crÍtica À concepÇÃo tradicional dos direitos do ser humano

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CRÍTICA À CONCEPÇÃO TRADICIONAL DOS DIREITOS DO SER HUMANO PELA PERSPECTIVA PROPOSTA POR RAOUL VANEIGEM Gabriel Seabra de Freitas Medeiros 1 RESUMO O objetivo deste artigo é explorar uma possível crítica à concepção tradicional dos direitos humanos sob a perspectiva abordada por Raoul Vaneigem. Partindo de algumas de suas obras, busca-se a analisar como os direitos do ser humano vêm sendo tratados tradicionalmente em vida, e como o autor pensa a criação de um estilo de vida em que direitos existem sem deveres, enquanto conquista de todos os seres humanos, reconhecendo como único poder a supremacia do vivente, onde a vontade de viver e a sua consciência se arrogam em todo lado por uma soberania sem partilhas, na busca constante por substituir a errata “não há direitos sem deveres” pelo princípio “não há direitos sem desejos, não há desejos sem direitos”. Palavras-chave: Direitos. Ser humano. Vida. CRITICS TO THE TRADITIONAL CONCEPTION OF THE HUMAN BEING RIGHTS BY THE PERSPECTIVE PROPOSED BY RAOUL VANEIGEM ABSTRACT This paper has the objective to explore one possible critic to the traditional conception of the human being rights by the perspective proposed by Raoul Vaneigem. From his principals works, it analysis how the human rights has been traditionally treated in life, and how the author propose the creation of a new style of life which rights exists without duties, been a conquest of all the human beens, where the only 1 Graduando em Direito pela Faculdade Natalense para o desenvolvimento do Rio Grande do Norte – FARN; Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: [email protected].

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Page 1: CRÍTICA À CONCEPÇÃO TRADICIONAL DOS DIREITOS DO SER HUMANO

CRÍTICA À CONCEPÇÃO TRADICIONAL DOS DIREITOS DO SER HUMANO PELA PERSPECTIVA PROPOSTA POR RAOUL VANEIGEM

Gabriel Seabra de Freitas Medeiros1

RESUMO

O objetivo deste artigo é explorar uma possível crítica à concepção tradicional dos direitos humanos sob a perspectiva abordada por Raoul Vaneigem. Partindo de algumas de suas obras, busca-se a analisar como os direitos do ser humano vêm sendo tratados tradicionalmente em vida, e como o autor pensa a criação de um estilo de vida em que direitos existem sem deveres, enquanto conquista de todos os seres humanos, reconhecendo como único poder a supremacia do vivente, onde a vontade de viver e a sua consciência se arrogam em todo lado por uma soberania sem partilhas, na busca constante por substituir a errata “não há direitos sem deveres” pelo princípio “não há direitos sem desejos, não há desejos sem direitos”.

Palavras-chave: Direitos. Ser humano. Vida.

CRITICS TO THE TRADITIONAL CONCEPTION OF THE HUMAN BEING RIGHTS BY

THE PERSPECTIVE PROPOSED BY RAOUL VANEIGEM

ABSTRACT

This paper has the objective to explore one possible critic to the traditional conception of the human being rights by the perspective proposed by Raoul Vaneigem. From his principals works, it analysis how the human rights has been traditionally treated in life, and how the author propose the creation of a new style of life which rights exists without duties, been a conquest of all the human beens, where the only power comes from the supremacy of the living, where the will of life and it's conscience moves to all without any sharing, searching constantly for the change from the erratum “no rights without duties” for the principle “no rights without desire, no desires without rights”.

Keywords: Rights. Human being. Life.

Natal – RN2011

1 Graduando em Direito pela Faculdade Natalense para o desenvolvimento do Rio Grande do Norte – FARN; Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail: [email protected].

Page 2: CRÍTICA À CONCEPÇÃO TRADICIONAL DOS DIREITOS DO SER HUMANO

“Contou, certa vez, um poeta que ficara toda uma noite a buscar palavras para dizer a vida. No final da madrugada insone, na qual não lhe tinha vindo à pena o dito mais perfeito, uma pequena formiga atravessou a sua página em branco. Com o seu olhar indormido, o poeta observou a passagem livre do inseto até que ele sumisse nas bordas da folha de papel. Então, ele largou a caneta e buscou o sono: a vida tinha se mostrado em movimento melhor que qualquer palavra sua pudera jamais descrever”.

(Carmen Lúcia, 20082)

1 CRÍTICA AOS DIREITOS DO HOMEM

Para a literatura tradicional3, o direito fundamental de primeira geração – a liberdade

– advém da história da liberdade concedida aos homens.

Estas liberdades, por sua vez, confundem-se com as liberdades concedidas pelos

homens à economia. Raoul Vaneigem critica o desenvolvimento dos direitos do homem por eles

resultarem da expansão do livre-câmbio:

É sempre aproveitando estas crises que uma sociedade reivindica mais radicalmente a sua humanidade e toma mais claramente consciência do jugo tutelar e repressivo que a economia da exploração representa4. Os direitos do homem são simplesmente extensões particulares de um direito único, o de sobreviver com o único fim de trabalhar para a sobrevivência de uma economia totalitária, que se impôs falaciosamente como único meio de subsistência da espécie humana. (…) Os direitos dos homens pagam-se com os deveres fixados num contrato social imanente. Este impõe a todos os indivíduos que paguem o preço da sua sobrevivência aleatória, aceitando um poder superior ao qual devem obedecer e

2 ROCHA, Carmen Lúcia, A. Direito 2. Disponível em: http://www.direito2.com.br/stf/2008/dez/9/dudh-ministra-carmen-lucia-fala-do-direito-a-vida-a-liberdade-e. Acesso em 07.10.2011.

3 “São por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual” (Paulo Bonavides, 2007, pág. 564). (Grifos acrescidos).

4 Em outubro de 2011, a ONG internacional Avaaz começou uma campanha online para arrecadar assinaturas em um projeto chamado O Mundo vs Wall Street, com o objetivo de lutar pela “democracia real”. Segundo o site da ONG, “milhares de norte-americanos ocuparam sem violência a Wall Street, um epicentro do poder financeiro global e da corrupção. Eles são os últimos raios de luz em um novo movimento pela justiça social que está se espalhando rapidamente pelo mundo: de Madrid a Jerusalém e a 146 outras cidades, com outras aderindo a cada instante. (…) Este ano pode ser o nosso 1968 desse século, mas para ter sucesso ele deve ser um movimento de todos os cidadãos, de todas classes sociais. Disponível em: http://www.avaaz.org/po/the_world_vs_wall_st/?cl=1314165134&v=10609. Acesso em 10.10.2011. Outra campanha de nível internacional é a United for Global Change, que chegou ao Brasil com o título de “democracia real”, que tem como objetivo reestituir a democracia aos indivíduos, cansados de viver uma vida economizada em tanta representação. “O caráter livre, igualitário e participativo dos procedimentos e formas de organização resulta da vontade de encontrar procedimentos que possam unir todos aqueles que são afetados pela crise e insatisfeitos com o sistema político atual. O caráter pacifista e não-partidário da chamada original foi a condição que formou uma esfera pública comum, onde todos se encontrariam sem emblemas para co-decidir e discutir no mesmo nível. A recusa de atribuir ou eleger representantes não causa mal-estar apenas para as forças do Estado que não sabem como lidar com isso, essa recusa subverte a sua tática de manobras, de difamar e destruir expressões populares de raiva. Mais do que isso, essa 'ausência de rosto', que inferniza a vida de jornalistas reaças (sic), é o melhor caminho para o movimento garantir transparência na sua organização, enfim, tudo que for criado expressará o desejo de todos – não apenas a vontade da maioria dos que são chamados de 'vanguardas' ou 'politizados'. Não representação.E assim, a questão dos procedimentos não é simplesmente uma questão de organização, mas uma questão fundamental quanto à sua essência política. Um modo de salvaguardar as condições da unidade, envolvimento, livre participação no direito de expressão e no processo decisório das assembleias do povo, grupos de trabalho, assembleias temáticas e sua imediata revisão e controle. Esse entendimento que rejeita qualquer tipo de representação ou de mediação é salvaguardado pela circulação constante de posições revogáveis e atravessa todas as estruturas e funções nascidas por esse movimento”. Disponível em: http://www.democraciarealbrasil.org/. Acesso em 11.10.2011.

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cujo lucro têm por missão aumentar5.

Neste sentido, à medida que foi estendendo o seu domínio totalitário ao mundo

inteiro, a economia de exploração atingiu um modo de sobrevivência autônomo que é assegurado

pela simples reprodução do capital especulativo, sugerindo que, em última análise, essa economia

pode prescindir de homens6.

Vaneigem entende que o contrato social segundo o qual o Estado concede ao homem

um estatuto de cidadão, consubstancia um conto do vigário, conforme ao espírito mercantil:

Com efeito, o Estado possui todos os direitos e encontra-se em posição de não conceder nenhum se o considerar útil7. Depois, o cidadão não é o indivíduo, mas a sua forma abstrata posta ao serviço de um poder que invoca o seu consentimento fictício para se exercer à sua custa. Finalmente, cedendo sob a coerção, o homem concreto abandona-se facilmente à inércia, à passividade, à resignação, instilando nas suas revoltas um desespero que as conduz ao fracasso ou, pior, à vitória mediante a inversão do projeto de emancipação que as havia inspirado. (…) Ao homem, sacralizado pelo pacto que a religião o obrigava a assinar com os Deuses, sucede o cidadão, posto ao serviço do Estado ao abrigo de um contrato cujos termos não escolheu. A dessacralização das religiões sacralizou o Estado e aqueles que, servindo o seu ministério, se tornam os garantes de direitos que postulam a obediência. O humanismo é o culto do homem aliado. (…) Os direitos humanos,

5 VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Antígona, 2003, págs. 7 e 8.

6 Em referência à “história das liberdades”, Vaneigem nos lembra que: “a preocupação de rendibilidade promulgou o primeiro ato humanitário: a imposição do trabalho aos prisioneiros de guerra, anteriormente exterminados para se poupar os custos de os alimentar e para os oferecer em holocausto aos Deuses, cujos favores a comunidade solicitava. A escravatura, substituindo-se ao assassinato, traduz bem a verdade de um sistema que promete a sobrevivência unicamente àqueles que o servem. (…) Os direitos que as lutas sociais arrancaram ao poder foram em última análise concedidos ao homem abstrato em virtude de um reequilíbrio constante das leis do lucro, única e frágil proteção contra a explosão caótica que ameaça sempre a racionalidade comercial. (…) As primeiras cartas das liberdades surgem no fermento das insurreições comunalistas que, entre o século XI e o século XIII, ergueram contra o imobilismo agrário e a sua aristocracia parasitária a muralha das cidades conquistadas para o desenvolvimento comercial. O vento das liberdades urbanas inspirou à burguesia pré-industrial a constituição de um direito de recurso contra a arbitrariedade do regime feudal, cujo parasitismo predador dificultava em todo lado a livre circulação de mercadorias. (…) A declaração dos direitos do homem e do cidadão, adotada pela Assembléia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, e inspirada aos seus principais redatores, Anson, Mounier e Mirabeau, pelas concepções de Diderot, Rousseau, e Montesquieu, põe fim juridicamente ao Antigo Regime e inaugura um reino em que as liberdades hão-de sempre espalhar os germes de uma subversão, que será esmagada com igual determinação pela expansão econômica que foi a sua instigadora. A primeira parte do artigo 1º, 'os homens nascem livres e iguais em direito' revoga para sempre o odioso privilégio de nascimento dos pretensos aristocratas, e só ela seria suficiente para sua glória. O uso legítimo que os regimes burgueses e burocráticos extraíram da segunda parte, 'As distinções sociais só podem basear-se na utilidade comum', fez dela o modelo de uma vergonhosa hipocrisia. A sua radicalidade terá como particular consequência o decreto da Convenção francesa de 4 de fevereiro de 1794 que aboliu a escravatura, embora este só tenha entrado em vigor em 1848, graças à obstinação de Victor Schoelcher. A escravatura legal perpetuada pelo trabalho assalariado não foi, até agora, abolida. (…) em 1790, Condorcet denunciava, no seu artigo Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidade, o caráter patriarcal da declaração dos direitos do homem e do cidadão. Em setembro de 1791, Olympe de Gouges publica a declaração dos direitos da mulher e da cidadã. (…) Seriam precisos quase dois séculos para que a mulher fosse reconhecida, não como o futuro do homem, mas como digna de partilhar a alienação do homem sem além disso sofrer a opressão daquele. É verdade que a relativa emancipação da mulher deve muito ao desenvolvimento da economia de consumo na segunda metade do século XX e ao estatuto privilegiado que o mercado se apressou a reconhecer-lhe, bom como à criança, entregue com toda a impunidade à violação publicitária. A memória de Olympe de Gougues, decapitada em 3 de novembro de 1793, quatro meses após a declaração dos direitos do homem e do cidadão do ano I, de Claire Demar, morta na solidão após ter publicado, em 1833, Apelo de uma mulher do povo sobre a libertação da mulher, e de Qurat'u l'ayn, assassinada pelo Islão por, no Irão de 1840, ter queimado publicamente o véu e incitado as mulheres a rejeitar a opressão dos homens. (…) Refrear e moderar os efeitos da barbárie é reconhecer-lhe direito” (VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Antígona, 2003, págs. 9, 10, 15 e 16, 17 e 18).

7 Na teoria jurídica tradicional, “o conceito de utilidade pública se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pág. 60).

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sendo supostos precaver-nos contra tudo o que tente violá-los, sancionam de fato o caráter opressivo de uma comunidade cujos interesses lesam ou contrariam os dos seus membros. É tempo de promover uma sociedade que prescinda de garantias tutelares por ter eliminado as condições que, precisamente, geram a violência, a violação e a opressão, e alienam a sua contestação8.

Segundo a literatura tradicional9, foi no século XX que os direitos fundamentais de

segunda geração10 ganharam sua força.

Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude11. (Grifos acrescidos).

Como se pode perceber, para Raoul Vaneigem12, o culto ao homem abstrato seria

resultado da institucionalização da vida, divergindo da literatura supracitada. O ciclone da

especulação financeira derrubou os valores do passado, nenhuma ética resiste ao fluxo monetário

onde tudo se anula ao trocar-se por tudo. Desta forma, os nossos únicos critérios, as nossas únicas

referências só podem nascer de nós mesmos e de um projeto de sociedade que faz reacender em

cada um de nós o sentimento humano, a especificidade do homem nascido para viver, e não para

sobreviver como um animal cercado na selva do cálculo egoísta13. E faz o seguinte comentário:

A nossa história encontra-se perante uma nova mutação. Após a revolução agrária, que elimina a economia recolectora e inaugura a economia de exploração, depois da Revolução Francesa, que põe fim ao predomínio do modo de produção agrário e entroniza o reino do livre-câmbio, entramos numa era em que a exploração do homem e da natureza é suplantada por uma aliança que privilegia a produção de energias renováveis, o valor de uso dos bens, a utilidade social e o respeito pelo ambiente. Pela primeira vez, a mudança de sociedade deixa entrever condições propícias para o indivíduo que, cansado das liberdades fictícias em que são pródigos os poderes políticos, sociais e econômicos, resolveu assumir direitos finalmente concedidos a esta vontade de viver, que é nele o desejo de todos os

8 VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Antígona, 2003, pág. 21.

9 “Os direitos de segunda geração merecem um exame mais amplo. Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado” (Paulo Bonavides, 2006, pág. 564).

10 “Os direitos fundamentais de segunda geração são direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão que os ampara e estimula” (Paulo Bonavides, 2006, pág. 564).

11 Idem.12 “Não podemos contentar-nos com direitos abstratos numa sociedade em que o domínio da economia abstrai o homem de si

mesmo. (…) Por mais limpa e ecologicamente correta que se pretenda, a mercadoria não é a vida: é o que a economia tente a pôr no lugar da vida e a subtrair à vida. Acima de uma mutação econômica que reabilite o vivente como objeto de lucro, queremos promover a gratuitidade de uma vida que compete à consciência humana explorar, refinar e harmonizar” (VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem . Lisboa: Antígona, 2003, págs. 23 e 24).

13 Ibidem.

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desejos14.

2 DOS DIREITOS SEM DEVERES À CRIAÇÃO DE UM ESTILO DE VIDA

Segundo a concepção trazida por Raoul Vaneigem, não existem direitos adquiridos,

apenas direitos a conquistar, na medida em que “o desejo de cada um conduzir sua vida segundo a

multiplicidade das paixões, que lhe fortificam o gosto e a pujança, estabelece direitos sem deveres

nem contrapartidas”15.

Queremos substituir a negociata que implicava o preceito “não há direitos sem deveres” pelo princípio “não há direitos sem desejos, não há desejos sem direitos”. Os direitos do ser humano inscrevem-se numa dialética de vida em ruptura com a dialética de morte que prevaleceu até os nossos dias. Lembrarmo-nos de viver elimina o tempo do memento mori, “lembra-te que tens de morrer”. Os direitos do ser humano conferem uma forma social à consciência do vivente enquanto organização humana da natureza. (…) Lutar contra as leis e as condições que nos oprimem e nos corrompem nunca nos ensinou a lutar pelos nossos direitos; em contrapartida, impor os nossos direitos invocando uma legalidade da vida, que sempre nos foi recusada, oferece a garantia mais segura e mais agradável de revogar os decretos que governam a nossa existência quotidiana com o rigor da sua banalidade desumana. A única maneira de combater o pior é obstinarmo-nos a querer o melhor16.

Por esta perspectiva, o cidadão, determinado a assumir as suas responsabilidades, é a

consciência crítica da instituição política e social que o produz. Assume um papel, não se cria

enquanto indivíduo concreto. Por muito necessários que se tenham mostrado na resistência contra a

arbitrariedade e a tirania, não deixam de estar marcados com o selo de uma impostura social que

concede ao cidadão uma liberdade que recusa ao ser de desejos. Uma vez que a ética exige, para se

aplicar, o concurso de leis, deve ser considerada uma disposição efêmera, a expressão de uma

cidadania em busca de superação17. Assim, Raoul Vaneigem reconhece como único poder a

supremacia do vivente.

Em todo o lado onde a vontade de viver e a sua consciência se arrogam uma soberania sem partilha, é a própria noção de direito que se apaga por si mesma. Basta-nos ser humanos para atingirmos a consciência de nunca o sermos suficientemente18.

Nas palavras da Ministra Carmen Lúcia:

14 Idem, pág. 25.15 Ibidem.16 Idem, págs. 26 e 27.17 Ibidem.18 Ibidem.

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A vida é um fazer eterno do homem, o qual não se dá à eternidade. Neste não ser eterno o homem busca, apesar de todos os limites, não se entregar e não se dar a morrer. O direito à vida é uma construção permanente para a perpetuação do homem que busca a sua não morte. Por isso, a vida não é um dado cultural que se converte em direito, mas o conteúdo do direito à vida é fruto de cada cultura e de cada povo em cada momento histórico. Daí porque a Constituição deixa em aberto a dimensão desse direito fundamental e do qual e para o qual todos os outros se voltam. E os conceitos mudam, como a vida muda19.

3 DIREITOS QUE ESTIMULARIAM A CRIAÇÃO E RE-CRIAÇÃO DE ESTILOS DE

VIDA SEM DEVERES QUE PRIVILEGIEM O SER HUMANO

Nesta perspectiva, Raoul Vaneigem cria certos direitos que, ainda que sejam dados,

não se encerram em si mesmos, permitindo a potencialidade criativa da vida na medida em que re-

cria estilos de se viver quotidianamente, de modo a respeitar a força de vida inerente, também, aos

seres humanos (como a outras formas de vida). Os direitos são:

Art. 1º: Todo o homem tem o direito de se tornar humano e de ser tratado como tal20.Art. 2º: Todo o ser humano tem direito à vida21

Art. 3º: Todo o ser humano tem direito à independência

Art. 4º: Todo o ser humano tem direito ao saber

Art. 5º: Todo o ser humano tem direito à felicidade

19 ROCHA, Carmen Lúcia, A. Direito 2. Disponível em: http://www.direito2.com.br/stf/2008/dez/9/dudh-ministra-carmen-lucia-fala-do-direito-a-vida-a-liberdade-e. Acesso em 07.10.2011.20 O privilégio do ser humano é o de recriar, para a felicidade de todos e de cada um, a vida que o criou no caos das suas

potencialidades. O exercício desse privilégio marca o acto fundador de uma civilização do homem para o homem. (…) O sentido humano é a expressão da vontade de viver que acede à consciência individual e colectiva. Rege um modo de organização existencial e social capaz de favorecer a exuberância natural sem cair numa turbulência que tempera os seus excessos com a morte e a autodestruição. Elimina a tirania que sacrifica o indivíduo em nome da espécie, vende a sobrevivência ao preço do sofrimento, da miséria, da doença, das epidemias, das guerras e dos massacres, e apelida de utopia, delírio ou quimera o simples desejo de se comportar como ser humano. (…) Se o homem produziu um princípio de governo que reduz o vivente a uma taxa de lucro, não é verdade que será igualmente capaz de quebrar o jugo que se impôs a si próprio? (…) É próprio do humano apurar a vida, bem como transformar na perspectiva da felicidade o que ela contém de destruidor. É exclusivamente física, somática, ilimitada, una e múltipla. Basta-se a si mesma e dispensa-nos para sempre de invocar o socorro das religiões, das metafísicas, das ideologias, dessas excreções do espírito que sacralizam a debilidade do homem economizado, adjurando-o a confiar num governo superior e exterior a si. A criação é o modo de ser da vida humana. (VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Antígona, 2003, págs. 31 a 33).

21 A vida não é um dado, mas um movimento, um devir sobre o qual cada um tem a capacidade de influir favoravelmente pelo poder e a consciência do que possui em si de mais vivo. Exigir o primado da vida não é abandoná-la à sua proliferação selvagem, é apreendê-la segundo uma perspectiva humana que a recria. A vontade de viver é o desejo de todos os desejos. (…) Nada entra num projecto de vida sem que envolva uma superação da sobrevivência, ou seja, da vida economizada. O direito de viver anula o contrato social e existencial imposto em nome da sobrevivência da espécie e faz assentar o bem comum na felicidade dos indivíduos. À medida que a economia de exploração encontra o seu termo e a sua consumação no reino absoluto da mercadoria, o direito de viver torna-se também o único garante da sobrevivência da terra e das suas espécies. (…) O direito à vida só é dado na medida em que é constantemente conquistado. A vida de uma só pessoa é a vida de todos. (…) Os direitos de viver excluem os direitos que a morte se arvorou até agora ao perpetuar o espírito de fatalidade e a resignação às leis da pretensa “necessidade”. Não há a liberdade de oprimir, de martirizar, de matar, de maltratar, de condenar à fome, de coagir, de subornar, de desprezar, de julgar, de destruir... (…) Assim, trata-se menos de oferecer cauções à adversidade do que fazer prevalecer um desejo unânime de felicidade (…) A eutanásia, o controlo e a regulação dos nascimentos humanos e animais, o internamento dos loucos e dos assassinos representam problemas que só podem ser abordados e resolvidos na sua especificidade por um projecto global em que a vida, reivindicando a sua supremacia, se aplica a suprimir as causas do mal para tornar obsoletos os remédios que o próprio mal sempre sugeriu tornando-os conformes à sua natureza (Idem, págs. 34 a 36).

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Art. 6º: Todo o ser humano tem direito à livre disposição do seu tempo

Art. 7º: Todo o ser humano tem o direito de se descolar para onde e como entender

Art. 8º: Todo o ser humano tem direito à gratuitidade dos bens úteis à vidaArt. 8º, “a”: Todo o ser humano tem o direito de dispor de uma habitação conforme os seus desejosArt. 8º, “b”: Todo o ser humano tem direito a uma alimentação saudável e naturalArt. 8º, “c”: Todo o ser humano tem direito à saúde Art. 8º, “d”: Todo o ser humano tem direito ao conforto e ao luxoArt. 8º, “e”: Todo o ser humano tem direito à gratuitidade dos modos de transporte criados pela colectividade e para a colectividadeArt. 8º, “f”: Todo o ser humano tem o direito de usufruir gratuitamente dos recursos e das energias naturaisArt. 9º: Todo o ser humano tem o direito de exercer um controlo permanente sobre a experimentação científica a fim de ter a certeza de que esta serve o humano e não a mercadoriaArt. 10: Todo o ser humano tem o direito de desfrutar de si, dos outros e do mundoArt. 10, “a”, I: Todo o ser humano tem o direito à aliança consigo mesmoArt. 10, “a”, II: Todo o ser humano tem o direito de ser ele mesmo e de cultivar a consciência da sua singularidadeArt. 10, “a”, III: Todo o ser humano tem o direito à autenticidadeArt. 10, “b”, I: Todo o ser humano tem o direito à aliança com seus semelhantesArt. 10, “b”, II: Todos os seres humanos têm o direito de se agruparem por afinidadesArt. 10, “b”, III: Todo o ser humano tem o direito de substituir os governos estatais por uma federação mundial de pequenas colectividades locais em que a qualidade dos indivíduos garanta a humanidade das sociedadesArt. 10, “c”: Todo o ser humano tem o direito à aliança com a naturezaArt. 10, “d”: Todo o ser humano tem o direito de se reconciliar com a sua parte de animalidadeArt. 11: Todo o ser humano tem o direito de construir o seu próprio destinoArt. 12: Todo o ser humano tem o direito de criar e de se criarArt. 13: Todo o ser humano tem o direito de ingerência e de intervenção onde quer que seja que o progresso do humano esteja ameaçadoArt. 14: Todo o ser humano tem o direito de virar para a vida o que se voltou para a morteArt. 15: Todo o ser humano tem o direito de melhorar o seu ambiente para aí viver melhorArt. 16: Todo o ser humano tem o direito ao respeito devido à sua sensibilidadeArt. 17: Todo o ser humano tem o direito de experimentar os movimentos de afecto e de rejeição inerentes à motilidade das paixões e às liberdades do amorArt. 18: Todo o ser humano tem o direito a uma vida e a uma morte naturaisArt. 19: Todo o ser humano tem o direito de fundar a diversidade dos seus desejos na pluralidade da vidaArt. 20: Todo o ser humano tem o direito de se dedicar à actividade ou ao repousoArt. 21: Todo o ser humano tem o direito à preguiçaArt. 22: Todo o ser humano tem o direito ao esforço e à perseverançaArt. 23: Todo o ser humano tem o direito ao seu sentimento pessoal de belezaArt. 24: Todo o ser humano tem o direito de progredir e de regredirArt. 25: Todo o ser humano tem o direito de errar, de se perder e de se encontrarArt. 26: Todo o ser humano tem o direito de vencer o terror e de domar o medoArt. 27: Todo o ser humano tem o direito de recusa a ameaçaArt. 28: Todo o ser humano tem o direito ao erro e à sua correçãoArt. 29: Todo o ser humano tem o direito a uma absoluta liberdade de opinião e de expressãoArt. 30: Todo o ser humano tem o direito criticar e de contradizer aquilo que parece mais certo ou que é tido por uma verdade elementar

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Art. 31: Todo o ser humano tem o direito de não considerar nada sagradoArt. 32: Todo o ser humano tem o direito à mudançaArt. 33: Todo o ser humano tem o direito ao distanciamentoArt. 34: Todo o ser humano tem o direito aos prazeres de cada idadeArt. 35: Todo o ser humano tem o direito de recusar o sofrimentoArt. 36: Todo o ser humano tem o direito de dar e de se dar sem se sacrificarArt. 37: Todo o ser humano tem o direito escapar à frustração substituindo a insatisfação pelo insaciávelArt. 38: Todo o ser humano tem o direito às suas dúvidas e às suas certezasArt. 39: Todo o ser humano tem o direito ao excesso e à moderaçãoArt. 40: Todo o ser humano tem o direito de se divertirArt. 41: Todo o ser humano tem o direito às liberdades do sonho e da imaginaçãoArt. 42: Todo o ser humano tem o direito à cóleraArt. 43: Todo o ser humano tem o direito ao bem-estar do corpoArt. 44: Todo o ser humano tem o direito de se adornar como entenderArt. 45: Todo o ser humano tem o direito às suas mentiras e às suas verdadesArt. 46: Todo o ser humano tem o direito de se abrir ou de se fechar ao mundoArt. 47: Todo o ser humano tem o direito de exprimir ou de calar as suas emoções, os seus desejos, os seus pensamentosArt. 48: Todo o ser humano tem o direito de ter acesso à expressão artísticaArt. 49: Todo o ser humano tem direito ao livre exercício da bondadeArt. 50: Todo o ser humano tem o direito à inocênciaArt. 51: Todo o ser humano tem o direito de apostar na violência do vivente para fazer face às violências da morteArt. 52: Todo o ser humano tem o direito de devolver à vontade de viver a energia vital usurpada pela vontade de poderArt. 53: Todo o ser humano tem o direito de proteger e de ser protegidoArt. 54: Todo o ser humano tem o direito de gerar crianças para sua felicidade e para felicidade destasArt. 55: Todo o ser humano tem o direito de desejar o que parece estar para além do possívelArt. 56: Todo o ser humano tem o direito de gerir os seus humores, caprichos e manias sem ter de os impor aos outros nem ter de suportar os dos seus semelhantesArt. 57: Todo o ser humano tem o direito à poesia da existênciaArt. 58: Todo o ser humano tem o direito ao jogo e a brincar com os comportamentos e os valores do velho mundo

4 CONCLUSÃO

A vida não pode ser economizada.

Vivemos em um momento histórico em que a reprodutibilidade técnica e as

mudanças de paradigmas filosóficos22 vem sendo abaladas constantemente pela “quebra” de

confiança em símbolos que movimentam uma economia especulativa que, quando frequentemente

entra em crise, afeta todo o mercado global em suas mais sensíveis ramificações – inclusive no

corpo humano, usualmente intitulado por mão-de-obra ou recurso humano.

22 “O paradigma é aquilo que está no princípio da construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta os discursos teóricos neste ou naquele sentido. Para Kuhn, existem paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa época e as grandes mudanças de uma revolução científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, há uma ruptura das concepções do mundo de uma teoria para outra” (MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13ª ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2010, p 45).

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O direito à vida guarda e resguarda a oportunidade justa de o homem tornar-se inteiro

em sua individualidade pela certeza da solidariedade de todos. Nele se contém a segurança da

dignidade, posta a florescer na experiência plural. O direito à vida concede ao homem não a certeza

da vida, que a vida é sempre uma incerteza, mas a certeza de que a solidão do seu ser pode

converter-se na solidariedade do permanente tornar-se. Por isso o direito à vida é obra construída

com todos; é a arte de fazer brotar na realidade o que é próprio e inato ao homem, mas que jaz

apenas semente no reconhecimento da palavra-norma declarada23. A livre expressão de ideias e

opiniões tem estado, até os nossos dias, a serviço de ideias dominantes e de uma contestação que,

combatendo a opressão, só deu como resultado lhe conferir uma forma nova24. Pôr – como fez a

ministra Carmen Lúcia – na categoria de realidade o que é próprio e inato ao homem, sem que o

inato seja o desejo do vivente de viver humanamente, é manter a formalidade sobre o real potencial

de vida, que se renova ao ser vivido, sendo a vida a única coisa inata ao humano vivente.

23 ROCHA, Carmen Lúcia, A. Direito 2. Disponível em: http://www.direito2.com.br/stf/2008/dez/9/dudh-ministra-carmen-lucia-fala-do-direito-a-vida-a-liberdade-e. Acesso em 07.10.2011.24 “É tempo de ultrapassar as liberdades formais, de substituir as árvores petrificadas, que simulam e dissimulam a floresta viva, por novos brotos que encontrem no terreno da vida cotidiana a raiz que os vivifica” (VANEIGEM, Raoul. Nada é sagrado, tudo pode ser dito: reflexões sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2004, pág. 93).

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5 REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13ª ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2010.

ROCHA, Carmen Lúcia, A. Direito 2. Disponível em: http://www.direito2.com.br/stf/2008/dez/9/dudh-ministra-carmen-lucia-fala-do-direito-a-vida-a-liberdade-e. Acesso em 07.10.2011.

VANEIGEM, Raoul. A economia parasitária. Lisboa: Antígona, 1999.

VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para a geração nova. Porto: Afrontamento, 1974.

VANEIGEM, Raoul. Declaração universal dos direitos do ser humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Antígona, 2003.

VANEIGEM, Raoul. Nada é sagrado, tudo pode ser dito: reflexões sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.