crónica teste

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"Enquanto se come não se lê o jornal." Luísa diz isto todos os dias, João faz "hum... hum..." com a boca cheia. Mais nada. Mas hoje interroga-se: está a ler o jornal enquanto come ou está a comer enquanto lê o jornal? Faz a sua diferença. Quando se concentra no que lê, apercebe-se sequer do paladar daquilo que mastiga? Quando saboreia com gosto o que come, não lhe foge a atenção daquilo que lê? Bom, um dia destes há-de pôr em pratos limpos essa grave questão da dependência dos sentidos. Hoje vai limitar-se a comer e a ler o jornal - e chega. Que come? "Que como? Ah! é uma costeleta, desculpem, nem sabia, estava distraído na leitura das notícias." Por agora, só notícias. Artigos, reportagens, depois se vê. Para já, as notícias, as mais frescas e gordas. O ministro disse que... O que é que disse o ministro? Ora essa, mesmo agora li e já não me lembro... Por culpa da costeleta. "O problema das costeletas é que, de vez em quando, tem de se lhe dar atenção por causa do osso. O melhor, para ler o jornal, ainda é a sopa. Desde que não esteja muito quente: quando a sopa está muito quente o vapor embacia os óculos e dificulta a leitura do jornal." Mas deixa cá ver as notícias. (...) Antes não tivesse sabido: como pode agora ter um dia alegre, descontraído, informado que está de uma mortanda de assim? Sofre e bebe um trago de tinto. (...) Volta a página em simultâneo com uma garfada. "Centenas de fuzilamentos no Irão." Mas porque diabo foi ler essa notícia, que vai estragar-lhe o dia, a semana, o mês, talvez a vida, imaginando o momento terrível, a angústia dos condenados à espera das balas? E as viúvas... os órfãos... "Há melão?" - "Pêras" - "Dá-me uma. Descascada, se fazes favor..." (...) "O quê?! Milhões de pessoas morrem de fome no mundo?.." João tem um nó na garganta, por onde vão passando os bocados da pêra que Luísa desnudou com esmero. Assalta-o uma revolta profunda, tem até vontade de chorar. À noite já não irá à festa de anos do Octávio. Como poderia, estar para ali, mordiscando croquetes e rissóis de camarão, entre uísques e gracejos, após tomar conhecimento de que populações inteiras não têm sequer uma sopa? Dobra o jornal e afasta o prato. (...) Atende o telefone. É Octávio. - Alô, João! Novidades? - Novidades?... Nada, tudo OK. - Então, até logo. - Até logo, pá. Mário Zambujal, "Uma Pratada de Mundo", in Fora de Mão, Oficina do Livro

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Teste Português 10º

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Page 1: Crónica Teste

"Enquanto se come não se lê o jornal." Luísa diz isto todos os dias, João faz "hum... hum..." com a boca cheia. Mais nada.

Mas hoje interroga-se: está a ler o jornal enquanto come ou está a comer enquanto lê o jornal? Faz a sua diferença. Quando se concentra no que lê, apercebe-se sequer do paladar daquilo que mastiga? Quando saboreia com gosto o que come, não lhe foge a atenção daquilo que lê? Bom, um dia destes há-de pôr em pratos limpos essa grave questão da dependência dos sentidos.

Hoje vai limitar-se a comer e a ler o jornal - e chega. Que come? "Que como?

Ah! é uma costeleta, desculpem, nem sabia, estava distraído na leitura das notícias."

Por agora, só notícias. Artigos, reportagens, depois se vê. Para já, as notícias, as mais frescas e gordas. O ministro disse que... O que é que disse o ministro? Ora essa, mesmo agora li e já não me lembro... Por culpa da costeleta. "O problema das costeletas é que, de vez em quando, tem de se lhe dar atenção por causa do osso. O melhor, para ler o jornal, ainda é a sopa. Desde que não esteja muito quente: quando a sopa está muito quente o vapor embacia os óculos e dificulta a leitura do jornal."Mas deixa cá ver as notícias. (...) Antes não tivesse sabido: como pode agora ter um dia alegre, descontraído, informado que está de uma mortanda de assim? Sofre e bebe um trago de tinto. (...)

Volta a página em simultâneo com uma garfada. "Centenas de fuzilamentos no Irão." Mas porque diabo foi ler essa notícia, que vai estragar-lhe o dia, a semana, o mês, talvez a vida, imaginando o momento terrível, a angústia dos condenados à espera das balas? E as viúvas... os órfãos... "Há melão?" - "Pêras" - "Dá-me uma. Descascada, se fazes favor..." (...) "O quê?! Milhões de pessoas morrem de fome no mundo?.." João tem um nó na garganta, por onde vão passando os bocados da pêra que Luísa desnudou com esmero. Assalta-o uma revolta profunda, tem até vontade de chorar. À noite já não irá à festa de anos do Octávio. Como poderia, estar para ali, mordiscando croquetes e rissóis de camarão, entre uísques e gracejos, após tomar conhecimento de que populações inteiras não têm sequer uma sopa?

Dobra o jornal e afasta o prato. (...)

Atende o telefone. É Octávio.

- Alô, João! Novidades?

- Novidades?... Nada, tudo OK.

- Então, até logo.

- Até logo, pá.

Mário Zambujal, "Uma Pratada de Mundo",in Fora de Mão, Oficina do Livro

Notas:desnudou: descascou (fig.).esmero: perfeição;primor; cuidado extremo.

1. De entre cada grupo de afirmações, assinala a que, segundo o texto, é verdadeira.

1.1 O título indica que:

as pessoas esquecem rapidamente as notícias trágicas

não se deve ler à mesa

Page 2: Crónica Teste

é perigoso ler enquanto se come

1.2. O melhor para ler o jornal é a sopa por:

não embaciar os óculos

arrefecer enquanto se lê

ser mais fácil de comer

2. Delimita as partes do texto, tendo em conta cada síntese apresentada.

1.a parte: Como lê e como come ao mesmo tempo

2.a parte: Sofre com as notícias, mas não se esquece da comida

3.a parte: Acaba a leitura, acaba o sofrimento

4. O que revela o diálogo final?

5. Com base no texto, e também com a ajuda de transcrições, esclarece, num comentário com cerca de setenta palavras, a frase:

A banalização das notícias trágicas leva-nos à indiferença.