragar, to brando quanto a sua spera voz lhepermitia, por entre dentes cerrados. Nunca consid-erara Allumno nem Aewyre como seus amigos,mas ambos tinham sido companheiros aos quaisWorick pudera confiar a sua vida e uma sensaode perda percolava pelo seu ptreo corao aden-tro. Uma sensao mais profunda do que o thur-agar se julgara capaz de sentir, e isso irritou-o. Est morto, ouviste? Agora pe-te a andar ouengancho-te o cachao!

    A ameaa proferida ganhou peso com umbreve gesticular do martelo ensanguentado, cujaunha parecia perfeitamente capaz de a levar acabo, e com isto Worick arrastou Lhiannah parafora da cela com mais brusquido que a preten-dida. A princesa no esboou qualquer reaco,limitando-se a olhar fixamente para as peas daarmadura como se estas fossem os cacos da suaesperana estilhaada. Taislin ouviu-o, mas noteve grande pressa em se levantar, ficando a olhardurante mais alguns momentos para a lasca.

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  • Como fora ele reparar num pedacinho de metalcintilante, a meio de uma sala deformada e ilumin-ada por luzes aliengenas provenientes de umaferida no prprio ar?

    No sabemos se ele est morto... disseem surdina. S sabemos que... O Flagelodisse... que ele estava morto. No a mesmacoisa...

    Lgrimas afloraram novamente aos seus olhosfelinos, que continuavam fitos no fragmento napalma da sua pequena mo, que o burrik acaboupor fechar. Fungando e esfregando os olhos com amanga, enfiou a lasca numa das suas bolsas, talcomo o fizera com milhares de outros objectos,levantou-se e saiu da cela sem olhar para trs.

    O silncio regressou ao cubculo, e o marulhardo vrtice continuou a reverberar pelas quatroparedes deformadas sem que nada se lheopusesse. O bulco em constante movimento emredor da voragem era alumiado a espaos pelocrepitar e estalar de arcos elctricos, e aquela queparecia ser uma lente convexa reflectia uma des-norteante mirade de cores como uma bola desabo. Era impossvel ver o que se encontrava dooutro lado desta, que parecia ser o mesmo vistode ambas as faces do vrtice, mas nem por issoum par de olhos, at ento inviso, deixou de olharpara este.

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  • Olhos que surgiram na escurido da cela adja-cente, para a qual o buraco na parede dava vista.

    Olhos azuis em duas poas de negro betume.Olhos que prometiam vingana.

    Daveanorn e o que restava da corte e daguarda de Allahn Anroth aguardavam ansio-samente na praa do palcio, reunidos dentro doenorme sol ladrilhado no piso e resguardadospelas asas das majestosas guias que rodeavam oastro. Os guardas que no empunhavam partasan-as mantinham as mos perto das armas, e oscortesos faziam por ficar encurralados entre oshomens de armadura, aconchegados como ovelhasassustadas. A tenso no ar era palpvel, abafandoos rudos de desordem que vinham da cidade, e osilncio sustido quase fazia com que as pessoas seesquecessem de respirar enquanto esperavam quealgo ou algum emergisse de entre as patas dadesmedida guia que vigiava a entrada do palcio.As portas permaneciam fechadas e a espera es-tava a excitar demasiado a imaginao de algunspresentes, forando Daveanorn a cal-los rispida-mente para que no se instalasse o pnico.

    O paladino estava ele tambm apreensivo,tendo-se sentido excludo e ultrapassado pela situ-ao desde o incio. Toda aquela conversa deAeshalan, aprisionar almas e O Flagelo fazia comque se sentisse um mero campnio a debater-se

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  • com supersties que se lhe tinham revelado bemreais. Desviou brevemente o olhar das patas daguia para fitar o cu cerrado do entardecer, queestava to cinzento quanto o nimo dos presentes;mesmo o sol poente era pouco mais que uma es-fera branca no horizonte, luzindo um triste azulsobre o tom azerado do cu. Porque estariamAewyre e Allumno a demorar tanto tempo? Omago dissera que o seu plano passava por tres-passar o maldito bobo enquanto este entrava emcomunho com... algo em que Daveanorn aindapreferia no pensar.

    Matar o bobo com Ancalach enquanto este en-trava em comunho. Parecera um plano simples eDaveanorn convencera-se de que tudo ficaria bemuma vez que tivesse sido concretizado, s queento dera-se o estouro vindo do interior de AllahnAnroth, seguido do tremor que abalara os alicercesdo palcio. A princesa Lhiannah entrara em pnicoe os outros dois tinham corrido atrs dela,deixando-o sozinho com um bando de cortesos beira do pnico e um grupo de guardas no menosassustados. O prprio paladino estava a ter di-ficuldades em parecer calmo, mas sabia que, seno o fizesse, toda a gente desataria a fugir para acidade, abrindo as comportas para o dilvio decaos e desordem que grassava em Ul-Thoryn.

    Daveanorn olhou sua volta, para as carasassustadas dos cortesos, para os serventes que

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  • pareciam esperar o momento ideal para fugiremdali, para os guardas que julgavam o seu nervos-ismo ocultado pelas barbudas, mas cujos olhos serevelavam grandes e brancos atravs das viseirasem forma de Y. Toda a gente parecia esperar queuma horda de thuragar armados irrompesse aqualquer momento da entrada para o palcio, e osmurmrios e sussurros iam-se tornando cada vezmais indiscretos, medida que os presentes seconvenciam de que uma desgraa estava iminente.Daveanorn silenciava-os com o olhar, mas os vati-cnios acabavam sempre por ressurgir, de maneiraque foi com alvio que viu Worick emergir do pal-cio, arrastando a princesa Lhiannah pela cintura.

    Ouviu-se um suspiro colectivo, que cedo setornou num murmrio nervoso quando mais nin-gum surgiu entre as marmreas patas da guiasobre a entrada, e Daveanorn franziu a preocu-pada testa ao ver que apenas o burrik vinha atrsda princesa e do thuragar. Temendo o pior,aquietou os seus homens com um olhar severo efoi ao encontro de Worick, cuja postura cabisbaixanada fez para o sossegar. A princesa Lhiannah noparecia estar em si, deixando-se arrastar com umaexpresso perdida estampada a choque na cara, eo burrik tinha todo o ar de quem acabara de chor-ar e ainda estava a conter lgrimas.

    General Worick... o que se passou? per-guntou o paladino, quase em tom de splica.

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  • O thuragar no respondeu, baixando maisainda a cabea e olhando sua volta em busca dealgo que pudesse desviar as atenes de todos osque tinham os expectantes olhos fitos nele. Nodesejava ser o portador das terrveis notcias, masLhiannah no estava em condies de falar e nopodia esperar que fosse Taislin a faz-lo. Resig-nado, enfiou o martelo no aro que tinha ao cinto eergueu o olhar sem fitar ningum em particular.

    Eles... comeou, pigarreando e es-fregando o nariz com um dedo revestido de ao. Vocs no tm de se preocupar. Estamos todos emsegurana agora. O perigo j passou.

    Worick no respondera pergunta, mas assuas palavras tiveram o efeito desejado em todosmenos no paladino, e guardas e cortesos suspir-aram de alvio. Alguns olharam para o cu bao emussitaram preces de agradecimento aos at en-to silenciosos deuses, mas outros cedo se aperce-beram de que o thuragar no dissera tudo.

    E o Aewyre, general Worick? insistiuDaveanorn com um aperto na voz. Onde est oAewyre? E o conselheiro Allumno?

    Worick suspirou e apertou a cintura de Lhian-nah com mais fora, incapaz de olhar o paladinonos olhos.

    O... conselheiro Allumno... ele morreu disse o thuragar a para ele surpreendente custo, eas suas palavras causaram grande consternao

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  • entre os presentes. Os cortesos de Ul-Thorynlevaram as mos cabea e Daveanorn fechou osolhos com um suspiro, levando a mo cana donariz recentemente sarada.

    E... o Aewyre? ousou por fim perguntar.Worick abriu a boca para dizer que o seu com-

    panheiro estava ele tambm morto, mas no con-seguiu. Afinal, ele prprio no sabia o que aconte-cera a Aewyre; ainda estava a processar aquiloque presenciara e o que isso significava. Porm, oseu silncio em nada ajudava e fazia por si sadivinhar o que sucedera; estava patente nasfaces de guardas e cortesos que j contavam como pior, mas que no tinham coragem de o assumirenquanto no o vissem confirmado.

    O Flagelo levou-o... foi o mximo queWorick conseguiu dizer, embora demasiado baixoe entre dentes para que algum o ouvisse.

    Como...? A porra dO Fl!Worick foi interrompido por uma marcha

    metlica que irrompeu das portas das torres queflanqueavam os portes de entrada para a praa.Todas as caras se viraram na direco dos sons,incluindo a de Lhiannah, e viram as cinquenta ar-maduras da Hoste Dourada marchar em linha nasua direco. Os cortesos assustaram-se e houvemesmo alguns que se postaram atrs dos guardas,que no souberam como reagir.

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  • Oh, pedras me partam, mas o que que sepassa agora? perguntou Worick a ningum emparticular, largando Lhiannah e empunhando nova-mente o seu martelo ao postar-se juntamente comTaislin diante da princesa.

    Lhiannah no reagiu, limitando-se a olhar comar confuso para as armaduras que se aproxim-avam no seu passo mecnico, como um batalhoacabado de mobilizar para a guerra. Daveanorn eos guardas limitaram-se a aguardar e alguns pare-ciam quase ansiosos que algo pusesse termo situao, mas as visagens das armaduras nodenotavam qualquer intento ou expresso que sepudesse decifrar. Vinham claramente na direcodo grupo, mas tinham as armas embainhadas e osescudos atrs das costas, e a sua postura no eraagressiva, porm havia algo na determinaometlica dos seus passos que no podia deixar deintimidar os exaustos guardas.

    Que fazemos, lorde Daveanorn? pergun-tou um deles com os dedos crispados na haste dapartasana, que hesitou em enristar na direco domais herico legado de Ul-Thoryn.

    Calma, homens... calma ordenou opaladino, erguendo os braos com as palmas dasmos viradas para trs.

    As armaduras pareciam alheias sua presenae dos guardas, e continuaram a sua inexorvelmarcha, forando Daveanorn a dar um passo

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  • atrs, e os homens seguiram o seu exemplo.Worick e Taislin permaneciam atrs com os guar-das entre eles e as armaduras, resguardando Lhi-annah, mas tambm eles recuaram. Nenhuma es-pada foi desembainhada, mas o que restava daHoste Dourada continuava a avanar.

    Dem-lhes espao. Abram alas disseDaveanorn, sacudindo ambos os indicadores aosseus lados. Senhores e senhoras, faam omesmo. Deixem-nas passar.

    Ningum objectou e o grupo arrebanhadofendeu-se, formando um desregrado corredor paraque as armaduras pudessem passar, o que estasfizeram de forma ordeira como se de uma meraprocisso se tratasse. Assim pareceu, pelo menosat os arneses dourados se refrearem subitamentecom um unssono roagar metlico que alvoroouguardas e cortesos em igual medida.

    Como uma s, a Hoste Dourada virou-se parauma das fileiras de guardas e cortesos que sehaviam formado e cinquenta mscaras antro-pomrficas pregaram ao cho os ps de todos osque se viram debaixo do seu inexpressivo olhar.Homens e mulheres arquejaram em igual medida,mas apenas aqueles aos quais as armaduras tin-ham virado as costas conseguiram recuar, pois osoutros no ousaram mexer-se, temendo desen-cadear alguma reaco mais abrupta. Afinal, em-bora no inspirando necessariamente medo,

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  • qualquer armadura da Hoste Dourada era im-placvel como o ao e ningum sabia com o quecontar ao olhar para as mscaras frias e impass-veis que pareciam t-los a todos debaixo de olho.

    O que que deu a estes douradinhos? perguntou Worick, calmo mas alerta.

    O Aewyre disse-lhes que ficassem a vigiaras muralhas... disse Taislin com um tom de vozdistante.

    Estaro a tentar dizer-nos alguma coisa? indagou-se Daveanorn, aproximando-se de umadas armaduras e olhando para os buracos na ms-cara desta, tentando lobrigar algum propsito naescurido onde os olhos deveriam estar. Nohouve reaco alguma da parte da armadura, nemdas outras quarenta e nove, que permaneceramquedas como esttuas.

    Para onde esto elas a olhar? perguntouWorick nas costas das armaduras, empunhando omartelo com ambas as mos.

    difcil dizer... murmurou o paladino,coando a barba grisalha de olhos franzidos. Homens, experimentem recuar...

    Os guardas no precisaram de grande in-centivo para obedecerem, mas, assim que deramum passo atrs, as armaduras tornaram repenti-namente a avanar. Houve algo no passo perfeita-mente sincronizado que estas deram, acompan-hado do sbito raspar de metal, que assustou os

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  • guardas e cortesos; vrias pessoas tropearamumas nas outras e caram, pisando-se eatropelando-se na pressa de se afastarem. Gritos,confuso, e Daveanorn viu-se ele tambm foradoa recuar, berrando por calma e ordem, de mosabertas diante das armaduras na v esperana deque estas pudessem parar antes que algum fosseespezinhado. Nenhuma desembainhara armas,mas o seu avano cego podia bem magoar algume o paladino olhou de relance para trs a fim dever se algum corria perigo.

    Daveanorn rogou uma praga ao ver que umadas aias lennhesas cara ao cho e magoara opulso na tentativa de resguardar a beb que traziaao colo. Sem tempo de pensar, conseguiu apenasapoiar as suas mos na couraa de uma das ar-maduras, plantando os ps numa tentativa de re-tardar o seu avano. As solas gastas das suasbotas arrastaram pelo piso ladrilhado e o paladinoestava prestes a cair ele prprio em cima da ra-pariga e do beb... quando as armaduras subita-mente se detiveram uma vez mais.

    Ningum se mexeu durante os instantesseguintes, nos quais guardas se encontravam con-gelados em poses acuadas, alguns dando a im-presso de que tinham estado prestes a atacar asarmaduras. Os cortesos tinham conseguido criaralguma distncia, mas no se atreveram a afastar-

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  • se mais, temendo que as armaduras lhes fossemnovamente atrs.

    Fascas da Bigorna, mas esto a gozar con-nosco? resmoneou Worick, aliviando a tensodos ombros que retrara assim que as armadurashaviam avanado.

    Daveanorn e os guardas pareciam to confus-os quanto o thuragar, olhando com ar desconfiadopara as armaduras como se estas fossem explodirem movimento a qualquer momento. O paladinotirou lentamente as mos da couraa cujo avanotentara impedir e dirigiu um rpido olhar para aaia cada, que mantinha a beb apertada contra oseu peito com o brao com o qual estava agarradaao pulso magoado. Nenhum guarda se mexeu e anica pessoa que tentou aproximar-se das ar-maduras foi um jovem pajem, que um dos guardasrefreou, o que despertou Taislin do seu torpor en-lutado e o levou a acudir a aia.

    Ests bem? perguntou ao ajoelhar-se aolado dela, recebendo como resposta apenas umgemido marejado de lgrimas. Curiosamente, obeb que a rapariga segurava olhava volta comum ar despreocupado, no parecendo minima-mente perturbado com toda a situao. D c.Deixa-me pegar nele.

    O burrik pegou no beb ao colo, preso pelosseus grandes olhos azuis, que o estudaram brevee atentamente antes de se fixarem nas armaduras,

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  • que lhe deram a estranha impresso de lhe estar-em a retribuir a ateno.

    Hum... disse Taislin. impressominha... ou elas esto a olhar para a beb?

    Espera a... interveio Worick, arrastandoLhiannah ao aproximar-se. Ento essa no era abastarda do Aereth?

    Como diz?! vociferou Daveanorn, virandoas costas fileira de armaduras paradas. O guardaque refreava o pajem foi ele tambm tomado desurpresa e o rapaz conseguiu esgueirar-se para irao encontro da aia.

    Era, no era, cachopa? perguntou othuragar rapariga cada, que continuou agarradaao pulso enquanto o pajem a ajudava a sentar-se.

    Sim... general disse a aia com toda amesura que conseguiu no cho e com os olhosmarejados de lgrimas.

    Est a dizer que essa criana filha delorde Aereth? indagou Daveanorn, incrdulo.

    A rapariga fala a verdade, lorde Daveanorn disse Smerunda, a velha governanta de AllahnAnroth, que surgiu no meio de dois guardas eentre eles permaneceu, receosa das armaduras. Essa beb filha ilegtima de lorde Aereth, talcomo se apurou num dos levantamentos feitos porlorde Tylon.

    Daveanorn lanou um olhar descoroado aSmerunda e a governanta encolheu-se mais ainda,

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  • com as suas bochechas descadas a darem-lheuma cara de sabujo repreendido. Ningum soube oque dizer, mas tanto nobres como plebeus es-tavam cientes das tremendas implicaes dinstic-as que a revelao consigo acarretava. Pior: ofacto de as armaduras terem marchado at alipara irem ao encontro da beb s podia significaruma coisa.

    A realidade da situao comeou a manifestar-se lentamente; ombros e cabeas foram descaindo medida que Daveanorn e os guardas chegavamsozinhos resposta que Worick se recusara a dar.O prprio thuragar ficou novamente abatido, comose lhe tivessem arrancado a ligadura de uma feridasangrenta acabada de estancar, e Lhiannah pare-ceu desfalecer mais um pouco, ficando pratica-mente pendurada no ombro do seu mentor. La-mentos e lamrias fizeram-se ouvir da parte doscortesos, no porque estes nutrissem particularafecto por Aewyre, mas porque adivinhavam ostempos conturbados que certamente se avizin-havam. Taislin baixou ele tambm a cabea,fechando os olhos com fora ao sentir um for-migueiro no nariz, e os seus braos desceram li-geiramente com o soluo que lhe escapou da gar-ganta. Apenas a beb parecia indiferente situ-ao, ignorando a pesarosa angstia sua volta econcentrando-se antes no burrik, mais especi-

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  • ficamente no lado direito do abdome dele, onde oseu fgado se encontrava.

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  • A SOMBRA ASCENDENTE

    Chegou o momento disse o homem at-ravs da sua mscara de pano negro, que lhe aba-fava a voz. O silncio dos deuses um sinal ecabe-nos aproveitar a oportunidade.

    Trata-se de um sinal, sim concordou Lin-sha com um suspiro sabedor. Mas no este omomento e, ainda que fosse, aquilo que desejamfazer no a vontade do nosso Senhor.

    O ambiente na escura sala era de cortar facae a vela solitria com revrbero, que ardia sobre amesa, s podia estar a tremular com a tenso noar, pois todos os presentes menos Linsha usavammscaras de pano com buracos apenas para os ol-hos e a feiticeira estava demasiado afastada damesa para respirar sobre a vela. O revrbero es-tava virado para os cinco celebrantes sentados,alumiando os seus vultos mascarados com uma luzsebosa, enquanto a feiticeira permanecia de p naquase obscuridade, numa estica posio debraos atrs das costas, tal como o ditava o seuestatuto de Alto Vulto, de acordo com os profanosprotocolos dos Filhos do Flagelo. Ao contrrio dassimples e sombrias togas negras que estesusavam, a feiticeira estava vistosamente

  • indumentada, com um vestido sem mangas decassa preta e saia rachada, mitenes presas porpulseiras douradas, ornadas manilhas aos braos eum intrincado diadema do qual lhe pendia um vude gaze para a nuca. Nem mesmo as mscarasdos celebrantes tinham conseguido esconder os ol-hares indiscretos de alguns, mas qualquer efeitoque a sua aparncia pudesse neles ter tido no osestava a tornar mais cooperativos. Antes pelo con-trrio: o conclave j estava a prolongar-se demasi-ado e a j de si escassa pacincia de Linshacomeava a esgotar-se. O seu senhor regressara eaqueles imbecis s conseguiam pensar em tirarproveito da situao para seu prprio benefcio.

    Alto Vulto, nunca na histria dos Filhos doFlagelo houve to propcia ocasio para tomarmosas rdeas de uma cidade insistiu um dos celeb-rantes, cuja mscara tremia com a sua spera voz.

    Ns j tommos as rdeas da cidade enfatizou Linsha atravs dos dentes, tentando efalhando em no mostrar o seu crescente agravoenquanto torcia nervosamente os dedos atrs dascostas. Sentia falta do seu cajado, o smbolo deautoridade do seu falecido mestre Malagor, mas osditames da seita no lhe permitiam tais secularid-ades num conclave. Pouco se passa em Dul-Goryn de que no tenhamos conhecimento...

    Podamos decidir o que se passa em Dul-Goryn obtemperou outro celebrante, este com

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  • uma constante comicho debaixo da tnica negra,que se mexia com os movimentos do seu brao. E, mais do que isso, podamos pelo menoscertificar-nos de que os Filhos do Flagelo so a n-ica seita na cidade.

    Outra vez a mesma lengalenga , pensouLinsha.

    Opusmo-nos aos Fadados estes anos todosporque discordvamos acerca da melhor forma deO servirmos durante a Sua ausncia relembroua feiticeira. Agora que Ele regressou, deixou dehaver espao e razo para tais quezlias. Devemosapresentar uma frente unida.

    Linsha surpreendeu-se a si prpria com assuas palavras comedidas e compostura, doistraos que mestre Malagor dela nunca esperaria. Aespecial ateno do seu Senhor mudara-a, semdvida, fizera com que ela se esforasse pela ex-celncia a todos os nveis para Lhe agradar enunca O desiludir. Todavia, nem mesmo isso pare-cia satisfazer os celebrantes, cuja linguagem cor-poral denotava cepticismo; claramente, no es-tavam dispostos a prescindir de uma boa opor-tunidade devido a idealismos.

    Alto Vulto... tornou o homem da vozspera. Ningum ousa pr em causa que fostesfavorecida pelo nosso Senhor, mas, quando umaoportunidade destas se nos apresenta, devemosno mnimo ponderar as possibilidades...

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  • O nosso Senhor sempre encorajou o preoentre os seus fiis acrescentou o da comicho.

    Sem dvida concordou um terceiro, estesem quaisquer traos distintivos alm de infundirem Linsha uma certeza de que no gostaria delemesmo sem mscara. A contnua guerraintestina entre os Filhos e os Fadados manteve-nos alerta e activos durante a Sua ausncia. Agoraque Ele claramente nos favoreceu, um claro sinalde que lhe devemos pr termo definitivo...

    um claro sinal de que devemos pr umfim definitivo, sim, mas a esta quezlia intil firmou Linsha, tentando novamente atravs do seutom de voz deixar bem claro que no sofreria maiscontestaes. Ele regressou e aqueles que Lheso fiis devem agora unir-se para melhor Oservirem...

    Numa guerra contra a Wolhynia? ques-tionou um outro celebrante, para o qual Linshanem olhou, virando antes o olhar felino para otecto escuro para no deixar transparecer a suafria. A tenso no seu maxilar delatou-a, contudo.

    Com todo o respeito, Alto Vulto, essa foiuma deciso que tomastes sem primeiro invocarum conclave e nenhum de ns foi consultado disse outro ainda.

    Que benefcio poder esse conflito trazer-nos? quis o da voz spera saber. A nossapresena na Wolhynia refractria e insignificante.

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  • Deveramos consolidar o nosso domnio em Tan-arch antes de ponderarmos transpor a fronteira.

    Fostes sbia em escolher a altura para ata-car, mas tendes um alvo mais prximo e bem maisacessvel, aqui, em Dul-Goryn disse o da vozspera. As gentes esto desorientadas, muitasassustadas. O silncio dos deuses deixou os tem-plos em pnico e o povo em polvorosa, em buscade orientao, orientao que ns poderemos facil-mente providenciar, em benefcio dEle. Centenasde pessoas tm migrado para a nossa cidade nostempos recentes, para poderem estar prximas dasalvadora de Tanarch; devereis aproveitar o as-cendente em que a vossa figura se encontra paraerradicar de vez a presena dos Fadados.

    As palavras no molificaram Linsha, antes pelocontrrio. A sua cuidada entrega e o transparentepropsito de a instigar apenas irritaram afeiticeira, cujas unhas pintadas de vermelhorasparam a mesa com um rudo que se lhe afigur-ou ensurdecedor. Na verdade, no foi to estrepi-toso quanto julgou, mas ouviu-se o suficiente paraque o celebrante se calasse.

    Idiotas rosnou, reprimindo-se mental-mente pela sua incapacidade em se conter eachando por bem soltar alguma tenso com umsuspiro para se compor um pouco antes de con-tinuar. No conseguem perceber por que razodecidi invadir a Wolhynia?

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  • Se o conseguiam, no o deram a entender.Linsha ainda pensou que estavam apenas a gozarcom ela, a deix-la falar e tropear nas suasdestreinadas palavras para que percebesse porseus prprios meios que no tinha as qualidadesnecessrias para ser Alto Vulto. Que os azigoth oslevassem a todos! Fora escolhida por Ele e nodeixaria que abalassem a sua confiana!

    O povo est enlevado com o massacre naSirulia e muitos me vem como a sua salvadoradesde que Ele me permitiu desviar a horda, sim,mas julgam mesmo que conseguiria estar nestaposio se os magnatas tivessem tido tempo paraconvocar uma assembleia? Que estes permitiriam aprendiz de um magocrata tomar as rdeas dopoder? continuou, perfeitamente ciente de queo tom agitado da sua voz em nada ajudava suaj de si periclitante compostura. No mandei in-vadir a Wolhynia para vos beneficiar a vocs, maspara conseguir permanecer nesta posio, que mepermite servi-Lo melhor. Acaso o vosso ouro mais importante do que a Sua vontade?

    Nenhum deles teve de se pronunciar, pois Lin-sha j sabia a resposta. Tolos gananciosos;tinham-se esquecido dos seus deveres enquantocelebrantes, tinham ficado gordos e complacentescom a ausncia dEle e decidido usar os Filhos doFlagelo como uma fonte barata e fivel de ladres,faquistas e extorsores para os seus prprios

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  • propsitos. A sua vontade foi arroj-los a todoscontra as paredes com um golpe de Essncia,mat-los de forma espectacular e grotesca, fazerdeles um exemplo para todos os que julgassemque podiam menosprez-Lo.

    Conteve-se, porm, e limitou-se a fazer usoda Essncia para virar o revrbero da vela na suadireco e permitir aos celebrantes um vislumbreda fria que lhe estava patente na face. A luz re-luziu nas suas manilhas, pulseiras e diadema, eespalhou a sua desmedida sombra na parede atrsda feiticeira, o que a tornou mais ameaadoraainda.

    Alto Vulto... disse o da voz spera, queparecia ser o mais confiante dos cinco. Ningumpe em causa a vossa devoo para com Ele...

    No tente inverter a situao, celebrante cortou prontamente Linsha. a vossa devooque est a ser posta em causa aqui.

    Vexais-nos, Alto Vulto disse o dacomicho. Com todo o devido respeito, foigraas nossa ajuda e apoio que o vosso mentorconseguiu que os Filhos do Flageloprosperassem...

    Imbecis! vociferou Linsha, mandando to-das as cortesias e cautelas para a fossa. Continuam a no compreender! No se trata deprosperidade, nem dos nossos interesses, nem

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  • mesmo dos interesses dos Filhos do Flagelo! Elevoltou, e ns servimo-Lo, e no a ns mesmos!

    Linsha deu-se por fim conta de que aquele noera um mero conclave. Era uma chamada ateno, uma luta por poder e influncia, e afeiticeira sentiu um formigueiro de Essncia a per-mear o seu corpo, pronta a us-lo como condutapara desencadear dor e morte. Sabia que os celeb-rantes no eram tolos, que tinham certamentevindo precavidos e que os homens que faziamcompanhia aos seus Ignotos no exterior da salano estavam l apenas como acompanhantes. Ofranzir e o vincar das tnicas negras denotava mo-vimento que os cinco procuravam ocultar,provavelmente causado pelo empunhar de facasou uma qualquer arma de arremesso envenenada.A fachada de submissa cortesia dos celebrantesrachava-se a olhos vistos e o conclave estavaprestes a explodir em violncia. Ambos os ladosestavam preparados, mas por motivos divergentesningum queria ser o primeiro a levantar a mo eLinsha no se atreveu sequer a piscar os olhos,esquecendo-se mesmo de respirar durante o im-passe que se seguiu. Os celebrantes no pareciamdispostos a ceder, nem a desferir o primeiro golpe,e tudo indicava que assim permaneceriam at quea feiticeira lhes desse algum pretexto para quepudessem afirmar seita e a eles mesmos que tin-ham agido em legtima defesa.

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  • Linsha no cabia em si de fria e a sua vont-ade foi a de soltar uma vaga de pura Essncia semse preocupar com as consequncias, mas entohouve algo que a fez hesitar. Os olhos dos celeb-rantes pareceram arregalar-se atrs das mscarase Linsha julgou que a sua postura fora suficiente-mente convincente, mas ento deu-se conta deque as sombras na sala tremularam brevementecomo uma chama negra e que os celebrantes ol-havam, no para ela, mas para algo atrs dela. Talera o espanto e terror que transpareciam das facesocultas destes, que a feiticeira ousou mesmo tiraros olhos de cima deles e olhar para trs, e entoela prpria se viu tomada por um assombro emnada condizente com o seu estatuto de Alto Vulto.

    A sua sombra, que o revrbero da vela ampli-ara e expandira, contraa-se e contorcia-se contraa parede, assumindo uma forma que no era a dafeiticeira e ganhando relevo aos poucos medidaque sobressaa da pedra. Os seis presentesficaram estarrecidos a olhar para a sombra viva,que deu forma a um homem alto e espadado comuma espada na mo, e inicialmente nenhum delesconseguiu associar a arma que todos reconhe-ceram pelo que era com o vulto, que nenhumsoube aceitar pelo que sabiam que s podia ser.Apenas Linsha reconheceu a cara, mas esta era-lhe familiar pelas razes erradas, e no fazia sen-tido estar a v-la num corpo que radiava uma aura

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  • e poder que deixou de joelhos todos os presentes,que o sentiam sem o reconhecerem.

    Seltor revestira o corpo de Aewyre com umacapa de penumbra ondulante e uma armadura desombra concretizada que luzia como se pinceladacom leo, deixando apenas a cabea a descobertopara que todos vissem o sorriso de uma argciamilenar nela estampado, que no deixava dvidaquanto sua identidade, ainda que o corpo nofosse o seu. Ancalach destoava nele tremenda-mente, como um ramo caduco enxertado numtronco perene; era algo que pura e simplesmenteno pertencia e contudo ali estava vista de to-dos, confundindo os celebrantes e o Alto Vulto,que no conseguiam computar as duas coisas jun-tas: O Flagelo e o Flagcio.

    A minha aparncia confunde-vos? per-guntou Seltor em tom quase coloquial, sacudindoos cabelos para trs da cabea, num gesto bruscoque sobressaltou os presentes ajoelhados, fazendocom que um dos celebrantes casse de posterior. Avoz era a do jovem guerreiro que viam diantedeles, mas com uma gravidade e intensidade quecontradiziam a sua idade. No vos culpo. Maspor quem so, ergam-se.

    Incertos, Linsha e os celebrantes obedeceram.A feiticeira balbuciava algo em surdina, com os ol-hos quase a saltarem-lhe para fora da cara, comoalgum que via um sonho seu ganhar forma. J os

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  • celebrantes, homens que tinham vivido as suas vi-das com base num mito que agora viam em carnee osso, pareciam quase aterrorizados.

    Pareceu-me sentir alguma agitao... prosseguiu Seltor de forma quase coloquial, tent-ando embainhar Ancalach numa bainha de purasombra, que se dissolveu ao contacto com almina. As imperfeitas sobrancelhas da cara queno era a sua franziram-se em desagradada sur-presa e O Flagelo acabou por pousar a ponta daespada no cho, apoiando a mo sobre o seupomo dourado. Quase diria que cheguei a meiode um... diferendo. Mas os meus fiis jamaisousariam questionar a palavra do Alto Vulto, peloque s posso estar enganado. Agradecia que meesclarecessem.

    Linsha e os celebrantes permaneceram in-capazes de formar palavras, incapazes de sequerse decidirem entre ficar confusos, assustados ouextasiados. Aquele jovem no podia ser O Flagelode Allaryia, o seu senhor desaparecido, quemesmo aps os rumores do seu regresso no serevelara como mais que uma sensao de um fadoiminente nos seus fiis. E, contudo, no podia seroutra coisa. A aura de poder, as melfluas palavrascom sedimento sombrio que lhes arrepiavam a es-pinha, a mera presena que fizera deuses tremer-em nos seus tronos no Pilar e que deixara de

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  • joelhos todo um continente. Era Ele. O Flagelo re-gressara; estava entre eles.

    E eles haviam-no falhado. Perdoai-me, meu senhor! obsecrou o da

    comicho, que rapidamente lhe passara. O homemdeixou-se cair novamente de joelhos, abrindo osbraos em total subjugao.

    Ca em tentao e falhei-Vos! assumiu oda voz spera, que se tornou deveras aflautada. Deixai-me expiar a minha falha, servindo-vos decorpo e alma, tal como o jurei fazer!

    Os cinco celebrantes pareciam ter re-descoberto rapidamente a f da qual to poucasmostras at ento tinham dado e em respostaSeltor limitou-se a sorrir com o canto da boca, en-quanto parecia lagartear-se com os patticoslouvores e juras de fidelidade eterna. Linsha per-maneceu estarrecida e de p, incapaz de se mexere de tirar os olhos daquele que estes lhe diziamser o jovem Thoryn, mas que no mago do seu sersabia ser o seu senhor. Nunca O vira em pessoa e,aliada ao pasmo de O presenciar, havia tambmuma tnue sensao de desapontamento, quetemia revelar-se. Tendo ouvido a Sua voz e sen-tido o Seu toque sombrio na calada da noite, Lin-sha sonhara com o dia em que pudesse ser agra-ciada com a Sua presena, e v-Lo naquela car-caa mortal no se podia comparar divina pul-critude que imaginara.

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  • Como se tivesse sentido os seus pensamentos e provavelmente sentira-os mesmo, a avaliarpelo acentuar quase pedante do Seu sorriso ,Seltor dirigiu o seu estranhamente humano olhar aLinsha, que ficou hirta como uma estaca acabadade espetar no cho. Os celebrantes, esses, con-tinuaram a lamuriar-se e a rojar-se como ces cul-posos espera de castigo, alguns prostrando-semesmo com o fervor religioso de uma epifaniacolectiva, mas O Flagelo no parecia minimamenteinteressado neles e foi na direco da feiticeira quese encaminhou.

    Saste-te muito bem, Linsha elogiou comuma voz que podia no ser a que a feiticeiraouvira nos seus sonhos, mas que no obstante lhedeixou os joelhos feitos em gua, fazendo-a vacil-ar. Meu Alto Vulto. Tens tido o total e incondi-cional apoio da seita, espero?

    Linsha abriu a boca para gaguejar, mas nemmesmo isso conseguiu. To avassaladora era apresena de Seltor que no deixava espao paraquaisquer dvidas em relao ao seu poder e iden-tidade. O corpo do jovem Thoryn vibrava com apalpitao vital de energia mal contida, qual casuloressequido prestes a rachar-se com a vivacidadeda pupa emergente. Dessa forma tornava-se fcilignorar o corpo de humano como o mero re-ceptculo que era e deixar-se enlevar pelo queeste portava.

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  • No esperaria outra coisa daqueles que meprestaram juramento, tanto mais numa altura naqual o meu regresso era, se no evidente, entopelo menos iminente continuou com toda anaturalidade, como se no tivesse de facto esper-ado qualquer resposta de Linsha, embora no tir-asse os seus negros olhos dela. Seltor ergueu amo para lhe roar a ma do rosto com o n doindicador e a feiticeira deixou escapar um gemidoao sentir uma contraco no baixo-ventre. Tem-pos interessantes se avizinham, e ningum podeesperar escapar-lhes inclume, porventura nemmesmo eu.

    Servir-vos-emos fielmente, como nuncadeixmos verdadeiramente de o fazer! jurou ocelebrante da comicho, e as suas palavras mere-ceram a ateno de Seltor, que libertou Linsha doseu olhar magntico, fazendo com que esta re-laxasse como se tivesse sido fisicamente largada.

    Deveras? indagou com um novo sorriso,e o celebrante engoliu em seco. Mas ser pos-svel servir fielmente aquele que nem sequer sevenera?

    As palavras de Seltor no surtiram qualquerefeito inicial, pois Linsha e os celebrantes estavamdemasiado afectados para tirarem qualquer ilaoda pergunta, mas o da comicho pareceu percebere empalideceu. O Flagelo nada disse, limitando-sea olh-lo com um sorriso matraqueado, e os

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  • outros continuaram sem compreender, at que aimplicao alvoreceu nos olhos do da voz spera.

    Como...? A palavra pareceu raspar-lhe agarganta ao sair. Mandalkolt, tu...?

    Dois outros celebrantes ergueram-se, olhandona direco do da comicho, que, mesmo de joel-hos, vacilou ao ser acometido por um vgado. Oque se via da sua pele volta dos olhos estava dacor do branco destes, esses bem abertos e compupilas to contradas como as frias entranhas queameaavam falhar-lhe naquele horrvel momentono qual um pesadelo do passado, em que nuncaverdadeiramente acreditara, se riu da suaestupidez.

    Como... como ousas? perguntou umoutro com atiadas indignao e incredulidade,mal se dando conta do quo transparente era asua tentativa de fazer boa figura.

    Linsha foi a ltima a perceber e esse factoencarniou-a mais ainda, contorcendo a sua atento pasmada cara numa franzida mscara defria, de dentes arreganhados. Ergueu as moscom dedos uncinados e entoou palavras de mortee dor, tencionando reduzir o maldito traidor a umamassa de carne desfeita com ossos, mas Seltor er-gueu uma mo e a sombra ambiente na salamanifestou-se e empinou-se diante do celebrantevisado, sibilando ao absorver o feroz ataque deLinsha. O homem atirou-se mesmo assim ao cho

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  • por reflexo, resguardando a face com os braos earrancando a mscara com o abrupto gesto.

    Querida Linsha, isso teria sido to violentoe to descabido disse Seltor com um toque dehumor na voz. Acaso irias mat-lo apenas porele vos ter enganado?

    Sim! Puni-o Vs mesmo, senhor! inter-veio um outro celebrante. Castigai-o por ter ou-sado pensar que se poderia furtar ao Vosso ubquoolhar, que escruta das sombras que se espalham!

    Meu senhor...! conseguiu a feiticeira cro-citar, como se os msculos retesados da sua gar-ganta tivessem relaxado com o jorro de sanguefervente que lhe subira cabea, embora as pa-lavras ainda lhe sassem algo a custo. O visadopermaneceu no cho, sem sequer ousar mexer-separa tornar a pr a mscara. Esse verme, essemonte de esterco... ele ousou tirar proveito dens... da Vossa influncia! Tal afronta... merecemais do que a morte!

    Mas eu adoro isso! surpreendeu-a Seltorcom um sorriso verdadeiramente deliciado. Tirou proveito de uma crena votada aoesquecimento, infiltrou-se num culto, fingindoacreditar no que lhe era apregoado, e conseguiuchegar a uma posio de poder por puro interessee astcia!

    Linsha e os celebrantes tornaram a ficarboquiabertos e a certeza emprica de que aquele

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  • era mesmo O Flagelo apenas os confundiu mais aoouvirem semelhantes palavras. Seltor pareciagenuinamente divertido com a situao, e tal pos-tura e atitude pareciam francamente descabidasaos olhos dos seus aturdidos fiis.

    to... humano! To deliciosamentehumano continuou Seltor, dirigindo-se ento aofalso celebrante, que permanecia lvido eprostrado. V-lo agrada-me de formas que vo-cs nem podem imaginar, mas no vos culpo portais idiossincrasias vos passarem ao lado. Tivemuito em que reflectir nestes ltimos vinte anos.

    O homem nem se atreveu a sequer sentir-sealiviado, at porque uma negra lenda viva seaproximava dele e cada passo de sombra slida aroar o cho era como o dobrar dos sinos do seufuneral. J nem sequer tremia, pois o pavorsugara-lhe toda a fora dos msculos e tinha o seuinegvel delito estampado a branco na sua caravulgar, que ningum diria pertencer a um celeb-rante dos Filhos do Flagelo. Seltor olhava para elecom um sorriso descontrado, mas nem mesmo oquase amigvel repuxar dos seus lbios conseguiuapaziguar o visceral terror que se apossara dohomem, cujo corpo se crispou quando as duas gre-vas de sombra oleosa se postaram diante dele,forando-o a espichar o hirto e trmulo pescoopara olhar para cima.

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  • Mandalkolt, ? No foi um feito de poucamonta o teres conseguido insinuar-te numa dasmais sigilosas seitas de Allaryia elogiou-oSeltor, pousando a ponta de Ancalach ao lado dop direito , quanto mais ascenderes a celeb-rante. O teu apenas mais um exemplo da arg-cia dos humanos e da vossa intrnseca capacidadesubversiva.

    Os outros ficaram mais pasmados ainda. Masagora o seu senhor enaltecia aquele desgraado?

    P-p-perdoai-me... meu senhor disse odesditoso, usando o ttulo no com reverncia mascomo pedido de misericrdia. Os seus olhos es-bugalhados desceram momentaneamente para almina de Ancalach, mas subiram rapidamente aolongo do seu afiadamente luzidio comprimento devolta cara de Seltor, como que atrados pelopeso do olhar umbral, que parecia esquadrinhar-lhe os mais escuros recessos da sua alma.

    No, Mandalkolt. Perdoa-me tu. S-senhor...?Rpido como uma sombra a dardejar na viso

    perifrica, Seltor espetou Ancalach na fossa jugu-lar do homem e a ponta da espada saiu-lhe porentre as omoplatas, rompendo-lhe a espinha ematando-o instantaneamente. Linsha e os outroscelebrantes alvoroaram-se com o gesto e a gar-ganta trespassada do homem deixou escapar umrudo que lhe raspou o palato antes de Seltor sacar

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  • Ancalach, cuja lmina deslizou para fora com umsangrento silvo, deixando a sua vtima cair de r-gido queixo ao cho.

    Perdoa-me, mas no te posso deixar viver eespalhar a notcia do meu regresso disse,virando-se ento para os outros, desta vez semqualquer sorriso na sua mortalmente sria face. O mesmo se aplica a vocs. Ningum deve saberque regressei.

    A mudana no tom de voz de Seltor bastoupara os reduzir a todos a um novo silncio oprim-ido, e foi apenas devido sensao de dever queLinsha se conseguiu forar a falar alguns mo-mentos depois.

    Mas... meu senhor... espremeu, en-golindo antes de prosseguir. A batalha deAemer-Anoth... os sobreviventes... os rumoresacerca do Vosso regresso h muito que seespalharam...

    Pacincia. Quanto a isso no h nada afazer disse Seltor, erguendo Ancalach diante dasua face e olhando para a lmina luzente desangue. Agora, o que eu no quero que vocs,entusiasmados pela vossa recm-descoberta f,comecem a alardear o meu regresso e a vaticinaro fim de Allaryia. Isso iria contra os meusdesgnios e poderia comprometer tudo aquilo porque trabalhei desde que sa desta maldita lmina.

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  • Seltor girou o punho da arma na mo, deixan-do o gume de Ancalach entre os seus olhos e fix-ando Linsha e os outros com eles, com um olharque prometia a perdio eterna das suas almascaso o falhassem.

    No me interessa que vocs no tenhamsido cumpridores e que se tenham servido do meunome para vosso prprio benefcio ao longo destesltimos anos acrescentou com um tom to oumais afiado que o fio da Espada dos Reis. Interessa-me apenas que obedeam incondicional-mente a Linsha, pois ela o Alto Vulto, a man-datria da minha vontade, e desobedec-la umaafronta minha autoridade. Estamos entendidos?

    Os celebrantes engoliram colectivamente emseco e acenaram vigorosamente com as cabeas a nica parte da sua anatomia que ainda con-seguiam mexer.

    ptimo concluiu, presenteando-os a to-dos com um novo sorriso e baixando Ancalach,que cortou o ar com um chofre e respingou apedra do cho com pingos de sangue. Agora,como podem imaginar, todas as adversidadespelas quais passei deixaram-me exaurido e precisode descansar e recuperar as minhas foras. Poressa razo, devero obedecer a cada ordem doAlto Vulto como se fosse um comando directomeu, no importa o quo absurda ou contrapro-ducente vos possa parecer. Fui claro?

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  • Os celebrantes assim o deram a entender, to-dos eles solicitude e vontade de servir, enquantoLinsha se deixava ficar a olhar aturdida para O Fla-gelo. O seu senhor, a Sombra na qual ela semprese refugiara, o Usurpador dos deuses que nuncavenerara, a voz que a protegera e despertara paratodo o seu potencial; Ele encontrava-se ali diantedela, a firmar a sua autoridade perante aquelesque nunca lha tinham reconhecido. A emoo foidemasiada para a feiticeira e os olhos destaamararam-se com lgrimas que se viu incapaz deconter, e que lhe escorreram num par de regueirospelas mas do rosto. Felizmente, como estava decostas para os celebrantes, estes no chegaram aver o seu momento de fraqueza, mas Linsha noteve como o esconder de Seltor, at porque noconseguiria virar-Lhe a cara, mesmo que oquisesse, e Ele viu as lgrimas deslizarem ao longoda linha do seu maxilar. A feiticeira sentiu um nno estmago e maldisse-se pela sua fraqueza, quisdesaparecer naquele momento, arrancar os olhosque a haviam atraioado quando no o podiam terfeito, esconder a cara em vergonha.

    Querida Linsha... disse Seltor de formaquase ternurenta, encaminhando-se na sua dir-eco. Meu Alto Vulto...

    A feiticeira endireitou-se, fungando vig-orosamente, e quase enterrou as unhas nas pal-mas das mos com a fora com que as crispava,

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  • como se dessa forma pudesse impedir o seu corpode tremer descontroladamente.

    s graas a ti que os meus fiis no seatiraram s gargantas uns dos outros. No imagi-nas o servio que me prestaste explicou-lhe OFlagelo com Ancalach empunhada na mo direitaenquanto a esquerda esfregava as lgrimas dorosto de Linsha com as suas costas, fazendo comque a cara da feiticeira estremecesse e estaarquejasse ruidosamente. Mas continuo a pre-cisar de ti. Posso contar contigo, no posso?

    Oh, meu senhor... quase balbuciou Lin-sha em resposta, temendo que a voz lhe falhasse. Nada mais desejo... do que servir-vos.

    Seltor sorriu-lhe novamente e passou-lhe amo pela tmpora esquerda, fazendo-o com umadelicadeza que uma manopla de ferro umbrosono devia permitir, e Linsha sentiu um prazenteiroformigueiro percorrer-lhe o couro cabeludo, quefez com que os seus olhos se semicerrassem depestanas trmulas. O formigueiro desceu-lhe entopelo pescoo abaixo, arqueando-lho ligeiramenteao mesmo tempo que outro gemido lhe escapavados lbios entreabertos. Os celebrantes obser-vavam atentamente, sentindo-se claramente pou-co vontade com a situao, mas nenhum delesousou mexer-se, nem sequer precisando de olharpara o cadver com a cara cada numa poa do

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  • prprio sangue para se dissuadirem a elesmesmos.

    Agrada-me sab-lo disse Seltor, a suavoz um sussurro que arrepiou as orelhas epescoos dos presentes, como se lhes estivesse aciciar sobre o ombro. Agora quero que se deix-em de tolices e que dem seguimento s ordensda Linsha. O propsito dos conclaves no o dequestionar as decises do Alto Vulto, mas simpensar como melhor as levar a cabo. Espero queno tornem a esquecer-se disso.

    Os celebrantes baixaram as cabeas esacudiram as mscaras com convico, todos elesgratos por no terem partilhado do destino do seupar e perfeitamente cientes de que o teriam mere-cido. J a postura de Linsha era o perfeito oposto,extasiada ao ponto de no conseguir reagir aosonho que se estava a realizar diante dos seus ol-hos, dos quais lgrimas continuavam a brotar.Seltor fez que no com a cabea e passou a modiante da face da feiticeira, sobre a qual trilhou asombra dos seus dedos, que lhe esfregaram as l-grimas do rosto.

    Como disse, preciso de algum tempo pararecuperar as foras continuou O Flagelo e ofacto de estar aqui no significa que me envolvereidirectamente com a seita ou que devem aguardarordens directas da minha parte. Significa, sim, queestarei atento e de olho em vocs todos.

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  • O seu olhar negro percorreu os celebrantesum a um, preenchendo-se de sombra lquida queparecia ameaar engolf-los a todos, e que nodeixava dvidas quanto ao preo de mais dis-senso da parte deles.

    No precisam de interpretar mais sinais es-prios, nem de distorcer os factos consoante osvossos interesses. Eu regressei e a minha vontade-vos transmitida pelo Alto Vulto enfatizou poruma ltima vez. Lembrem-se disso.

    Com estas palavras, O Flagelo desagregou-seem fiapos de sombra, fundindo-se na escuridoambiente da sala e desaparecendo nela sem deixarrasto, deixando para trs um grupo de celebrantescom medo de se mexerem e com as mscaras depano negro quase to vincadas quanto as suasfaces. O seu senhor no s estava de volta comoacabara de demonstrar um interesse directo na-quilo que faziam e os poupara a um merecido cas-tigo pela sua infidelidade.

    Por que motivo estariam ento eles to ater-rorizados quanto um comum mortal?

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  • O TERCEIRO PRECEITO

    A Primavera tardara, mas acabara por chegaraos Fiordes dos Piratas, e mesmo a desolada pais-agem de Dalstirvirk comeava a despontar em core vida, ainda que com certa timidez. O rio escuroque o cindia estava empolado pelo degelo do gla-ciar a norte, cuja lgida fronte comeava aderreter com a ligeira subida de temperatura, ehavia agora no ar um distinto cheiro a verde quese misturava com o odor terral da rocha vulcnicapreta e molhada que predominava no vale. Nodeixava de estar frio, sobretudo devido ao ventoque varria a paisagem e ao borrifar das inmerascascatas ao longo do desfiladeiro que acompan-hava o trajecto do rio, mas a temperatura tornara-se bem mais suportvel ao longo dos ltimos diase os primeiros sinais da chegada da Primaveraeram habitualmente recebidos com alegria e feste-jos por parte dos wolhynos.

    Naquele dia, porm, ningum pareceu encon-trar motivo algum para celebrar e Quenestilcompreendia-os perfeitamente. Acocorado na pon-ta de uma afilada salincia rochosa com vista parao vale, o eahan contemplava a agitada caterva deskrimmen e ulka tr acampados num vasto bivaque

  • que parecia estar a sitiar o crculo de formaesbaslticas onde os gar d ing e os seus squitospermaneciam voluntariamente encurralados. Nen-hum dos grupos se sentia bem com a proximidadedo outro, embora os wolhynos estivessem clara-mente menos vontade com toda a situao, quemais parecia uma sublevao das foras selvagensdo ermo com o intuito de erradicar a sua presenados Fiordes. Quenestil no os podia culpar, poisera fcil tirar esse tipo de ilaes quando se estavacercado por uma horda de brbaros e humanidesmonstruosos, sobretudo quando se guerreara comesses mesmos ao longo da sangrenta e venalhistria dos Fiordes dos Piratas. Como se isso nobastasse, havia todo um tom subjacente depressgios apocalpticos que, aliado certeza daguerra iminente, deixava todos apreensivos: osskrimmen pelo facto de a sua terra estar a ser in-vadida uma segunda vez, desta feita com intentomanifestamente hostil; e os wolhynos pelo medode perderem a terra para a qual haviam sido exila-dos, sabendo que nada havia para eles nas terrasa sul e que no tinham para onde fugir.

    Quenestil compreendia isso tudo. E no se im-portava. Que roessem as unhas de nervos, sesobressaltassem com os rinchos assustados doscavalos que sentiam o cheiro dos ulka tr e perd-essem noites de sono com o choro das crianasassustadas. Talvez isso os tornasse menos

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  • refractrios e menos dispostos a tomarem partenas intrigas dos seus gar d ing , que mesmo em talsituao conseguiam arranjar tempo para conspir-ar contra ou a favor dos seus pares, tudo por terrae ovelhas.

    Terra e ovelhas. A haste da lana pousadasobre os seus joelhos pareceu tremer em solidriafria quando o shura nela crispou os dedos, e ascorreias de couro rebentadas oscilaram na base daponta de afiadssima obsidiana. O Fragor pareciaestar a ficar impaciente. Reivindicava as promes-sas de destruio que Quenestil lhe fizera emEihrin e que este tardava em concretizar, e porvezes era-lhe difcil refrear os acessos de raiva quese iam tornando mais frequentes conforme os diaspassavam. A sua clera podia estar focada emTanarch e na terrvel vingana que desencadeariasobre os malditos traidores da desgraada nao,mas a mais pequena contrariedade enchia-o devontade de comear logo ali, com os wolhynos ecom quem quer que se lhe metesse no caminho.Tentara mesmo manter-se longe de tudo e todosno ltimo dia enquanto esperava pela chegada dosrestantes kahrkar que faltavam, pois vontade nolhe faltara de empalar algum. flska fora uma par-ticularmente forte candidata a conhecer a sualana mais de perto, com a sua insistncia em dara entender a toda a gente que estava nas boas

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  • graas do salvador ro lden, e as suas constantestentativas de ser vista na presena dele.

    E depois, claro, havia Slayra.Apesar dos eventos que se aproximavam, da

    iminncia da guerra e do encapelar das Vagas deFogo, a eahanoir continuava a faz-lo sentir-secomo um jovem touro excitado. Evidentementeque no a perdoara e o sentimento parecia serrecproco, mas a sua mera proximidade pareciatornar tudo um pouco mais complicado que aquiloque deveria ser. O seu caminho estava claro, a suavontade era resoluta e o seu objectivo estava bemdefinido, mas a presena de Slayra por si s bas-tava para lhe desviar frequentemente a atenodos assuntos mais importantes. No fundo, foraapenas mais uma razo para o shura se manterlonge do crculo basltico, e este assim fizera,evitando dessa forma Slayra, os bebs, os olharespreocupados dos eahlan e o irritante ar de ovelhasassustadas de boa parte dos wolhynos.

    J no pela primeira vez, o eahan teve vont-ade de arrojar a sua lana para o meio do vale, or-denando s fontes de gua quente que irrompess-em em jactos escaldantes, que o glaciar a norterusse numa torrente de neve e gelo para soterrartodos, wolhynos, ulka tr e skrimmen. No haviaqualquer nobreza nas intenes de nenhum deles,e embora os segundos estivessem em grandeparte isentos de culpa e agissem apenas de acordo

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  • com as suas crenas, sem qualquer interesse ul-terior, nem mesmo isso os eximia da indiscrimin-ada fria que ardia em Quenestil. O relmpagono escolhia entre a rvore viosa e o troncoapodrecido, e o eahan estava perfeitamente cientede que a torrente de vingativa ira que iria desen-cadear no escolheria alvos, que podia apenas serdireccionada, nunca controlada. Os wolhynos sen-tiam isso e estavam receosos, razo pela qualhavia que os acirrar com um primeiro derramar desangue tanarchiano. Os skrimmen pareciam sufi-cientemente motivados, e nem eles nem os ulka trestavam minimamente preocupados com a possib-ilidade de se queimarem eles tambm com o in-cndio que pretendiam atear. A sua to aguardadaprofecia estava a desenrolar-se diante dos seus ol-hos e Quenestil sabia que da parte deles no veriaquaisquer reservas ou hesitaes em seguirem assuas ordens.

    Porm, e por muito importante que o seu con-tributo fosse, no passavam de uma pequenaparte das foras que poderia vir a ter ao seu disporcom os Fiordes dos Piratas unidos. Precisava dosgar d ing do seu lado, e quanto menos homenstivesse de matar para isso, melhor, razo pelaqual iria tentar seguir as sugestes de Slayra, pormuito pouca confiana que estas lhe pudessem in-spirar. Afinal, para que estas pudessem ser leva-das a cabo, teria de contar com a cooperao de

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  • Deadan, cujas convices seriam certamente pos-tas em causa por aquilo que lhe iria sugerir.

    Como se atrados pelos seus pensamentos, ospassos acerados do siruliano fizeram-se entoouvir nas costas do eahan, que permaneceu nasua posio acocorada, como se no o tivesseouvido. Deadan vinha acompanhado pelo kahrkrmal-encarado que dava pelo nome de orm, mascaminhava diante deste numa obstinada recusaem ser conduzido. Estava visivelmente insatisfeitocom o facto de ter deixado a famlia Lasan despro-tegida e no tinha de todo o ar de quem estavadisposto a ter uma conversa prolongada. Quenestildeduziu-o mesmo sem olhar para ele e ficou satis-feito. Quanto menos tivesse de falar, melhor, poisas nicas palavras que o Fragor estava disposto aouvir eram os pedidos de misericrdia daquelesque lhe haviam sido prometidos.

    orm deixou-se ficar na base da salincia,cruzando os braos e ajeitando com os ombros omachado que trazia a tiracolo nas costas. A suabarba e cabelo pretos pareciam misturar-se umcom o outro e com as suas sobrancelhas, o que lhedava um ar selvagem e desconfiado que sedestacava mesmo entre os outros kahrkar . Haviaporm algo na situao que lhe dizia que a con-versa entre o eahan e o siruliano podia bem ser vi-tal para os seus interesses e para os dos seuspares, e Quenestil nem teve de lhe pedir que os

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  • deixasse a ss. Deadan continuou a avanar, toindiferente presena do kahrkr quanto inicial-mente parecera, e no hesitou um passo sequerao dirigir-se ponta da salincia da rocha, na qualum passo em falso ou uma rajada de vento maisforte podia bem faz-lo cair para uma morte certa.

    Desejava falar comigo, Quenestil Anthalos? perguntou, como se nem tivesse considerado talpossibilidade.

    O eahan acocorado no lhe respondeu de ime-diato e Deadan cruzou ele tambm os pacientesbraos, espetando os olhos cor de ao nas costasde Quenestil. Envergava o mesmo arns desempre, embora coberto por uma tnica de lbranca e com peles de ovelha sobre as enormesespaldeiras, de entre as quais se projectava opunho do seu espado siruliano, que por si s lhemerecera o respeito de todos os skrimmen. A suasangrenta fama precedia-o desde que acompan-hara Quenestil na sua malfadada misso de cap-tura da kuvamora, e os brbaros haviam mantidouma respeitosa distncia de Deadan desde oprimeiro momento que o tinham visto.

    Como correm os treinos? perguntouQuenestil, sem olhar para Deadan.

    Os wolhynos tm um grande respeito poresses kahrkar e o uso de armas no lhes es-tranho respondeu sucintamente o Ajuramen-tado. Falta-lhes contudo convico.

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  • O eahan nutou, girando a pensativa haste dasua lana com as mos, como se estivesse a enro-lar uma estriga numa roca para fiar as palavrascertas, que contudo teimavam em no lhe ocorrer.

    Est na altura de ir buscar as ovelhas aosvales das montanhas acabou por dizer, per-scrutando a paisagem enquanto o vento lhe sacu-dia madeixas ruivas diante da cara. Elas cos-tumam passar l o Inverno, em prados viradospara sul, e agora na Primavera a melhor alturapara as tosquiar.

    Deadan no percebeu por que razo Quenestilpartilhava tais banalidades com ele, mas nadadisse e o eahan continuou.

    A l de ovelha um dos bens mais import-antes aqui nos Fiordes. No s vale dinheiro como o dinheiro em muitos casos explicou, semnunca tirar os olhos do vale, nem largar a curtahaste da sua lana. Ao invadirmos Tanarch, es-taremos a comprometer a frgil economia destelugar e a subsistncia de um grande nmero depessoas.

    O jovem Ajuramentado continuou semperceber.

    Sacrifcios, Deadan esclareceu Quenestil,erguendo-se num lento e ponderoso gesto, evirando-se por fim para ele. Eu j fiz os meus.Os wolhynos tero de fazer os deles, bem como osskrimmen e os ulka tr...

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  • Estou ciente disso, Quenestil Anthalos interrompeu-o Deadan , e espero que no estejaa pr em causa a minha vontade e determinao.Farei tudo para que os Lasan sejam protegidos e essa a minha primeira prioridade, tal como o jureiao Castelo Aedreth Caeryth. Contudo, e desdeque isso no ponha em causa a segurana dafamlia Lasan, estou igualmente disposto a fazer oque for necessrio para que Tanarch pague pelasua traio.

    Bendito Deadan. Com ele no eram necessri-os quaisquer rodeios. Seria fcil pensar nele apen-as como uma arma, mas Quenestil no queria cairem tal armadilha, pois o bem-estar do jovemAjuramentado no lhe era de todo indiferente e orude companheirismo que os unia temperou a friapragmtica do eahan.

    bom sab-lo disse, erguendo ligeira-mente o canto da boca na tentativa de um sorriso. Mas quero que saibas que aquilo que te voupedir vai contra os teus princpios.

    Uma racha abriu-se na firme linha que era aboca de Deadan, mas este nada disse.

    Preciso que cases com a Y htte.O siruliano piscou os olhos duas vezes e, em-

    bora o verbo lhe tivesse feito confuso, era evid-ente que o nome no lhe dissera nada.

    A filha da flska explicou Quenestil. Preciso que cases com ela, Deadan, caso contrrio

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  • nunca conseguirei unir os Fiordes num exrcitopara invadir Tanarch.

    Eu... Embora nada se pudesse comparar ordem que o Castelo lhe dera, Quenestil rarasvezes vira Deadan to aturdido. Explique-semelhor, Quenestil Anthalos...

    Como disse, eu sei que isto vai contra osteus princpios e nunca to pediria se no soubesseque a nossa nica hiptese assegurou-lhe oshura. Estive a pensar muito nestes ltimos di-as, considerei todas as possibilidades e percebique no temos outra forma de unir os Fiordes con-tra Tanarch.

    No valia a pena dizer que fora Slayra quemlhe dera a ideia. O Ajuramentado no precisava desaber que a j de si difcil de engolir sugestopartira de uma eahanoir.

    Como j deves ter percebido, a nica coisaque impede esta gente de se matar uma outraso as dvidas de sangue. Quando se mata al-gum, preciso pagar uma compensao famlia, caso contrrio, esta tem o direito e o de-ver de se vingar.

    Ele prprio no o percebera at Slayra lhochamar ateno, mas essa parte era irrelevante.

    Se te casares com a Yhtte, passas a fazerparte da famlia da flska. Dessa forma, a dvida desangue que Tanarch tem para contigo passar adizer-lhes respeito tambm continuou Quenestil,

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  • sentindo que espetara uma faca no corao deDeadan e que lha torcia no peito. No s flskamas tambm aos familiares dela e aos seus aliadostambm. Odhar irmo da flska e um gar d ingcom uma certa influncia. Knrl aliado dela e ogar d ing mais poderoso dos Fiordes dos Piratas.Com o apoio dos dois, conseguiramos facilmentereunir um exrcito para invadirmos Tanarch evingar os teus companheiros.

    A expresso descoroada de Deadan nodeixava entrever os seus pensamentos e Quenestilno sabia sequer se ele estava a acompanhar o ra-ciocnio. Aprendera o suficiente acerca da culturasiruliana durante a sua viagem na barcaa dosconscritos antes da batalha de Aemer-Anoth, elembrava-se bem que o sangue e a linhagem eramdois elementos vitais para a identidade culturaldos protegidos de Sirul. Recordava-se perfeita-mente da cena qual assistira em Val-Oryth uma expedio de concepo, tal como Allumnoa apelidara , na qual o Mandatrio Aelgar quiseraque uma mulher siruliana casada com um tanar-chiano tivesse relaes com um dos seus Ajura-mentados, com o intuito de dar luz um rapaz queposteriormente pudessem vir buscar. A mulheraparentemente quebrara as leis acordadas entreTanarch e a Sirulia, segundo as quais no deviacontrair matrimnio com um no-siruliano e nuncase recusar a cumprir o seu dever de procriadora

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  • quando