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CRISE GERAL E CORRUPÇÃO, ATÉ QUANDO?

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

Fundação Astrojildo PereiraSEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]

Presidente de Honra: Armênio Guedes (In memoriam)Presidente: Alberto Aggio

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

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George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2015 by Fundação Astrojildo Pereira

Obra da capa: Renascimento, de Hercídia Coelho.

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2015.ISSN 1518-7446 No 42 200p.

CDU 32.008 (05)

DistribuiçãoFUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRATel.: (61) 3224-2269Fax: (61) 3226-9756contato@fundacaoastrojildo.org.brwww.fundacaoastrojildo.org.br

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Agosto /2015

CRISE GERAL E CORRUPÇÃO, ATÉ QUANDO?

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Sobre a capa

Hercídia Coelho, autora dos belos trabalhos que embelezam nossas capa e contracapa e a abertura de cada seção deste número da revista, começou a desenhar após conhecer

o aplicativo OmniSketch. Sem nunca ter frequentado aulas de desenho, ao experimentar suas ferramentas de traços, texturas, cores e tons, descobriu, maravilhada, ser capaz de dar vida a formas que existiam apenas em seu pensamento.

Desde então, e isto não faz muito tempo, desenhos abstratos, caras, personagens, animais e objetos coloridos saíram de seus dedos para a tela do celular. De início bastante simples, os dese-nhos foram, pouco a pouco, tornando-se mais elaborados e com-plexos, expressando sentimentos e emoções os mais variados.

Pouco conhecida entre nós, a “arte digital” tem muitos adeptos em diferentes países do mundo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Podemos dizer que o desenvolvimento tecno-lógico, muitas vezes visto como desumanizador, possibilitou a expressão artística de quem nunca havia desenhado antes.

Nossa colaboradora nasceu em Franca, é formada em História pela Unesp/Franca e em Direito pela Faculdade de Direito daquela importante cidade paulista. Doutora em História pela USP, possui também o título de Livre Docente em História pela Unesp.

Trabalhou como professora na Unesp/Franca, na Unifacef/Franca, na Unifran/Franca, na Uniara/Araraquara e na Fun-dação Educacional de Marília, faculdades nas quais ministrou aulas nos cursos de graduação em História, Direito, Adminis-tração de Empresas, Ciências Contábeis, Comunicação Social e Turismo. Atuou também em cursos de Mestrado em História e em Direito na Unesp, Unifran e na Fundação Educacional de Marília, onde orientou inúmeras dissertações de Mestrado. Na Unifran, exerceu o cargo de Pró-Reitora Acadêmica, por cinco anos.

Após sua aposentadoria, dedica-se a leituras, viagens cultu-rais e fotografia. Neste universo, deparou-se com o desenho vir-tual, mais especificamente, o desenho no smartphone.

Os trabalhos aqui apresentados foram feitos no aplicativo OmniSketch, no iPhone 4S.

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Sumário

EDITORIALAté quando? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: CRISE GERAL E CORRUPÇÃO, ATÉ QUANDO?Um sistema à beira do colapsoLuiz Carlos Azedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11O caminho para o labirintoCarlos Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19A alternativa Temer e o déficit de legitimidadeJarbas de Holanda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Reflexões sobre o volume mortoFernando Gabeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26Fim de cicloDora Kramer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

II. OBSERVATÓRIO Desequilíbrio da economia brasileira é estruturalMansueto AlmeidaMarcos de Barros LisboaSamuel Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Algumas chaves para o combate à corrupçãoRafael Cláudio Simões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47Parlamentarismo, para repensar a democraciaChico Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

III. CONJUNTURABNDES: afronta à responsabilidade fiscal e à transparência estatalLaécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65De vampiros e bancos de sangue Antonio S . Magalhães Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTOO desenho do nosso futuro Demétrio Carneiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83A economia brasileira asfixiada e o cerco da Operação Lava-JatoFernando Alcoforado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87Comércio exterior fora do contextoRicardo Ferraço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

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V. MEIO AMBIENTEDesenvolvimento, política ambiental e sustentabilidadeGeorge Gurgel de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99Laudato Si, a COP21 e a ecologia integralJosé Carlos Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

VI. A CIDADE E A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICAA qualidade da representaçãoJosep Maria Pascual Esteve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115As cidades e a política democráticaAlberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

VII. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIAFederalismo, educação e o estado de Mato GrossoJosé Medeiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127Questões contemporâneas da realidade agrária Xico Graziano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132O Controle Interno do Poder ExecutivoJosé Osmar Monte Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

VIII. CULTURALiteratura, imprensa e censuraZenaide Bassi Ribeiro Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145Histórias em quadrinhos despidasTiago Eloy Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

IX. BATALHA DAS IDEIASManifesto Comunista versus Manifesto CapitalistaGastão Rúbio de Sá Weyne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161Mal-estar no BrasilMércio Pereira Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

X. MUNDONovo tempo nas AméricasSilvio Queiroz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173Maldito mundo mediterrâneoJosé Flávio Sombra Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

XI. ENSAIO30 anos de construção democráticaCarlos Siqueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

XII. RESENHASete ensaios sobre o BrasilRafael R . Massuia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193A contemporaneidade latino-americana em tempos democráticosVictor Augusto Ramos Missiato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197Um crítico da esquerda em torno de 1964Oscar Pilagallo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

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Até quando?

Depois de 12 anos de governos do Partido dos Trabalha-dores, e de seis meses do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, período sob a responsabilidade direta do

lulopetismo, o Brasil atravessa uma profunda crise econômica, que se agrava a cada dia, a cada semana, a cada mês. A fenô-menos já estruturais, como a desindustrialização, somam-se agora a paralisia da economia e o aumento crescente do custo de vida com o retorno da inflação. Sem falar nos níveis preocupantes de desemprego, um drama que atinge em cheio vidas e projetos de vida, marcando negativamente, de modo desastroso, quem já participa do mercado de trabalho e quem se prepara para nele entrar – uma catástrofe intergeracional.

Vinculada a essa degradante situação, o país está enredado numa crise ético-política, fruto da malversação dos recursos públicos e da incapacidade administrativa, acrescida da perda de legitimidade e de autoridade política do atual governo. Pelo que se conhece dos resultados do trabalho do Ministério Público e da Polícia Federal, assim como do juiz Sergio Moro, a corrupção se estende por toda a estrutura do Estado, capturado como está por um projeto de poder populista. Tal projeto pretende se manter a qualquer preço, tendo como pilares, entre outros, a partidarização da máquina estatal, a adoção de métodos esquivos na relação com o Legislativo e a dependência dos setores mais pobres da popu-lação ao assistencialismo governamental.

A ampla e profunda crise que sacode as estruturas nacionais parece caminhar para a ingovernabilidade, o que coloca as forças políticas diante de três possíveis cenários: (a) a rejeição das contas

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do governo pelo Congresso Nacional com base no parecer do Tri-bunal de Contas da União (TCU), em decorrência das “pedaladas fiscais”; estas últimas configuram evidente descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e abrem a possibilidade de o Con-gresso Nacional iniciar o processo de impeachment; (b) a cassação do mandato da presidente Dilma pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que investiga a utilização de recursos desviados da Petro-bras na campanha eleitoral de 2014; (c) a renúncia ao mandato por parte da presidente da República.

A realidade é tão delicada e complexa que a presidente Dilma e seu partido não hesitaram nem hesitam em degradar a relação, que deveria ser harmoniosa e ter como base a autonomia recí-proca, entre os Poderes da República. Um exemplo particular-mente gritante esteve no pedido da presidente de que o ministro da Justiça organizasse um obscuro encontro com o presidente do Supremo Tribunal Federal, às escondidas e em terra estrangeira, configurando um perigoso indício de estelionato, agora jurídico, para que ela não perca seu mandato.

Diante desse quadro, é mais que necessária a unidade das forças democráticas no Parlamento e na sociedade, para que a resolução da crise se paute nos marcos institucionais previstos pela Constituição, com base em decisões do TCU e/ou do TSE. Porém, antes de tudo, é necessário haver mais ação dos partidos políticos e das organizações sociais, devidamente articulados com as redes sociais e as mobilizações de rua, para que possamos mostrar nosso desejo de dar novos rumos ao Brasil.

Nossa tarefa fundamental será demonstrar a capacidade de as forças políticas democráticas envolvidas nesse processo supe-rarem esta crise, apontando um novo caminho para o país, reali-zando as reformas de base (tributária, do Estado, previdenciária etc.), retomando o crescimento econômico e voltando a trilhar os caminhos da ética e da justiça social.

Parte considerável dos artigos desta edição aborda, sob dife-rentes ângulos, esta delicada realidade.

Boa leitura!

Os editores

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I. Tema de Capa: Crise geral e corrupção,

até quando?

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Autores

Carlos MeloCientista político e professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) .

Dora KramerJornalista e comentarista política .

Fernando GabeiraEscritor, jornalista e apresentador de programa na TV .

Jarbas de HolandaAutor de blogmail de análise política semanal .

Luiz Carlos AzedoJornalista e comentarista político .

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Um sistema à beira do colapso

Luiz Carlos Azedo

Todo mundo já sabe que o Brasil atravessa uma crise tríplice: econômica, política e ética. O diagnóstico é unânime entre políticos, empresários, cientistas políticos e economistas.

A presidente Dilma Rousseff vem dando sucessivas demons-trações de que não tem competência para resolvê-las, o que também já é um sentimento do cidadão comum. O povo sente na carne as consequências, a maioria acha que a culpa é do PT. A dúvida é outra, principalmente das elites do país: dá para admi-nistrar essa situação até a próxima eleição, em 2018, ou o país não aguenta o tranco?

A resposta dessa equação passa por um ajuste fiscal efetivo, que estabilize a economia; pela rearticulação da base de susten-tação do governo no Congresso; e pela punição dos responsáveis pelo escândalo da Petrobras, que está sendo investigado pela Operação Lava-Jato, sob o comando do juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, e supervisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, relator do processo que envolve ministros e parlamentares.

Dilma Rousseff até agora não conseguiu viabilizar o ajuste fiscal proposto pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que foi mitigado pelo Congresso. O resultado é que a inflação continua subindo, o que provocará nova alta dos juros e mais contração na economia. A consequência imediata é o desemprego. Pressionada pelo PT, que é contra o ajuste, e sem apoio do PMDB, que não quer

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pagar a conta das medidas impopulares, Dilma age, novamente, de forma errática na economia.

O improvisado programa de proteção ao emprego lançado no inicio de julho é um exemplo. A medida deveria ser estendida a todos os setores da economia, mas o governo não tem recursos e vai decidir quem tem direito ao dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). É o lado trabalhista da política de favorecimento de empresas e empresários amigos que quase sempre acaba em escândalos.

No fundo, Dilma não abandonou a concepção de capitalismo de Estado que resultou na crise tríplice. A ideia de que a carga tributária amplia o papel do Estado como protagonista da eco-nomia está em contradição com o próprio ajuste fiscal. Como via-bilizar o superavit se o modelo de governo é expansionista? Ora, reduzindo-o de 1,1%, como estava previsto, para 0,6%, como propôs o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, que começa a emergir como o “queridinho” de Dilma na equipe econômica.

Golpismo

Alguém já disse que a política é a economia concentrada. A cúpula do PMDB decidiu não queimar o próprio filme, mais do que já está, aprovando medidas antipopulares, ainda mais porque o PT não se dispõe a defendê-las. O resultado foi o 62 a zero no Senado contra o Palácio do Planalto na votação que estendeu o reajuste do salário mínimo às aposentadorias, com um impacto de R$ 9,2 bilhões na previdência.

Tanto na Câmara quanto no Senado, a linha adotada pelo PMDB é deixar para Dilma Rousseff o veto às “bondades” apro-vadas pelo Congresso. Aí vem a presidente da República, em Milão, na Itália, e diz: “Se a gente for fazer um balanço, nós mais ganhamos do que perdemos. Eu não concordo que haja uma rebe-lião”. Como diz o ditado: “Sabe de nada, inocente!”

Dilma disparou da Rússia contra o senador Aécio Neves (MG), a quem acusou de golpista. O presidente do PSDB aposta todas as fichas na improvável cassação de mandato da presidente pelo TSE, por crime eleitoral (abuso de poder econômico e doações ilegais de campanha). Nesse caso, haveria novas eleições, pois o vice-presi-dente Michel Temer não poderia assumir. Foi o mote para Dilma e o PT saírem da defensiva. A palavra-chave é “golpista”.

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1313Um sistema à beira do colapso

Mas o alvo de Dilma, na verdade, é o vice-presidente Michel Temer, que assumiria a Presidência em caso de impeachment por crime de responsabilidade, cuja aprovação caberia ao Congresso, como prevê a Constituição.

Temer não quer a pecha de conspirador, muito menos a de traidor. A cúpula do PMDB, porém, pressiona para que deixe a articulação política do governo. “O PT que embale Dilma”, dizem os demais caciques. Aliados de primeira hora do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são os que mais torcem para que as contas de Dilma sejam rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o que a deixaria à mercê de um pedido de impeach-ment da oposição e refém do PMDB no Congresso.

A fala de Temer

Para uma demonstração de que não existe uma crise política, muito menos a sua iminente deposição por uma conspiração envolvendo líderes da base aliada e da oposição, a presidente Dilma reuniu líderes e presidentes de partidos da base governista, no dia 6 de julho. Antecedendo este encontro e com a coordenação de governo, escalou o vice-presidente Michel Temer para dar uma inédita entrevista coletiva no Palácio do Planalto, cuja principal afirmação foi que “não temos crise política, porque significaria o fato de o governo não ter apoio do Congresso Nacional. (…) Vocês veem que temos tido apoio do Congresso”, disse. “Brincadeira!”, diria o falecido Bussunda.

Segundo Temer, tanto a Câmara quanto o Senado aprovaram as medidas provisórias que compõem o ajuste fiscal, proposto pelo Executivo para reduzir gastos e reequilibrar as contas da União. “Eu faço distinção do interior da palavra crise, que é usada muito genericamente, quando tem crise econômica, crise política. O que não se quer é crise institucional”, disse o vice-presidente.

Políticos do primeiro time costumam ser ardilosos, estrate-gistas, dissimulados e frios. Michel Temer encabeça a lista de caciques do PMDB com esse perfil. Não costuma cair com o barulho das balas, nem dá ponto sem nó. Hoje, é o principal fiador do que ainda resta de governabilidade para Dilma Rousseff.

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Duas táticas

Por enquanto, apesar das manifestações de junho de 2013 e de 15 de março deste ano, o povo assiste “bestificado” à alta da inflação, ao desemprego e ao escândalo da Petrobras. Mas há uma grande manifestação “Fora, Dilma!” convocada pelas redes sociais para 16 de agosto, que pode ser engrossada pelos partidos de opo-sição. E existe, de fato, uma ampla articulação política para que o vice Michel Temer assuma o poder, no lugar de Dilma Rousseff, que já conta com a simpatia de setores importantes do empresa-riado e do Congresso.

Os líderes do PMDB tentam convencer Temer de que não há outra alternativa, porque a petista não teria mais condições polí-ticas de liderar o país. Argumentam que a presidente chegou a um ponto sem retorno em termos de desaprovação popular e perda de credibilidade. O impeachment de Dilma pelo Congresso depen-deria da rejeição de suas contas de 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e de uma condenação das “pedaladas fiscais” no atual mandato, o que configuraria crime de responsabilidade.

A oposição ganhou força porque o PT se opõe cada vez mais ao ajuste do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e o PMDB resolveu mitigar as medidas do arrocho fiscal. Com isso, a situação da eco-nomia se agravou. Além disso, as investigações da Lava-Jato atin-giram o Palácio do Planalto com a prisão do ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, abalando ainda mais a imagem da presidente da República. Não há, porém, unanimidade quanto ao impeachment.

O PSDB aposta na impugnação da eleição de Dilma Rousseff por abuso de poder econômico e financiamento ilegal de cam-panha, uma vez que as contas de Dilma ainda não foram apro-vadas e serão julgadas brevemente, em meio às denúncias de que teria recebido dinheiro sujo da corrupção na Petrobras. Nesse caso, novas eleições teriam que ser convocadas, no prazo de 60 dias, com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), assumindo o governo provisoriamente.

Essa proposta é criticada por setores do establishment, que temem as incertezas de uma eleição disputada a toque de caixa por Aécio Neves (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Marina Silva (Rede). Preferem que Temer assuma e forme um governo de salvação nacional, sem os petistas, para enfrentar a crise e con-duzir o país até às eleições presidenciais de 2018.

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1515Um sistema à beira do colapso

Lé com cré

A avaliação dos políticos governistas às declarações da presi-dente Dilma sobre o impeachment também não foi nada boa para o Palácio do Planalto. Segundo os aliados, gerou especulações de que ela não tem uma estratégia para enfrentar as articulações da opo-sição contra sua permanência no governo, provocou mais incer-tezas do que segurança nos agentes econômicos e transformou uma tese dos bastidores da política num assunto de conversa de botequins e padarias: a possibilidade de que venha a ser afastada do cargo pela Justiça ou pelo Congresso.

Entre ministros e assessores palacianos, indagava-se o porquê de ela não preparar sua entrevista. Dilma tratou do assunto de forma muito restrita, sem consultar seu estado-maior. O resul-tado foi uma espécie de desabafo, legítimo diante das acusações de que sua campanha à reeleição teria recebido dinheiro des-viado da Petrobras.

Mas a situação em que se encontra – grande desaprovação popular, economia ladeira abaixo e falta de governabilidade –exigia mais do que isso. Ao não fazer uma análise lúcida da situação política nem apresentar alternativas animadoras para a economia, Dilma, mais uma vez, não conseguiu construir um raciocínio lógico, com começo, meio e fim, sobre o momento que o país vive. A presidente da República já se expressou melhor em público e, também, nas entrevistas exclusivas.

Na linguagem popular, Dilma não estaria juntando lé com cré. Para alguns, a presidente da República dá sinais de esgotamento nervoso, devido ao stress da carga de trabalho e à irritabilidade provocada pelo regime de emagrecimento ao qual vem se subme-tendo. Suspeita-se de que esteja sob efeito de remédios. Medica-mentos para emagrecer estão entre os mais usados do mundo.

Irritabilidade, estresse, insônia, memória fraca, dificuldade de concentração, ansiedade, palpitações e suores frios são sintomas que podem surgir em momentos de grande estresse e durar vários dias. Alguns desses sintomas, porém, são traços do comporta-mento da presidente da República já conhecidos de seus colabo-radores – a irritação, por exemplo –, mas a dificuldade de concen-tração e concatenação de ideias vem sendo recorrente nas entrevistas, embora Dilma, com suas pedaladas, também tenha aparentado certo alheamento em relação à crise.

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1616 Luiz Carlos Azedo

Ao contrário do que ocorreu na viagem aos Estados Unidos, na qual as denúncias da Operação Lava-Jato entraram na pauta como intrometidas, no encontro com o presidente Vladimir Putin, em Ufá, a mil quilômetros de Moscou, a fala dela foi comedida e não tratou de política; apenas de economia.

Líderes das duas únicas economias do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que não crescerão neste ano, Dilma e Putin precisam ampliar o comércio bilateral. E esse foi o único tema da conversa presenciada por jornalistas. “Temos grande interesse em ampliar nosso investimento recí-proco”, disse Dilma, que pretende atrair empresas russas de portos e ferrovias para o programa de investimentos em infraes-trutura lançado em junho último.

Com Dilma no exterior e Michel Temer no exercício da Presi-dência, o governo sofreu nova derrota política, desta vez no Senado, que aprovou a medida provisória que mantém as atuais regras de reajuste do salário mínimo para o período de 2016 a 2019. O rea-juste é calculado pela soma da variação da inflação (INPC) e do Produto Interno Bruto (PIB). Governistas tentaram aprovar uma emenda que faria com que o texto voltasse à Câmara, mas a mudança foi rejeitada. Não poderá haver mudanças no mérito. A novidade no texto aprovado no Congresso em relação ao original feito pelo Executivo é a extensão dos reajustes aos benefícios de valor superior a um salário mínimo pagos pela Previdência Social (aposentadorias e pensões). Essa mudança foi feita na Câmara, depois de a comissão mista que analisou o texto ter rejeitado várias emendas com esse objetivo. O governo é contra esse reajuste.

Outras complicações

Existem três processos movidos pelo PSDB no Tribunal Supe-rior Eleitoral (TSE) para cassar o mandato de Dilma. Dois são ações de investigação judicial eleitoral, nas quais os tucanos alegam abuso de poder político e econômico na campanha presi-dencial. O partido pede a cassação da diplomação da chapa e a inelegibilidade da presidente e do vice por oito anos. O relator é o ministro João Otávio de Noronha, corregedor-geral do TSE. Devido aos fatos revelados pela Operação Lava-Jato, que investiga o esquema de corrupção na Petrobras, o PSDB pediu a tomada de depoimento do doleiro Alberto Youssef, do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e do dono da UTC, Ricardo Pessoa, o único que falta ser ouvido.

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1717Um sistema à beira do colapso

O PSDB também pediu a impugnação de mandato eletivo de Dilma, em ação ajuizada em janeiro ao TSE. A relatora é a ministra Maria Thereza de Assis Moura, cujo voto foi no sentido de que não houve provas suficientes para dar andamento ao processo. O ministro Gilmar Mendes, porém, pediu vista do processo. Deve apresentar seu voto em agosto, mês fatídico para os políticos, por causa do suicídio de Getúlio Vargas e da renúncia de Jânio Qua-dros. Um fato novo pode mudar o rumo do julgamento.

Em delação premiada, o empresário Ricardo Pessoa disse que foi coagido pelo ministro da Comunicação Social, Edinho Silva, então tesoureiro da campanha de Dilma, a contribuir com R$ 7,5 milhões para a disputa pela reeleição. Seu depoimento será deci-sivo para o julgamento das três ações.

É por isso que a presidente da República resolveu questionar o mecanismo legal da delação premiada. Dilma não admite entrar no rol dos que se beneficiaram do dinheiro desviado da Petrobras pelo esquema de propina do PT, investigado pela Operação Lava-Jato.

Caso os depoimentos dos delatores sejam comprovados, o que parecia ser apenas choro de perdedor pode mudar os rumos da vida política nacional, com a cassação dos mandatos de Dilma Rousseff e do seu vice, Michel Temer.

Nesse caso, a Corte também teria que decidir entre dar a posse ao segundo colocado, o tucano Aécio Neves, ou convocar novas eleições, nas quais ele largaria como franco favorito, segundo as últimas pesquisas.

Barbas de molho

No último dia 14 de julho, às vésperas do recesso legislativo, a Polícia Federal realizou 53 operações de busca e apreensão em sete estados e no Distrito Federal, decorrentes da Operação Lava-Jato. Batizada de Politeia, a nova etapa de investigação é referente a seis processos instaurados no Supremo Tribunal Federal, dos mais de 30 pedidos de investigação já encaminhados pelo Minis-tério Público Federal contra 52 políticos com mandato ou autori-dades com foro privilegiado.

Pouco depois do início dessa operação da PF, desembarcou em Brasília o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que participou de uma reunião e de almoço com a presidente Dilma. Foram quatro horas de conversa, da qual participaram os ministros

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1818 Luiz Carlos Azedo

Jaques Wagner (Defesa), Aloizio Mercadante (Casa Civil), Edinho Silva (Comunicação Social) e Miguel Rossetto (Secretaria-Geral). O vice-presidente Michel Temer e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ficaram de fora.

O encontro estava marcado com antecedência. A Operação Lava-Jato e a crise de governabilidade faziam parte do cardápio, mas o início das ações policiais contra os políticos suspeitos sur-preendeu. Ao investir contra um ex-presidente da República em pleno mandato de senador eleito (Fernando Collor), foi sinalizado que agora chegou a vez de os “donos do poder” pagarem seus pecados no escândalo da Petrobras.

Por isso mesmo, o clima no Congresso passou a ser de grande tensão no tocante aos desdobramentos que virão. Já não se tratam mais de ações determinadas por um juiz federal de primeira ins-tância, como é o caso de Sérgio Moro, que trancafiou os maiores empreiteiros do país. Agora é o STF que está endossando as inves-tigações e sinaliza que ninguém está acima do bem ou do mal.

Ninguém sabe dizer o que poderá ocorrer nas próximas semanas. Os políticos envolvidos no escândalo, porém, estarão muito mais desgastados perante a opinião pública e preocupados com a própria pele.

Será um bom cenário para a presidente Dilma Rousseff resistir a qualquer tentativa de impeachment da oposição. Não se pode dizer a mesma coisa, porém, em relação à corrosão da imagem do ex-presidente Lula, pelo escândalo da Petrobras, sobretudo após a prisão do ex-ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu.

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1919

O caminho para o labirinto

Carlos Melo

Não é exagero afirmar que o Brasil atravessa a mais grave crise de sua história recente. Tão grave quanto complexa e, por isso, difícil de explicar. Analistas se debatem em torno

de suas causas e significado: para uns, foi a fragilidade política do governo Dilma – a debilidade na articulação e na coordenação; para outros, efeitos da crise econômica, mãe das agruras porque passa o governo.

O fato é que ela, a crise mais geral, atinge uma ampla parcela do espectro político: setores que não estão implicados e acumpli-ciados com escândalos, encontram-se temerosos ou confusos, sem saber como agir e por onde escapar deste mau momento. Enquanto isso, as condições econômicas se deterioram ainda um tanto mais e, por decorrência, comprometem o bem-estar social, num terrível ciclo vicioso que apenas aprofunda a aversão e a crítica à política.

Entre ansiosos e perplexos, pergunta-se aonde a crise pode chegar; qual seria a saída? Mas, o que identifica uma crise é jus-tamente esta imprevisibilidade; a incapacidade de prever o futuro, encontrar saídas. Neste momento, o diagnóstico é mais tangível que o tatear nas nuvens do futuro em busca de um prognóstico que ainda não se afigura – porque a crise é grave e ainda haverá muito o que sangrar.

Em todo caso, entender as raízes do drama, talvez, seja o pri-meiro passo para superá-lo. Em primeiro lugar, é preciso consi-derar que as causas da crise não são novas, muito menos sur-preendentes. Há uma série de elementos que se desenvolveram ao longo do tempo; em relação a vários deles, houve alertas; apontou-se problemas e incongruências sistêmicas; desajustes e necessi-dade de revisão de processos; a questão da “qualidade da demo-cracia”. Mas, a sociedade – e mesmo parte dos analistas – deram de ombros. O bom momento foi mesmo péssimo conselheiro.

É verdade que, desde a redemocratização, o Brasil evoluiu muito e houve algum motivo para o otimismo. De algum modo – e cada um a seu modo –, os sucessivos governos cumpriram agendas importantes: José Sarney (1985-1990) colaborou com a difícil travessia entre o regime autoritário e a democracia; Fer-nando Collor (1990-1992), entre trancos e barrancos e sem qual-

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2020 Carlos Melo

quer habilidade, contribuiu para a abertura e a modernização econômica do país; Itamar Franco (1992-1994) iniciou o processo de controle da inflação, que castigava o país, sobretudo, os mais pobres; Fernando Henrique (1995-2002) o consolidou, entregando a seu sucessor um país mais estável e moderno. Lula (2003-2010) pôde, enfim, iniciar um importante processo de inclusão social.

É claro que todos estes governantes tiveram defeitos, e seus governos apresentaram, evidentemente, problemas; em maior ou menor grau, desgastaram-se e o balanço definitivo de seus legados poderá ser feito com o tempo, com o distanciamento histórico que permite a perspectiva. E é evidente que Lula, em especial, deve explicações. Mas, o dado concreto é que, em que pesem os reparos, esses governos e governantes cumpriram suas agenda e deram, no conjunto, uma agenda para o país. Compreenderam o momento histórico e seus desafios; promoveram, ao fim e ao cabo, algum tipo de mudança que colaborou para o aperfeiçoamento do país.

Isto, infelizmente, não se deu e não tem se dado com Dilma Rousseff. A atual presidente parece ter-se perdido numa área de nevoeiro ideológico; foi pouco pragmática no campo da economia e da gestão, ao mesmo tempo em que foi condescendente em relação às mazelas do sistema político. Buscou uma nova matriz de desenvolvimento econômico que desorganizou o governo e a economia, ao mesmo tempo em que se resignou diante do status quo do velho presidencialismo de coalizão que, já em seu primeiro mandato, dava sinais de esgotamento.

É possível que a presidente tenha ela própria acreditado na embromação do marketing que a elegeu: que seu perfil era técnico e competente (sic) e que a técnica que, supostamente, expressava bastaria para os seus propósitos, podendo prescindir da política. Deu certo enquanto havia recursos; funcionou na opulência do bom momento. Mas, já se via, não teria fôlego.

E não teve. Em abril de 2013, quando Dilma ostentava mais de 60% de popularidade – sequer havia manifestações, como as de junho –, os problemas já eram mais ou menos evidentes. Na oca-sião, publiquei um longo artigo questionando a qualidade e os efeitos da discutível liderança política de Dilma. Intuía, embora preferisse estar errado, que o processo tinha qualidade duvidosa.

A presidente fazia uma avaliação ufanista de seu governo e se portava de um modo arrogante em relação à crítica. Quanto à polí-tica, seu distanciamento era imperial. Parecia não perceber que tudo tendia ao esgotamento: o modelo econômico inaugurado pela crise de 2008, baseado no consumo, mostrava os primeiros sinais

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2121O caminho para o labirinto

de sua complicada sustentabilidade; assim como o “presidencia-lismo de coalizão longa” (digamos assim) mostrava que a governa-bilidade baseada unicamente na distribuição de recursos sempre crescentes e, portanto, exauríveis, tendia ao colapso – a assim chamada “faxina”, de 2011, que Dilma supostamente teria promo-vido, já seria expressão da incapacidade de continuar controlando o Parlamento, exclusivamente, pela via de seu arrendamento. Fal-tava programa, rumo, debate, persuasão; política.

Não se sabia – embora fosse de se supor – que, paralelamente, a corrupção e os esquemas financeiros – em grande medida vol-tados ao financiamento de campanhas – corroíam o governo e todo o sistema político. De todo modo, o governo abriu mão da política, da reforma, do aperfeiçoamento institucional como se estas fossem as condições para que Dilma governasse com liberdade, sem pres-sões a não ser a dos críticos isolados, imediatamente classificados como “oposição”, “pessimistas” e “derrotistas”.

Claro que a culpa não é exclusiva de Dilma – embora esteja condenada a carregar essa carga, qualquer que seja o desfecho desta crise que mediocriza seu governo e avilta seu mandato. As condições estruturais para a crise precedem Dilma: o patrimonia-lismo, o fisiologismo, a voracidade das “bases aliadas”, o esgota-mento da logística e da infraestrutura do país não nasceram ontem. Contudo, será difícil negar que superar estas mazelas era seu desafio histórico e Dilma não o percebeu ou não quis per-ceber. Não estava à altura (será que a contribuição institucional que Dilma dará ao país será, ao final, seu próprio sacrifício?).

Mas, independente das causas que se levante, o fato é que esta crise se torna ainda mais grave porque o déficit de liderança política do país é pior que os déficits fiscais do governo; não há aí, no curto prazo, hipótese de se fazer superávits, mesmo que primários.

Mais uma vez: não se trata apenas de Dilma e nem sua limi-tada liderança é causa, se não efeito da crise. Ao que tudo indica, até mesmo a decantada liderança do ex-presidente Lula é decres-cente; Lula parece viver seu ocaso – e até seus amigos apontam seu isolamento; basta ler Ricardo Kotscho. No PT, há um deserto, após o “mensalão” ter salgado aquele seu solo. No PMDB, há muitos anos não se pode falar em liderança política, mas tão somente na acomodação de interesses fragmentados. Nos demais partidos da base – ou do que foi a base –, após o acidente que vitimou Eduardo Campos, há um vazio fúnebre.

Na oposição, não há grande diferença. O PSDB se divide e con-funde o passado de sua história com um oportunismo caolho com

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2222 Carlos Melo

que tenta vislumbrar o poder no futuro – que sequer pode ser seu. Até aqui, não há projeto, não há propostas, não há alternativa para além do jogo que fazem os três principais caciques tucanos.

Tem-se dito que uma crise como esta requer instituições fortes e eficientes; os mais otimistas afirmam que as instituições nacionais funcionam em sua plenitude, fortes e eficientes. No entanto, parece que se insiste na mesma e velha razão nefeli-bata: a “força” das instituições só pode residir na lei, no direito e na adesão profunda a valores; logo, essa “força” é sempre rela-tiva e não se pode ir além da lei ou dos próprios limites institu-cionais, e nem se alimentar de rancores circunstanciais, como muitos parecem acreditar.

Ademais, nem só de Justiça, Polícia Federal e Ministério Público (com ou sem justiceiros) se faz um país. Governo, Con-gresso, partidos e associações da sociedade civil também com-põem as tais instituições e nesse campo há um reconhecido vazio: o sistema político carece de credibilidade, há uma séria crise de representação – não apenas no Brasil, diga-se. A confusão é tal que até mesmo Renan Calheiros e Eduardo Cunha se transvestem de vestais institucionais e são assimilados como heróis apenas pelo fato de dificultarem a vida de Dilma, de seu governo e do PT. Sejamos mais críticos e radicais!

Mesmo em países de grande tradição institucional, como os Estados Unidos, de tempos em tempos a liderança se faz neces-sária para que se aperfeiçoem as instituições, dando-lhe atuali-dade e eficiência adaptativa – basta notar os papéis que desempe-nharam Lincoln, Wilson, Roosevelt ou Reagan.

A uma crise de verdade – aquela em que se perde a perspec-tiva e não se sabe exatamente “aonde vai dar” – somente se supera com lideranças políticas capazes de construir acordos, consensos, saídas. Não se trata, é claro, de conciliar interesses que, de resto, não são mais conciliáveis; muito menos esconder o lixo sob tapetes tecidos pelos acordos. Mas, é necessário esta-belecer processos e vislumbrar o futuro com desprendimento e sem oportunismos pessoais ou partidários. Nem mesmo na mito-logia grega, a superação se deu por mágica: o povo de Atenas precisou da coragem de Teseu e da inteligência de Ariadne, para que o herói matasse o Minotauro e encontrasse o caminho de volta, no Labirinto. O Brasil vive seu Labirinto; sem Teseu, nem Ariadne para ajudar-nos.

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A alternativa Temer e o déficit de legitimidade

Jarbas de Holanda

Mesmo antes de novos desdobramentos dos processos do Tribunal de Contas da União (sobre as “pedaladas” e outras irregularidades nas contas públicas de 2014) e do

Tribunal Superior Eleitoral (sobre o financiamento da campanha reeleitoral de Dilma Rousseff), bem como de mais passos da Ope-ração Lava-Jato envolvendo autoridades do Palácio do Planalto e o entorno do ex-presidente Lula, e antes da retomada das manifes-tações de rua, as forças políticas mais expressivas – do PMDB e do PSDB até o PT – passam a avaliar a possibilidade e as implicações de uma troca de governo.

Seja com a transferência do comando de Dilma para o vice-pre-sidente, cenário hoje mais provável, seja com o afastamento exclu-sivo dela ou também com o dele, seguido de novas eleições. Ava-liação influenciada pelo impacto dos fortes efeitos do processo recessivo e do isolamento político, institucional e social (este medido por pesquisas do eleitorado) da presidente.

Um salto, maior, do papel de Michel Temer – que conta inicial-mente com a simpatia do mercado, como contraponto à lentidão e às incertezas de um processo de impeachment –, de um lado, dependerá dos desdobramentos dos referidos processos e investi-gações, da complicada unificação das bancadas do PMDB em seu favor, da atração de algumas lideranças do PSDB para o respaldo à gestão alternativa e uma aliança no pleito presidencial de 2018, bem como do grau de resistência da titular do Planalto a uma renúncia ou perda sensível de prerrogativas. De outro lado, depen-derá da superação ou redução do déficit de credibilidade e legiti-midade que Temer terá de assumir como alternativa de cúpulas partidárias à cobrança social de eleições diretas para uma com-pleta virada no governo central do país. Cobrança cujas dimen-sões, maiores ou menores, serão definidas pela retomada das manifestações de protesto em agosto e por mais pesquisas do elei-torado nos próximos meses.

Quanto ao PSDB, as apostas da liderança exercida por Aécio Neves ligam-se à ampliação do desgaste do governo e do lulope-tismo com os efeitos da estagflação em curso, ao avanço das inves-

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2424 Jarbas de Holanda

tigações da Lava-Jato e dos processos do TCU e do TSE (a cujos resultados o partido, diferentemente das ruas, condiciona o enca-minhamento, institucional, de um impeachment da presidente). Apostas voltadas, também, para a sequência das ações oposicio-nistas ao governo Dilma, ou ao Temer, focadas nos pleitos muni-cipais de 2016 e nacional de 2018.

No outro polo, agora, as prioridades do ex-presidente Lula (e da direção do PT) e da presidente Dilma voltam-se para as tenta-tivas de controle, esvaziamento e até anulação, se possível, da Operação Lava-Jato. No caso dela, combinadas com o nervoso preparo de defesa no Congresso de provável reprovação pelo TCU das “pedaladas” e para bloqueio no Supremo Tribunal Federal de possível comprovação pelo TSE de financiamento irregular da campanha reeleitoral.

Enquanto a presidente Dilma centra-se na denúncia de “gol-pismo” contra as demandas sociais de cassação e de novas elei-ções, o ex-presidente Luiz Inácio passa a levar em conta o cenário de troca de governo, na perspectiva de que uma ascensão de Michel Temer (à frente de um PMDB que deverá ter candidatura própria em 2018 e assumindo o ônus do ajuste fiscal recessivo) poderia favorecer o “volta Lula” apoiado no oposicionismo radical da “frente popular” que está articulando.

Perspectiva esta que, adotada, deixaria para trás a que segue dominante, baseada no cálculo de que a interrupção do mandato presidencial elevará o desgaste do lulopetismo, que soma os efeitos da crise econômica aos relevantes vínculos das suas lideranças, inclusive a maior, com as investigações do “petrolão” e conexas. O que explica as “saídas” defensivas e contraditórias da tática em vigor: salvar o governo Dilma, ou “morrer” abraçado a ele, respon-sabilizando por isso o “golpismo das elites e da mídia”.

As duas semanas finais de julho, ao invés de um alívio de ten-sões que o recesso do Legislativo poderia ensejar, foram marcadas pelo agravamento da crise política – por causa da deterioração ainda maior das relações do Executivo com o Congresso, e pela influência da piora, generalizada, dos indicadores econômicos e de suas repercussões sociais. A reação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ao inquérito do STF (divulgado em 17/07) que o envolve diretamente no “petrolão”, foi seguida por decisões dele e do colega do Senado, Renan Calheiros, de abertura no início de agosto de CPIs sobre o BNDES e os fundos de pensão que o governo vinha conseguindo bloquear até agora.

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2525A alternativa Temer e o déficit de legitimidade

Tal reação tentou desqualificar o inquérito como uma manobra dos “aloprados” do Palácio do Planalto contra a postura dele na afirmação da independência da Câmara. Usando essa indepen-dência – defendida por Cunha, pelas bancadas que o elegeram e pelos partidos de oposição – para tentar eximir-se da responsabi-lidade por delitos de corrupção descritos no inquérito (e deta-lhados em delação de um dos réus da Lava-Jato). Delitos que foram, certamente, parte da montagem da base governista de apoio aos governos lulopetistas. E cuja ampla apuração – pelas ações dirigidas pelo juiz Sérgio Moro, e das encaminhadas por meio do STF – têm amplo respaldo da sociedade.

Respaldo que deverá dividir com a cobrança de novas eleições o protagonismo das palavras de ordem nas manifestações de pro-testo de 16 de agosto.

O embate Levy x Barbosa sobre o superávit

As divergências entre os ministros Joaquim Levy e Nelson Bar-bosa em torno da revisão da meta de superávit primário refletem basicamente a defesa, pelo primeiro, do controle das despesas da União como peça relevante do ajuste das contas públicas, e o empenho do segundo para que seja “flexibilizada” a contenção dos gastos federais, com o que seriam reduzidos os efeitos (econômicos e políticos) do processo recessivo. Enquanto Levy insiste que a supe-ração da crise terá de passar não pelo aumento de tais gastos mas por uma retomada dos investimentos privados, a postura de Bar-bosa, além de sua visão diferente do papel do Estado na economia, traduz as pressões do ex-presidente Lula, a quem é ligado, pela queda das restrições de despesas públicas impostas pelo ajuste.

As propostas do ministro do Planejamento para a revisão (já articuladas no Congresso sob orientação da Casa Civil, de Aloizio Mercadante) incluem a adoção de uma banda fiscal na meta do superávit, que permitiria o aumento ou a redução (esta a que cer-tamente seria aplicada) dessa meta em 2015 e nos anos seguintes. A manifestação de apoio da presidente Dilma à posição do ministro da Fazenda (feita após um encontro com os dois sobre o tema) foi certamente apenas retórica, para evitar que se acentuem os riscos de queda do grau de investimento do país, no momento em que se encontram, no Brasil, técnicos da agência Moody’s para avaliação dos resultados e das perspectivas do ajuste fiscal.

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Reflexões sobre o volume morto

Fernando Gabeira

Lula teve alguns momentos de sinceridade em fins do mês de junho último. Disse que tanto ele como Dilma estavam no volume morto e que o PT só pensa em cargos. Ele se referiu

ao volume morto num contexto de análise de pesquisas, que indi-cavam a rejeição ao governo da presidente da República e ao PT. Nesse sentido, volume morto significa estar na última reserva elei-toral. No entanto, o termo deve ser visto de forma mais ampla.

Estar por baixo nas pesquisas nem sempre significa um desastre. Em alguns momentos da História, o próprio PT, e disso me lembro bem, não alcançava 10% dos eleitores, mas tinha espe-rança, e os índices não abalavam sua autoestima. O volume morto em que se meteu agora é diferente. Ele indica escassez da água de beber e incapacidade energética, depois de 12 anos de governo. Foi um tempo em que, sob muitos aspectos, andamos para trás.

Há perdas na economia, na credibilidade do sistema político, todo um projeto fracassado acabou jogando o país também num volume morto. Há chuvas esparsas como a Operação Lava-Jato, mas elas caem muito longe dos reservatórios do PT. Tão longe que ajudam a ressecar ainda mais o terreno lodoso que ainda abastece as torneiras petistas.

Lula pode estar apenas querendo se distanciar de Dilma e do PT. Ele a inventou como estadista e agora bate em retirada. E quanto ao PT, quem vai rebater suas críticas e arriscar o emprego e a carreira? Pois é esse o combustível de seus quadros.

Há cerca de uma década escrevi um artigo intitulado “Flores para os mortos”, no qual afirmava que uma experiência com pre-tensão de marcar a História terminava, melancolicamente, numa delegacia de polícia. Foi muito divulgado, e na internet usaram até fundo musical para compartilhá-lo. O título é inspirado numa cena do filme de Luis Buñuel, a florista gritando na noite: “Flores, flores para os mortos”.

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2727Reflexões sobre o volume morto

Devo ter recebido muitas críticas dos petistas. Passados dez anos e algumas portas de delegacia, hoje é o próprio líder que admite a incapacidade política de Dilma e a voracidade dos seus seguidores.

Olho para esse tempo com melancolia. Ao chegar ao Brasil, os tempos do exílio não pesavam tanto. O futuro era tão interessante e o processo de redemocratização tão promissor que compen-savam o passado recente. Agora, não. O futuro é mais sombrio porque a tentativa de mudança foi uma fraude, a própria palavra mudança tornou-se suspeita: poucos creem que o sistema político possa realizar os anseios sociais.

Lula fala em esperança para sair do volume morto. Mas que esperança pode arrancá-los do volume morto quando o próprio líder, apesar de sua sinceridade ocasional, não consegue vislum-brar uma saída? Lula repete aquela frase atribuída ao técnico Yustrich: “Eu ganho, nós empatamos, vocês perdem”.

Fiz leitura, em viagem de avião, de uma entrevista do escritor argelino Kamel Daoud, muito criticado pelos muçulmanos mais radicais do seu país. O título da entrevista é: “Nem me exilar, nem me curvar”.

Uma de suas respostas me tocou fundo. O repórter perguntou: “Como você, depois de viver anos ligado aos Irmãos Muçulmanos, conseguiu escapar desse mundo?”. “Leitura, muita leitura”, res-pondeu Kamel Daoud.

Durante o resto da viagem fiquei pensando como teria sido bom para a esquerda brasileira que ela tivesse exercitado leitura, muita leitura, para poder escapar da sua própria miopia ideológica.

Na verdade, ela mastigou conceitos antigos, cultivou políticas retrógradas, como essa de apoiar o chavismo, e se perdeu nos escaninhos dos cargos e empregos. Ela me lembra os jovens do filme “O muro”. Um dos seus ídolos acaba como porteiro de hotel, e é melancólica a cena em que os admiradores o descobrem, para-mentado, carregando malas.

Leitura, muita leitura, não importa em que plataforma, talvez impedisse a esquerda de ver seu predestinado líder proletário tra-balhando como lobista de empreiteiras. Talvez nem se chamaria mais de esquerda.

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2828 Fernando Gabeira

Um dos mais ricos petistas critica os outros por só pensarem na matéria. A realidade surpreendeu todas as previsões da volta ao exílio, tornou-se uma espécie de pesadelo.

O passado como esconderijo

A presidente foi traída pela delação. Passei a primeira semana de julho navegando pela costa do Maranhão, caprichosamente desenhada pelo mar. São as Reentrâncias Maranhenses, e as per-corri já dentro dos limites da Amazônia Oriental. Meu objetivo era o arquipélago de Maiau. Ao chegar mais próximo dele, o nome das cidades já tem um traço indígena: Cururupu, Apicum Açu.

Deixei para trás uma grande crise política. Na Ilha dos Len-çóis, consegui ver com os nativos alguns noticiários de tevê. Impressionou-me o impacto da Bolsa Família nessas ilhas mara-nhenses: a maioria dos habitantes ganha salário do governo.

Quando as notícias eram sobre corrupção na Petrobras, eles associavam seu lamento à situação da saúde pública: tanta gente precisando, os hospitais caindo aos pedaços. A tese de Dilma de que não respeita os delatores, comparando-os aos que trocaram de lado no período da ditadura, entrou por um ouvido e saiu pelo outro.

O que penso sobre isso ficou claro num artigo que escrevi, cri-ticando a má-fé dos que comparam os delatores premiados a Judas e Joaquim Silvério dos Reis.

Na Ilha dos Lençóis, não existe polícia, nem uma cultura antipo-licial. Os problemas são resolvidos pela comunidade. Um crimi-noso jamais pode fugir porque da ilha só se sai de barco e, pas-sando a voz, os barqueiros se recusam a tirá-lo de lá.

Considero uma farsa comparar um empresário que enriquece com a Petrobras com os militantes que deserdaram na luta armada. Naquela época havia tortura. A denúncia, por mais con-denável, visava à preservação física. E havia também um compro-misso coletivo de tudo fazer para preservar a vida e a liberdade dos companheiros soltos.

Será que Dilma considera o grupo de empresários que mano-brava as licitações na Petrobras companheiros que devam resistir a tudo para salvar os outros e o projeto do socialismo? Será que con-sidera que o grupo mafioso formado por políticos e milionários tinha nosso mesmo objetivo pretérito: o socialismo, a ditadura do proleta-

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2929Reflexões sobre o volume morto

riado? Não acredito que ela coloque os interesses nacionais de uma investigação no mesmo nível das torturas e prisões do período militar.

Ela não é tão pouco inteligente assim. Como comparar um sonho, ainda que equivocado, de transformação social, com o pro-pósito puro e simples de roubar a maior empresa estatal? Será que ela considera todo o núcleo desbaratado e preso pela Polícia Federal uma célula transformadora, com outros objetivos além de enriquecer e se perpetuar no poder? Não acredito que ela con-funda a VAR-Palmares com o Clube dos Empreiteiros. Nem que ela considere o Ricardo Pessoa aquele bom burguês, um homem rico que ajudava o MR8.

O lugar onde estive é muito louco. Dunas intermináveis, o vento forte, a crença de que o rei Dom Sebastião, morto em 1578, em Alcacer Quibir, está enterrado ali com seu cavalo branco e todas as joias que conseguiu trazer. No entanto, pareceu-me uma loucura maior uma presidente do Brasil dizer, nos EUA, com todas as letras, que não respeita delator, assim de forma abstrata, como se cola-borar com a polícia fosse uma das maiores baixezas humanas.

Se a mensagem que Dilma e o PT querem transmitir de que o roubo na Petrobras se equivale à resistência armada e de que a corrupção é apenas uma continuidade no combate ao capitalismo, tenho razões para protestar.

Escrevi muita coisa criticando a luta armada. Estou cansado de tocar no assunto. Infelizmente, tenho de voltar a ele por uma questão de justiça: a resistência era feita por idealistas. Mesmo quando se assaltava um banco, arriscava-se a vida. O dinheiro, ao que me consta, não era tocado por indivíduos mas destinado à organização. Os assaltos eram feitos com declarações políticas inequívocas.

Ninguém enriqueceu. Pelo contrário: os que não aderiram ao PT têm grandes dificuldades, como todos os brasileiros.

Dilma atua, nesse caso, talvez inspirada pelos marqueteiros, como uma cafetina da luta armada. Tenta justificar um assalto aos cofres públicos desqualificando os assaltantes que se arre-penderam e querem devolver o dinheiro ao país. No seu discurso, acusados pelo rombo na Petrobras, ela, Lula e os tesoureiros que ainda estão soltos substituem os idealistas da resistência.

Ninguém deve ter acreditado no argumento de Dilma. Vejo que seu índice de rejeição está nas alturas. Não pretendia voltar ao tema, mas ele introduz um novo atalho para a impunidade. Sabe com quem está falando? No passado, descobertas no crime,

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3030 Fernando Gabeira

autoridades se escudavam no poder. Na versão atual, mistifica-dores escondem-se atrás do próprio passado.

Alguns presos do “mensalão” entraram de punho erguido na cadeia. Eles queriam dizer que a prisão era apenas a continuidade de sua luta.

Dilma achou a maneira simbólica de erguer o punho, ao ser revelado o elo do “petrolão” com sua campanha. Foi traída pela delação. Mesmo quando arruínam o país, querem passar por incompreendidos salvadores.

Tomara que chova nos reservatórios adequados e as forças que caíram no volume morto continuem por lá, fixadas na única espe-rança que lhes resta: sobreviver.

O país precisa sair do volume morto, reencontrar um nível de crescimento, credibilidade no seu sistema político. Hoje, o país é governado por um fantasma de bicicleta e um partido de míseros oportunistas, segundo seu próprio líder, chamado de Brahma pelas empreiteiras.

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3131

Fim de ciclo

Dora Kramer

Se alguma novidade há na última pesquisa da CNT obvia-mente não é a constatação de que as coisas estão péssimas para o lado do governo, mas sim o sinal de que o poço não

tem fundo à vista.

Os 9% de aprovação da presidente Dilma Rousseff da consulta divulgada em julho pelo Ibope pareciam o desenho do patamar mais baixo. Como se vê agora pelos 7,7% que consideram a gestão Dilma ótima ou boa, há espaço para cair. Uma relativa surpresa, pois o mais provável era que tivesse havido uma subida na apro-vação ou, no máximo, uma estabilidade na desaprovação. Margem de erro? Na atual conjuntura qualquer ponto é letra.

Cresce o apoio popular à tese do impeachment, cai o mito de imbatível do ex-presidente Luiz Inácio da Silva que hoje perderia a eleição para os três tucanos que já concorreram e perderam a Presidência para o PT e aumenta a quantidade de gente que não cai na conversa de que os escândalos atuais são resultado do empenho do governo em combater a corrupção.

A popularidade da atual presidente já é comparada à do ex-pre-sidente José Sarney que, a despeito de ter conduzido com habili-dade, competência e serenidade o processo de transição democrá-tica, por obra do desastre econômico deixou o poder pela porta dos fundos. Simbolicamente falando, claro, pois desceu a rampa do Palácio do lado de Fernando Collor. Na campanha, não pôde sequer apoiar um candidato à própria sucessão, pois contami-naria qualquer candidatura. Atacá-lo era sucesso certo.

Tais fatores levam alguns a comparar este agora com aquele momento, Dilma com Sarney. Um exame mais detido da história recente, porém, nos revela – sempre guardadas as proporções relacionadas às circunstâncias – mais e maiores coincidências entre o cenário atual e as cenas finais do regime militar.

Aquele comandado pelo último ditador que saiu do poder lite-ralmente pela porta dos fundos do Palácio do Planalto por se recusar a passar a faixa presidencial para José Sarney, que havia abandonado o PDS, se aliado a Tancredo Neves e vencido com ele

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3232 Dora Kramer

a eleição do Colégio Eleitoral de 1985 contra Paulo Maluf. Candi-dato do regime contra a vontade do representante do regime, general João Figueiredo.

Confuso? Pois é, assim como hoje o partido do governo buscou se afastar assim que detectou a aproximação do fim de um ciclo. Pelo jeito, tal como vivemos agora. A ditadura, primeiro perdeu apoio popular, depois ficou sem maioria no Parlamento. A eco-nomia entrava em franco declínio, a inflação “abria” seus índices, os escândalos financeiros começavam a “pipocar” nos poucos espaços abertos à ainda pouca liberdade de imprensa.

Mal comparando, no que tange à ausência de apetite para as lides políticas e na maneira algo brusca e confusa de se expressar, é possível identificar na presidente Dilma Rousseff um quê do “jeito Figueiredo” de ser.

A impaciência do general o fez recusar (em pronunciamento oficial em rede nacional) a delegação dada pelo PDS para coor-denar a sucessão, abrindo espaço para a desorganização da “base” e a ação da oposição.

A intolerância da presidente ao longo de seu primeiro mandato aprofundou e agravou as feridas que o PT já havia aberto nas rela-ções com seus aliados. O temperamento a fez objeto de maus sen-timentos no Parlamento.

Os escândalos de corrupção, agravamento da situação econô-mica, o comportamento desonesto durante a campanha eleitoral e depois dela, fizeram o restante do serviço. Com a vantagem, em relação ao período anterior utilizado aqui para comparação, que há uma diferença essencial entre as duas épocas: a vigência plena e inabalável da democracia.

O domínio dos fatos

Vamos ao ponto: José Dirceu só fez o que os investigadores da Operação Lava-Jato dizem que ele fez na Petrobras e cerca-nias da máquina pública porque a instância superior a ele deixou que fizesse. Trata-se de uma conclusão lógica baseada numa série de evidências que agora ganham consistência com a justifi-cativa para decretação da prisão preventiva apresentada em con-junto pelo juiz Sérgio Moro, o Ministério Público e a Polícia Federal. Foram contundentes quanto ao marco inicial da cor-rupção sistêmica na Petrobras e ao papel de José Dirceu no

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3333Fim de ciclo

esquema. Segundo eles, na condição de ministro-chefe da Casa Civil, Dirceu instituiu a prática de maneira organizada, dela se beneficiou e a partir daquela sistemática foi “um dos líderes” de uma engrenagem de corrupção posta em funcionamento para beneficiar políticos, partidos, funcionários e empresas contra-tadas pelo governo.

Este é o fato relatado a partir da coleta de provas testemu-nhais e documentais. Resta saber – e comprovar – se a instância superior a José Dirceu, a Presidência da República à época ocu-pada por Luiz Inácio da Silva, detinha o domínio daqueles fatos. Os investigadores já deram várias demonstrações de que não lhes falta rumo. Sabem aonde querem chegar, mas percorrem o caminho passo a passo, a fim de evitar movimentos em falso que já puseram a perder outras operações em função de nulidades judiciais. Obviamente as investigações se direcionam na busca de evidências que permitam desvendar a cadeia de comando até o topo. Acima dele só havia o então presidente que lhe conferiu dele-gação para transitar no governo na posição de “capitão do time”. Não será surpresa que venham a se interessar pelos sinais exte-riores de riqueza de Lula.

Caso venha a se pronunciar, contrariando seu feitio silente ante a adversidade, o ex-presidente certamente continuará negando que tivesse conhecimento sobre as atividades extracurri-culares de seu braço direito. É o que vem fazendo desde quando disse ao país que havia sido “traído” sem, contudo, apontar trai-dores nem tomar providências contra os malfeitores. Olhando em retrospectiva, suas atitudes de lá para cá não ajudam a aferição de credibilidade às negativas e às alegações de desconhecimento. Inclusive porque Lula pareceu muito seguro em diversas ocasiões em que assegurou ao Brasil a inocência de seu partido e subordi-nados. O mensalão era, em seu dizer, “uma farsa”.

Tal assertividade faz supor que tenha procurado se inteirar dos acontecimentos. Portanto, não pode alegar desconhecê-los. Nesse caso, ou foi feito de tonto não só por José Dirceu, mas por toda gama de envolvidos, incluindo personagens que levava nas viagens oficiais e dirigentes de empresas que lhe patrocinaram viagens e palestras, ou se deliberadamente omitiu. Um dos pro-blemas para quem constrói narrativas mutantes é o efeito cumu-lativo do tempo. Hoje, à luz das acusações que pesam sobre José Dirceu, uma frase que se perdeu no emaranhado do processo do mensalão ganha conotação especial.

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“Nunca fiz nada que o Lula não soubesse”, disse ele, em meio à eclosão daquele escândalo. Nessa certeza obviamente se basearam os interessados em participar das triangulações contra-tuais no âmbito do aparelho de Estado, dado que Dirceu só poderia ser reconhecido como interlocutor abalizado se os interessados o reconhecessem como tal. Sem o pressuposto de que os alicerces eram firmes o suficiente para não sofrerem abalos em decorrência de eventual decisão saneadora por parte do presidente da Repú-blica, o esquema não poderia ter se mantido em pé.

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II. Observatório

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Autores

Chico AndradeFormado em História e Geografia, é pós-graduado em Ciências Políticas e ex-dirigente do Sindicato dos Bancários de Brasília .

Mansueto AlmeidaFormado em economia pela Universidade Federal do Ceará, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea .

Marcos de Barros LisboaEconomista, é professor-assistente da EPGE/FGV e vice-presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) .

Rafael Cláudio SimõesMestre em História (UFES), professor da Universidade Vila Velha (UVV) e membro fundador da Transparência Capixaba.

Samuel PessoaProfessor de pós-graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro (EPGE/FGV), chefe do Centro de Crescimento Econômico do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE/FGV) e editor da revista Pesquisa e Planejamento Econômico .

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Desequilíbrio da economia brasileira é estrutural

Mansueto Almeida; Marcos de Barros Lisboa; Samuel Pessoa

O debate econômico no Brasil tem sido dominado pelo ajuste fiscal e as suas consequências. A deterioração das contas públicas, a inflação elevada e a desaceleração da atividade

econômica induziram a profunda mudança da política econômica que vinha sendo adotada desde a crise de 2009.

Ao contrário da visão dominante, a crise fiscal não decorre apenas do descontrole das contas públicas nos últimos anos. A crise é mais profunda e requer um ajuste mais severo e estru-tural para permitir a retomada do crescimento. As medidas para viabilizar um maior superavit primário neste ano não superam os graves desafios do país, apenas adiam o enfrentamento dos pro-blemas, que se tornam ainda mais graves.

Certamente, ocorreu um grave descontrole dos gastos públicos a partir de 2009. Para além dos problemas de curto prazo, porém, existe um desequilíbrio estrutural. Desde 1991, a despesa pública tem crescido a uma taxa maior do que a renda nacional.

Diversas normas legais que regulam as políticas públicas, da concessão de benefícios, como no caso da previdência, aos recursos alocados em áreas específicas, como saúde e educação, têm como resultado o alto crescimento dos gastos, implicando a necessidade de aumento da carga tributária, onerando a produção e prejudicando a geração de emprego – além de alimentar a ameaça de aguda crise macroeconômica.

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3838 Mansueto Almeida; Marcos de Barros Lisboa; Samuel Pessoa

Essa ameaça não será superada com medidas de curto prazo, pois requer reformas estruturais que interrompam a trajetória de crescimento do gasto maior do que o da renda. O Brasil já apre-senta uma carga tributária bem mais elevada do que a grande maioria dos países emergentes. Porém, a trajetória prevista para diversas despesas nos próximos anos requer novos e expressivos aumentos dos tributos com o objetivo de evitar o crescimento da dívida e a possibilidade de insolvência fiscal.

Como quantificaremos neste artigo, os valores requeridos são várias vezes maiores do que os que têm sido propostos para o ajuste deste ano.

Desde a estabilização da economia, em 1994, o país tem enfrentado crises econômicas, como em 1999 e 2003. Nessas duas ocasiões, após um ajuste relativamente curto, a economia retomou uma trajetória de crescimento, precocemente interrompida no pri-meiro caso pela crise da energia de 2001.

A crise atual, no entanto, é mais severa. O esforço fiscal neces-sário para corrigir os desequilíbrios no curto prazo é comparável ao de 1999, porém, as condições de contorno são bem mais graves. O aumento da carga tributária nos últimos 15 anos implica maiores custos sociais e econômicos de novos aumentos nos impostos e prejudica a retomada do crescimento em um país de renda média, porém com o ônus tributário de uma nação desen-volvida. A trajetória do gasto público para os próximos anos indica problemas ainda maiores.

A carga tributária passou de cerca de 25% do PIB em 1991 para pouco mais de 35% em 2014, enquanto a maior parte dos países emergentes apresenta carga abaixo de 30%. Nesse período, a renda real do país cresceu 103%, enquanto a receita de impostos cresceu quase 184%.

Nesses 23 anos, o setor público apropriou-se de 45% do cres-cimento da renda nacional para financiar seus gastos, incluindo programas de transferência de renda e demais políticas públicas.

Esse forte aumento da receita foi concomitante ao crescimento da despesa primária, excluindo transferências para Estados e municípios, que desde 1991 aumentaram em nove pontos percen-tuais a sua participação no PIB.

A maior parte do aumento do gasto ocorreu em políticas sociais – incluindo aposentadorias. Porém, essa impressionante elevação dos gastos anuais de quase R$500 bilhões, entre 1991 e 2014,

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3939Desequilíbrio da economia brasileira é estrutural

não resultou em equivalente melhora na qualidade das políticas públicas, como em saúde e em educação, cujos indicadores de resultado permaneceram estáveis. Alguns programas sociais efe-tivos, como o Bolsa Família, são relativamente baratos (0,5% do PIB) e pouco relevantes para explicar o aumento das despesas.

Os gastos com previdência aumentaram em 4,3 pontos percen-tuais do PIB entre 1991 e 2014, sendo particularmente preocu-pantes pelo aumento esperado nos próximos anos. A aposentadoria média por tempo de contribuição para mulheres ocorre aos 52 anos de idade, e para homens, aos 54 anos – patamares significativa-mente inferiores aos verificados na grande maioria dos países.

Nessas condições, o aumento da expectativa de vida aumenta o período de fruição da aposentadoria, resultando em maiores gastos públicos. Além disso, as normas para diversos benefícios, como a pensão por viuvez, permitem que pessoas jovens se apo-sentem com renda integral, de forma também bastante distinta da observada em outras nações.

Há alguns anos assistimos ao fim do bônus demográfico. O aumento do número de idosos ainda será, nos próximos anos, amenizado pela entrada de jovens no mercado de trabalho.

No entanto, os adultos crescem a taxas decrescentes, enquanto os idosos a uma taxa quatro vezes maior – o que dobrará sua par-ticipação na população total nos próximos trinta anos.

Como cada idoso custa aproximadamente o dobro do que uma criança na escola, o quadro torna-se mais dramático. Ponderada pelo custo de cada grupo, a dinâmica demográfica tem acarretado aumento do gasto público há mais de uma década. O que se econo-miza com os jovens que entram no mercado de trabalho é mais do que compensado com os gastos crescentes com os adultos que se aposentam, levando à necessidade de novos ajustes fiscais no futuro.

Segundo estimativas oficiais, o gasto do INSS deverá aumentar de 7,14% do PIB, em 2014, para 7,87% em 2018, atingindo 8,67% em 2030 e 12,63% em 2050 – a menos que as regras sejam revistas. A recente aprovação pelo Congresso de mudanças no fator previdenciário e no universo dos beneficiados pela correção do salário mínimo ocasionará um crescimento adicional da des-pesa da previdência de pelo menos 0,3 pontos percentuais do PIB de 2019 a 2022, caso a economia cresça 2% ao ano.

Para agravar o quadro, também foram aprovadas regras que demandam despesas ainda maiores nos próximos anos. O gasto

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com saúde foi vinculado a 15% da Receita Corrente Líquida da União (RCL), enquanto o Plano Nacional de Educação (PNE) prevê que os gastos na área deverão aumentar para 10% do PIB até 2022.

A soma dos aumentos previstos dos gastos com previdência, educação e saúde totaliza 6% do PIB até 2030 (1,5% INSS, 3,5% educação e 1% saúde), o que representa 0,38 pontos percentuais a mais do PIB por ano, sem considerar o impacto da mudança do fator previdenciário e da expansão dos beneficiados pelo reajuste do salário mínimo. As despesas públicas anuais serão R$ 300 bilhões maiores em 2030, o que representa uma elevação de R$ 20 bilhões por ano.

Para ilustrar a dimensão do desafio, as propostas de con-tenção das despesas com pensão por viuvez, abono salarial e seguro desemprego, enviadas pelo governo em dezembro de 2014, previam uma economia de pouco mais de R$ 18 bilhões por ano. A CPMF, no seu auge em 2007, arrecadava R$ 80 bilhões ou 1,5% do PIB, enquanto as propostas de imposto sobre grandes fortunas estimam um potencial de arrecadação entre R$ 6 bilhões a R$ 12 bilhões por ano. Portanto, o aumento previsto dos gastos públicos anuais até 2030 requer que todo ano sejam aprovadas novas medidas de contenção de despesas equivalentes às enviadas em dezembro, ou uma nova CPMF a cada governo, ou de dois a três novos impostos sobre grandes fortunas a cada ano!

Desde 1994, o crescimento da despesa pública foi compensado pela expansão da carga tributária. Nos anos 1990, esse aumento decorreu da introdução de novos tributos, como a Cofins, além dos benefícios da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Na década de 2000, diversos fatores permitiram o maior cres-cimento econômico e uma elevação ainda maior da arrecadação tributária. Entre eles, a estabilidade macroeconômica, os ganhos de produtividade em diversos setores, como agronegócio e ser-viços, as reformas no mercado de crédito e a expansão da eco-nomia mundial.

Naquele período, a dinâmica da receita recorrente da União apresentou comportamento extraordinário, crescendo, em termos reais, pouco mais de 7% ao ano – em parte como consequência da maior formalização da força de trabalho, que resultou no cresci-mento real da receita da previdência.

Esse aumento significativo cessou desde 2011. Nos últimos quatro anos, a receita recorrente cresceu apenas 1,5% ao ano,

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4141Desequilíbrio da economia brasileira é estrutural

aproximadamente o mesmo que o PIB. A despesa do governo cen-tral, no entanto, manteve seu ritmo acelerado de crescimento, de 5,4% acima da inflação, resultando no desequilíbrio fiscal dos últimos anos.

A normalização do crescimento da receita nesta década e a manutenção do crescimento acelerado da despesa produziram o grave desajuste das contas públicas. Os 12 anos de comporta-mento extraordinário da receita parecem ter entorpecido a socie-dade, os políticos e os formuladores da política econômica. Preser-vamos um Estado que requer recursos crescentes para manter o equilíbrio fiscal, o que significa a necessidade de aumentos contí-nuos da carga tributária, comprometendo o crescimento e a geração de emprego.

Além dos problemas estruturais, o gasto público nos últimos anos foi agravado pela política econômica e a concessão de subsí-dios e benefícios, nem sempre transparentes no Orçamento, em muitos casos obrigações futuras não registradas como dívidas.

No início de 2015, os subsídios concedidos e não pagos pelo Tesouro eram de R$ 52 bilhões, incluindo os oferecidos ao Pro-grama de Sustentação do Investimento (PSI), que de acordo com a portaria 357 (outubro de 2012) da Fazenda somente seriam con-siderados devidos dois anos depois de concedidos.

Começamos 2015 com um déficit de R$ 150 bilhões, que cor-responde ao montante necessário para estabilizar a relação dívida/PIB. A dinâmica do gasto indica a necessidade de um ajuste pelo menos duas vezes maior até 2030 – sem contar os mais de R$ 50 bilhões de subsídios já concedidos e ainda não pagos. Por outro lado, o aumento de receita gerado pelas medidas adotadas neste ano não chega a R$ 49 bilhões.

O governo se comprometeu a estabilizar a dívida pública como fração do PIB até 2016. Infelizmente estamos ainda distantes do ajuste prometido.

No decreto de contingenciamento, o governo esperava um cres-cimento líquido da receita real de 5,6%. No entanto, nestes pri-meiros meses, registrou-se queda real de 3% em comparação com o mesmo período do ano passado.

Por sua vez, as despesas com custeio continuam a subir mais de 4% em termos reais (descontada a inflação) na comparação com o mesmo período do ano anterior. Mesmo se o custeio (sem previdência) não aumentasse e o governo cortasse R$ 30 bilhões

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do investimento previsto, faltariam ainda R$ 56 bilhões para o ajuste prometido para 2015.

A opção pelo corte dos investimentos decorre da rigidez das contas públicas. As despesas discricionárias somam pouco mais de R$ 180 bilhões. Quase 70%, porém, são despesas com saúde e educação, que podem ser adiadas no curto prazo, mas não reduzidas de forma sistemática, a menos que ocorra uma reforma da legislação.

O deficit de mais de R$ 30 bilhões de 2014, o crescimento obri-gatório das despesas públicas, de cerca de R$ 70 bilhões, e as dívidas com subsídios, que, ano passado, somaram mais de R$ 50 bilhões, superam em três vezes o aumento da receita previsto no ajuste fiscal. Um superavit primário em 2015 com base em receitas extraordinárias, a venda de ativos e o refinanciamento de dívidas tributárias, não contribuirá para o equilíbrio sustentável das contas públicas.

O corte dos investimentos reduz parcialmente o deficit em 2015. Mas em 2016 não haverá investimentos relevantes para serem cortados. Como será feito o ajuste fiscal nos próximos anos? Ou seja, a correção dos desequilíbrios recentes é essencial para evitar, no curto prazo, uma crise aguda. No entanto, não será sufi-ciente para manter um equilíbrio sustentável –tendo em vista a atual trajetória de aumento do gasto.

Desenfreado

O grave problema fiscal do Brasil reflete a concessão desenfreada de benefícios incompatíveis com a renda nacional. Prometemos mais do que temos, adiando o enfrentamento das restrições existentes. Deixamos para as próximas gerações as contas a serem pagas, porém o futuro tem o inconveniente hábito de se tornar presente.

Um setor público com obrigação crescente de gastos em um país com baixo crescimento econômico significa o risco de insolvência fiscal nos próximos anos, resultando em maior taxa de inflação estrutural e em taxas de juros possivelmente ainda mais elevadas.

A menos que uma agenda extensa de reformas seja iniciada, com a reversão da trajetória de aumento do gasto público, o Brasil estará condenado, na melhor das hipóteses, a uma longa estagnação. Essa agenda deve enfrentar o desequilíbrio de uma despesa que cresce acima da receita, de um setor público que concede benefícios incom-

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4343Desequilíbrio da economia brasileira é estrutural

patíveis com o nosso estágio de desenvolvimento – como as aposen-tadorias precoces. Um país que se tornou velho antes de se tornar desenvolvido e que desperdiçou o seu bônus demográfico.

O ajuste macroeconômico, porém, é apenas parte da agenda necessária.

A reação do governo à crise de 2008 agravou ainda mais os nossos problemas. Prometia-se superar os desafios da crise externa com a concessão de estímulos e incentivos adicionais para a produção doméstica, como créditos subsidiados e medidas de proteção para setores selecionados. Esperava-se que os estímulos ao consumo e ao investimento permitissem um maior crescimento econômico e garantissem os recursos para financiar a expansão do gasto público.

Ao invés de maior crescimento, no entanto, ocorreu o inverso: a desaceleração da atividade econômica, com estagnação em 2014 e recessão em 2015, além do aumento do endividamento, a piora das contas públicas e o enorme deficit nas contas externas.

As seguidas intervenções setoriais prejudicaram diversas ati-vidades econômicas e comprometeram o crescimento da produti-vidade e a capacidade de investimento das empresas.

A alteração do marco regulatório do pré-sal; a intervenção no setor elétrico; o controle do preço dos combustíveis e seu impacto negativo sobre os setores sucroalcooleiro e de óleo e gás; as regras de conteúdo nacional; a proteção do setor automotivo; a tentativa de recriar a indústria naval pela terceira vez desde 1950; e a con-cessão de subsídios e proteções a empresas privadas agravaram o quadro fiscal e prejudicaram o crescimento da produtividade.

Essas políticas resultaram em benefícios para alguns grupos de interesse, mas não em ganhos sociais ou expansão do investimento, e colaboraram para a estagnação da economia nos últimos anos.

A concessão de benefícios setoriais aumentou as distorções da estrutura tributária, prejudicando o setor produtivo e o cresci-mento econômico. A multiplicidade de regimes tributários e a complexidade da legislação, com diversas ambiguidades sobre os requisitos legais, resultam no grande contencioso que onera o setor produtivo e no elevado custo para cumprir as obrigações tributárias, significativamente maior do que em outros países –penalizando a produção.

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Por isso mesmo, um ajuste baseado em medidas que prejudi-quem ainda mais a produtividade e a eficiência deve ser evitado, sendo preferível apenas ao não ajuste e ao risco de uma crise aguda.

A agenda para a retomada do crescimento passa pela simplifi-cação da estrutura tributária, a uniformização das regras para os diversos setores e a adoção de critérios que reduzam a ambigui-dade normativa. No entanto, normas que garantam o tratamento homogêneo para os diversos setores implicam perda de benefícios e privilégios – e encontram resistência dos grupos de interesse.

A mesma dificuldade se observa na reforma de diversas inter-venções protecionistas adotadas nos últimos seis anos, que aumentaram a complexidade institucional, a burocracia e os custos para o acesso a tecnologias mais eficientes – caso das res-trições ao comércio exterior e das regras de conteúdo nacional.

A maior proteção para alguns gera perda de produtividade para os demais, que foram obrigados a comprar bens de capital ou insumos mais caros ou menos eficientes, e maiores preços para o consumidor final. Apesar do prejuízo para o restante da sociedade decorrente dessas medidas, a sua revisão enfrenta a resistência dos setores beneficiados.

A complexidade institucional prejudica o ambiente de negó-cios, dificultando atividades comezinhas do setor produtivo, da importação de bens ao investimento em infraestrutura, passando pelo pagamento de tributos.

As restrições ao comércio exterior comprometem a competição e o acesso a tecnologias mais eficientes disponíveis em outros países, prejudicando a produtividade e a inserção do país nas cadeias internacionais de produção.

A produtividade total dos fatores, que mede a capacidade de produzir e gerar renda com a mesma quantidade de insumos, cresceu 1,6% ao ano na década de 2000, mas estagnou nos últimos quatro anos. Menor aumento de produtividade significa menor capacidade de crescimento sustentável e de geração de renda.

Políticas de proteção setorial podem ser eficazes em casos específicos, desde que acompanhadas de metas de desempenho e avaliação cuidadosa dos seus resultados, e a sua revisão em caso de fracasso. No entanto, a expansão disseminada de benefícios públicos, sem a adequada gestão e controle de resultados, resulta

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4545Desequilíbrio da economia brasileira é estrutural

apenas em privilégios privados, sem a contrapartida de maior crescimento econômico e geração de empregos.

Tigre tropical

O aumento da corrupção é somente mais um dos efeitos colate-rais da tentativa fracassada de tropicalizar o modelo de desenvolvi-mento do leste asiático, sem a escolaridade, as elevadas taxas de poupança, e, principalmente, os mecanismos de controle e quali-dade na implantação das políticas públicas. Desde a crise de 2008, a desaceleração da economia mundial reduziu as taxas de cresci-mento das principais economias. No caso do Brasil, no entanto, essa redução foi maior do que na grande maioria dos emergentes.

A política fiscal expansionista adotada nos últimos seis anos e a complacência com taxas elevadas de inflação resultaram em dese-quilíbrio macroeconômico crescente, agravado pela queda da produ-tividade e a intervenção pública equivocada em diversos setores. A desaceleração da atividade econômica resultou na menor geração de renda e, mais recentemente, na menor geração do emprego.

A piora do mercado de trabalho e o desajuste das finanças públicas prejudicam os ganhos sociais da década de 2000. A desi-gualdade de renda parou de cair desde 2011, houve aumento do número de famílias na extrema pobreza e as perspectivas para os próximos anos são de maior deterioração.

Caso o governo consiga evitar a crise aguda decorrente do descontrole fiscal dos últimos anos, restará a extensa e difícil agenda de retomada do crescimento, que passa pelo reconheci-mento de que nos tornamos um país que prometeu mais a diversos grupos sociais do que é capaz de entregar, com uma tendência de elevação da despesa pública maior do que a da renda, e que adotou uma estratégia desenvolvimentista fracas-sada, cuja consequência foi a queda da produtividade e da expansão da economia.

As restrições existem e arcamos com o custo das escolhas fáceis, porém incompetentes. As medidas que anunciavam proteger o crescimento ecoam as que prometeram proteger a indústria nacional. O resultado tem sido o inverso do prometido: recessão prolongada na economia, enquanto a indústria, beneficiada por medidas de proteção e incentivos que há muito demandava, definha.

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4646 Mansueto Almeida; Marcos de Barros Lisboa; Samuel Pessoa

Para um país que vivencia a escassez de insumos básicos, como energia e água, o custo social do populismo que nega as restrições não deve surpreender. O ajuste é inevitável. Ele pode ser realizado de forma transparente, respeitados os procedimentos legislativos, com escolhas difíceis sobre os benefícios a serem mantidos e os que devem ser revistos, ou, de forma pior, como consequência de uma crise mais aguda.

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Algumas chaves para o combate à corrupção

Rafael Cláudio Simões

Várias são as metáforas utilizadas para descrever o fenô-meno da corrupção. Alguns a comparam à Hidra de Lerna1 outros à Fênix.2 Muitas são as comparações com aspectos

da saúde, especialmente o câncer é continuamente mencionado. As possibilidades nesses ou em outros campos são infindáveis. O certo é que, no caso brasileiro, sobremaneira nesse período de trinta anos de redemocratização (1985 – 2015), esses animais da mitologia grega, ou mesmo essa que ainda é uma doença com alto grau de destruição da vida humana, parecem contar à perfeição o dilema que vivenciamos quando tratamos da prática da cor-rupção. Pela nossa experiência cotidiana esse parece um animal ou uma doença indestrutível.

Para começar, é importante destacar o que se entende aqui por corrupção política. Vamos trabalhar neste artigo com duas defini-ções que nos parecem complementares. Nos utilizaremos da defi-nição de Silva (2001, p. 31) quando afirma que:

A corrupção pública é uma relação social (de caráter pessoal, extramercado e ilegal) que se estabelece entre dois agentes ou dois grupos de agentes (...), cujo objetivo é a transferência de renda dentro da sociedade ou do fundo público para a reali-zação de fins (...) privados. Tal relação envolve a troca de favores entre grupos de agentes e (...) a remuneração dos corruptos com o uso da propina e de qualquer tipo de pay-off (recompensa).

Já Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (2000, p. 291-293) definem corrupção como:

(...) o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo

1 Animal da mitologia grega que tendo várias cabeças, sempre que uma era corta-da outra aparecia em seu lugar e a última seria imortal. Fez parte dos trabalhos de Hércules acabar com esse monstro, o qual, mesmo depois de morto, teve que vigiar eternamente.

2 Pássaro da mitologia grega que quando sentia aproximar-se a morte entrava em autocombustão e depois renascia das próprias cinzas. Segundo escritores da Antiguidade grega vivia cerca de 500 anos, outros falavam em período de 97 a 200 anos.

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4848 Rafael Cláudio Simões

interesses particulares em troco de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura estatal. (...)Corrupção significa transação ou troca entre quem corrompe e quem se deixa corromper. (...) A corrupção é uma forma particular de exercer influência ilícita, ilegal e ilegítima. Amolda-se ao funcionamento de um sistema, em particular ao modo como se tomam as decisões. A primeira consideração diz respeito ao âmbito da institucionalização de certas práticas: quanto maior for o âmbito de institucionali-zação, tanto maior serão as possibilidades de comportamento corrupto. Por isso, a ampliação do setor público em relação ao setor privado provoca o aumento das possibilidades de cor-rupção. Mas não é só a amplitude do setor público que influi nessas possibilidades; também, o ritmo como ele se expande. Em ambientes estavelmente institucionalizados, os comporta-mentos corruptos tendem a ser, ao mesmo tempo, menos fre-quentes e mais visíveis que em ambientes de institucionalização parcial ou flutuante. A corrupção não está ligada apenas ao grau de institucionalização, à amplitude do setor público e ao ritmo das mudanças sociais; está também relacionada com a cultura das elites e das massas. (...) De um modo geral, por-tanto, a corrupção é fator de desagregação do sistema.

O que há de comum entre essas definições, e é central aos nossos objetivos de análise, é a percepção de que a corrupção implica em ganhos privados (individuais ou de grupos) e é uma relação que foge da institucionalidade definida pela sociedade. Assim, coloca-se a questão de que tendo o Brasil avançado na par-ticipação dos cidadãos na atividade pública e na estrutura formal de combate à corrupção desde 1988, com a promulgação da Cons-tituição, os casos de corrupção tendem a se mostrar cada vez de maior escala e abrangência. Qual é o problema, então? Por que parecemos afundar, mais e mais, nas teias da corrupção que, como uma fênix ou uma hidra ou um câncer recorrente, renasce sempre fortalecida de cada escândalo que, quando da sua denúncia, nos dava a impressão de que iria dar cabo das condições de sua repro-dução e ampliação? Será esse um câncer da sociedade brasileira de modo geral, e de seu sistema político de modo específico, sem nenhuma possibilidade de cura, mesmo que provisória?

Por certo, temos em nosso país um conjunto bastante razoável de leis e instituições para atacarmos o problema. Sem querermos ser exaustivos, podemos destacar a Lei da Improbidade Adminis-trativa – Lei 8.429/1992; a Lei das Licitações – Lei 8.666/93, a Lei

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4949Algumas chaves para o combate à corrupção

de iniciativa popular e que transformou a compra de votos em crime – Lei 9.840/1999; a Lei dos Portais de Transparência – Lei Complementar 131/2009, a Lei da Ficha Limpa – Lei Comple-mentar 135/2010, também de iniciativa popular, a Lei de Acesso à Informação – Lei 12.527/2011, a Lei sobre Conflito de Interesses – Lei 12.813/2013 e a Lei Anticorrupção, a Lei 12.846/2013, que pune as empresas envolvidas em casos de corrupção.

No que tange à estruturação do governo federal podemos des-tacar a Controladoria Geral da União (CGU), responsável pelo controle interno no Poder Executivo Federal; o Conselho de Con-trole de Atividades Financeiras (Coaf), responsável por trabalhar a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro; a ampliação dos quadros da Polícia Federal e do Departamento de Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça; a criação do Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis); o Portal da Transpa-rência e o Observatório da Despesa Pública (ODP), além do Con-selho de Transparência Pública e Combate à Corrupção. Temos, ainda, no âmbito da União, a ação do Ministério Público Federal (MPF) e do Tribunal de Contas da União (TCU).

Na esfera das relações internacionais, temos os tratados nos quais o Brasil é signatário: a Convenção Interamericana Contra a Corrupção (CICC), da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 29 de março de 1996, e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (CNUCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), de 29 de setembro de 2003.

Com esse breve, mas não exaustivo, levantamento, é justo supor – ao menos supor – que não nos faltam aparato legal e administrativo-operacional para um efetivo e eficiente combate à corrupção, por mais que, por certo, possamos aprimorar tanto uns quanto outros.

A perspectiva de entendimento do enfrentamento do problema da corrupção aqui proposta é a do republicanismo. Por um lado, temos Philip Pettit (1999) que, em sua obra Republicanism, des-taca que sendo a corrupção uma possibilidade do exercício do poder é preciso construir uma institucionalidade que vá além da promoção da virtude e do combate ao vício, para isso, para além da educação e do estabelecimento de um serviço público merito-crático, é necessário que se afirmem tanto um conjunto efetivo de sanções – positivas e negativas – que incentivem bons comporta-mentos ou punam aquilo que não é adequado, quanto mecanismos de controle, para criar proteção aos recursos públicos. Já Charles Taylor (2000) centra sua análise na participação dos cidadãos.

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Para ele, se os cidadãos forem incapazes de participar nos assuntos públicos, das instituições, do governo, acabam por não construir ou por perder qualquer sentido de coletividade, que está na base da formação de sociedades fortes e que se desenvolvem.

Esta abordagem, ao nosso sentir, se justifica, pois como afirma Cardoso (2004, p. 45):

(...) Respublica, res populi: o que pertence ao povo, o que se refere ao domínio público, o que é de interesse coletivo ou comum aos cidadãos; por oposição a uma esfera de coisas e assuntos privados, relativos à alçada dos particulares, grupos, associações ou indivíduos. (...) Ela se impõe, justamente, pela postulação de um espaço público, dotado de instrumentos que asseguram seu reconhecimento, o caráter coletivo de sua apro-priação e suas regulações. Assim, o termo república não designa apenas a existência de uma esfera de bens comuns a um certo conjunto de homens, mas também, de imediato, a constituição mesma de um povo, suas instituições, regras de convivência e agências de administração e governo, cujas orientações derivam de um momento de instituição ou fundação política.

Busca-se, com isso, consagrar e ampliar o ideário da Repú-blica, de separação entre o público e o privado que está presente na concepção republicana. O significado do termo tem ligação com os tempos históricos e muda profundamente. Apesar dessas transformações o sentido fundamental estará presente nas repú-blicas modernas e, portanto, em nosso país. Como destaca Mat-teucci (2000, p. 1107) “(...) com efeito, res publica quer pôr em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comuni-dade (...)”. Podemos lembrar de Rui Barbosa (1849-1923) que, em 1919, criticando o domínio do poder pelos interesses particulares e de grupos, afirmava que “O Brasil deixou de ser uma República; é uma reprivada, privada em todos os sentidos”.

Aqui coloca-se a questão a partir de duas vertentes que estarão em análise. Tanto a de um poder, que mesmo na República, mantem características elitistas e excludentes, que busca, por meios diversos, tolher a informação acessível, o controle e a participação, mas também do cidadão que não se utiliza dos espaços existentes para ampliar a cidadania, a democracia, a própria participação. Portanto, não se busca aqui uma afirmação de unilateralidade de que as dificuldades que temos nesses campos estão centradas nal-guma eventual “maldade” do poder. São aspectos que se colocam em ambos os lados e, principalmente, na relação entre eles.

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5151Algumas chaves para o combate à corrupção

Mesmo com as dimensões das manifestações de junho e julho de 2013, e as questões que elas levantaram, que, como colocado por Manuel Castells (2013, p. 183-186):

De forma confusa, raivosa e otimista, foi surgindo por sua vez essa consciência de milhares de pessoas que eram ao mesmo tempo indivíduos e coletivos, pois estavam – e estão – sempre conectadas em rede e enredadas na rua (...). Pois o que é irrever-sível no Brasil como no mundo é o empoderamento dos cidadãos, sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens de que tudo que sabemos do futuro é que eles o farão. Mobilizados.

Uma questão relevante, e que nos parece presente, em que pese a manifestação de descontentamento de milhões de brasi-leiros, nos meses de junho e julho de 2013, como aponta José Murilo de Carvalho (2001, p. 223-224):

A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população. O papel dos legisla-dores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de intermediá-rios de favores pessoais perante o Executivo. O eleitor vota no deputado em troca de promessas de favores pessoais; o depu-tado apoia o governo em troca de cargos e verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia política: os elei-tores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais.

Como destacado nos estudos sobre o tema da corrupção dois dos aspectos centrais para a sua ocorrência e reprodução são exa-tamente estes: poder fechado e pequena participação dos cidadãos. Na tradição do pensamento republicano, encontramos duas formas de abordar essa questão, e podemos dizer que ambas estão no escopo do que aqui tratamos. E mesmo com as mudanças aconte-cidas na sociedade brasileira, especialmente do período de 1988 até os dias de hoje, podemos, dentro de certos limites, estabelecer que enfrentamos os dois aspectos para que a corrupção continue sendo um problema presente no cotidiano do sistema político brasileiro.

Autores como Robert Putnam destacam a importância da par-ticipação para o desenvolvimento social das comunidades. Como ele afirma (2007, p. 186-187):

Os estoques de capital social, como confiança, normas e sis-temas de participação, tendem a ser cumulativos e a reforçar-se mutuamente. Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios

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sociais com elevados níveis de cooperação, confiança, reciproci-dade, civismo e bem-estar coletivo. Por outro lado, a inexis-tência dessas características na comunidade não cívica (...) é algo que tende a autorreforçar-se. A deserção, a desconfiança, a omissão,(...) intensificam-se reciprocamente num miasma sufo-cante de círculos viciosos.

Uma possível solução conceitual para o nosso dilema, termos instituições e espaços de participação, mas a corrupção continua colocada como problema central de nosso cotidiano político, me parece dada pelo sistema nacional de integridade.

Foi com a Transparência Internacional que, em 1996, surgiu o conceito de Sistema Nacional de Integridade, quando Jeremy Pope (1938-2012), um dos fundadores da organização, lançou o livro National Integrity Systems: The TI Source Book . Como destaca Peter Eigen (2002, p. 12):

Na primeira versão do Source Book (1996), a TI estabeleceu o conceito do “sistema nacional de integridade” como abordagem holística da transparência e da accountability, como uma estru-tura para esforços efetivos de reforma anticorrupção. (...) o con-ceito entrou rapidamente para o vocabulário dos militantes contra a corrupção de todo o mundo. Os pilares da integridade do sistema abrangem uma série de instituições e práticas cujo funcionamento e interação são essenciais para garantir (...) transparência e accountability (...).

No centro da ideia de um sistema nacional de integridade estão presentes os componentes do sistema político que funcionam – ou deveriam – para assegurar a integridade. Como destaca Speck (2002, p. 24):

O conceito de sistema nacional de integridade é uma tentativa de identificar mais claramente os elementos dos sistemas políticos voltados para garantir a integridade. O conceito está vinculado a outros dois – o de governo democrático e o de boa governança –, (...), o sistema de integridade representa o conjunto de elementos que fazem determinado sistema político funcionar segundo os valores (...) e evitar apropriações privadas informais.

Como ressalta Corrêa (2011, p. 165):

O objetivo do estabelecimento de um sistema nacional de inte-gridade é fazer com que a corrupção – e práticas ilícitas relacio-nadas – seja de alto risco e baixo retorno. Tal sistema deveria concentrar-se, portanto, na criação de mecanismos para evitar que atos de corrupção ocorram. (...) A redução da corrupção

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5353Algumas chaves para o combate à corrupção

não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para permitir maior avanço do governo em direção à eficácia, à justiça e à eficiência (...).

Assim, portanto, quando falamos de sistema nacional de inte-gridade estamos nos referindo a um conjunto, mais ou menos, ope-rativo de instituições de controle externo, no caso brasileiro o TCU, o MPF e o Poder Legislativo Federal, de controle interno, como a CGU e as ouvidorias, das leis que tratam do tema, tais como a da Ficha Limpa, das Licitações e a Lei de Acesso à Informação, da Coo-peração e Compromissos internacionais, com os diversos tratados assinados pelo país, e com a participação e o controle social, por meio das organizações da sociedade civil e da imprensa.

Para isso, cumpre organizarmos um trabalho integrado e efetivo das instituições de combate à corrupção. Definição de prioridades tanto na ação investigativa, judiciária, legislativa e executiva; avançar na transparência pública, capacitando servidores – do nível federal ao municipal – e garantindo recursos materiais e tecnológicos; ampliar os canais de acesso dos cidadãos; promover mecanismos comparativos de preços de licitação de bens e serviços; adoção de mecanismos de mensuração dos resultados das ações públicas (prestação de serviços e oferecimentos de bens públicos); redução dos custos de campanhas eleitorais; redução progressiva dos cargos comissionados do âmbito municipal ao Federal e em todos os poderes e órgãos; acesso público às justificativas de políticas públicas e pro-jetos de lei nos poderes executivos e legislativos, respectivamente; entre tantas outras iniciativas que poderíamos citar nesse espaço. Por certo, são muitas iniciativas que precisam ser priorizadas no tempo e que terão um período – mais ou menos – longo de matu-ração. Mas urge, com pertinácia e dedicação, começar esse esforço para podermos superar essa trava que atinge tanto o desenvolvi-mento humano, econômico e social da República, quanto impede, ou ao menos prejudica, fortemente, o debate político no país, preso que fica em discutir os recorrentes casos de corrupção.

O Poder Executivo, no entanto, no atual momento, não parece ter as condições – e talvez, até mesmo, a credibilidade – políticas para tal empreendimento diante das dificuldades socioeconômicas e financeiras enfrentadas e pelo escândalo da Petrobras.

O Poder Legislativo está “preso no suspense” da Operação Lava-Jato, com membros seus envolvidos no mesmo escândalo, dadas as relações que estabeleceu com o governo e a questão do financia-mento da campanha, como demonstra a escolha do relator da

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Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras, deputado Luiz Sérgio (PT-RJ), que recebeu quase R$ 962.500,00 de empresas envolvidas no escândalo da petrolífera brasileira para a sua recente campanha de reeleição. Como investigará, com autonomia, aqueles que lhe financiaram, em cerca de quarenta por cento do custo de sua campanha, o cargo atual? Perderam-se, por completo, em inú-meros setores de nosso sistema político, padrões mínimos de refe-rências éticas. Nesse caso em especial, é claro e evidente o poten-cial conflito de interesses. A mesma instituição que, num grave momento pelo qual passa o país, se volta para espanto de muitos e consternação de outros tantos, numa agenda de benefícios para a corporação dos congressistas, como o “pacote de bondades” anun-ciado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Poderia citar inúmeras outras situações nada abonadoras, mas fico por aqui.

A alternativa pode partir de movimentos independentes da socie-dade civil e de universidades brasileiras que, colocando pautas espe-cíficas de lado, compreendam a necessidade de um basta a esse estado de coisas, tendo por base o conhecimento acumulado sobre o tema e as possibilidades concretas que temos para a transformação da situação. Por certo, sempre interagindo com e pressionando o sistema político brasileiro, para que as discussões e decisões rele-vantes e necessárias sobre a temática da corrupção não sejam dei-xadas de lado e o combate à mesma não se transforme num mero e deprimente concurso sobre quem rouba mais ou menos.

Cumpre começar. Não é aceitável que mais uma oportunidade seja perdida para que transformemos essa situação. A crise de legitimidade pelas quais passam as instituições públicas brasi-leiras, como bem demonstraram as manifestações de 2013, com certeza só fará se agravar com postergações das ações efetivas necessárias. Por certo, a corrupção é algo que não tem fim, mas é possível, e desejável, que a sua ocorrência seja minimizada e que possamos passar para uma pauta política de debates e disputas que seja dominada pelos diferentes projetos de desenvolvimento social, econômico, cultural e político de nossa sociedade. Que o debate político não seja contaminado, a todo instante, por essa Fênix constantemente renascida.

Referências

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5555Algumas chaves para o combate à corrupção

______. Dicionário de política. República. 5. ed. Brasília: UnB, 2000, p. 1.107-1.109.

CARDOSO, Sérgio (Org.). Retorno ao Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CORRÊA, Izabela Moreira. Sistema de integridade: avanços e agenda de ação para a administração pública federal. In: AVRITZER, Leonardo; FILGUEIRAS, Fernando (Org.). Corrupção e sistema político no Brasil . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 163-190.

EIGEN, Peter. Prefácio. In: SPECK, Bruno Wilhelm (Org.). Caminhos da transparência. Campinas, SP: Unicamp, 2002.

PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1999.

PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

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Parlamentarismo, para repensar a democracia, republicanizar o Estado

e educar o cidadão

Chico Andrade

Em meados de julho, participei, na Câmara dos Deputados, de ato público de lançamento de uma Frente Parlamentar pelo Parlamentarismo. As figuras públicas presentes eram

poucas, como geralmente poucos são aqueles que, no curso da História, ousaram iniciar mudanças que levaram a verdadeiras transformações sociais no mundo, mas eram todos, politica e sim-bolicamente, muito representativos do debate que ora se reinicia no país, entre eles o ex-deputado federal e ex-candidato a presi-dente da República pelo Partido Verde, Eduardo Jorge; o deputado federal José Luiz Penna, presidente nacional do PV; o deputado federal e ex-senador Roberto Freire, presidente nacional do PPS; o ex-governador de Pernambuco e atual deputado federal Jarbas Vasconcelos, do PMDB.

Tive a impressão de que, realmente, retomamos o tema, de agora em diante, em busca de se formar um amplo e plural movi-mento para disseminar, país afora, a desmistificação do que se pre-tende com a ideia parlamentarista, sistema com o qual o país já conviveu tanto no segundo período imperial, assim como no início da década de 1960, neste último uma tentativa oportunista de se superar a crise instalada pela renúncia de Jânio Quadros, mas posta em prática sem os necessários esclarecimentos pedagógicos que uma mudança com essa dimensão político-estrutural exige.

A discussão do tema ressurge em meio ao esboroamento da popularidade da presidente Dilma Roussef, no início do ocaso de seu partido, o PT, e às vésperas da abertura de inquérito para investigar suposto envolvimento do ex-presidente Lula em esquema de tráfico de influência. Enfim, dá-se, mais uma vez, ante um cenário ou a iminência de grave crise institucional, cir-cunstâncias que, sob o ponto de vista do que a proposta encerra como alternância radical no modo de fazer política e da gestão da coisa pública, pode não sugerir o melhor momento para sua imple-mentação. Mas é assim que, na História, as coisas mudam...

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5757Parlamentarismo, para repensar a democracia

No plebiscito de 1993, resultante dos debates travados na Constituinte de 1987/1988, realizado para que a população bra-sileira decidisse sobre o sistema de governo presidencialista ou parlamentarista, venceu o presidencialismo. O debate que ante-cedeu o plebiscito se deu em meio a um vazio discursivo e per-meado pelo oportunismo de figuras importantes da política nacional, reconhecidamente parlamentaristas, que, para se bene-ficiarem, pessoalmente, adotaram posição contra o novo sistema político. Em que pese a contradição, essa estratégia foi adotada por Leonel Brizola, Lula, próceres do PMDB e mesmo do PSDB, partido que se forjou à base da pregação parlamentarista.

Em 1993, ano do plebiscito, eu acabava de deixar, por opção, a direção do Sindicato dos Bancários de Brasília, entidade na qual tive a honra de exercer o cargo de secretário-geral. Desde a reto-mada do Sindicato das mãos de interventores da ditadura militar, evento que contou com a decisiva participação de militantes do PCB, à época, o Informativo Bancário (jornal sindical) constituíra-se em importante espaço para debates político-culturais e da con-juntura da cidade e do país. Vivíamos um período rico em partici-pação e contribuição da sociedade civil para a democracia, no qual sindicatos de categorias importantes, como o dos petroleiros, dos professores, dos bancários, entre outros tantos, tiveram papel des-tacado, na luta pela Anistia, por eleições diretas para presidente da República e pela Constituinte, além de suas lutas corporativas.

No momento em que se iniciou a campanha no país, o jornal do Sindicato, mesmo já dirigido por militantes do Partido dos Trabalhadores, propôs um debate público sobre a votação ple-biscitária, e eu, entusiasmado que era, tentei dar minha contri-buição em favor do parlamentarismo. Defendi a mudança do sis-tema de governo usando vários argumentos: em razão de não concentrar poderes numa única pessoa libertaria o país da neces-sidade de, a cada crise, encontrar um “salvador da pátria”, ou um líder messiânico; sustentei também que seria uma possibilidade de educar a população para forjar novos interlocutores legiti-mados para aprofundar a democracia de várias formas: por meio da formação da cidadania; do compartilhamento do poder; do res-peito às minorias e às diferenças; da educação para construir uma democracia plural e vigorosa dentro do espírito republicano. Enfim, usei o melhor de mim no sonho de caminhar para uma sociedade mais justa e fraterna.

Manipulada, entretanto, que foi para o Não, a consulta deu ao parlamentarismo pouco mais de 26% dos votos favoráveis. Hoje,

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5858 Chico Andrade

consigo perceber que esse resultado poderia ter sido previsível porque, depois da tragédia do governo Collor de Melo, o país, em meio à curta mas rica experiência do governo Itamar Franco, se viu quase livre da inflação – que até então corroía violentamente os salários, principalmente dos mais pobres. Em seguida, o sucesso do Plano Real fez do intelectual Fernando Henrique, até então um defensor convicto do parlamentarismo, presidente da República, por dois mandatos. Em 2002, o país elegeu Lula que, utilizando-se de astuciosas estratégias, perpassou bem a primeira grande crise de seu governo, o “mensalão”, para depois, caval-gando na popularidade adquirida pela distribuição de bolsas aos mais pobres e pela manipulação da propaganda ufanista carreada pela esperança do pré-sal, se reelegeu e fez sua sucessora. Isso ocorreu em meio a um turbilhão de escândalos que bem apon-tavam aonde tudo aquilo iria dar.

Ao longo desse período, parlamentaristas convictos, alguns beneficiados pela chegada ao poder, foram deixando suas convic-ções para trás, e o tema foi esquecido, principalmente diante da conjuntura interna de crescimento econômico momentâneo e insustentável, o qual fez a população mais pobre ingressar no mercado de consumo com a ilusão de se sentir alçada à classe média, tudo com a ajuda da propaganda oficial do governo Lula. Enquanto houvesse lenha para queimar, a fogueira fazia a festa cujas “bombas” somente estourariam tempos depois, no colo de sua sucessora.

No cenário fantasioso de sua alta aprovação popular e não podendo se manter diretamente no governo face às limitações cons-titucionais, Lula conseguiu eleger Dilma Roussef para sucedê-lo e assim cumprir o plano petista de longa jornada no poder. Fortale-cendo sua aliança com partidos e políticos conservadores e macu-lados por denúncias de desvios de todo o tipo, Lula e Dilma seguiram, todavia, imbatíveis, a despeito de, dia após dia, surgirem mais denúncias de escândalos envolvendo petistas e aliados de sua base de sustentação. Nesse cenário, o modelo presidencialista de coalizão reelegeu Dilma, mesmo tendo faltado com a verdade sobre a real situação das contas do país. Na campanha, ela fez promessas que nunca poderia cumprir, diante de um cenário político adverso, em que o governo vinha, a cada dia, sendo empurrado para o eixo da Operação Lava-Jato. Ao tempo em que se agravava a situação econômica, foi ficando claro para a sociedade que o PT fora o maior responsável pelos desfalques na Petrobras e pela derrocada que se seguiu, arrastando a economia do país para o caos.

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5959Parlamentarismo, para repensar a democracia

O sistema presidencialista possibilita que se manipule a ver-dade, que se inventem planos mirabolantes, que os candidatos mintam para se elegerem ou reelegerem, prometendo o que nunca poderão cumprir. Em geral, são figuras populistas. Nesse sistema não se pode levantar uma moção de desconfiança contra o presi-dente da República, que também é o chefe de governo. No presi-dencialismo, tal como na monarquia, o presidente é um rei, e Lula fez valer e cumpriu com maestria o papel do “pai dos pobres”.

E é desse tipo de politicagem que ao longo de sua implantação no Brasil, desde o golpe de 1889, o presidencialismo tem se alimen-tado, com raras exceções: ora aparece um “bom” general, ou ditador; ora surge uma liderança carismática – e muitas vezes, cínica – para “unir a nação e salvar a pátria”. Não importam os meios para se chegar ao poder, já que as elites dominantes nunca se importaram, de fato, em educar para libertar efetivamente as pessoas da igno-rância, como bem defendeu Darcy Ribeiro. Elites oriundas de uma Europa acostumada historicamente a se apropriar e a explorar, destruindo culturas e escravizando povos. Por aqui, como também em toda a América espanhola, os europeus deixaram suas marcas aterradoras do tráfico de seres humanos e da escravização dos nativos. Apossaram-se de vastas áreas de terras e foram os prota-gonistas do atraso social de que até hoje somos vítimas.

Diante dessa realidade, por que o nosso povo – economica-mente dependente e ainda bastante desinformado – haveria de querer mudar o sistema de governo para o parlamentarismo? É preciso considerar que, na época do plebiscito, em 1993, pouco se havia questionado sobre as tenebrosas transações, os vícios e arranjos que sustentaram a elite conservadora neste triste Estado brasileiro tão desigual.

Mas a história brasileira nos mostra que o parlamentarismo, como sistema de governança, já nos serviu em alguns importantes períodos, a começar pela crise da abdicação de dom Pedro I, em 1831, quando, em razão do príncipe regente não ter idade para assumir o trono, foi criado o Conselho Regencial, que nada mais era que um Conselho de Ministros. Esse sistema funcionou de modo não oficialmente reconhecido até que se fizesse o arranjo para a maioridade de dom Pedro II. A partir daí, implantou-se, pela primeira vez, o parlamentarismo em meio à monarquia, tendo o monarca criado expressamente a figura do Presidente do Con-selho, equivalente ao cargo de Primeiro-Ministro, sistema que, apesar de revoltas e lutas separatistas, funcionou com razoável

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êxito, sob a tutela do poder moderador do imperador, de 1847 até a implantação da República, em 1889.

Com a primeira Constituição republicana de 1891, adotou-se o modelo positivista e concentrador de poderes, o presidencia-lismo. Este sistema perpassou o longo período varguista e prosse-guiu até o ano de 1961, sem mudanças. Com a crise da renúncia de Jânio Quadros e a rejeição dos militares – e de parte da elite brasileira, ao nome de João Goulart, então vice-presidente, para assumir o cargo de presidente da República, surgiu a ideia do parlamentarismo. Foi um arranjo oportunista que, em razão das circunstâncias, não poderia prosperar. De fato, implantado o novo sistema durou pouco mais de um ano, até que os defensores do poder total manipulassem pelo seu fim.

Mas a história do parlamentarismo, com suas variações mundo afora, é bastante diferente do que aqui se quis fazer em 1961 – um arranjo para superar a crise – e parece ter se originado de modo a fincar raízes duradouras, rompendo velhas estruturas para mudar e qualificar o modo de fazer política de muitas sociedades. Lem-bremos que no seu surgimento, na Inglaterra do século XIII, a ideia parlamentarista confrontou o poder absoluto, quando o povo e os barões se uniram em insurreição para atacar os privilégios e prerrogativas do rei, levando ao enfraquecimento de seu poder. Esse movimento levou à assinatura da Carta Magna, que estabe-lecia que o rei teria de respeitar os cidadãos e consultar o parla-mento quando quisesse aumentar os impostos. No século XVI, inconformado com a perda de poder, Jaime II tentou novamente arrebatar o poder do parlamento para a monarquia. Não obtendo êxito, o monarca foi deposto, evento que deu origem à chamada Bill of Rights (Declaração de Direitos) aprovada em 1689, no Reino Unido. Era o fim da monarquia absoluta na Inglaterra.

Importante destacar que, nos países nos quais ele prevaleceu, o parlamentarismo também foi implantado, em geral, a partir de crises profundas, mas não se impôs exclusivamente como solução momentânea para essas crises. Ao contrário, consolidou-se nesses países como mudança comportamental na política tanto para reo-rientar a forma de governar dos dirigentes quanto para a forma dos governados escolherem seus governantes. Ao longo da história, o sistema foi educando as populações sobre as vantagens dessa mudança, construindo identidades e impondo mais transparência nas relações da sociedade com o Estado, respeitando a ideia de repartição dos poderes, e avançando nos processos de democrati-zação e de compartilhamento do poder. O parlamentarismo foi

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6161Parlamentarismo, para repensar a democracia

implantado e se encontra funcionando bem nos países onde as relações trabalhistas e sociais se modernizaram e nas democracias mais avançadas do mundo, exceto nos Estados Unidos, pelas par-ticularidades de seu movimento de independência.

Não é fácil discutir esse tema com uma população carente de hospitais públicos decentes, de escolas públicas de boa qualidade, ou de merenda escolar para os filhos, como ocorre no Brasil. É difícil discutir esse tema com segmentos sociais que presenciam todos os dias a distribuição da Justiça sem equidade entre ricos e pobres. Não é tarefa para qualquer um sair pelas ruas difundindo o parlamentarismo, quando a associação imediata que o tema sugere está ligada a parlamentares corruptos e oportunistas. Mais difícil ainda, constatar que em pleno século XXI, o Brasil ainda possui parte de seu eleitorado carente e, em grande parte, viciado em trocar o voto por qualquer benefício material ou por promessas que jamais serão cumpridas.

A difusão dessa nova experiência política exigirá postura firme e demandará grande capacidade de convencimento sobre a eficácia da alternância permanente no poder, na perspectiva de enaltecer a democracia como valor universal. E a dificuldade se acentua num cenário de herança política clientelista, como a que prevalece entre nós.

Por outro lado, a história dos partidos políticos brasileiros, até o ocaso da ditadura militar de 1964, excluída a do PCB em 1922 e outras poucas exceções, foi forjada sempre por elites preocu-padas apenas com a sua autopreservação e nunca com o objetivo de formar cidadãos. A criação da maioria dos partidos políticos passa longe dos ideais republicanos e até mesmo da utopia de se alcançar uma sociedade livre dos traços colonialistas.

Então, é chegada a hora, em meio à grave crise política, econô-mica e moral apontarmos outro caminho político para o povo bra-sileiro, disseminando e fortalecendo um movimento amplo e plural pelo Parlamentarismo, que precisa ser modelado às nossas neces-sidades e voltado ao conjunto de nossa cultura. Sem pressa, mas compreendendo que se esgotou o sistema presidencialista que herdamos desde a implantação da República. Nosso movimento deve levar em conta que o país tem dimensões continentais e desi-gualdades regionais profundas, além do pluralismo de nossa diversidade étnico-cultural. Não podemos incorrer nos erros das lutas travadas no passado, desprovidas que foram do objetivo claro de integração e inclusão social.

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Os brasileiros não precisam de um “pai da pátria”, mas de líderes legitimados, capazes e comprometidos com a gestão da res publica (coisa pública). Esta é uma proposta ousada, mas digna do desprendimento de homens e mulheres de bem e de visão futu-rista. É um sonho que representa uma mudança comportamental na vida brasileira e que pode elevar nossa democracia a um patamar de efetiva justiça social e de modernidade.

Por mais democracia! Por um país plural e mais justo! Pelo parlamentarismo!

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III. Conjuntura

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Autores

Antonio S. Magalhães RibeiroMestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia, tem doutorado em Sociologia Econômica .

Laécio Noronha XavierAdvogado, mestre em Direito Constitucional/UFC, doutor em Direito Público/UFPE,conselheiro da OAB-CE e professor de Direito Internacional Público/Unifor e Ciência Política/FCRS .

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BNDES: afronta à responsabilidade fiscal e à transparência estatal

Laécio Noronha Xavier

A inserção do Brasil na globalização e a aquisição de sua “maioridade econômica” ocorreram por meio do Plano Real (1994) e de seu consequente processo de reformas estatais,

cujo fundamento se amparou no modelo econômico ortodoxo sin-tetizado em três macromedidas: câmbio flutuante, superávit pri-mário e metas de inflação. O governo Lula (2003-2010) ao manter tal política econômica e aproveitar o crescimento da economia mundial conquistou elevado superávit na balança comercial e aumento das reservas cambiais, potencializando o crescimento da economia com inclusão social. Mas, com a crise mundial (2008) houve a adoção de medidas anticíclicas (intervalo pseudo-keyne-siano) entre 2009 e 2010, com aumento dos gastos estatais, deso-nerações tributárias, diminuição do controle fiscal e aumento da dívida pública como forma de aquecer a economia, ampliar o cré-dito e elevar o consumo.

Entretanto, o próprio John Keynes era contrário a déficits públicos de longo prazo, ao afirmar que governos podiam se per-mitir um pouco de déficit para combater uma crise pontual, em especial, injetar dinheiro na economia para reduzir o desemprego (o grande “mal” da sociedade). Keynes, portanto, defendia déficits de curto prazo em situações emergenciais, mas era definitiva-mente contra governos contraírem dívidas por longo tempo e que dificilmente conseguiriam pagar.

Historicamente, os governos brasileiros gastam quase sempre acima do que arrecadam. Muitos países desenvolvidos possuem défi-

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cits fiscais, contudo, suas taxas de investimentos públicos são supe-riores, em média, aos níveis de déficits públicos na proporção com o Produto Interno Bruto (PIB). O governo brasileiro acumula déficits não para ampliar investimentos, mas para custear despesas cor-rentes, com resultados visíveis na infraestrutura inadequada e no aumento da dívida pública. É uma miragem a ideia de que grandes déficits fiscais levarão ao crescimento da economia. Um recente panorama da economia mundial feito pelo Fundo Monetário Interna-cional (FMI) concluiu que, para os países em desenvolvimento, uma dívida pública correspondente a 40% do PIB deve representar uma luz amarela. Um déficit fiscal ocasional não é um problema, mas déficits fiscais prolongados no tempo tornam-se empecilho ao cresci-mento econômico, vide a situação da Grécia, Espanha e Portugal.

No primeiro governo Dilma (2011-2014), sob a égide da impro-visada política econômica heterodoxa, tais medidas anticíclicas (ou pseudo-keynesianas) foram mantidas, fatos que ressuscitaram as bases do nacional-desenvolvimentismo (mesmo modelo ideológico de viés econômico intervencionista dos governos militares nas décadas de 1960-1980), implicando no desmonte dos fundamentos macroeconômicos do Plano Real: baixo crescimento econômico, juros altos, redução das taxas de poupança, diminuição dos inves-timentos produtivos, queda da arrecadação tributária, déficit fiscal, câmbio sobrevalorizado e inflação acima do teto. Daí a imperiosa necessidade de ajustes fiscais a partir de 2015 em face de toda uma série de indicadores econômicos negativos acumulados.

Para Musacchio & Lazzarini (2015), a atual crise brasileira deve-se à falta de um “ambiente institucional robusto” capaz de blindar as empresas estatais e as agências reguladoras de interfe-rência política. Entretanto, a ideologia do capitalismo de Estado (ou pensamento econômico intervencionista) faz parte do modelo mental de Lula e Dilma. Os contratos de concessão e as obras em infraestrutura e logística moveram excessivamente o pêndulo na direção de maior intervenção do Estado na economia, que criaria e escolheria os “campeões nacionais” nestes setores para receber generosos incentivos financeiros do Estado, representando, con-forme Acemoglu & Robinson (2012), o retorno pátrio ao modelo do “extrativismo econômico” sob dirigismo estatal.

Exemplo-mor é o do Banco Nacional de Desenvolvimento Eco-nômico e Social (BNDES) que, em junho de 2015, completou 63 anos de atividades. Como seu papel institucional é financiar o desenvolvimento, em especial o indeclinável problema da infraes-trutura (aeroportos, portos, estradas, ferrovias, energia, sanea-

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mento, telecomunicação), ele vem firmemente financiando a infraestrutura, mas não somente no Brasil. Vários são os emprés-timos internacionais repassados para empresas brasileiras reali-zarem obras infraestruturantes no exterior, justificados pela égide da cooperação internacional e do sigilo bancário. E como as insti-tuições públicas de fiscalização, o mercado e a sociedade civil não sabem quais os critérios utilizados para escolher os agraciados pelos empréstimos e boa parte das obras financiadas ocorre em países pouco expressivos em termos de relações financeiras e comerciais com o Brasil, sobram suspeitas do caráter político-ideo-lógico destas nações escolhidas e transbordam certezas sobre a inconstitucionalidade do sigilo de informações, uma vez que a ausência de transparência é a principal hipótese de incidência dos desvios de finalidade da administração pública.

Cerca de R$ 80 bilhões é a quantidade de recursos que o Exe-cutivo pretende economizar, somente em 2015, para incrementar em 1,2% o superávit primário visando reduzir a dívida pública em relação ao PIB, que já alcança 62,4% (R$ 3,5 trilhões), em 2015, com perspectivas de alcançar 66%, em 2016. Entretanto, somente em 2014, o volume total de subsídios do governo federal para o BNDES chegou a quase R$ 30 bilhões ou 37% da quantia que ele pretende economizar, em 2015, com o ajuste fiscal. Desde que Guido Mantega deixou a presidência do BNDES, em 2006, e se tornou ministro da Fazenda, o Banco tornou-se peça chave no modelo de desenvolvimento socioeconômico proposto pelos governos Lula e Dilma, com o total de empréstimos do Tesouro Federal ao BNDES tendo saltado de R$ 9,9 bilhões, ou 0,4% do PIB, em 2007, que somava R$ 2,6 trilhões, para R$ 414 bilhões, ou 8,4% do PIB, em 2014, calculado em R$ 5,52 trilhões. Na verdade, o governo federal capta dinheiro a juros de taxa SELIC (atualmente 13,75%) no mercado financeiro e injeta-o no BNDES, que empresta às empresas com juros subsidiados, sendo a diferença coberta pelo Tesouro, com sérias consequências sobre a responsabilidade fiscal do Executivo, ou, em última instância, paga pelos contribuintes.

Na verdade, para apoiar o BNDES em seus empréstimos inter-nacionais (e nacionais), o Tesouro emite títulos da dívida pública remunerados pela taxa Selic de juros (13,75% ao ano em junho/2015) e aporta a quantia no banco que, por sua vez, ao receber tais recursos, compromete-se a quitar a dívida com o governo federal, não em conformidade com as taxas de mercado, mas sim a valores inferiores. O Tesouro tem prejuízo neste tipo específico de transação que implica em aumento dos gastos

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públicos, com o governo federal tentando esconder os subsídios concedidos às empresas mediante o suprimento de recursos públicos ao BNDES (SCHIMIDT, 2015). Os empresários argu-mentam que os créditos subsidiados geram emprego, mesmo que o financiamento destas operações externas do BNDES custe R$ 1,1 bilhão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) em face da cobrança de 1% de juros (e que cria déficit no FAT), e cujo rombo é coberto pelo Tesouro que, por sua vez, se financia pagando juros de quase 14% ao ano com aumento do déficit público (LEITÃO, 2015). Outrossim, os subsídios do BNDES para grandes grupos empresariais não necessariamente levaram a um desempenho maior da economia brasileira, nos últimos anos.

Em 2014, o BNDES ultrapassou o Bradesco e tornou-se o 4º maior banco do país, com ativos totais de R$ 877 bilhões, atrás somente do Banco do Brasil (R$ 1,3 trilhão), Itaú/Unibanco (R$ 1 trilhão) e Caixa Econômica Federal (R$ 963 bilhões). Sua carteira total de crédito somou R$ 293 bilhões, posicionando-o como 5ª instituição financeira nacional neste critério e correspondendo à 2ª posição no crédito a empresas, superando o Itaú/Unibanco e ultrapassado apenas pelo Banco do Brasil. No total, os bancos públicos correspondiam a 51% do crédito a pessoas jurídicas. E para manter os bancos federais operando, o governo gastou, em 2014, o equivalente a 10% do PIB, enquanto que, em 2008, esses recursos correspondiam somente a 1,5% do PIB (BNDES, 2015).

Entre 2008 a 2014, o governo federal ampliou os recursos inje-tados no BNDES dentro da política de estimulo ao crescimento das “empresas campeãs nacionais”, sendo atualmente responsável por cerca de 20% de todo o crédito do país (quase R$ 500 bilhões). Somente em 2014, o volume total de seus subsídios para empresas aproximou-se dos R$ 30 bilhões, quase metade da quantia que o governo pretende economizar em 2015 com o ajuste fiscal (R$ 80 bilhões). Ocorre que seus financiamentos bilionários privilegiaram diretamente grandes empresas privadas para atuação no Brasil e em outros países, respondendo por cerca de dois terços do volume de crédito da instituição. Encaixam-se nessas categorias os emprés-timos realizados para as empresas EBX, JBS Friboi, Odebrecht, Camargo Corrêa, Votorantim Cimentos, BRF, Rede D’Or São Luiz, Cutrale, EMS, Lojas Riachuelo, Lojas Americanas, Grupo Boticário e Natura. Também foram ampliados substantivamente os financia-mentos para projetos infraestruturantes realizados por emprei-teiras brasileiras em diferentes países (LIMA, 2015).

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6969BNDES: afronta à responsabilidade fiscal e à transparência estatal

Segue breve rol de financiamentos repassados pelo BNDES para obras de infraestrutura no exterior executadas por emprei-teiras brasileiras entre 2007 e 2014 (SARMENTO, 2015): i) Porto de Mariel (Cuba): Valor da obra – US$ 957 milhões (US$ 682 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; ii) Hidrelétrica de San Francisco (Equador): Valor da obra – US$ 243 milhões. Empresa – Odebrecht; iii) Hidelétrica Manduruacu (Equador): Valor da obra – US$ 124,8 milhões (US$ 90 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; iv) Hidrelétrica de Cheglla (Peru): Valor da obra – US$ 1,2 bilhões (US$ 320 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; v) Metrô da Cidade do Panamá (Panamá): Valor da obra – US$ 1 bilhão. Empresa – Odebrecht; vi) Autopista de Madden-Colón (Panamá): Valor da obra – US$ 152,8 milhões. Empresa – Odebrecht; vii) Aqueduto de Chaco (Argentina): Valor da obra – US$ 180 milhões. Empresa – OAS; vii) Soterramento do Ferrocarril Sarmiento (Argentina): Valor – US$ 1,5 bilhão. Empresa – Odebrecht; viii) Linhas 3 e 4 do Metrô de Caracas (Venezuela): Valor da obra – US$ 732 milhões. Empresa – Odebrecht; ix) Segunda ponte sobre o Rio Orinoco (Venezuela): Valor da obra – US$ 1,2 bilhão (US$ 300 milhões pelo BNDES). Empresa – Ode-brecht; x) Barragem de Moamba Major (Moçambique): Valor da obra – US$ 460 milhões (US$ 350 milhões por parte do BNDES). Empresa – Andrade Gutierrez; xi) Aeroporto de Nacala (Moçam-bique): Valor da obra – US$ 200 milhões (US$ 125 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; xii) BRT de Maputo (Moçambique): Valor da obra – US$ 220 milhões (US$ 180 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; xiii) Hidrelétrica Tumarím (Nicarágua): Valor da obra – US$ 1,1 bilhão (US$ 343 milhões pelo BNDES). Empresa – Queiroz Galvão; xiv) Projeto Hacia El Norte-Rurrenaba-que-El Chorro (Bolívia): Valor da obra – US$ 199 milhões. Empresa – Queiroz Galvão; xv) Gasoduto da Transportadora de Gas del Sul e da Transportadora de Gas del Mercosur (Argentina): Valor da obra – US$ 636,9 milhões. Empresa – Odebrecht; xvi) Usina Side-rúrgica Nacional (Venezuela): Valor da obra – US$ 865,4 milhões. Empresa – Andrade Gutierrez; xvii) Central Termelétrica de Punta Catalina (República Dominicana): Valor da obra – US$ 2 bilhões (US$ 656 milhões pelo BNDES). Empresa – Odebrecht; xviii) Cor-redores Viários Ocidental e Oriental de Acra (Gana): Valor da obra – US$ 290 milhões e US$ 500 milhões, respectivamente, patroci-nados pelo BNDES. Empresas – Odebrecht e Andrade Gutierrez.

Vale ressaltar que o Brasil investe, anualmente, cerca de R$ 150 bilhões em infraestrutura, algo em torno de 2,5% do PIB, ou, R$ 6,2 trilhões em 2014, bem abaixo do percentual de investi-

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mentos em infraestrutura/PIB realizados por países como Peru (4%), Chile (5%), Índia (6%) e China (13%). Por outro lado, a dívida pública brasileira em relação ao PIB já alcança 62,4% (R$ 3,5 tri-lhões), em 2015, com perspectivas de alcançar 66%, em 2016 (SAKATE, 2015). Portanto, com tais índices ínfimos de investimento na infraestrutura brasileira, o papel “desenvolvimentista” do BNDES encontra-se envolto em sérias controvérsias, muitas vezes contaminadas pelo viés ideológico, uma vez que a direção do banco afirma que tais financiamentos externos representam projetos de cooperação internacional, ampliam o seu total de ativos financeiros, auxiliam na visibilidade internacional do Banco, reforçam a política externa pátria e ajudam as empresas brasileiras a se tornarem pla-yers internacionais, necessitando, portanto, que as informações permaneçam em sigilo. Existem mais de 3.000 empréstimos, con-cedidos via BNDES, apenas no período entre 2007 e 2014, porém, nem a instituição e muito menos o governo se dignam a fornecer seus valores, de forma transparente.

Em junho/2015, o BNDES divulgou parte das informações, até então sigilosas, referentes a empréstimos concedidos para obras de infraestrutura realizadas em 11 nações. Entretanto, os dados informados pelo Banco não podem ser chamados de trans-parentes, tendo em vista tratarem apenas dos valores das opera-ções, taxas de juros e prazos de pagamento aplicados, sem deta-lhes sobre as garantias oferecidas pelos contratantes, pareceres técnicos e análises de risco. Os dados liberados revelam que o total emprestado pelo BNDES, entre 2007-2014 foi de US$ 12 bilhões, divididos em 516 contratos. Os países que mais rece-beram recursos foram: Angola (US$ 3,5 bilhões), Venezuela (US$ 2,25 bilhões) e República Dominicana (US$ 2,2 bilhões). Para quase 60% dos contratos de empréstimos, o Banco cobrou, em média, taxas de juros de 5,3%, apesar de ele captar recursos a um custo mais alto do que repassa para as empresas que realizam obras de infraestrutura no exterior. Os recursos oriundos do FAT, por exemplo, custam no mínimo 6% ao mês. Contudo, Luciano Coutinho, presidente do BNDES, encontra-se correto na afirmação que o Banco não perde dinheiro nestas operações. Por lei, o BNDES não pode assumir o prejuízo da operação, uma vez que a União paga a diferença via “equalização das taxas de juros” com a cobertura de recursos públicos oriundos do pagamento de tri-butos e do aumento da dívida pública. No fim de 2014, a dívida da União com o BNDES para cobrir as operações de compensação alcançou R$ 26,1 bilhões (COUTINHO, 2015).

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7171BNDES: afronta à responsabilidade fiscal e à transparência estatal

Segundo uma representação do Ministério Público junto ao TCU, o BNDES recebeu de maneira irregular do Tesouro Nacional cerca de RS 500 bilhões, entre 2008-2014, em operações dese-nhadas como subterfúgio para lançar mão de recursos que, por lei, não poderiam ser destinados como empréstimos ao Banco e que podem ter ido parar nas contas das empresas que receberam os empréstimos no Brasil e no exterior, configurando, assim, fraude à administração financeira e orçamentária da União. Os repasses considerados irregulares começaram em 2008, quando o governo federal passou a usar dinheiro da conta única do Tesouro (operações feitas pelo Banco Central com compra/venda de moedas) para financiar o BNDES. Mesmo que a conta única do BC somente possa ser utilizada para que o governo federal pague suas dívidas, o Tesouro passou a emitir títulos de dívida ao BNDES, que cambiava por dinheiro e emprestava-o às empresas, tornando-se assim credor, e o Tesouro devedor, fato proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O governo criou, dessa forma, “operações insólitas”, uma vez que o correto é o Tesouro captar recursos no mercado ou ampliar a arrecadação de impostos e repassar esse dinheiro para o BNDES, contabilizando em seu orçamento (BRONZATTO; COUTINHO, 2015).

Por outro lado, o presidente Luciano Coutinho citou o apoio a 91 dos 100 maiores grupos nacionais, o financiamento à metade de todos os investimentos em infraestrutura no país, o estoque de empréstimo em R$ 263 bilhões, correspondente a 11% do PIB, e a alocação integral dos títulos recebidos do Tesouro em operações de crédito para negar qualquer irregularidade nos repasses de R$ 500 bilhões do Tesouro (Ibidem). Contudo, a monetização dos títulos foi feita por meio de venda direta, por operações compro-missadas com agentes de mercado e também com a manutenção dos papeis até a data de vencimento, no caso de títulos curtos, com o total de empréstimos do Tesouro Federal ao BNDES tendo saltado de R$ 9,9 bilhões (0,4%) do PIB, em 2007, que somava R$ 2,6 trilhões, para R$ 414 bilhões (8,4%) do PIB, em 2014, e que foi calculado em R$ 5,52 trilhões (SARMENTO, 2015).

O minucioso relatório de 96 páginas do ministro Augusto Nardes, relator do processo das contas de 2014 do governo Dilma no TCU, afirma que, por meio da “contabilidade criativa” e “pedaladas fis-cais”, o governo utilizou recursos dos bancos públicos de forma indiscriminada (programas sociais e empréstimos financeiros), não realizou contingenciamento de R$ 28 bilhões e permitiu a utilização de R$ 10 bilhões sem autorização do Congresso Nacional, desrespei-

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tando a LRF e causando a atual crise na economia. Por essa razão, o TCU tomou a decisão inédita de sinalizar a rejeição das contas, cabendo ao governo federal um prazo de 30 dias para responder questionamentos, antes que seja dada a decisão final.

Entre os 13 pontos considerados irregulares estão, pelo menos, três práticas ilegais (“pedaladas fiscais”) que envolvem o BNDES (LOPES, 2015): I) não registrar na dívida pública os passivos gerados pelos atrasos nos repasses do Tesouro junto ao BNDES, Banco do Brasil e FGTS (R$ 40 bilhões acumulados até 2014) e descumpri-mento do art. 1º da LRF; II) adiantamentos ilegais concedidos pelo BNDES à União para cobertura de despesas no Programa de Sus-tentação do Investimento e descumprimento dos arts. 1º, 32 e 36 da LRF; III) omissão de transações deficitárias junto ao BNDES, Banco do Brasil e FGTS nos resultados fiscais de 2014 e descumprimento do art. 1º da LRF e art. 37 da Constituição de 1988.

O relatório-parecer do Ministério Público de Contas junto ao TCU mostra os riscos que o país acumulou, quando o governo tentou esconder o mau desempenho das contas públicas nos últimos anos. Somente os créditos concedidos pelos bancos públicos ao Tesouro passam de R$ 40 bilhões. O relatório exibe vários tipos de problemas: confusões na contabilidade do governo federal que retiram a credibilidade de seus dados, banco público financiando o Tesouro e representando evidente sinal de má administração, “pedaladas fiscais” enquanto operações proibidas pela LRF e reforço dos riscos de aumento inflacionário. Como o registro das receitas e despesas tornou-se mais opaco, os bancos públicos financiam seus controladores, pagam obrigações do Tesouro e demoram a receber o reembolso do governo federal. Empréstimos ao Tesouro são gastos orçamentários que os bancos públicos não têm dever de assumir. E essa espera de meses caracteriza, segundo o TCU, uma operação de crédito, como é o caso do BNDES que cobriu os custos do Programa de Sustentação de Investimento (OLIVEIRA, 2015).

Ao todo, somados os recursos sobre os quais pairam dúvidas (e os que nem foram registrados), chega-se a R$ 280 bilhões. Isso, claro, não significa um rombo desta dimensão, mas sim operações de crédito, débito, receitas e despesas que foram contabilizados (ou não) com algum tipo de irregularidade. Ademais, o governo federal tem a obrigação legal de realizar a cada dois meses uma avaliação contábil de suas receitas e despesas para verificar o desempenho e definir a necessidade de ajustar os gastos. Como o governo fazia sua avaliação superestimando as receitas e subesti-mando as despesas, não foi implantado o contingenciamento ade-

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quado. Com isso, o Congresso Nacional teve que votar no fim de 2014 uma autorização para a presidente desrespeitar a sua lei orçamentária (LEITÃO, 2015).

Não é problema jurídico o BNDES ser socorrido com dinheiro público. Ilegal mesmo é alegar, sem amparo no ordenamento, a necessidade de “preservação da privacidade dos atos referentes à gestão bancária” e o governo federal vetar o TCU, Parlamento, mercado, mídia e sociedade de fiscalizarem sua administração. Em especial, quando o Banco destina, por meio de atos de coope-ração internacional, empréstimos para outras nações visando financiar atividades de empresas brasileiras no exterior e tais ope-rações são consideradas juridicamente “secretas” pelo governo. Outra questão polêmica é a taxa de juros abaixo do mercado que o BNDES concede às “empresas campeãs”, uma vez que capta dinheiro emitindo títulos públicos com base na taxa Selic (13,75% ao ano, em junho/2015) e empresta a juros de 6%, significando que arca com 5% de todo o dinheiro a ele repassado.

Atualmente, o Banco somente apresenta os beneficiários de 18% dos empréstimos. E essa parcela somente foi revelada em face de uma ação do Ministério Público Federal, na 20ª Vara Federal de Brasília, em agosto/2014, com a decisão considerando que a divulgação das operações com empresas privadas não viola os princípios que garantem o sigilo fiscal e bancário dos envol-vidos e obrigando o BNDES a fornecer os dados solicitados pelos órgãos de fiscalização. Ademais, uma série de iniciativas tomadas pelo Congresso Nacional, em 2015, promete abrir, enfim, tal “cai-xa-preta”, como o pedido de uma Comissão Parlamentar de Inqué-rito, e as aprovações de um Projeto de Lei sobre o fim do sigilo nas operações do Banco e de um requerimento do Senado para que o TCU realize uma auditoria nas operações feitas pelo BNDES com empresas brasileiras em atuação no país e no exterior entre 2007-2014 (SARMENTO, 2015).

Contudo, a presidente Dilma vetou o texto aprovado pelo Senado que determinava o fim do sigilo nos empréstimos conce-didos pelo BNDES, justificando no Diário Oficial da União (22/05/2015) que “a divulgação ampla e irrestrita das informa-ções das operações de apoio financeiro do BNDES fere sigilos ban-cários e empresariais e prejudicaria a competitividade das empresas brasileiras” e que “a quebra do sigilo bancário é incons-titucional”. Em sua ratio essendi, inconstitucional é o veto que nega publicidade dos atos de um banco quase que inteiramente exercidos com dinheiro público, não havendo discricionariedade

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do Executivo em dar ou não transparência ao BNDES, e sim, dever vinculado aos princípios da Administração Pública (art. 37 da Constituição de 1988: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência). Além do que o BNDES encontra-se sujeito à lei de acesso a informações públicas, com os contratos da instituição não sendo protegidos por sigilo bancário por envol-verem recursos públicos (SARMENTO, 2015).

Vale lembrar que tal tentativa legal de manter a opacidade de informações fiscais e bancárias pode ser democraticamente derru-bada pelo Senado, que ainda não tem data definida para apreciar o veto da Presidência da República sobre o sigilo das operações do BNDES. São fortes as suspeitas de que o “sigilo bancário” e os “critérios técnicos” adotados na concessão de financiamentos externos que envolvem empresas brasileiras sejam justificativas desprovidas de razão legal do governo federal para acobertar negó-cios lesivos aos contribuintes e que comprometem a credibilidade da instituição e colocam em dúvida a lisura do processo. Como os recursos do BNDES são quase todos provenientes do Tesouro, a definição de critérios transparentes para a concessão de financia-mento pode contribuir em muito para reduzir os favores conce-didos a empresários ligados aos governantes de ocasião.

O impasse da falta de transparência pública chegou a tal ponto, que o ministro-relator do TCU sobre as contas de 2014 do governo federal, considerou irregulares as manobras contábeis realizadas pelo Executivo, que atrasou o repasse de verbas para cobrir pro-gramas sociais e financiamentos privados pagos pelos bancos públicos, que findaram por cobrir as despesas do Executivo como se fosse um empréstimo feito ao governo por estas instituições finan-ceiras públicas. Desta forma, o governo federal se obriga a tomar dinheiro emprestado no mercado financeiro para pagar a dívida ori-ginal frente aos bancos públicos, além de agredir a LRF, que proíbe que bancos públicos financiem seus controladores: o governo federal.

As ideias propostas por alguns economistas, de que toda empresa privada brasileira que receber recursos subsidiados do Executivo abra mão da confidencialidade de informações relacio-nadas ao empréstimo, parece oportuna e justa, bem como a criação de um órgão público independente para controle dos financia-mentos, semelhante ao existente nos Estados Unidos, representa uma alternativa para evitar e detectar desvios de finalidade da administração pública. A sede de informações sobre certas opera-ções do BNDES pode desvendar não apenas eventuais desvios do passado, mas levar à maior transparência nas operações futuras,

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dando, assim, o Brasil, um grande passo para aperfeiçoar a gestão do Banco. Ademais, como o dinheiro é público, é preciso que a sociedade saiba de onde provém, para onde é repassado, como a despesa é registrada e que subsídios embutidos existem.

Referências

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COUTINHO, Leonardo. O banco camarada. Veja, n. 2.429, p. 58, 10/06/2015.

LEITÃO, Miriam. Maquiagem desfeita. Diário do Nordeste. 18/06/2015. Negócios, p. 6.

LIMA, João Gabriel. O BNDES não pode ser uma caixa-preta. Época, n. 883, p. 28-29, 11/05/2015.

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MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sérgio. Reinventando o capitalismo de Estado . O Leviatã nos negócios: Brasil e outros países. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015

OLIVEIRA, Júlio Marcelo de. Relatório e parecer prévio do Ministério de Contas junto ao TCU sobre as contas de 2014 do Governo da República. Brasília: MPC, 15 jun. 2015.

SAKATE, Marcelo. Melhor, mas longe do ideal. Veja, n. 2.430, p. 62-65, 17/06/2015.

SARMENTO, Leonardo. Veto de Dilma que nega transparência ao BNDES é inconstitucional. Jusbrasil, 25/05/2015. Disponível em: www.leonardosarmento.jusbrasil.com.br>. Acesso em: 02/06/2015.

SCHMIDT, Blake. Empresas de bilionários brasileiros receberam apoio do BNDES. UOL, São Paulo, 10/06/2015. Disponível em: www.economia.uol.com.br>. Acesso em: 12/06/2015.

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De vampiros e bancos de sangue

Antonio S . Magalhães Ribeiro

Duas abordagens sobre a corrupção se prestam à inutilidade e à desfaçatez. A primeira, de viés moralista, ignora as variáveis políticas e econômicas associadas ao fenômeno.

A segunda, tão inútil quanto cínica, além de tentar transferir para o passado colonial a responsabilidade das roubalheiras do pre-sente, insiste também em justificar e nivelar as fraudes sistêmicas bilionárias – capazes de arruinar a maior empresa do país – às transgressões individuais conhecidas como “jeitinho brasileiro”.

Para além dos efeitos nocivos à democracia e à economia, certas ilicitudes no setor público agridem direta e impiedosamente o cidadão trabalhador, tanto em sua dignidade quanto na sua sobrevivência material. É o caso dos crimes praticados por meio dos fundos de pensão e das agências reguladoras.

Nos fundos de pensão, vigora uma gigantesca orgia com o dinheiro que deve assegurar a aposentadoria dos trabalhadores das empresas estatais. Quase todos estão envolvidos em cor-rupção e perda de recursos dos seus associados.

A Petros, por exemplo, gerou um déficit operacional, em 2013, de R$ 2,8 bilhões, levando à rejeição de suas contas por unani-midade do seu Conselho Fiscal e à denúncia ao órgão fiscali-zador, da sua direção, que é controlada, desde 2003, pelo Partido dos Trabalhadores.

No Postalis, fundo dos servidores da Empresa de Correios e Telégrafos, um prejuízo de R$ 5,5 bilhões em sua contabilidade parece ser o capítulo mais devastador no âmbito dessas entidades. Para reverter este resultado – uma perda de 25% do patrimônio do fundo –, os seus dirigentes decidiram que o prejuízo será pago pelos associados, durante os próximos 15 anos, o que significa um aumento de 26% sobre o valor das contribuições.

Os inúmeros investimentos em títulos de risco elevado, baixa liquidez e retornos historicamente desvantajosos, além do envolvi-mento em casos de corrupção, têm se constituído em uma prática desastrosa por parte dessas entidades nos últimos anos. A título de fundamentar tal premissa, vale registrar que, durante a

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Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre os Correios, em 2005, oportunidade em que os fundos de pensão também foram investigados, descobriu-se um contrato em que a Previ, a Petros e a Funcef se obrigaram a comprar, junto ao Citigroup, as ações da Brasil Telecom, de propriedade do grupo financeiro, pagando um sobrepreço de 240%. Na época, o preço de compra pelos fundos totalizaria R$ 1,045 bilhão, enquanto o valor de mercado dos títulos valia R$ 340 milhões.

O contrato, que, segundo Lino Rodrigues e Simas Filho, foi contestado na Justiça e no Tribunal de Contas da União, prevê ainda, em sua cláusula 3.02, que os fundos “se obrigam a assumir o bilionário compromisso financeiro, mesmo que o contrato venha a ser considerado ilegal por organismos como a Agência Nacional de Telecomunicações, a CVM-Comissão de Valores Mobiliários, a Secretaria de Previdência Complementar e o Banco Central”.

Mesmo tendo o contrato sido suspenso por uma medida cau-telar do ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, os fundos continuaram brigando pela manutenção do mesmo. Discordando dos preços irreais estipulados para as ações do Citigroup, o presidente da multinacional italiana Brasil Telecom declarou: “esse contrato é imoral e escandaloso. (...) se for man-tido, a Brasil Telecom, na prática, acabará sendo re-estatizada por intermédio dos fundos de pensão”.

Estes fundos, que operam investimentos no mercado de capi-tais, são grandes acionistas de empresas de grande porte, e seus diretores integram os conselhos de administração de algumas delas, influenciando no direcionamento de recursos para cam-panha dos partidos aos quais estão vinculados.

Outras decisões prejudiciais foram as compras, pelos fundos, de papéis da Argentina e Venezuela, além das aquisições de títulos de bancos, às vésperas da quebra, a exemplo do BVA, em 2013. Negócios dessa natureza mereceram o seguinte pronunciamento do procurador geral da República, Rodrigo Janot:

Somente o pagamento de propina a agentes públicos é capaz de explicar a injeção de dinheiro de trabalhadores-contribuintes de um fundo de pensão estatal em uma empresa endividada, com patrimônio líquido negativo e prejuízos mensais crescentes.

Quanto às agências reguladoras – criadas para regulamentar e fiscalizar a prestação de serviços públicos que passaram a ser explorados pelo setor privado –, a sua eficácia pressupõe indepen-

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dência de governantes e dos segmentos econômicos regulados. Condição absolutamente desrespeitada no Brasil atual, cujo governo tem no aparelhamento do Estado o seu principal instru-mento para governar e manter o poder.

Campeãs de reclamações, as empresas de telefonia, energia e saúde parecem blindadas pelas agências que deveriam fiscalizá-las. As primeiras cometem abusos que parecem não ter fim; as segundas cobraram valores indevidos, durante anos, sem que tenham, até hoje, devolvido o dinheiro à população; e as operadoras de saúde viraram caso de polícia. Cobram valores exorbitantes e só prestam determi-nados atendimentos mediante recursos judiciais. Ainda assim, conse-guem impor reajustes absurdos às mensalidades – o dobro da inflação –, sob o manto do silêncio cúmplice e da benevolência suspeita de burocratas a serviço dos partidos políticos que os indicaram.

A desconstrução dessas entidades tem produzido absurdos que as remetem ao terreno da desmoralização: a nomeação, para a diretoria da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), de um dirigente de um time de basquete, cujo presidente era um ex-senador de Minas; a indicação, por José Dirceu e Rose Noronha, de dois irmãos para a ANA (Agência Nacional de Águas) e a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), ambos já envolvidos em cor-rupção; a recondução para a ANS, mesmo após uma auditoria constatar falhas graves do setor, de um protegido de um deputado do PT; e a indicação recente, por um senador do Ceará, do seu genro, para a diretoria da Anac.

No caso da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), embora um diretor tenha sido obrigado a renunciar, em 2013, por suas ligações com uma operadora de plano de saúde, represen-tantes deste setor conseguiram, este ano, a nomeação para a sua presidência, nada menos do que um ex-presidente de uma Confe-deração que congrega várias entidades sindicais das empresas do ramo da saúde, apesar das manifestações contrárias da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, do Instituto de Defesa do Consumidor e do Conselho Nacional de Saúde, que denunciaram o conflito de interesses daí resultante. Este acinte foi aprovado no Congresso Nacional, assim como a anistia de R$2 bilhões para os planos de saúde, relativos a multas por infrações cometidas contra os usuários.

Diante desta pouca vergonha, a Qualicorp – que não é fiscali-zada pela ANS e, sem restrições, vem praticando reajustes extor-

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sivos –, não hesitou em impor, este ano, um aumento de 16,3%, ante uma inflação de 6,4%.

Traídos pelo governo e por parlamentares inescrupulosos, resta aos brasileiros recorrerem à Justiça e se organizarem para combater, com vigor, esta espoliação criminosa que se fortalece na mesma proporção em que os vampiros vão tomando conta dos bancos de sangue.

As agências reguladoras foram criadas no Brasil – assim como em outros países – enquanto instrumentos que possibilitariam a transferência, para o setor privado, da prestação de serviços antes sob responsabilidade do Estado, retirando deste suas caracterís-ticas intervencionistas, para se constituir em um Estado regulador, medida que proporciona economia de recursos e energias do setor público, habilitando-o a se concentrar em funções mais essenciais. No entanto, a lógica do aparelhamento do Estado pelo Partido dos Trabalhadores não permite avanços dessa natureza. Não apenas entrega órgãos e entidades aos partidos cooptados – como se con-cedesse a estes uma licença para a prática de todas as ilicitudes –, como permitiu a captura de outros tantos órgãos por segmentos do mercado que deveriam ser por eles fiscalizados.

Aliás, o comportamento do PT, diante de setores econômicos, evidencia uma trajetória decadente e submissa. Quando na opo-sição, considerava-os inimigos de classe. No decorrer do tempo, negando propostas e princípios partidários, converteu-se à mode-ração, de modo a se tornar confiável à chamada classe dominante e desta obter volumosas contribuições financeiras para suas cam-panhas eleitorais. No presente, como atestam as dezenas de men-sagens que estão no inquérito que investiga a OAS na Lava-Jato, as empreiteiras já são aliados políticos.

Tudo isso e muito mais comprovam o quanto o governo petista está comprometido com as grandes empresas – viabili-zando-lhes sobrelucros indevidos –, em detrimento de um povo que só é contemplado em discursos mentirosos, em pouco tempo desmoralizados pela realidade.

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IV. Economia e Desenvolvimento

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Autores

Demétrio CarneiroEconomista, ex-professor da Universidade de Brasília, especialista em Políticas Públicas .

Fernando AlcoforadoEngenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona .

Ricardo FerraçoSenador (PMDB-ES) .

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O desenho do nosso futuro

Demétrio Carneiro

Os economistas costumam usar curvas para apresentar esquematicamente como estão prevendo o desenvolvi-mento futuro da economia.

Logo no início dos desdobramentos da crise de 2008, Lula desenvolveu a Teoria da Marola, adotada por Dilma. Para os pen-sadores petistas e alguns segmentos nacional-desenvolvimen-tistas, a crise do mundo capitalista seria uma janela de oportuni-dades para os países emergentes. Sendo assim, nosso crescimento não só seria continuidade, como teria seu ritmo acelerado. A curva de Lula seria uma reta ascendente.

Bem, deu no que deu a insistência em ignorar os sinais de retração da economia mundial, acreditando que o mercado interno sustentaria o ritmo de crescimento, a permanente expansão do gasto público e o estímulo ao consumo. Essa era a equação do voto. Ela deu certo. O problema agora são os custos...

Anos depois, Dilma, reeleita, falou de uma queda seguida de uma rápida retomada. Seria alguma coisa parecida com o V.O., que já está visto como superado.

Economistas mais centrados falam em um processo em U: queda, um período de tempo num piso de crescimento baixo e uma retomada lenta mais à frente. Enfim, um U com a base alongada e a perna direita inclinada para a direita. Todo o problema está em dimensionar quanto tempo permaneceremos nessa base de cresci-

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mento recessivo ou medíocre e quanto tempo iremos levar para chegarmos a um nível mínimo e sustentável de crescimento.

Assumindo que esta década, iniciada em 2008, já está per-dida, a dúvida é se a década seguinte também estará perdida, somando ao piso recessivo ou medíocre um período lento de reto-mada para patamares razoáveis.

Os números dão a dimensão do que estava em jogo e demons-tram como foi pensado o Estado que não deu certo:

• entre 2000 e 2010, a arrecadação tributária cresceu 264,49%. No mesmo período, o PIB cresceu 212,32%, num claro avanço real sobre a renda das famílias;

• entre 2005 e 2015, os gastos públicos foram da ordem de R$ 13 trilhões;

A carga tributária foi de 33,19%, em 2004, para 35,42%, em 2014.

Aparentemente, a solução era bem simples: bastava usar o Estado como alavanca. Parecia que era certo. Afinal, a arreca-dação tributária, ano sobre ano, batia recordes. A impressão era de um ciclo retroalimentado no qual o Estado gastava mais e, gastando mais, arrecadava mais, para poder gastar mais ainda.

A leitura ideológica do Estado, que tudo pode, esqueceu de combinar com o mundo real.

Apesar do aumento da base tributária e de alíquotas nos impostos, apesar da limitação de benefícios previdenciários e tra-balhistas, calculado junho de 2015 sobre junho de 2014, há uma queda na arrecadação de 2,44%. Acabou a “era dos recordes”.

O valor real da folha de pagamento das empresas caiu 9,7%, examinando-se junho 2015 sobre junho 2014, 12ª queda conse-cutiva, conforme dados do Pimes/IBGE. Este conceito é um impor-tante elemento de referência para avaliar a massa salarial, lem-brando que estamos no fim de um processo de anos em que essa massa teve crescimento real, criando uma boa zona de conforto para os trabalhadores. Hoje, caminhamos na direção contrária. A queda de 5,8% do emprego na indústria, comparando 2015/2014, é outro dado preocupante.

Não bastassem esses números que apontam para uma evi-dente e forte queda dos investimentos públicos, a poupança, que tem sido utilizada desde sua criação na época do Império como

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8585O desenho do nosso futuro

fonte barata de recursos para investimento, vem apresentando forte evasão devido a sua taxa de remuneração negativa. Certa-mente, a poupança nunca foi uma preocupação real dos governos petistas, cujo foco maior é o estímulo ao consumo. Em termos de investimentos estrangeiros, enfrentamos um ciclo de baixa ava-liação das agências de risco que somado ao quase certo aumento da taxa de juros nos Estados Unidos acabam formando um quadro que certamente irá complicar qualquer possibilidade de retomada mais rápida da economia.

Definitivamente, não estamos numa boa quadra. Mas se a eco-nomia não ajuda, a política ajuda menos ainda.

A estrutura de poder balança e o que começou como um movi-mento no sentido de jogar luz sobre os esquemas patrimonialistas de financiamento de dirigentes e do próprio PT avança rapida-mente rumo à base aliada e pode chegar aos partidos de oposição. A República e suas instituições – Congresso, TCU – estão sendo postas em cheque. Assessoriamente, a crise que envolve questões republicanas também é uma crise de governo e governança.

A soma da crise econômica com a crise política que joga na lona governo e governabilidade não deve levar apenas ao descré-dito das instituições, perfeitamente verificável se olharmos para a queda de mais de 30% na inscrição de eleitores jovens – 16 e 17 anos – comparando 2014 a 2010.

Neste momento, a crise política alimenta a crise econômica ao colocar o governo em estado de quase inação, ao solapar a gover-nabilidade. O maior problema desse processo é o alongamento do período em que ficaremos no fundo do poço e numa retomada mais lenta. Isso nos coloca de frente para a possibilidade de per-dermos uma nova década, para além de 2018.

Constata-se também que a forma como a oposição joga, ao atirar mais lenha na crise sob o argumento que cabe ao governo resolver os problemas que ele criou e se recusando a cooperar com as medidas de ajuste fiscal, constitui algo extremamente perigoso, pois logo ela, a oposição, poderá estar fadada a provar do próprio veneno.

O que temos pela frente é uma retomada, difícil e complicada, pois dependerá de medidas de reformas como a tributária e a pre-videnciária, que vêm sendo proteladas há décadas. Os diversos graus de relação entre empresas e governo, as estruturas de governança e controles internos e externos terão que ser revistos. A estrutura patrimonialista, reforçada pelo lulopetismo, compro-

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meteu a credibilidade das instituições republicanas. Isto é sério. É muito sério. Está muito longe de se tratar apenas da troca de um presidente por outro. Tal como estamos hoje, qualquer que seja o futuro presidente, ele estará sujeito a se ver envolvido pelo mesmo mar de lama que habitamos hoje.

O estilo de governo do presidencialismo de coalizão faliu e pode arrastar a governabilidade. A devassa ainda terá que chegar, além dos bancos públicos e fundos de pensão, aos estados e municípios. Ou alguém imagina que esse mar de lama só ocorre na esfera federal?

Podemos e queremos ser uma grande nação, mas essa República precisa ser repactuada e passada a limpo. Esta tarefa não será con-cretizada apenas pelos partidos de oposição. Teremos que sair desse gueto e conversar com todas as forças políticas, mas, e especial-mente, fazer o que não sabemos: conversar com a sociedade.

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A economia brasileira asfixiada e o cerco da Operação Lava-Jato

Fernando Alcoforado

O Brasil se defronta no momento atual com uma grave crise econômica, estreitamente vinculada, dentre outras, a uma delicada crise política cujas consequências são difíceis de

prever e impossível, sobretudo, de definir prazos para sua solução.

Uma das bases das dificuldades vividas pelo país é a falência do modelo econômico neoliberal e antinacional posto em prática desde 1990. Tal modelo faliu porque, depois de provocar uma verdadeira devastação na economia brasileira, configurada no crescimento econômico pífio, no descontrole da inflação nos últimos quatro anos, nos gargalos existentes na infraestrutura econômica e social, na desindustrialização, na explosão da dívida pública interna e externa e na desnacionalização da economia, não apresenta pers-pectivas de superação desses problemas haja vista que o governo Dilma Rousseff decidiu adotar uma política recessiva com o ajuste fiscal que se traduzirá na estagnação da economia, no aumento da dívida pública, no desequilíbrio das contas externas e também na retomada do desemprego.

A primeira e grande consequência do desastroso governo Dilma já se manifesta na elevação dos níveis de desemprego que alcançou 8% de acordo com os dados da Pnad Contínua Trimestral, a nova pesquisa de emprego e renda do IBGE. Enquanto no setor da construção desapareceram 609 mil empregos com uma queda de 7,6%, o setor público perdeu 560 mil vagas, com uma queda de 9,5%. No caso do setor da construção, parte do problema resulta do colapso das obras em consequência da Operação Lava-Jato que atingiu a Petrobras e grandes empreiteiras.

Isto não significa dizer que a recessão está concentrada apenas no setor da construção, até porque o ritmo de criação de empregos em outros setores, também, desacelera com o colapso que se manifesta na indústria de veículos e conexas, na de bens de capital e de eletrônicos cuja queda na produção é muito maior e mais relevante do que na de outros setores industriais.

Outra parte do problema da recessão e do desemprego que atinge a economia brasileira resulta do corte de despesas do governo federal,

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do arrocho fiscal e dos atrasos de pagamentos de obras, que já ocor-riam desde 2014, provocados pela desordem das contas governa-mentais. As causas de todos os problemas antes descritos não são devidas apenas à falência do modelo econômico neoliberal.

Elas resultam também da incompetência do governo, do des-controle de gastos à má gestão na Petrobras, além da corrupção desenfreada que estão levando à bancarrota a economia e da decisão do governo brasileiro de fazer com que o ajuste fiscal asse-gure a realização do denominado superávit primário que não representa nada mais nada menos do que a garantia de paga-mento do serviço da dívida pública que beneficia, sobretudo, o sistema financeiro, particularmente os bancos.

Um fato que chama a atenção de qualquer analista econômico diz respeito à decisão do governo petista de promover o ajuste fiscal sem a adoção simultânea de medidas que contribuam para a retomada do desenvolvimento do Brasil. A incompetência gover-namental extrapola todos os limites ao não propor, além do ajuste fiscal, um plano de desenvolvimento para o Brasil que acene para a população e para os setores produtivos uma perspectiva de reto-mada do crescimento econômico. É a inexistência deste plano um dos fatores que levam à imobilidade do setor privado na realização de investimentos levando-os a uma verdadeira paralisia.

O que se observa é que toda a ação governamental está voltada para, de um lado, solucionar os problemas de caixa do governo e, de outro, assegurar o pagamento da dívida pública interna. O resto é secundário. A ação do governo não leva em conta os inte-resses da população e dos setores produtivos do Brasil. A ênfase do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, consiste, de um lado, em assegurar o equilíbrio das contas públicas e, de outro, a obtenção do superávit primário em benefício do sistema financeiro, prin-cipal credor da dívida pública interna.

Sobre o ajuste fiscal proposto pelo ministro Levy, trata-se de uma falácia afirmar que é o único ajuste capaz de fazer o Brasil superar a crise atual. Na realidade, o ajuste fiscal proposto pelo governo fragilizado de Dilma Rousseff, que deve resultar em um corte de mais de R$ 70 bilhões nas despesas governamentais, incluindo programas sociais, é que poderá levar o país à bancar-rota pelo simples fato de, ao promover a recessão para combater a inflação, estará contribuindo para a queda no nível da atividade econômica em geral, a “quebradeira” geral de empresas e, em con-sequência, o desemprego em massa que já está em curso.

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8989A economia brasileira asfixiada e o cerco da Operação Lava-Jato

O verdadeiro ajuste fiscal que deveria ser realizado no país é o que contemplaria: 1) a tributação das grandes fortunas previsto na Constituição de 1988 e que nunca foi aplicado; 2) o aumento do imposto sobre as instituições financeiras; 3) a redução drástica dos gastos de custeio do governo federal; e, 4) redução dos encargos do governo federal com o pagamento da dívida pública que correspondeu, em 2014, a 45,11% do orçamento da União.

Sob o pretexto de combater a inflação, mais uma vez benefi-ciando o sistema financeiro credor do governo brasileiro, o Banco Central anunciou recentemente o sexto aumento consecutivo da taxa básica de juros (Selic), desde a reeleição da presidente, indi-cando que continuará a elevá-la para colocar a inflação na meta de 4,5% no fim de 2016. O mercado avalia que a taxa Selic, refe-rência para empréstimos e investimentos, ficará entre 14% e 14,50% no fim de 2015. Questiona-se, entretanto, o fato de o governo Dilma insistir no aumento da taxa Selic quando se cons-tata que o ajuste fiscal em vigor e o aumento das tarifas de energia e dos preços de combustíveis já seriam suficientes para inibir o consumo e forçar a baixa dos preços de bens e serviços como com-provam a recessão atual nas atividades econômicas, a queda no consumo das famílias e das empresas em geral e a elevação do desemprego. Esta malfadada combinação de ajuste fiscal com tarifaço de energia e de combustíveis e juros estratosféricos asfixia ao extremo a economia brasileira, podendo levá-la à bancarrota.

Só há uma explicação para o governo Dilma, sob a assessoria do ministro Joaquim Levy, levar a economia brasileira à asfixia com a desnecessária elevação da taxa Selic que é a de assegurar a lucra-tividade do sistema financeiro, em especial dos bancos. Com a decisão do Banco Central de elevar a taxa Selic de 13,25% para 13,75%, o Brasil mantém-se no topo do ranking de países com maiores juros reais (descontada a inflação). Fazendo o desconto da inflação, os juros reais básicos no Brasil ficam em 5,23%, em segundo está a Índia, com taxa real de 2,93%, em terceiro a China, com 2,84%, seguida por Taiwan (1,78%) e a Polônia (1,60%). Para atender os interesses do sistema financeiro, Joaquim Levy contou com o beneplácito da fragilizada e pusilânime presidente Dilma que se dobrou às imposições de seu ministro da Fazenda.

É evidente a conivência do governo com os interesses do sis-tema financeiro, que está ganhando dinheiro como nunca no Brasil e no mundo, ao fazer com que haja contínua elevação das taxas de juros Selic. Por sua vez, o déficit público cresce continuamente porque o governo aumenta seus gastos de maneira irresponsável a

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ponto de superar suas receitas impactando negativamente no pro-gresso econômico do país, haja vista que reduz a capacidade de investimento das empresas, bem como do próprio Estado.

Ressalte-se que, quando o governo incorre em déficit orçamen-tário, sua cobertura é feita adquirindo recursos internos e externos com a emissão de títulos públicos para que sejam comprados pela iniciativa privada, sobretudo pelo sistema financeiro. Mesmo diante da grave situação vivida pelo Brasil, o governo mantém irracionalmente sua política econômica e financeira francamente favorável a seus credores, isto é, o sistema financeiro em detri-mento da população e do setor produtivo. Na medida em que ampliará o desmantelamento da economia brasileira com a adoção de uma política econômica extremamente recessiva, o governo Dilma está incorrendo em crime de lesa pátria ao colocar em xeque o próprio futuro do Brasil. O povo brasileiro tem que se mobilizar para evitar que este cenário se materialize no futuro.

A Operação Lava-Jato

Enquanto isso, os presidentes da Odebrecht e da Andrade Gutierrez, além de outros executivos dessas empresas foram presos recentemente em nova fase da Operação Lava-Jato pelo fato de capitanearem o cartel de empresas que ganhava contratos da Petrobras em troca do pagamento de propina a funcionários da estatal e a políticos. A Polícia Federal deflagrou mais uma etapa da investigação com o cumprimento de novos mandados de prisão preventiva, de prisão temporária, de condução coercitiva e de busca e apreensão, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Foram cumpridos mandados de busca e apreensão na sede das empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez e na casa de seus executivos. Os presos foram encaminhados à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, no Paraná, onde se encontram à disposição da Justiça.

Com a prisão dos mais altos dirigentes da frente empresarial que desviou cerca de 6 bilhões de reais dos cofres da Petrobras, a Operação Lava-Jato só falta atingir os mais altos escalões da política nacional envolvidos nesta megacorrupção que abala os alicerces da República. Esta Operação vem evoluindo a contento graças em grande parte aos movimentos cuidadosos do juiz federal Sergio Moro, o grande responsável pela condução do pro-cesso que investiga o megaesquema de corrupção na maior empresa estatal brasileira. Desde março de 2014, ele autorizou

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161 mandados de busca e apreensão, decretou a prisão de ses-senta pessoas e determinou o bloqueio de 200 milhões de reais em contas bancárias de suspeitos – incluindo altos funcionários da Petrobras e empresários poderosos.

As tentativas de tirar o processo das mãos do juiz Sergio Moro resultaram em fracasso. Os interessados em afastá-lo do caso percorreram todas as instâncias do Judiciário alegando que ele não tinha competência legal para conduzir o processo porque, com o envolvimento de políticos no escândalo, o “foro especial” para julgar os envolvidos seria o Supremo Tribunal Federal. Ale-garam também que as prisões dos suspeitos foram abusivas e de que o caso deveria ser transferido de Curitiba para o Rio de Janeiro, onde fica a sede da Petrobras. Nenhum desembargador do Tribunal Regional Federal ou ministro do STJ ou do STF acatou as contestações. Espera-se que a Operação Lava-Jato produza os mesmos efeitos que a Operação Mãos Limpas produziu na Itália durante a década de 1990.

Sobre a Operação Mãos Limpas, cabe observar que foi uma investigação judicial de grande envergadura na Itália que visava esclarecer casos de corrupção durante a década de 1990. A partir da prisão de um militante do Partido Socialista Italiano (PSI), Mario Chiesa, acusado de cobrar propina na instituição que dirigia, desencadeou-se a megaoperação de investigações crimi-nais. Com a Operação Mãos Limpas foram condenados políticos, empresários e agentes públicos e privados. Bettino Craxi, prin-cipal líder do PSI e ex-primeiro-ministro da Itália, foi punido por prática de corrupção e financiamento ilegal de campanhas eleito-rais. Pesou a confissão do empresário Salvatore Ligresti de que sua empresa pagava propina ao PSI e ao próprio Craxi para con-seguir obras desde 1985.

Ficou provado o tráfico de influência e corrupção em contratos milionários envolvendo a empresa petrolífera estatal italiana. A Operação Mãos Limpas comprovou que a estatal petrolífera ENI funcionava como uma das principais fontes para o financiamento ilegal de partidos e políticos italianos. Florio Fiorini, diretor finan-ceiro, e Gabriele Cagliari, presidente da ENI, confessaram que, durante anos, a empresa efetuava pagamentos mensais aos prin-cipais partidos políticos e seus líderes. Cagliari cometeu suicídio na prisão. Além dos esquemas de corrupção, a Operação Mãos Limpas revelou também as relações do Estado italiano com o crime organizado. Giulio Andreotti, líder da Democracia Cristã

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(DC) e ex-primeiro-ministro da Itália, foi também processado por associação com a máfia.

É muito grande, portanto, a semelhança entre a Operação Mãos Limpas, da Itália, e a Operação Lava-Jato, do Brasil. Da Mãos Limpas resultou a decadência política e eleitoral dos princi-pais partidos da época, o PSI (Partido Socialista) e o DC (Demo-crata Cristão). As forças políticas que dominavam a Itália desde o pós-guerra viram seu poder ruir e desaparecer.

Da experiência italiana, pode-se apreender que a deslegiti-mação do sistema político, por si só, não é capaz de provocar as mudanças necessárias. É preciso, como houve por lá, participação efetiva da opinião pública na luta contra a corrupção.

A Mãos Limpas teve como saldo a investigação de 6.059 pes-soas, dentre eles 872 empresários, 1.978 administradores e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-minis-tros. O Tribunal de Contas Italiano afirmou que a corrupção dentro da gestão pública deste país alcançou 60 bilhões de euros por ano com reflexos no mundo todo. Essa operação alterou a cor-relação de forças na disputa política da Itália, reduzindo o poder de partidos que haviam dominado o cenário político do país. Todos os quatro partidos no governo, em 1992 – a Democracia Cristã (DC), o Partido Socialista (PSI), o Social-Democrata e o Liberal – desapareceram posteriormente. O Partido Democrático da Esquerda, o Partido Republicano e o Movimento Sociale Italiano foram os únicos partidos de expressão nacional a sobreviver.

Da mesma forma como aconteceu na Itália, seria desejável a condenação e a prisão de todos os envolvidos na megacorrupção que atingiu a Petrobras e a exclusão da vida política nacional de todos os partidos políticos e dirigentes partidários envolvidos na Operação Lava-Jato.

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Comércio exterior fora do contexto

Ricardo Ferraço

O panorama das negociações comerciais internacionais não para de produzir fatos que reforçam a gravidade dos per-sistentes equívocos do governo brasileiro nesse terreno.

Enquanto países de diferentes níveis de importância econômica se articulam com rapidez para montar e celebrar acordos bilate-rais ou por meio de blocos, o Brasil aprofunda o seu isolamento, agarrado ao Mercosul, grupo cujos principais membros enfrentam crescentes dificuldades econômicas e políticas.

Em maio último, parlamentares do governo e da oposição no Congresso dos Estados Unidos chegaram a um acordo para ace-lerar a formação do maior bloco comercial do planeta, a Parceria Transpacífica, conhecida pela sigla em inglês TPP. Na prática, os parlamentares norte-americanos autorizaram o presidente Barack Obama, pelo sistema fast-track, a concluir as tratativas para via-bilizar a sua proposta que contemplará 12 países da Ásia e das Américas, reunindo 800 milhões de consumidores e cerca de 40% do Produto Interno Bruto mundial.

Este movimento se soma a outros auspiciosos mega-acordos comerciais em construção, como o envolvendo também os Estados Unidos e a União Europeia e até mesmo o de nossos vizinhos de América do Sul, como Colômbia, Chile, Peru e México, que anunciaram a Aliança do Pacífico. O Brasil assistiu a isso tudo sem reagir, sem mostrar preocupação e, pior, sem sinalizar qualquer chance de redirecionamento de sua inibida e desorien-tada diplomacia comercial.

Como observou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em recente palestra durante o fórum de Comandatuba, na Bahia, o governo não tem investido em acordos bilaterais que seriam fundamentais para o crescimento da economia, deixando o país à margem do comércio mundial. Como ele bem lembrou, o país tem apenas três acordos comerciais bilaterais de livre comércio – Egito, Israel e Autoridade Palestina, enquanto que o México, por exemplo, tem 30.

Como mais importante economia latino-americana, temos per-dido a olhos vistos a nossa liderança regional e a capacidade de

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buscar livremente novos mercados para nossas exportações mundo afora.

A globalização é uma realidade há décadas, mas o país con-tinua insistindo na tese de crescimento econômico baseado em substituição de importações. Neste sentido, o Mercosul é um obs-táculo extra, ao se configurar uma burocracia que mais atrapalha do que ajuda os negócios. Além de perder oportunidades, o país corre cada vez mais sérios riscos de ficar de fora dos novos arranjos produtivos globais.

É realmente uma pena que isso tudo esteja acontecendo. No caso da TPP, podemos dizer que o Brasil está literalmente de costas para o Pacífico. O especialista em questões globais do agro-negócio Marcos Jank argumentou em brilhante artigo recente-mente publicado que o século 21 é o século do Pacífico, conside-rando os números atuais e potenciais apresentados pelos negócios envolvendo os países banhados por aquele oceano.

Segundo ele, está se tornando real agora o vaticínio de John Hay, secretário de Estado dos Estados Unidos no fim do século 19, expresso pela frase “o Mediterrâneo é o oceano do passado, o Atlântico é o do presente e o Pacífico, o do futuro”. O século 20 continuou sendo dominado pelo Atlântico, mas que começou a perder liderança nos anos 1970, com o florescer de gigantes asiá-ticos, começando pelo Japão, seguido de China, Coreia e Índia. O especialista ressaltou que o comércio está desde sempre no DNA da região Ásia-Pacífico.

É evidente que as negociações que serão conduzidas pelo pre-sidente Obama na direção do superbloco, sem possibilidade de emendas do Legislativo, expressam também o desejo do país mais rico do mundo em não perder ainda mais espaços para a China. Mas, no caso brasileiro, o que assistimos é uma completa ausência de iniciativas na busca de acordos bilaterais, que poderiam inte-grar o país a regiões comercialmente pujantes e socorrer nossa combalida indústria, já afetada pelo ambiente econômico adverso.

Ao apostar apenas no Mercosul como principal via de seu comércio externo e no multilateralismo como saída para des-travar a liberação das trocas globais, o país não apenas fica inerte, mas também recua. Com sua economia estagnada, com o preço das commodities minerais e agrícolas em baixa e com a associação impassível aos controversos parceiros em recessão, como Argentina e Venezuela, o Brasil fica menor a cada dia no comércio transnacional.

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9595Comércio exterior fora do contexto

O bloco regional que sequer consegue resolver seus embates internos, marcados pelo protecionismo e pelo descumprimento de regras, está muito distante de vislumbrar grandes lances multila-terais. Enquanto isso, os acordos costurados por outros como alternativa às negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a OMC, prosperam nas áreas de serviços, investi-mentos, tecnologia e propriedade intelectual.

A Ásia, que ainda exibe as maiores taxas médias de crescimento econômico, em torno de 6% ao ano, logo vai responder por metade do PIB mundial, com 60% da população. É nesse contexto que vários acordos bilaterais se espalham na região. A Cooperação Eco-nômica Ásia-Pacífico, conhecido pela sigla em inglês Apec, reúne 21 países que respondem por 50% do comércio global e que rumam na direção de uma Área de Livre Comércio da Ásia-Pacífico.

A TPP, com Estados Unidos e Japão à frente, reúne 12 dos 21 países da Apec, sendo que a China até o momento ficou de fora. De todo jeito, é uma revolução a caminho, da qual o Brasil figura como inerte observador, marginalizado pelas suas próprias convicções. Nesse xadrez do comércio global, não movemos nenhuma peça e, pior, deixamos a ideologia ocupar espaços das negociações.

No ano passado, as exportações brasileiras, que acumulam três anos de quedas, perderam terreno em quatro de seus cinco princi-pais mercados em relação a 2013. Só nos Estados Unidos houve melhora, perdendo saldos na Europa, China, Argentina e Japão.

É a hora de mudar a política comercial e parar de culpar a crise mundial.

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V. Meio Ambiente

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Autores

George Gurgel de OliveiraProfessor da Universidade Federal da Bahia – Cátedra da Unesco – Sustentabilidade .

José Carlos LimaAdvogado, especializado em direito ambiental, presidente da Fundação Verde Herbert Daniel, secretário de comunicação do PV e presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/Pará .

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Desenvolvimento, política ambiental e sustentabilidade

George Gurgel de Oliveira

A ampliação da consciência ambiental em nível mundial, nacional e regional é um imperativo da necessidade de construção de uma nova perspectiva de desenvolvimento.

Coloca-se, portanto, o desafio de superação do atual modelo, historicamente insustentável. Os problemas econômicos, sociais e ambientais mundiais, nacionais e regionais continuam como desafios políticos e sociais a ser resolvidos para a construção desta nova sociedade, que se quer sustentável.

A análise a seguir procura identificar estas questões, relacio-nando as realidades brasileira e mundial como processos histó-rico, político e social. Destaca, neste contexto, a construção e as bases da política de meio ambiente no Brasil.

A insustentabilidade econômica, social e ambiental

As atividades humanas, particularmente a industrial e as tec-nologias por ela incorporadas, abrigam a contradição permanente de satisfazer e garantir as necessidades dos indivíduos, da socie-dade em geral e a sua relação com a natureza. Daí os processos de produção, distribuição e consumo, durante a história da humani-dade, impactarem de maneira diferenciada os ecossistemas mun-diais, nacionais e regionais.

Assim, as opções dos indivíduos e de cada sociedade viabilizam um determinado modelo de desenvolvimento, expresso nas relações

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políticas, econômicas e sociais desta sociedade e da própria socie-dade com a natureza, como processo histórico e cultural.

O desenvolvimento capitalista, a partir da revolução indus-trial do século XVIII até à primeira metade do século XX, tinha, como razão e base para a sua reprodução, a concepção de que o planeta era infinito e, portanto, as fontes da natureza também eram infinitas. A capacidade de suporte do meio ambiente não era uma preocupação para o funcionamento do sistema. A variável ambiental era considerada uma externalidade ao pro-cesso de desenvolvimento.

Desde então, o aumento da concentração urbana e indus-trial, da população do planeta nos últimos 100 anos (de 1,5 bilhão para 7 bilhões de pessoas), o caráter excludente e de con-centração de riqueza e as crises cíclicas inerentes ao próprio sis-tema capitalista, levaram a uma realidade econômica, social e ambiental insustentáveis.

As insustentabilidades políticas, econômicas, sociais e ambientais identificadas tanto no capitalismo, quanto na pró-pria experiência do socialismo real, já sinalizavam, desde a década de 60 do século passado, a necessidade de superação dos conflitos e contradições desses sistemas políticos, econô-micos e sociais hegemônicos no século XX, apresentados como alternativas de desenvolvimento.

Assim, o século XX é palco de acidentes e catástrofes ambien-tais gerados pela intervenção humana, refletindo negativamente na atmosfera, mares, rios, aquíferos, florestas, em todos os ecos-sistemas do planeta. Efeito estufa, mudanças climáticas, poluição, desertificação, extinção significativa de espécies animais e vege-tais, assim como a perda de vidas e da qualidade de vida de milhões de pessoas afetadas com estes impactos em diferentes regiões, passaram a ser parte do seu cotidiano.

A urgência da questão ambiental colocou-se pelo grau e a velo-cidade de degradação em decorrência da ação humana na natu-reza. Analisando apenas o que aconteceu no século XX, os impactos sofridos pelos ecossistemas planetários graças à ação humana são sem precedentes. O nível de degradação do meio ambiente mundial, durante este curto espaço de tempo, em con-traponto ao tempo da natureza necessário para o funcionamento dos ciclos naturais, colocou em risco a sobrevivência destes ecos-sistemas planetários e, consequentemente, a disponibilidade de

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101101Desenvolvimento, política ambiental e sustentabilidade

fontes naturais, inclusive o ar, a água e o território, necessários à sobrevivência do ser humano.

Portanto, a questão ambiental em si passa a ser preocupação de organizações governamentais e não governamentais nos níveis mundial, nacional e regional. Os governos, os meios de comuni-cação, o mercado, a comunidade científica e a sociedade civil em geral passam a ter maior participação neste processo de conscien-tização e de crítica ao modelo de desenvolvimento atual, criando as condições para a ampliação de uma consciência mundial, para a superação do atual modelo e na perspectiva de construção de uma nova sociedade, que se quer sustentável.

O enfrentamento destas questões em escala mundial, nacional e regional, coloca em cheque o próprio desenvolvimento capita-lista e os seus valores, a sua lógica de produção, consumo e o consequente processo de urbanização e industrialização gerados por este sistema.

A busca de alternativas para superação desta realidade coloca a necessidade de construção de uma agenda mundial, incorporando as questões que envolvem as relações entre desenvolvimento e sus-tentabilidade nos contextos mundial, nacional e regional.

O trabalho desenvolvido pela ONU, desde a I Conferência Mundial em Estocolmo, em 1972, articulado com outras organi-zações multilaterais, e o imperativo das questões socioambientais colocam a necessidade de outra perspectiva de desenvolvimento, na busca de novas formas dos seres humanos se relacionarem entre si e com a natureza.

Desde então, vive-se um processo de construção de uma cons-ciência ambiental individual e coletiva. No Rio de Janeiro, em 2012, constatou-se que a velocidade de enfrentamento destas questões nos planos mundial, nacionais e regionais estão muito aquém do necessário, para as mudanças na ordem econômica, social e ambiental do planeta.

A construção política, econômica e social da sociedade futura, que já está sendo gestada na sociedade contemporânea, é um desafio permanente colocado para a sociedade política e para toda a humanidade. Alguns valores são estruturantes para funda-mentar esta nova construção social, entre outros, o reconheci-mento da democracia, criadora das condições para uma governa-bilidade mundial, nacional e regional, a necessidade da paz, do

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diálogo permanente entre os povos para superação dos atuais desafios políticos, econômicos, sociais e ambientais.

O Brasil e a questão ambiental

O conceito de Desenvolvimento Sustentável, em que pese sua importância como uma declaração pactuada pela ONU (ECO-92), refletindo o atual processo de consciência mundial relacionado à questão ambiental, naturalmente, incorpora as contradições e os conflitos inerentes à sociedade contemporânea, daí não poder ser realizado na sua plenitude.

Assim, qualificar esta situação relacionada ao contexto mundial e seus reflexos nos níveis nacional e regional, no caso particular as especificidades do desenvolvimento brasileiro, é um desafio que se coloca para o enfrentamento e superação desta realidade.

O Brasil, face sua dimensão territorial, riquezas minerais, bio-diversidade, condições favoráveis à reprodução da vida, produção agrícola e pecuária não apenas para a população brasileira, como também para a mundial, é um ator importante no cenário político, econômico e social do planeta, desde o período colonial.

Historicamente, os brasileiros, no seu processo de desenvol-vimento, geraram uma das sociedades mais concentradoras de riquezas e excludentes do mundo. Os conflitos sociais e ambien-tais, inerentes a este desenvolvimento, nos colocam desafios a serem superados na perspectiva de construção de uma socie-dade sustentável.

A percepção da questão ambiental, como variável a ser consi-derada no processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, está colocada de maneira distinta nas suas diferentes etapas.

No início da colonização, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei dom Manuel, em 1º de maio de 1500, é o primeiro testemunho das nossas riquezas naturais e potencialidades: “... a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados, como os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”.

Desde as expedições colonizadoras, a primeira chega ao Brasil em 1530, chefiada por Martim Afonso de Souza, fomos e conti-nuamos a ser exportadores de matérias primas para atender ao mercado mundial, o que tem ampliado os níveis de degradação ambiental dos ecossistemas brasileiros, colocando desafios no

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103103Desenvolvimento, política ambiental e sustentabilidade

sentido de preservação do território, das riquezas naturais, parti-cularmente da nossa biodiversidade, elemento estratégico para o futuro do país, particularmente em relação à Amazônia.

Ainda nos primórdios da colonização, ao ser implantado o sis-tema de Governo Geral para melhor administrar as riquezas da Colônia, por meio de cartas régias, alvarás e provisões, procurou-se de fato exercer o monopólio de extração do pau brasil, “com o menor prejuízo da terra”, segundo o Capítulo 35 da Carta Régia outorgada a Tomé de Souza, em 17 de dezembro de 1548.

No século XVI, é aprovada uma lei em 12 de dezembro de 1605, considerada a primeira legislação florestal brasileira, que dava permissões especiais para o corte do pau brasil, sinalizando uma preocupação de preservar as florestas, particularmente em relação à mata atlântica, que se estendia por todo o litoral brasileiro, a qual esteve razoavelmente preservada, até o século XIX. A partir de então, com a ocupação do litoral, aumento populacional e o surgimento da anilina usada para tingir tecidos na Europa, aumentou consideravelmente a derrubada do pau brasil e a devas-tação da mata atlântica. Atualmente, apenas 8% da área original desta estão preservados.

A chegada de dom João VI, em 1808 – quando da transferência da Côrte Portuguesa para o Brasil, coloca a Colônia em um novo momento histórico no tocante ao seu desenvolvimento e às rela-ções com o mundo. A fundação do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, é demonstrativo de uma preocupação em preservar a natureza brasileira.

No Império, a legislação das relações da sociedade brasileira com o seu meio ambiente se coloca em um novo patamar, refle-tindo o que acontecia na Europa e Estados Unidos, já preocu-pados com os impactos gerados pela vida urbana e industrial. O próprio imperador dom Pedro II e José Bonifácio de Andrada e Silva, entre outros, preocupavam-se com esta nova realidade. Já havia uma percepção da necessidade de implementar políticas de governo para preservar as riquezas naturais brasileiras.

Ainda no Império, avançamos em relação à legislação do corte de madeira de lei, especificando as que não deveriam ser cortadas, aprovada em 1827. Em relação à água, dom Pedro I, em 1828, deliberou nas chamadas “posturas municipais” sobre a limpeza e conservação de fontes, aquedutos e águas infectas, em benefício da saúde da população.

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A Política Nacional de Meio Ambiente

Constata-se, assim, nas esferas governamentais, as preocupa-ções em relação à questão ambiental no Brasil, registradas em seus ciclos econômicos, iniciados com o pau brasil, cana de açúcar, mineração, pecuária e café, nas diferentes etapas do desenvolvimento brasileiro e na realidade de hoje, do Brasil indus-trial, gerador e concentrador de riquezas, colocando-se como uma das principais economias do planeta.

No século XX, ainda nos anos 30, foram aprovados os Códigos Florestal, de Minas, Energia e de Águas. Nos governos da dita-dura (1964-1988), os militares participaram deste processo de uma maneira contraditória, inclusive é conhecida a participação brasileira na I Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo (1972), quando nossa representação incentivou a vinda de indústrias poluidoras. Ao mesmo tempo, aprovaram o Estatuto da Terra e fundamentaram, de uma maneira autori-tária, o que é hoje o Sistema Nacional de Meio Ambiente, desta-cando o papel do Estado no processo de construção de políticas públicas voltadas para a preservação do patrimônio natural bra-sileiro e a segurança nacional.

Portanto, as relações entre o brasileiro e a natureza foram sendo construídas, com impactos e reflexos diferenciados na realidade econômica e social, nos diferentes momentos de nossa construção societária, sendo a questão ambiental, desta maneira, parte integrante do seu processo de afirmação e de suas relações com o mundo. Tendo se desenvolvido e desenvolve-se hoje como um processo histórico, econômico, social e cultural, a questão ambiental tem sua síntese refletida na atual Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) e na própria Constituição brasileira, aprovada em 1988, cujo Capítulo VI – Do Meio Ambiente, no seu art. 225 declara: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coleti-vidade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Esta visão sistêmica, colocada na Carta Magna, supera as visões anteriores de tratamento desta decisiva questão no Brasil.

A atual PNMA, aprovada pela Lei nº 6.938/81, já incorporava esta visão sistêmica e criava os mecanismos de implementação desta politica. Seu objetivo maior é a preservação, melhoria e

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105105Desenvolvimento, política ambiental e sustentabilidade

recuperação da qualidade ambiental, criando condições para o desenvolvimento econômico e social, protegendo a vida.

O responsável pela execução desta Política é o Sistema Nacional de Meio Ambiente, regulamentado pelo Decreto 99.274, de 6 de julho de 1980, constituído pelos órgãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal e pelas fundações públicas envolvidos nas questões ambientais. Dispõe sobre a política de meio ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação.

O Sisnama estabeleceu diversos mecanismos para a imple-mentação da Política Nacional de Meio Ambiente, entre os quais podemos destacar:

• os padrões de qualidade ambiental – de caráter preventivo, instrumento importante no controle da poluição. Funda-mentalmente, relacionam os padrões de emissão – indicam os valores máximos permitidos para o lançamento de poluentes e os de qualidade – indicam as condições do ar, água e solo;

• o zoneamento ambiental – realiza o ordenamento adequado de um determinado espaço territorial, levando em conside-ração as variáveis físicas, sociais e econômicas;

• a avaliação de impactos ambientais – faz parte do processo de licenciamento, permite a participação de todos os atores sociais afetados pela intervenção a ser realizada;

• o licenciamento – concede licenças ambientais, autoriza a implementação de um determinado empreendimento, colo-cando condições ambientais para o seu funcionamento;

• a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo poder público federal, estadual e municipal – áreas de proteção ambiental, estações ecológicas e reservas extrativistas;

• as penalidades disciplinares ou compensatórias quando não cumpridas as medidas necessárias à preservação ou minimização da degradação ambiental;

• a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente – cujo objetivo é divulgar a situação ambiental do país. Deveria ser publicado anualmente. Foi publicado apenas nos anos de 1984 e 1993.

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Já o Conama foi instituído pela Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente e regulamentado pelo Decreto 99.274/90. Órgão consultivo e deliberativo do Sisnama, ele é composto por Plenário, Centro Internacional de Projetos Ambien-tais (Cipam), câmaras técnicas, grupos de trabalho e grupos de assessoria. É presidido pelo ministro de Meio Ambiente.

Entre as suas principais competências, destacam-se: propor diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e recursos naturais; instruir normas para a implementação da Polí-tica Nacional de Meio Ambiente; estabelecer normas e critérios para o licenciamento de atividades efetivamente ou potencialmente poluidoras; determinar a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA); decidir, como último grau de recurso, sobre multas administrativas do Ibama; estabelecer normas, critérios e padrões nacionais de controle da poluição e padrões relativos ao controle e manutenção da qualidade ambiental; estabelecer normas relativas às Unidades de Conservação (UC); e estabelecer critérios para a declaração de áreas críticas, saturadas ou em vias de saturação.

Assim, apesar dos reconhecidos avanços na área ambiental e no processo de conscientização da sociedade brasileira, nos últimos anos, em relação ao meio ambiente, os desafios econô-micos, sociais e ambientais na busca da sustentabilidade conti-nuam atuais.

A sustentabilidade econômica, social e ambiental se coloca como uma necessidade de superação do atual modelo de desen-volvimento brasileiro. Coloca-se como parte integrante de um pro-cesso mundial que está em curso, em um mundo cada vez mais interdependente, no qual as relações internacionais assumem uma dimensão que não pode deixar de ser considerada. Destacam-se, neste contexto, os processos de integração regional em curso e a necessidade de transformação das organizações responsáveis pela governança internacional, particularmente a ONU, FMI, Banco Mundial, entre outras.

O desafio do desenvolvimento brasileiro é construir uma socie-dade cada vez mais democrática, ampliando os espaços de partici-pação e de decisão da cidadania, cuja economia tenha como funda-mento a preocupação com a inclusão social e a preservação da nossa biodiversidade, buscando realizar e aprofundar as reformas política, econômica e social, tão necessárias e ainda por fazer. Nesse contexto, impõe-se a necessidade de um novo pacto político para ampliação da democracia e realização destas reformas.

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107107Desenvolvimento, política ambiental e sustentabilidade

A construção deste desenvolvimento coloca, na agenda da sociedade brasileira, a necessidade de investimentos em edu-cação, ciência, tecnologia e inovação. Os investimentos realizados pelo Estado, além de serem ainda insuficientes, não são devida-mente avaliados nem quanto à sua aplicação, nem quanto aos resultados obtidos na qualificação acadêmica e profissional. O desempenho do Brasil em educação, na formação da juventude, embora tenha melhorado, nos últimos 25 anos, fica muito a desejar, comparado internacionalmente.

A sustentabilidade deve ser trabalhada em função das potencia-lidades brasileiras, da sua biodiversidade, território, riqueza mineral, água, energia solar e eólica disponíveis. Os limites impostos à economia baseada no carbono colocam o Brasil em uma situação singular, em função das suas riquezas naturais, cujas vantagens comparativas podem ser primordiais na perspectiva desta nova economia e, portanto, neste novo modelo de desenvolvimento.

Destaque-se ainda, neste contexto, a urgência de uma reforma política, fundamental para a superação da grave crise política, eco-nômica, social e de valores em que vive a sociedade brasileira na conjuntura atual, abrindo caminhos para uma nova relação entre o Estado, o mercado e a sociedade civil. A discussão sobre a forma de governo deve ter centralidade, elemento estruturante de superação desta crise, na perspectiva de ampliação da democracia brasileira. O parlamentarismo deve voltar à agenda política, como um destes instrumentos de avanço da democracia no país.

A partir desta reforma política, criam-se as condições para a reforma democrática do Estado, em cujo novo modelo de gestão se impõe a redefinição dos limites de atuação de suas agências regu-ladoras, conselhos e demais órgãos dos poderes Executivo, Legis-lativo e Judiciário, ampliando a participação da sociedade civil neste processo.

Fundamental será avaliar como a questão do desenvolvimento sustentável está sendo tratada, formulada e incorporada pelos dife-rentes atores políticos, econômicos e sociais, desafio permanente desta perspectiva. Também, incorporar estas questões no processo de discussão, construção e implementação das políticas públicas nacionais, estaduais e municipais, construindo de uma maneira sistêmica a política ambiental, avaliando e reavaliando os respec-tivos instrumentos e condições de implementação, nível de trans-versalidade entre as políticas públicas e a participação efetiva da sociedade neste processo, rumo a esta desejada sustentabilidade.

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Finalmente, compreender e trabalhar a questão ambiental como parte integrante da história da humanidade nas suas relações com a natureza, permitindo transcender aos problemas que lhes deram origem na sociedade atual, no Brasil e no mundo, procurando alter-nativas para superar esta realidade, expressando as diferenças e os reais interesses dos diversos atores políticos, econômicos e sociais, criando os fundamentos de novas relações entre a sociedade e a natureza, em busca da sociedade futura, sustentável.

Referências

ALTVATER, Elmar. O preço da riqueza. São Paulo: Unesp, 1994.

BURSZTYN, Marcel; PERSEGONA, Marcelo. A grande transformação ambiental. Rio de Janeiro: Gramond, 2008

FOSTER, John B. Ecologia de Marx – materialismo e natureza. Civilização Brasileira, 2005.

MARX, K. O Capital – Crítica da economia política – O processo de produção do capital . Trad. Reginaldo Sant’Anna. 6 ed.V. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

OLIVEIRA, George Gurgel. Visões sobre meio ambiente . Org. Sinclair Mallet Guy Guerra. São Paulo: Pró-Energia Comunicações, 2005.

______. Brasil século XXI. Os desafios do desenvolvimento sustentável (coautor, Energia). Rio de Janeiro: Fase, 1997.

SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento, ambiente e estilos de desenvolvimento. In: Ecologia e desenvolvimento, p. 7-27. Rio de Janeiro: Aped, 1992.

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Laudato Si, a COP21 e a ecologia integral

José Carlos Lima

A Igreja Católica, às vésperas da COP21, a 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro da Organização das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, deu sua palavra

oficial sobre o que está acontecendo com o nosso planeta, quem são os responsáveis e quais as possíveis saídas para evitar os desastres ambientais que ameaçam o mundo e a humanidade.

O Papa Francisco emitiu uma Carta Encíclica intitulada Lau-dato Si (Louvado Seja) Sobre o Cuidado da Casa Comum, na qual faz uma resenha de vários aspectos da crise ecológica. Em seguida, trabalha os argumentos derivados da tradição judaíco-cristã para dar coerência ao compromisso com o meio ambiente. No momento seguinte, o Santo Padre tenta apontar as raízes do problema e suas causas mais profundas. A Carta Pastoral aponta como saída a ecologia integral.

A Igreja Católica, assim como outras igrejas que têm o sentido de religião, é conservadora perante debates científicos. O conser-vadorismo se explica à luz da teologia. A Igreja é a forma de ligar o homem ao seu Deus criador, onipresente e onipotente. Portanto, a palavra oficial, o pensamento oficial, não é dos homens, mas do próprio Deus que os guia.

É compreensível que o posicionamento oficial da Igreja sobre temas que afligem a humanidade, como é o caso do futuro de todas as criaturas, objeto do esforço de seis longos dias do tempo de Deus, seja submetido a um processo lento e seguro, cujo resul-tado encontre a unanimidade daqueles que professam a crença no mesmo Deus e seja aceito como possível e crível pelos demais. Esta é a importância da manifestação do Papa Francisco sobre a crise climática.

A indagação preambular da Carta Pastoral resume a preocu-pação de tantas pessoas simples vivendo nos mais diversos biomas, que diariamente se surpreendem com fenômenos novos ou acontecimentos climáticos diferentes de outros tempos e se perguntam: o que está acontecendo com a Terra? O que está acon-tecendo com a nossa Casa Comum?, pergunta a Igreja.

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São mudanças aceleradas na humanidade e no planeta, con-trastantes com a lentidão da evolução natural biológica, mas que não se destinam ao bem comum e para um desenvolvimento sus-tentável. Mudanças são desejáveis desde que não se tornem dete-rioração do mundo e da qualidade de vida da própria humani-dade, como estamos testemunhando neste século.

O diagnóstico segue apontando como fenômenos deteriorantes a poluição, a geração absurda de resíduos, a cultura do descarte, para indicar que este século testemunhará mudanças climáticas espantosas, com destruição “sem precedentes dos ecossistemas”. O clima é um bem comum e serve a todos: “As mudanças climá-ticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas”.

O documento aborda ainda o problema da qualidade ruim da água disponível e a tendência de privatizá-la, entregando-a às leis de mercado. Segue apontando a grave perda de biodiversidade, com a extinção de espécies, incluindo os micro-organismos, estes invísiveis aos olhos humanos e longe da piedade cristã.

Os efeitos negativos de toda essa deterioração atingem os des-cartados sociais, imersos em uma desigualdade planetária.

Entre os componentes da mudança global, incluem-se os efeitos laborais de algumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo de energia e de outros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o apa-recimento de novas formas de agressividade social, o narcotrá-fico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade.

A Carta do Papa Francisco chega em momento oportuno para reflexão dos católicos sobre os perigos que ameaçam a “Casa Comum”. As forças sociais que lutam em favor da sustentabili-dade, que temem o retrocesso do debate ambiental frente às crises econômica e política que atingem muitos países e até con-tinentes inteiros, às vésperas de um encontro mundial que é a COP21, devem recebê-la como um trunfo importante para superar os obstáculos e impulsionar a um acordo climático mais incisivo e eficaz.

O Brasil, até dezembro, quando a Conferência do Clima se rea-lizará, ainda não superou sua grave crise de comando e legitimi-dade que envolve as instituições nacionais, o que dificulta a tarefa de encontrar um consenso para se chegar à COP21 com uma posição clara sobre cada um dos temas que serão abordados.

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111111Laudato Si, a COP21 e a ecologia integral

Na COP21, que acontecerá em dezembro na França, a Plata-forma de Durban (ADP) termina o seu mandato e apresentará os elementos para a criação de um novo acordo do clima, que poderá ser um novo protocolo – ou não – que, sob a Convenção, será aplicável a todas as partes.

O novo acordo de clima entra em vigor a partir de 2020 e os países membros pretendem implementar ações no período de 2015-2020, denominado pré-2020. As INDCa (Contribuições Intencionais Nacionalmente Determinadas) definem quanto, como e quando os países irão reduzir suas emissões

A Conferência abordará outros temas relacionados às mudanças climáticas, como é o caso dos mecanismos de mercado, que envolvem os Mecanismos de DesenvolvImento Limpos (MDLs), os financiamentos, e o Fundo Verde do Clima e a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD+)

O Papa Francisco, diante dos “gemidos da mãe terra”, lamenta a falência das cúpulas mundiais e a fraqueza das reações, princi-palmente da política internacional, que se submete a interesses particulares e econômicos, e chega a “manipular informação para não ver afetados os seus projetos”.

É interessante anotar que a Carta Encíclica dedica um esforço especial para desconstruir o pensamento antropocêntrico que muitos alimentaram durante tantos séculos, a partir de leitura equivocada da Bíblia.

O Papa insiste que o Livro Sagrado nunca indicou o homem com o dominador de tudo, com poderes para destruir as outras demais criações. Ao contrário, a existência humana depende de três relações: com Deus, com o próximo e com a Terra.

Na verdade, segundo o Sumo Pontífice, o homem peca ao tentar ser criador e não criatura. No ato de criar, sem ser o criador, não respeitando as leis universais e a solidariedade entre as espécies, o homem desordena e degrada a própria criação.

E qual a saída para restabelecer a saúde da Casa Comum?

Não há duas crises, uma ambiental e outra social. Estamos diante de uma complexa crise socioambiental e: “as diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”.

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A ecologia integral é a proposta do Santo Padre para salvação da humanidade. Alicerçada no princípio do bem comum, como “o conjunto de condições da vida social que permite, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plenamente e facilmente a própria perfeição”, deve ser dirigida primeiro à construção da nova solidariedade de caráter universal, com opção clara pelos mais pobres, englobando também as gerações futuras.

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VI. A Cidade e a Governança Democrática

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Autor

Alberto AggioProfessor titular de História da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) e presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira .

Josep Maria Pascual EsteveEconomista e sociólogo espanhol, autor, dentre outros, de Governança Democrática: Construção Coletiva do Desenvolvimento das Cidades, editado em língua portuguesa, em duas edições (2009 e 2012), pela Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com a UFJF, Instituto Cervantes, de Belo Horizonte, Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte .

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A qualidade da representação

Josep Maria Pascual Esteve

O grito dos indignados, “vocês não nos representam!”, não foi mobilizado para o debate sobre a melhoria da qualidade da representação, mas para buscar formas alternativas

de democracia direta ou participativa, sobretudo em nível local, esquecendo-se que a participação da cidadania é essencial para a qualidade da representação, mas, de forma alguma, a democracia representativa pode ser substituída.

Em todas as democracias modernas, a cidadania delegou a ação de governo a representantes eleitos. Dois argumentos são utilizados para explicar isso: o tamanho da população e a extensão territorial que faz com que seja impossível a convocação da comu-nidade para as assembleias. Se estes fossem os únicos argu-mentos, hoje a democracia direta seria possível, graças à internet e às tecnologias digitais, que permitem que de qualquer lugar se possa deliberar, votar e chegar a resultados.

Mas, para que uma democracia seja necessariamente repre-sentativa as exigências são outras: é a diversidade social, a com-plexidade e a necessidade de coesão social e cooperação para que o sistema democrático funcione.

A cidadania é mais diversa socialmente do que nas cidades industriais, onde o proletariado, por exemplo, era uma classe homogênea. Hoje, o precariado1 é um grande conjunto de grupos

1 Imigrantes e jovens trabalhadores com empregos temporários, mal remunerados e sem os direitos da geração dos seus pais constituem um novo ator político

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116116 Josep Maria Pascual Esteve

socioeconômicos, altamente vulneráveis. Falar de cidadania como um todo é um equívoco. A cidadania está atravessada por múltiplas contradições que não são necessariamente incompatíveis, mas há que geri-las, a fim de estabelecer políticas e projetos que respondam à grande maioria dos interesses dos distintos setores sociais.

Uma dinâmica de referendo é uma dinâmica de soma zero, uns ganham e outros perdem, e não apenas se exclui a minoria mas também, no caso de mais de duas opções, facilmente se excluiria a maioria. Isso gera uma quebra na coesão social e impede a coo-peração entre os distintos atores implicados na cidade. R.D. Putnam já demonstrou que para a democracia funcionar e pro-mover resultados sociais e econômicos é necessária a colaboração de toda a cidadania.

Os governos locais devem ter uma autonomia em relação aos seus eleitores e dos grupos de onde procedem. Na formação do governo, não só podem governar para os seus ou serem meros transmissores de resultados de referendos, mas partindo de alguns valores e de interesses legítimos devem tentar construir o interesse mais geral para manter a coesão social e não permitir que a democracia corra perigo.

A autonomia da política sobre as equipes técnicas também é necessária porque os técnicos devem elaborar projetos a partir de objetivos da grande maioria dos setores da cidadania, e, em segundo lugar, não havendo nunca apenas uma solução para os mesmos desafios, haverá projetos mais sustentáveis, outros com maior impacto no emprego etc. Optar por um ou outro não é nunca uma decisão técnica. Trata-se de uma decisão sobre valores, de uma decisão de quem foi eleito e que depois deverá prestar contas à cidadania.

Nesse sentido, como garantir a qualidade da representação e uma autonomia necessária do político frente aos eleitores que não se converta na geração de uma dominação própria das elites? Como garantir uma representação política claramente inclusiva em nível local?

Baseando-me nos princípios não variáveis que B. Manín encontrou em todo governo representativo, considero que são necessárias quatro condições:

estudado no Brasil e no exterior. Ainda muito discutido por pesquisadores, o conceito de ‘precariado’ tenta dar conta das transformações econômicas ao longo das últimas décadas e estaria na origem das manifestações que explodiram na Europa e nos EUA a partir de 2008 e no Brasil desde 2013.

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117117A qualidade da representação

1. Dispor de mecanismos de participação e avaliação que per-mitam conhecer a opinião de todos os setores da cidadania impli-cados em uma política ou projeto, a fim de garantir que a auto-nomia em relação aos eleitores seja utilizada para se obter o interesse geral;

2. Assegurar que a liberdade de expressão alcance a todos e, em particular, garantir que se ouça a voz dos setores mais precá-rios como garantia de uma cidade inclusiva;

3. Que as eleições sejam precedidas por uma prestação de contas dos programas de governo e projetos realizados, com requi-sitos de objetividade e transparência e sejam disponibilizadas as fontes alternativas de informação, com as mesmas características;

4. Um amplo uso da deliberação e a geração de ideias por meios eletrônicos e presenciais, não como instrumentos de decisão sobre recursos públicos, mas para garantir a qualidade das deci-sões políticas.

A democracia são valores (objetividade, racionalidade, trans-parência, igualdade, convivência), procedimentos normativos, resultados e atitudes diante dos demais. Por essa razão, J. Dewey considerou que a democracia era uma maneira de viver. A partir dessa perspectiva, o melhor instrumento para a qualidade da representação é uma cidadania atenta que se abstenha de votar em pessoas que não se caracterizem pela disposição à escuta plural, ao diálogo, ao respeito, à mediação e à solidariedade.

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As cidades e a política democrática

Alberto Aggio

Há uma afirmação que, há muito, se generalizou no discurso político relativo ao espaço local que precisa ser repensada. Ela é parte inclusive da retórica do municipalismo brasi-

leiro em contraponto à hipertrofia da União, em nossa formação histórica. Afirma-se que as pessoas não vivem na União ou nos Estados e sim “nos municípios”. Trata-se de uma fórmula abs-trata baseada no entendimento jurídico-administrativo da vida do país. Na verdade, em países como o Brasil, predominantemente urbano, a população vive nas cidades e, tanto a vida cotidiana das pessoas quanto a administração pública das cidades envolvem, como se sabe, os três níveis do Estado brasileiro. Além disso, como disse Josep Pascual, “o mundo é cada vez mais um planeta de cidades”, e, portanto, extremamente complexo.

Assim, construir um discurso político que parta dessa signifi-cação mais ampla e direta (a população vive nas cidades) parece ser um primeiro passo no sentido de organizar uma intervenção mais precisa e construtiva no processo eleitoral que se realizará em 2016, quando teremos eleições municipais em todo o país. Trata-se de pensar, portanto, as cidades brasileiras em contexto global e, por consequência, sua crise. Trata-se de pensar também as cidades no contexto de crise do Estado brasileiro, cujo prin-cipal resultado para elas é o desequilíbrio econômico-financeiro que assola os entes municipais.

Desde o início do século XXI, estruturou-se um projeto de ação político-partidária, visando a intervenção no processo eleitoral municipal, por meio da ideia do “poder local”. Trata-se de uma for-mulação elaborada sob influxo do movimento ascendente da demo-cratização vivida pelo país. Imaginava-se que a democratização geral do Estado brasileiro, ultrapassado o autoritarismo, teria um rebatimento quase que imediato no plano local. Se a democrati-zação avançava no plano nacional, ela deveria, portanto, se desdo-brar no plano municipal: o “poder local” deveria ser democratizado. Vinculava-se, então, “poder local” com uma cidadania em contínua expansão e afirmação, o que significaria a concretização imaginária da consigna da “radicalidade democrática”. Era uma visão demasia-

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119119As cidades e a política democrática

damente otimista que permitiu a elaboração de uma narrativa que iria, quando muito, acompanhar o movimento da sociedade, mas que foi incapaz de lhe dar ou propor orientações de ação para uma política democrática em plano municipal, com raríssimas exceções.

No fundo, a noção de “poder local” procurou resolver um pro-blema gigantescamente complexo por meio de uma fórmula de caráter ideológico, que redundou inócua. Tanto mais porque as dificuldades estruturais no sentido de se construir a democracia em âmbito local se apresentaram como muito mais complicadas do que aquelas que emergiram em nível nacional. Elas envolviam a necessidade de mudança da cultura política do país, o que, como se sabe, costuma ser um processo lento e cheio de vai-e-vem. A impressão que fica é que se quis sustentar a ideia de que o “poder local” poderia ser um ponto de enfrentamento da crise geral do Estado e da democracia representativa (e a sua argumen-tação foi no sentido de aderir ao paradigma político da pós-moder-nidade, que comporta fragmentação, diluição, sobreposição etc.).

Uma moderna política (não apenas) para as cidades deve superar tanto a ideia de um “antes” e um “depois” da construção do “poder local”, como evitar a inclinação pelo desprezo e desqua-lificação da política que se sustenta na democracia representa-tiva, agregando, por óbvio, dimensões e formas de democracia participativa. Por isso, se impõe agora ultrapassar a fórmula do “poder local”.

Há um componente pontual que também deve ser discutido na trajetória da democratização brasileira que comporta o âmbito das cidades: trata-se da cristalização de uma avaliação positiva da proposta do “orçamento participativo”, como atestado de uma avançada orientação democrática adotada no Brasil das últimas décadas. Essa cristalização, em certa medida, comprometeu a dis-cussão de inúmeras questões que poderiam permitir o avanço de uma politica democrática para os problemas urbanos no Brasil, uma vez que o orçamento participativo criava a ilusão de que esse seria o ponto de chegada do processo de conquista da democracia no âmbito das cidades. Como se sabe, o orçamento participativo não foi uma política pública de origem petista, mas se generalizou a vocalização de que o PT foi o principal responsável pela implan-tação e êxito desse tipo de orientação.

Hoje, sabemos que a dinâmica do orçamento participativo, além de lidar com um percentual irrisório de recursos do muni-cípio, gerou muitas distorções de caráter político. Ele não afirmou

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uma política democrática de participação, cedendo espaço para o paternalismo, o clientelismo e o assistencialismo, impulsionando mais ainda elementos extremamente negativos na prática da polí-tica municipal em nosso país. Nessa fase de crise política, deve-se considerar uma crítica clara ao orçamento participativo, reco-lhendo experiências mais ricas no sentido de fazer avançar a polí-tica democrática em âmbito local.

Olhando a problemática das cidades de um ponto vista mais amplo e mundial, Jordi Borja , atesta que “nossa época questiona [inclusive] a razão de ser da cidade”, em função de que “as dinâ-micas desagregadoras são muito fortes e as incertezas sobre o futuro são crescentes”. Em suma, a cidade atual revela o conflito político mundial que emerge e é latente na era da globalização. Ao analisarem o problema urbano atual, os investigadores urbanos norte-americanos, mais acadêmicos, são tendencialmente mais pessimistas do que os europeus, muito mais envolvidos com a administração pública. Os latino-americanos, por sua vez, são mais proativos, por sua frequente vinculação aos movimentos sociais. Entretanto, há alguns consensos sobre a crise das polí-ticas locais que afetam a cidade atual.

De acordo com Jordi Borja, “a cidade extensa ou o espaço urbano-regional converteram-se em territórios de organização da ‘produção social’ (conjunto de fatores que intervêm no processo econômico de produção de bens e serviços), mas de governabili-dades débeis e fragmentadas”, o que leva a mais competição (até revanchismo) do que a colaboração. No caso dos EUA, “o conflito social (ou a nova luta de classes) se deslocou, relativamente, do âmbito do Estado-nação e do lugar de trabalho para territórios locais e para a questão do local e do global”. No caso europeu, pode-se observar duas tendências. A primeira naturaliza o capita-lismo e enfatiza a inserção da cidade em redes macrorregionais (continentais e mundiais) para ganhar posições competitivas na nova economia, impulsiona a gentrificação (ou a museificação), a mercantilização do valor simbólico do patrimônio, justifica o medo dos bairros fechados e adota o crescimento periférico por zonas e funções especializadas. A segunda procura resistir à globalização e seus efeitos perversos uma vez que entende que a submissão ao global é incompatível com a coesão social e a sustentabilidade ambiental, marginaliza e sacrifica populações pela competitivi-dade global, induz à banalização e à perda de identidade dos ter-ritórios etc. É essa tendência interpretativa da cidade atual que faz, segundo Jordi Borja, com que “reapareça o discurso sobre a

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cidade, o espaço público, a rua, a mistura social, o perfil identi-tário e o patrimônio como memória urbana”. Os investigadores latino-americanos estão condenados a buscar integrar os dois polos. Para eles, as cidades devem melhorar sua inserção nos fluxos globais para superar a distância tecnológica, financeira e econômica dos últimos 30 anos do século XX. Mas há um déficit maior e inelutável – a defasagem social, cultural e de governabili-dade democrática – que deve ser superado.

São realidades urbanas extremamente complexas e dinâmicas que, como se vê, produzem discursos ambivalentes. O resultado tem sido tanto a produção de discursos de gestão contraditórios, genéricos e inoperantes (como é a moda do planejamento estraté-gico) ou a opção radical por algum dos polos (no caso europeu) e no caso norte-americano pela exacerbação do discurso radical, inflando práticas de ocupação dos espaços públicos no seio das metrópoles. É fundamentalmente isso que esteve na base dos movimentos do Occupy Wall Street ou mesmo dos “indignados” na Espanha. São tendências recentes que também se fizeram pre-sentes no Brasil, especialmente em função dos movimentos de 2013 (em São Paulo e Rio de Janeiro, especialmente), e que cons-tituíram a base de uma perspectiva de ação frente à crise das cidades brasileiras traduzida na noção de “cidades rebeldes” ou “cidades insurgentes”. Todos esses movimentos e as interpreta-ções do mundo acadêmico e da esfera pública a respeito deles, em nível mundial, têm colocado a necessidade e a urgência de um posicionamento mais claro e consequente no mundo político.

Pensar a cidade atual ou a futura pelo viés da rebeldia é uma opção clara, porém é politicamente problemática, como sabemos. Por outro lado, buscar soluções intermediárias e possibilistas tem suas virtudes e parece fazer parte de um “realismo necessário”. Mas pode também se tornar inoperante do ponto de vista das políticas públicas e mesmo deslegitimar-se do ponto de vista político mais geral, em particular quando a cidade passa a ser pensada a partir de algum qualificativo especifico, tais como, “cidades tecnológicas” ou “cidades globais”, “cidades inteligentes” ou “cidades sustentáveis”. A política talvez possa ser ainda uma maneira de sintetizar todas as demandas parciais que estão contidas nessas formulações. Por isso, ainda deve prevalecer a ideia de “cidade democrática” para a nossa cidade atual ou mesmo para a “cidade futura”.

Ao apresentar o livro de Josep Maria Pascual , João Carlos Vitor Garcia observa que, no campo da política democrática, o acúmulo de conhecimento e de proposições práticas inovadoras a respeito da

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“governança democrática” das cidades “ainda é muito pequeno”. Compartilhando a visão de alguns especialistas, poderíamos acres-centar uma observação a mais: ele também não é monopólio de nenhuma corrente intelectual e menos ainda de uma força política específica. Assim, a temática da “governança democrática” das cidades deveria ser pensada como o eixo discursivo da esquerda democrática para as eleições municipais de 2016.

Desmembrando a fórmula da “governança democrática”, Josep Pascual define “governança” como “o modo de governar para fazer frente à crescente complexidade e diversidade das sociedades con-temporâneas, que se caracterizam pela interação de uma plurali-dade de atores, relações horizontais, pela participação da sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente aos desafios socialmente colocados”. Para que essa “governança” seja “democrá-tica” é preciso que haja “capacidade de organização e ação da socie-dade, através da gestão relacional ou de redes, tendo como finali-dade o desenvolvimento humano”. Trata-se, portanto, de uma perspectiva humanista de se governar cidades. Especificamente, a “governança democrática” deverá favorecer “a condução do desen-volvimento econômico e tecnológico em função de valores de equi-dade social, coesão territorial, sustentabilidade, ética e ampliação e aprofundamento da democracia e da participação política”.

Em síntese, de acordo com Josep Pascual, a “governança democrática” pressupõe e caracteriza-se por: 1. Uma cidadania ativa envolvida com a solução dos desafios sociais; 2. Valores cívicos e públicos; 3. Revalorização da política democrática e do governo representativo (o governo representa a cidade frente às suas necessidades e desafios; o governo tem incumbências); 4. Construção compartilhada do fortalecimento do interesse geral, entendido como “construção coletiva”; 5. Transparência e pres-tação de contas. Desnecessário, mas obrigatório dizer que “a governança democrática exige e necessita de democracia”.

Na conjuntura atual, vista a partir de uma perspectiva mun-dial, as cidades brasileiras necessitam de uma política clara que, além de enfrentarem seus problemas setoriais com a eficiência requerida, como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, habitação e infraestrutura de saneamento básico, se estruture a partir de uma orientação consonante com o nosso tempo, um tempo de crise extensiva e profunda, de caráter antropológico e que necessita de um tratamento político-ideológico progressista e democrático. Não basta alinhavar, em formulações sobrepostas, todos os suportes analíticos ou discursivos aparentemente demo-

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cráticos sem que haja uma orientação mais geral de caráter afir-mativo que dê sustentação a uma opção escolhida pela razão polí-tica. A realidade pode e se expressa espontaneamente por meio de sobreposições, mas de um partido político, como um sujeito típico da modernidade (que ainda não está extinta, como alguns ima-ginam), demanda-se mais do que isso.

Hoje, no Brasil, as finanças públicas que afetam as cidades estão esgarçadas e são causadoras de um desequilíbrio catastrófico do ponto de vista administrativo. Com o agravante de que tal dese-quilíbrio possa se acentuar em meio à crise que o país atravessa. É urgente repensar, portanto, o federalismo e fazer, no mínimo, com que se retorne a uma divisão econômico-financeira mais justa dos recursos públicos, conforme havia sido ditada pela Consti-tuição de 1988. Por outro lado, diante da crise ética do país, a par-ticipação cidadã deve ser sustentada por um projeto de afirmação da República que incrimine mais severamente todos os atos de cor-rupção no âmbito da administração pública. Esse não é um tema exclusivamente local ou urbano, é um tema político nacional, de caráter urgente, que a cidadania brasileira deve assumir clara-mente, no contexto das próximas eleições municipais.

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VII. Questões do Estado e da Cidadania

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Autor

José MedeirosProfessor, policial rodoviário federal e senador da República (PPS-MT) .

José Osmar Monte RochaContador, auditor, analista de Controle e Finanças do Ministério da Fazenda (aposentado) e professor da Universidade do Distrito Federal (UDF) .

Xico GrazianoEngenheiro agrônomo, ocupou vários cargos públicos, destacando-se o de presidente do Incra, ex-deputado federal, autor de oito livros sobre questão agrária, agricultura, sustentabilidade e democracia, além de articulista de periódicos nacionais . [email protected].

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Federalismo, educação e o estado de Mato Grosso

José Medeiros

No universo da democracia representativa, uma complexa rede de interesses se nutre a partir das interações entre os entes federados e os agentes públicos que atuam nas três

esferas de governo. Ocorre que, num regime de presidencialismo exacerbado como o nosso, é possível notar grandes distorções, e até mesmo a subversão dos princípios e valores republicanos, pela hipertrofia do Poder Executivo federal. Hipertrofia que pode comprometer seriamente a autonomia e a governabilidade dos estados e municípios.

Hoje, governadores e prefeitos de todo o Brasil sentem as agruras deste fenômeno crescente entre nós. Tal descompasso tem levado algumas unidades da Federação à beira da falência. Os mandatários municipais e estaduais mostram-se justificada-mente apreensivos com o crescente desequilíbrio que vem aba-lando suas contas, sobretudo com o advento das obrigações recentemente impostas a ensejar o aumento de despesas sem novas fontes de financiamento, como, por exemplo, as que decorrem do piso nacional do magistério, para citar apenas um.

Analisemos, então, o federalismo a partir da área de educação. A priori, todos hão de concordar que a questão requer um olhar amoroso por parte dos governantes. Aliás, devo lembrar que a pre-sidente Dilma, quando de sua posse em janeiro de 2015, afirmou que, neste segundo mandato, teria o ousado desafio de trans-formar o Brasil em uma “Pátria Educadora”. Pois bem, passados alguns meses do decantado discurso, creio já ter chegado a hora

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de se dar o necessário salto do plano da retórica, do jogo de pala-vras, para o efetivo plano das ações políticas.

É preciso que o governo federal, através do Ministério da Edu-cação (MEC), promova uma revolução nessa área.

Antes, porém, permito-me fazer um breve apanhado de tudo o que a pasta representa para o país. A abrangência de atuação e a experiência acumulada pelo MEC desde a sua criação, nos anos 30, permitem à instituição conhecer as vicissitudes e carências de cada uma das regiões brasileiras, compilando as demandas e mapeando as suas diferenças. Tamanho know-how, aliado ao qualificado corpo técnico, nos permite acreditar que o Ministério é, realmente, capaz de detectar falhas, apontar cursos alternativos e conduzir o país a um novo estágio na qualificação de sua mão de obra.

Por outro lado, o recente acúmulo de más notícias, a institucio-nalização da abordagem meramente protocolar nas relações do Ministério junto aos demais entes federados e a outros atores da sociedade civil organizada e a preservação da excessiva atenção dedicada ao ensino superior, em detrimento dos demais níveis de formação, nos geram temores de que este novo momento ainda não tenha chegado. E, talvez, ainda esteja distante, lamentavelmente.

No campo dos últimos equívocos perceptíveis, podemos des-tacar as inacreditáveis idas e vindas de informações referentes ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que deixaram alunos e instituições de ensino atônitos e perdidos; os vazamentos de ques-tões aplicadas na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que minaram ainda mais a credibilidade desse ins-trumento; e o atraso de quatro meses no pagamento dos profissio-nais que atuam no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Téc-nico e Emprego (Pronatec).

Aliás, o episódio envolvendo este Programa merece especial atenção do Congresso Nacional. Ao suscitá-lo, não quero apenas me solidarizar com os milhares de professores submetidos a todo tipo de constrangimento em função do não recebimento dos seus salários, mas, principalmente, iniciar uma reflexão acerca da crô-nica desídia para com a formação técnico-científica no Brasil, relegada a um perigoso plano secundário nas políticas mantidas pelo Ministério da Educação.

As demandas do mercado de trabalho são, constantemente, alteradas. Para que os nossos jovens façam frente a esses novos desafios, precisamos rever, com a mesma celeridade, os métodos

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e conteúdos da sua formação. E para que isso possa acontecer, é necessário investirmos, maciçamente, em uma nova estrutura de preparação técnica e profissionalizante. Portanto, essa vertente do ensino não poderá mais ser desprezada. Como não podem ser des-curados os primeiros anos da formação de todo estudante.

Vivemos em um país no qual 70% dos alunos que terminam o terceiro ano do ensino fundamental não têm domínio de noções elementares de escrita e matemática. Apesar dessa e de outras evidências de que os níveis mais básicos da formação vêm sendo negligenciados, o MEC continua a alocar tempo, recursos humanos e montanhas de dinheiro no ensino superior.

Creio ser correto buscarmos possuir centros universitários de excelência, desde que contem com sistemas de avaliação eficientes, nos quais a meritocracia seja a viga mestra da construção acadê-mica e social. Porque tão importante quanto expandir a oferta de vagas nas faculdades é assegurar a qualidade do ensino e os bene-fícios que a boa formação pode trazer à nação. Sim, é preciso deixar de ser meros replicadores! Quero e desejo que o país passe a ser um desenvolvedor de tecnologias! Quero, enfim, que o Brasil produza conhecimento! E sei que, em larga extensão, são universidades modernas e eficientes que vão nos ajudar nesses objetivos.

Mas também estou convicto de que é um equívoco construir uma sociedade em que uma pequena e brilhante elite intelectual fique separada da maior parte da população por um fosso cavado ao longo de anos de repetidos erros no nosso sistema educacional. E que pode ser aprofundado, se o MEC não for mais proativo nem intensificar esforços nas primeiras etapas do processo educativo.

É fato que a educação infantil, o ensino fundamental e o básico são atribuições de Estados e Municípios. São esses os entes que devem formar os brasileiros, desde a mais tenra idade, preparan-do-os para o mercado de trabalho. Mas sendo desnecessário lem-brar que o Brasil tem dimensões continentais e contrastes ainda maiores, precisamos ressaltar o fundamental papel da União nesse processo. Antes de mais nada, por se tratar de um grande repas-sador de recursos, o Poder Central precisa aperfeiçoar os seus mecanismos de controle e fiscalização. O dinheiro que chega à ponta precisa ser bem gasto. E a sociedade deve acompanhar isso.

Hoje, é, simplesmente, incalculável o montante de recursos públicos desperdiçado em convênios entre o Ministério e os entes federados. Estados e municípios aplicam mal o dinheiro recebido e isso se dá por uma miríade de razões. Corrupção, despreparo

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dos gestores, falta de políticas e diretrizes educacionais padroni-zadas efetivamente difundidas pelo país ou simples indolência são as variáveis que um controle e uma orientação mais efetivos por parte do MEC poderiam mitigar. Melhores instalações, professores qualificados e satisfeitos e alunos mais bem preparados seriam as consequências desse esforço.

A sociedade exige que se firme um pacto pela educação, pois sabe que não poderia haver momento mais adequado para isso. Por um lado, há menos de um ano, o Congresso Nacional deter-minou que, até 2024, o Brasil esteja gastando 10% do seu PIB com educação. Na outra ponta, a nova configuração demográfica brasileira faz com que as famílias diminuam de tamanho e nós tenhamos menos ingressantes no sistema público de educação. O saldo da equação que envolve mais recursos e menos alunos precisa ser um ensino de melhor qualidade. E o MEC deverá ser o grande vetor desse processo. É imperioso que seja!

O Brasil quer e necessita que o governo federal seja régua e compasso para todos aqueles que militam na área e desejam pro-mover as mudanças que podem colocar o país na vanguarda do processo educativo. Sem que o MEC assuma o papel de timoneiro, dificilmente haverá a sinergia nos esforços públicos e privados que podem acelerar o passo da História.

Este é um viés que defendo como senador da República.

Mas, voltando ao federalismo como um todo, vejo que a solução para acabar com a guerra fiscal é aprofundarmos os consistentes estudos com vistas à rediscussão do pacto federativo. Se somos uma Federação, não podemos admitir que um ente seja mais igual do que os outros, porque senão esse equilíbrio se destrói e o pró-prio pacto federativo fica em risco.

Poderia acabar este artigo nesse ponto, mas, como senador de Mato Grosso, não posso deixar de lembrar que uma nova distri-buição do bolo tributário deve levar em conta que o estado de Mato Grosso, além de liderar o ranking mundial de produção e exportação de açúcar, etanol, algodão e trigo, é, acima de tudo, o segundo maior no faturamento com as vendas externas do com-plexo de soja, aí compreendidos o grão, o farelo e o óleo.

O fabuloso crescimento do agronegócio no país, com destaque para a região Centro-Oeste e, mais especificamente ainda, Mato Grosso, tem reclamado especial atenção no que concerne ao pla-

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nejamento estratégico da logística de escoamento da gigantesca produção de grãos.

Tanto mais porque, segundo as projeções do Ministério da Agricultura, até o ano de 2030, um terço dos produtos comercia-lizados no mundo será proveniente do Brasil. Isso em função da crescente demanda dos países asiáticos por alimentos.

A acentuada ascensão das economias asiáticas, notadamente a chinesa, faz com que venhamos a rever nossa política de comércio exterior, sobretudo quando constatamos que a República Popular da China é hoje nosso principal parceiro comercial, tendo desban-cado, desde 2009, o lugar que vinha sendo ocupado pelos Estados Unidos por nada menos que 80 anos.

Uma vez que nossa matriz de exportações se caracteriza por produtos de baixo valor agregado, entre minérios e produtos agrí-colas, e que mais de 33% das riquezas produzidas em território nacional correspondem às atividades do agronegócio, impõe-se viabilizar as melhores condições de infraestrutura de escoamento e comercialização para este setor.

A utilização do Oceano Pacífico como alternativa para abas-tecer esse mercado emergente, por meio da Ferrovia Transoceâ-nica, demonstra-se de inegável conveniência e oportunidade, não só pela expansão da demanda asiática, mas também pela impor-tância em fortalecer parcerias e em garantir o crescimento regional integrado entre os países da América do Sul.

Portanto, é urgente trocar o insistente despautério de um penoso e oneroso périplo em infindáveis estradas esburacadas, pela utilização de portos mais próximos, tanto da origem, quanto do destino de nossos produtos de exportação, o que parece uma opção natural, à luz da lógica e do bom senso.

Este é um tema que certamente o Congresso Nacional tem que discutir à exaustão. O bolo tributário precisa ser melhor distribuído de forma que as coisas melhorem da porteira pra fora porque, da porteira pra dentro, Mato Grosso tem cumprido seu papel.

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Questões contemporâneas da realidade agrária

Xico Graziano

Relatório do Incra, divulgado no início deste ano, reacendeu uma discussão no debate agrário: a necessidade, ou não, de atualizar os índices de produtividade no campo. Elevá-los,

facilitaria a desapropriação de terras. Por outro lado, avançaria sobre a produção rural. Entenda a polêmica.

A legislação básica do Estatuto da Terra (1964) definia a exis-tência de dois tipos de latifúndio: “por dimensão”, grandes áreas acima de 600 módulos fiscais, e os “por exploração”, caracteri-zados como de baixa produtividade, independentemente do seu tamanho. Em 1975, normatizando a matéria, o poder público estabeleceu índices mínimos de produtividade física, regionali-zados, para cada lavoura e para as pastagens.

Na prática, funcionava assim: o técnico do Incra realizava as vistorias nos imóveis rurais suspeitos, verificava in locu o nível existente de produtividade e elaborava seu laudo. Se a fazenda estivesse produzindo acima dos índices oficiais, significava que ela era produtiva, em acordo com a função social da propriedade; se ficasse abaixo estaria improdutiva, caracterizada como um lati-fúndio e, portanto, destinada para a reforma agrária. Fácil.

A história, porém, não fica estacionada. Aconteceu que a moder-nização da agropecuária se acelerou nos últimos 30 anos, alterando completamente seu patamar produtivo, deixando para trás o atraso oligárquico para assumir a dianteira da modernidade capitalista. Segundo a Conab, entre 1976 e 2013, a produção nacional de grãos se expandiu em 306% (de 47 milhões para 191 milhões de tone-ladas), enquanto que a área cultivada mostrou acréscimo de 51% (de 37 milhões para 56 milhões de hectares). Conclusão: houve uma extraordinária elevação da produtividade física da terra.

Ocorreu, também, decorrente da Constituição de 1988, impor-tante modificação legal: a antiga denominação de “latifúndio” acabou substituída pela de “grande propriedade improdutiva”, e somente esta, devidamente comprovada, passou a ser passível de desapropriação para fins de reforma agrária. Por ambas as razões, histórica e jurídica, o latifúndio virou passado. Felizmente.

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133133Questões contemporâneas da realidade agrária

Mais tarde, a estabilização da economia feriu gravemente o patrimonialismo oligárquico. A especulação fundiária cedeu espaço para a rentabilidade. Assim, no processo da reforma agrária brasileira, começou a ficar difícil encontrar terras para serem desapropriadas, pois os fazendeiros aprimoraram seu nível tecnológico e elevaram sua produtividade. Nesse contexto, para manter a sanha do distributivismo agrário, haveria somente duas alternativas: ou elevar os índices mínimos de produtividade, ou comprar as terras pretendidas.

Predominou a saída da negociata: crescentemente o governo federal passou a adquirir, por preço de mercado, propriedades que, embora produtivas, ostentando bons níveis de produtividade, foram invadidas pelo MST e seus congêneres. Os dados oficiais comprovam o que pouca gente sabe: dos 88,2 milhões de hectares incorporados aos assentamentos rurais no Brasil, apenas 30,5 milhões (34,5%) foram obtidos via decretos desapropriatórios. O restante foi comprado pelo Incra. Essa tendência mercantilista na reforma agrária se fortaleceu nos últimos anos, pois em 1994, as desapropriações dominavam 95,6% da arrecadação de terras.

Sim, a elevação dos índices mínimos de produtividade poderia ter evitado esse negócio de compra e venda dentro da reforma agrária, um procedimento sujeito a vastas falcatruas. Significaria, em compensação, desprezar o bom senso da economia e chutar o balde da história. Porque a saga do latifúndio seguiu outro trilho. Ao invés de submeter-se à reforma agrária, subordinou-se ao capitalismo mais avançado, revolucionando sua forma de pro-duzir, inserindo-se no mundo dos agronegócios. Se o objetivo da reforma agrária era aniquilar os antigos e ociosos latifúndios, para promover o desenvolvimento, a evolução funcionou, embora tenha se mantido praticamente inalterada a forte concentração fundiária trazida desde as capitanias hereditárias. Custo da história.

Para o progresso do país, que se urbanizou radicalmente, o resultado foi espetacular: o choque de capitalismo e a moderni-dade tecnológica no campo permitiram que, em 2013, cada traba-lhador gastasse com a cesta básica de alimentos cerca de metade do valor, em preços reais, que gastava em meados dos anos 1970. A sorte das metrópoles não dependeu da reforma agrária.

Não se pode desprezar a realidade empresarial. Na regra ele-mentar, se o preço do milho, por exemplo, está baixo, qual o com-portamento esperado dos agentes econômicos: aumentar a pro-dução do cereal, e quebrar a cara, ou segurar o plantio, para se

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precaver? Ora, querer obrigar os agricultores à elevação contínua da produção, sem garantia de preço, significa uma insanidade. Afinal, quem arcaria com o prejuízo?

Fez bem o governo em buscar nova fórmula para avaliar o desem-penho produtivo das propriedades rurais. Quem defende elevar os tais índices de produtividade esconde uma pegadinha: querem, na verdade, continuar a rosca-sem-fim da reforma agrária, porque dela se alimentam politicamente. Chega de ilusão. A área dos assenta-mentos rurais já supera em 25% o total da área plantada no Brasil.

A verdadeira discussão não reside na obtenção de mais terra: o grande problema está em assegurar o caráter produtivo da capenga reforma agrária já realizada. Bote-se o dedo na ferida: os índices médios de produtividade dos assentamentos se encontram abaixo daqueles verificados na agricultura de 1975. Sanar essa absurda fraqueza deveria ser a prioridade da reforma agrária. Qualidade, não quantidade. Fora disso, é mera luta ideológica. Do século passado.

O atual desenvolvimento agrário

Não se deve deixar de lembrar que, há 30 anos, o Brasil rea-cendia sua democracia. Iniciava-se também, naquele momento, um processo de profunda transformação no campo. A agrope-cuária nacional, definitivamente, abandonava o atraso oligár-quico para assumir a dianteira da modernidade capitalista. Sob o mando da tecnologia.

Nesse processo, a produção rural se integrou com a indústria e os serviços, gerando complexas teias produtivas que passaram a ser denominadas, em seu conjunto, de agronegócio. Expandiram-se as fronteiras agrícolas rumo ao cerrado do Centro-Oeste, utili-zando a técnica do plantio direto, que não promove nem aração nem gradação do solo, facilitando obter duas safras sucessivas no mesmo terreno. Na pecuária, a melhoria da genética dos rebanhos impulsionou a boa sanidade animal.

Nas últimas décadas, a agropecuária brasileira cresceu espe-tacularmente. Segundo a Conab, entre 1976 e 2013, a produção nacional de grãos se expandiu em 306% (47 milhões para 191 milhões de toneladas), enquanto que a área cultivada aumentava apenas 51% (37 milhões para 56 milhões de hectares). Con-clusão: houve extraordinária elevação da produtividade física da

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terra, o dobro da observada, no mesmo período, na agricultura norte-americana.

O país passou a participar decisivamente do mercado agrope-cuário global, trazendo importantes reflexos na economia interna: as divisas geradas pelo superávit da balança agrícola, ao redor de U$ 100 bilhões (2014), pagaram as contas das importações de bens e produtos industriais. O agronegócio ajuda a movimentar o Brasil. Desapareceu também o desemprego no campo. A abun-dância de mão de obra cedeu lugar à escassez e, consequente-mente, os salários subiram, acima da média nacional.

Desse extraordinário processo de transformação, porém, não participaram todos os agricultores e trabalhadores rurais. Como soe acontecer na história, existem vitoriosos, derrotados e acomo-dados. Os primeiros conseguiram entrar no ciclo virtuoso do pro-gresso; os segundos perderam o bonde da modernidade rural; os terceiros ainda esperam sua chance. Aqui está o xis da questão agrária contemporânea: como democratizar, através do acesso à tecnologia e pela integração ao mercado, o sucesso no campo.

Visto tradicionalmente como passaporte para a felicidade nos programas de reforma agrária, o pedaço de terra começou a valer menos que o uso da tecnologia. Pequenas propriedades, inten-sivas no uso do solo, passaram a ser mais rentáveis que grandes fazendas extensivas. As novas técnicas favoreceram os agricul-tores menos abastados, que se qualificaram pela produtividade e qualidade de sua produção. Novos conceitos precisam ser utili-zados na interpretação da realidade agrária.

Revisitando os 30 anos recentes da nossa história agrária, há o que comemorar. A agropecuária brasileira triplicou de tamanho e deu um extraordinário salto de qualidade. Se, entre os direitos fundamentais da pessoa humana, se coloca o direito à adequada alimentação, pode-se afirmar que, no Brasil, uma pujante agricul-tura garante a segurança alimentar da população. E ainda exporta para o mundo.

Por outro lado, esse incrível desempenho do agro nacional está sendo comandado por um seleto grupo de produtores rurais – pequenos, médios ou grandes – que foram capazes de incorporar, através do esforço tecnológico, ganhos de produtividade, aumen-tando a rentabilidade de seus negócios. Estima-se que, dos 4,4 milhões de estabelecimentos produtivos do campo (Censo Agrope-cuário IBGE/2006), somente 500 mil deles se responsabilizaram por 87% do valor da produção. Quer dizer, o dinamismo da agro-

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pecuária nacional está sendo comandado por uma dianteira de 11,4% dos agricultores.

Em contrapartida, os demais 3,9 milhões de estabelecimentos produzem pequena fatia (apenas 13%) da produção agropecuária, indicando dificuldades na geração de sua renda. A base da pirâ-mide, formada por 2,9 milhões de estabelecimentos rurais, res-ponde apenas por 4% da produção rural. Esse pífio desempenho produtivo sugere haver pobreza nessa enorme faixa de pequenos agricultores, a grande maioria localizada no território nordestino. Aqui mora o drama rural do país, uma situação de miséria fami-liar que continua machucando a democracia brasileira.

Determinante desse triste quadro é a baixa escolaridade no campo. Portanto, somente uma vigorosa política de educação e difusão tecnológica poderá elevar a produtividade e promover a geração de renda dessa grande maioria de agricultores pobres, que pouco participa da safra nacional. Incluem-se neles os recém-assentados nos projetos de reforma agrária, contingente aproxi-mado de um milhão de famílias. Com terra, sem renda.

Repetindo o argumento: o contraste entre os produtores rurais exitosos e os empacados na história somente será superado via participação no ciclo tecnológico. A verdadeira conquista da demo-cracia vai, assim, depender de decididos investimentos na edu-cação e na capacitação profissional. Somente a instrução, direcio-nada para a juventude rural, conseguirá enfrentar a pobreza que denigre a moderna agricultura. Chegou a vez da revolução pelo conhecimento, pelo saber fazer.

Nessa jornada que parece interminável a favor da justiça social não podemos cometer o equívoco de D. Quixote, que combatia moinhos de vento. Não haverá retorno ao passado. É no contexto do capitalismo agrário, em sua fase globalizada e tecnológica, que devemos encontrar as condições objetivas da luta política. Não se trata de capitulação ideológica, mas de, simplesmente, reconhecer a realidade no século 21. Nada de quimeras. Precisamos incluir os pequenos no progresso do agronegócio.

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O Controle Interno do Poder Executivo

José Osmar Monte Rocha

A ideia de controle da gestão pública é difundida desde a che-gada de dom João VI ao Brasil, em 1808. A obrigatoriedade de utilização do método das partidas dobradas demonstra a

segurança contábil imposta pelo rei, para exercer um efetivo con-trole sobre a receita e a despesa do Tesouro Nacional, a exemplo de outras nações civilizadas, principalmente Itália, França, Estados Unidos, Portugal etc., sabendo-se que diversas outras etapas de buscas constantes de um modelo ideal foram também testadas.

Em 1921/1922, a edição do Código de Contabilidade Pública e do Regulamento Geral de Contabilidade Pública significou grande avanço e modernidade para o país, considerando o disciplina-mento de tópicos relevantes, tais como receita, despesa, contrato, convênio etc. Os assuntos normatizados facilitavam o exercício de um verdadeiro controle do erário público. Muitas décadas se pas-saram e o Poder Executivo federal experimentou várias formas de controle, sempre na busca do modelo ideal.

Dentre as muitas fases vividas, uma merece destaque: com a edição do Decreto-Lei 200/1967, ocorreu uma revolução no sis-tema de controle interno do Executivo, ao ser criada uma Inspe-toria-Geral de Finanças em cada ministério, e o Ministério da Fazenda, como órgão central do sistema, passou a ter mais uma Inspetoria – a IGFF/MF, para normatizar e controlar as demais Inspetorias como integrantes do sistema de controle. A grande vantagem era a existência de um corpo técnico, dentro de cada ministério, de forma a exercer administração financeira e orça-mentária, contabilidade e auditoria, conhecer as peculiaridades da pasta ministerial, assim como orientar, acompanhar, contabi-lizar e auditar os atos de gestão. Sem dúvida, o agente público controlador estava perto do fato ocorrido ou, de forma cautelar, podia evitar um deslize do gestor público.

A Controladoria-Geral da União (CGU) ganhou espaço e noto-riedade com a instituição do Ministério do Controle e da Transpa-rência. Este status de ministério vinculado à Presidência da Repú-blica gerou um arsenal de instrumentos de ações de controle. A equipe técnica da CGU é a melhor ou uma das melhores da

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Esplanada dos Ministérios, por ser pertencente à categoria de car-reira típica de Estado, andando paralelamente com as demais car-reiras de elite: as da Receita Federal, Orçamento e Planejamento, diplomacia, Polícia Federal, Banco Central, etc. São servidores aprovados em concursos públicos dificílimos e submetidos a trei-namento de alta qualificação.

Do início do governo Lula até o atual governo Dilma, mesmo se considerando que houve treinamento funcional de servidores do grupo Ciclo de Gestão, especialmente da carreira Finanças e Con-trole; cursos de aprimoramento (especialização), pós-graduação stricto sensu e intercâmbio de técnicas e táticas com organismos internacionais, principalmente direcionados ao combate da cor-rupção – este mal que assola o país, deve-se ressaltar que a CGU agiu mais no acompanhamento e controle de prefeituras no tocante aos recursos entregues pelo governo central do que na delicada e complexa missão de exigir transparência e correta aplicação dos recursos públicos. Não há exemplos maiores do que os casos do “mensalão” e do “petrolão” em que isso ficou mais do que evidente. A Controladoria parece agir mais para proteger e evitar denúncias que afetem a imagem do presidente da República, que nomeia o titular da CGU, do que efetivamente para exigir transparência no trato da coisa pública e evitar problemas para o Estado brasileiro.

A CGU não é uma delegacia de polícia, mas a todo instante recebe queixas, reclamações e denúncias anônimas; tudo isso exige o deslocamento de grande força de trabalho para cumpri-mento de missões que surgem fora do contexto principal da sua competência constitucional fixada no art. 74 da Carta Magna e desdobramentos estabelecidos na Lei 10.180/2000. Estas novas tarefas assumidas pela CGU representam uma sobrecarga ao sis-tema de controle interno do Poder Executivo federal; são elas: cor-reição (processos apuratórios: sindicâncias investigativas, sindi-câncias punitivas e processos administrativos disciplinares), combate à corrupção e investigações.

Com a forte demanda ocasionada pelas tarefas extras assu-midas, observa-se que a CGU não dispõe de equipe suficiente e cônscia de sua tarefa pública para resolver tempestivamente todas as ordens de serviços extraordinários e ainda cumprir um plane-jamento anual de controle da gestão dos programas do governo contemplados na lei do orçamento fiscal. No entanto, o que se vê é a redução da força de trabalho por motivo de aposentadorias dos integrantes da carreira; sem que o ingresso de novos auditores

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possa suprir a demanda de novos desafios e dar vazão a todas as tarefas que lhe são confiadas.

O modelo atual do sistema de controle interno do Poder Execu-tivo tem vantagens e desvantagens. As vantagens são caracteri-zadas pelas conquistas realizadas pelos próprios servidores, graças ao empenho e a luta dos seus líderes sindicais, com des-taque para os dirigentes da União Nacional de Analistas e Téc-nicos de Finanças e Controle (Unacon), e do Sindicato Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle (Sinatefic); desde o governo Sarney – na transição para o novo regime democrático do país, até o governo Fernando Henrique Cardoso, quando final-mente foi consolidado o sistema de controle interno – previsto na Constituição Federal de 1988.

Esta luta gloriosa resultou em estruturação da carreira, tabela de vencimentos compatíveis com as atribuições e a vinculação à Presidência da República, com a denominação de Ministério do Controle e da Transparência. Isso tudo aconteceu por batalhas e reivindicações dos servidores, e não por iniciativa do Executivo.

Mas as desvantagens são evidentes: a primeira é porque o cargo de ministro é de livre escolha da Presidência da República, e geralmente recai em um nome por indicação política, que geral-mente não é um técnico especialista da área; a segunda desvan-tagem é que o tom imposto à pasta ministerial é político e, nesse ritmo, nem sempre é conveniente tocar sem a anuência do Palácio do Planalto; a terceira desvantagem é a falta de independência técnica para realizar trabalhos de acompanhamento da execução orçamentária dos programas, projetos e atividades constantes do orçamento anual, e inspeções e auditorias amplas; a quarta des-vantagem é porque o exército do controle interno fica localizado longe da execução e da gestão dos recursos públicos, e somente depois dos fatos consumados, examina por amostragem o que considera relevante; a quinta desvantagem é porque a CGU saiu da sua atuação natural de controle e açambarcou atividades de outras áreas especializadas, tais como: correição, sindicâncias e processos administrativos e disciplinares, investigações patrimo-niais e até ações de acordos de leniências com empresas infra-toras; a sexta desvantagem é porque o dirigente da pasta de con-trole não tem mandato, é vulnerável, se contrariar interesses políticos do governo, pode perder o cargo consequentemente.

Nesse contexto, a Controladoria-Geral da União entrou na seara da Receita Federal, da Advocacia-Geral da União, da Polícia

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Federal e do Ministério Público; em nome do combate à corrupção dispendeu forças nas áreas alheias e deixou de atuar no próprio campo de trabalho, minguando os resultados e sacrificando os ser-vidores da carreira. Por tudo isso, os gestores de recursos públicos ficaram à míngua sem a orientação, sem o acompanhamento e sem o acesso direto àqueles que fiscalizam em nome da lei.

O quadro atual pode mudar; precisa mudar; pode melhorar e deve melhorar após a adoção de algumas medidas necessárias: estímulos aos servidores com melhorias nas condições de tra-balho: treinamento específico, equipamentos operacionais ade-quados; reforço na equipe para atingir o maior número de con-tratos, convênios e licitações de grande porte; horário flexível com banco de horas e com metas de produtividades; equipe de profis-sionais experientes dedicados à pesquisa, criação e inovação de metodologias – a verdadeira inteligência operacional; e interação com gestores oferecendo audiências, debates e combates às pres-sões de terceiros que demonstrem interesses escusos.

Basta seguir os exemplos das outras carreiras típicas de Estado: a Receita Federal cumpre a sua finalidade e não interfere nas outras áreas; a Polícia Federal exerce com eficiência a sua missão e o Ministério Público exerce o dever constitucional. Nenhuma dessas carreiras extrapola a sua área de atuação.

No panorama atual do serviço público federal, ninguém deve duvidar que a equipe da CGU, com a experiência e competência que tem, em algum momento não tenha desconfiado ou observado burburinho, bem antes, dos escândalos expostos na mídia envol-vendo grandes operações de investigações, tais como “mensalão”, “caixa de pandora”, “castelo de areia”, “Lava-Jato”, “petrolão” (ou Petrobras) etc. Mas no geral essa equipe só é chamada depois que a notícia circula pelos meios de comunicação, para levantar e apresentar os números dos recursos desviados ou malversados dos cofres públicos.

O controle interno do Poder Executivo tem uma missão funda-mental definida na Constituição Federal, em cumprimento às dis-posições constantes dos arts. 70 e 74 da Carta Magna. A CGU, para atingir na plenitude os objetivos da lei, carece de um titular da pasta com mandato fixado, independência técnica para auditar e a exclusão de tarefas que são pertinentes a outras instâncias. Com certeza, o combate à corrupção será melhor exercido dessa forma: a CGU levanta dados, a Polícia Federal investiga, o Minis-tério Público denuncia e aciona, e a Justiça julga os infratores.

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Se a Controladoria-Geral da União trabalhar efetivamente junto aos gestores de recursos públicos, compartilhando expe-riências, orientando e acompanhando a execução, o ganho é para a sociedade brasileira, pela boa e regular aplicação dos recursos. Se a CGU exercer os três tipos de controles previstos no art. 77 da Lei 4.320/1964 (controle prévio, concomitante e subsequente), e em consonância com o art. 81 da mesma lei, o resultado será satisfatório. E se a CGU der especial atenção ao controle dos grandes contratos de obras e dos volumosos recursos dos convênios, antes de acontecer os ilícitos administrativos – estará atingindo o objetivo da missão institucional e combatendo com eficácia a corrupção.

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VIII. Cultura

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Autores

Tiago Eloy ZaidanMestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco, coautor do livro Mídia, movimentos sociais e direitos humanos (Organizado por Marco Mondaini, UFPE, 2013) e professor do curso de Comunicação Social na Faculdade Joaquim Nabuco e na Escola Superior de Marketing/Fama, todas no Recife-PE .

Zenaide Bassi Ribeiro Soares Doutora em Comunicação e Artes pela Universidade Mackenzie e diretora de pesquisa e publicações do Centro de Estudos de Letras, Artes e História (Celarth) .

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Literatura, imprensa e censura

Zenaide Bassi Ribeiro Soares

Primeiro livro ilustrado de que se tem notícia, A pedra pre-ciosa, de Ulrich Boner, reunia fábulas, e foi impresso em 1441, por Albrecht Pfister, antigo aprendiz de Gutenberg.

Essa obra iniciou a produção impressa de temas populares, que acabariam sendo incorporados no rol das publicações destinadas principalmente ao público infantil e juvenil.

Naquela época, o Brasil nem havia ainda sido descoberto e Portugal só conhecia as impressões tabulárias. A tipografia chegou àquele país somente em 1487, introduzida por judeus, vindos da Itália, por meio de Faro, Lisboa e Leiria e foi o Pentateuco, em hebraico, a primeira obra impressa. Em 1494, o alemão João Gherlinc cuidara da impressão, em Braga, da obra latina Brevia-rium Bracarense e, em seguida, em Lisboa, foi publicada por Nicolau da Saxônia a primeira edição do livro Vita Christi. Em língua portuguesa, o primeiro livro impresso foi Sacramental, de Clemente Sanches, confirmando a tradição que se firmava de valorizar a impressão, principalmente de obras religiosas.

Antes, porém, que a tipografia chegasse a Portugal, já havia surgido, na Europa, o primeiro diploma contra a liberdade de imprimir: o “Nosce te Ipsum”, de Heidelberg, em 1480. Em 1486, o arcebispo de Mogúncia, Bertoldo de Henneberg, subordinou a publicação de livros ao parecer de quatro censores, a fim de que fossem preservados de qualquer crítica o governo, a igreja, a moral e os bons costumes. A letra impressa era uma ameaça muito temida, principalmente porque havia, naquela época, na Europa,

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forte descontentamento popular contra os abusos do alto clero. Mais tarde, os prenúncios da Reforma levaram a Igreja a fortalecer ainda mais o esquema de vigilância contra possíveis publicações contestadoras. Portugal, então, armou-se de um sistema sofisti-cado e múltiplo de censura – e obviamente esse forte esquema repressor estendia-se às colônias portuguesas e, portanto, atingia também o Brasil.

Nosso país não tinha tipografia. Livros que aqui eram escritos tinham de ser impressos em Portugal, submetendo-se os textos a uma censura prévia. O primeiro país a imprimir na América foi o México, em 1535, e o Brasil foi um dos últimos.

Durante o domínio holandês, circularam no Recife alguns folhetos impressos na Holanda. Mais tarde, em 1706, foi fechada a primeira tipografia instalada no país. Esta pequena gráfica pertencia a um comerciante de Recife, que apenas pretendia ganhar dinheiro impri-mindo letras de câmbio e orações devotas. Foi sequestrada, con-forme registra a Carta Régia de 8 de julho de 1706, e a Metrópole aproveitou a oportunidade para deixar, mais uma vez, bem clara sua advertência para que não imprimissem nem consentissem que se imprimissem livros ou papéis avulsos dentro da colônia.

Esta ordem, quarenta anos mais tarde, foi desobedecida por um impressor português, Antonio Isidoro de Carvalho, que conseguiu publicar em 1746, no Rio de Janeiro, pequenos trabalhos, como um poema de 23 quadras, um folheto de quatro páginas sobre metafísica, um soneto e um opúsculo, intitulado Relação da Entrada do Bispo Francisco Antonio do Desterro, escrito por Luís Antonio Rosado da Cunha. O resultado dessa aventura foi o fechamento da pequena editora e a deportação do impressor à Metrópole.

Em 1768, em Portugal, foi criada a Real Mesa Censória, que unificava os três poderes que, desde 1536, responsabilizavam-se, no país, pela censura: Santo Ofício, Ordinário e Desembargo do Paço, sendo que os dois primeiros defendiam a Igreja Católica e o terceiro defendia o Poder Civil. A Real Mesa Censória foi incum-bida de fiscalizar em Portugal e nas colônias a estampa, a impressão, as oficinas, vendas e comércios de livros e papéis con-trários à moral, à religião e à ordem estabelecida, encarregando-se ainda de vistoriar bibliotecas, controlar pessoas e instituições que possuíam livros, obrigando-as a fornecer listas dos títulos de sua propriedade. Extinta em 1787, foi substituída pela Comissão Geral para Exame e Censura de Livros.

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Com a vinda da família real portuguesa, foi instalada, no Rio de Janeiro, a oficina da Imprensa Régia, em 1808, que publicou, imediatamente, um folheto de 27 páginas, com despachos do príncipe regente. Nesse mesmo ano, foi formada uma junta de censores, encarregada de examinar os textos que alguém preten-desse publicar. Assim, tão logo abriu-se a possibilidade de se editar no Brasil, instituiu-se a censura prévia.

Com a Revolução do Porto, em 1820, houve certa liberação em relação às colônias e ampliou-se o espaço editorial no Brasil, com o surgimento de pequenas gráficas e a proliferação de vários impressos, alguns de conteúdo político libertário. No fim de 1821, preocupado com o grande número de publicações anônimas, de conteúdo crítico ao governo, este promoveu uma série de violências, reprimindo duramente a atividade editorial clandestina, apesar de que, no dia primeiro de março desse mesmo ano, a Mesa do Desembargo do Paço assegurava a liberdade de imprensa, antecipando-se a uma lei complementar portuguesa, de 12 de junho de 1821, que estabelecia liberdade de imprimir. Tal licença de imprimir estabelecida no Brasil ficava, porém, condicionada a não atacar a Igreja Católica, não ofender a dignidade do Trono nem a família real, nem usar expres-sões que pudessem alterar a segurança individual ou pública.

Revolução gráfica na Europa

Na Europa, o sistema de composição havia se aperfeiçoado, novas letras haviam sido desenhadas e fundidas, criando-se famílias de tipos atraentes, que aumentavam o teor de legibili-dade do texto impresso. As contribuições de Aldus Manutius, Garamond, Bodoni, entre outros, geraram estilos de letras incli-nadas, parecidas com manuscritos – as itálicas; ou letras dese-nhadas com traços finos e grossos, serifadas, elegantes – as romanas; ou ainda letras de traços uniformes, sem serifas – as etruscas, grotescas, menfis. Também as medidas gráficas se haviam modificado, primeiro, a partir de Fournier e depois, através das contribuições de Didot. Todo esse aperfeiçoamento estava orientado para um interesse fundamental que era tornar os livros e periódicos atraentes, para um mercado que se alar-gava. Vários modelos de máquina de composição mecânica foram produzidos e lançados, num esforço para eliminar o trabalho manual, extremamente lento, tanto na composição do texto como na impressão, até se chegar à Linotype, que conferia conside-rável velocidade na composição dos textos em chumbo.

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Os processos de impressão também haviam se aperfeiçoado, até chegar-se, em 1811, à máquina de cilindro. Com essa equi-pagem, a produção por hora se acelerou e, com a ampliação das tiragens, o custo das unidades impressas tornou-se mais baixo, tornando esse material acessível a novas e crescentes parcelas da população letrada.

Esse aprimoramento do sistema tipográfico acompanhava a evolução do conteúdo das obras publicadas, que se diversificava em função do próprio progresso do pensamento humano. O cres-cente mercado livreiro fazia entrever novas necessidades edito-riais e, entre estas, a especialização por sexo e faixa etária, com a produção de textos adequados a esses segmentos.

Publicações para crianças e jovens na Europa

A obra de conteúdo pedagógico ou lúdico, que caracteriza em geral a produção literária voltada para o público jovem, é muito antiga, tendo sua origem nas narrativas orais. Com a invenção dos tipos móveis de chumbo, passou a ser impressa, ganhou novas versões, conheceu traduções, difundindo-se no espaço e no tempo.

Segundo consta, no século XV, Lorenz Coster havia editado, com o recurso da impressão tabulária, uma gramática de Aelius Donatus, que, na condição de manuscrito, havia sido usada na Idade Média, o que explicaria o sinônimo donata para gramáticas, no passado. No século XVI, ilustrações ganhavam qualidade, tornando-se mais nítidas, com o abandono d a gravação em madeira, e a boa qualidade alcançada favorecia o consumo de obras impressas. A produção de livros ilustrados crescia. No século XVII, na França, foram impressas as Fábulas, de La Fontaine, que reto-mavam, com ironia e humor, obras de Esopo e Fedro, difundindo-se por toda a Europa. Em 1719, na Inglaterra, foi publicado Robinson Crusoé, de Daniel Defoe e, em 1726, Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, obras originalmente escritas para adultos, que se tornaram modelos mundiais do gênero aventura, mas chegaram muito tardiamente ao Brasil. A tradução de Robinson Crusoé no Brasil foi publicada somente em 1885, ou seja, 166 anos após seu lançamento na Inglaterra. Viagens de Gulliver foi publicada apenas em 1888, ou seja, 162 após sua primeira edição europeia.

A origem do gênero literário destinado à infância costuma ser demarcada pela publicação, em 1697, de Contos da mamãe gansa, de Charles Perrault, onde o autor recontava histórias orais, de modo a conformar o jovem a determinados papéis sociais, regis-

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trando, na ficção, o cotidiano da sociedade do século XVII, à luz de percepções e valores da burguesia.

Nessa época, o capitalismo europeu encontrava-se em sua fase manufatureira na indústria – as forças produtivas estavam em ascensão e a necessidade de letramento e elevação do nível de ins-trução da população integrava esse processo. Assim, consideráveis parcelas da população, principalmente urbana, começaram a ter acesso à escola, que, por sua vez, promovia o livro – e desde aquela época um novo tipo de censura prévia surgiu: uma censura de edu-cadores e religiosos que decidiam o que se devia e o que não se devia ler, o que acabava decidindo o que deveria ser ou não publicado. Este tornou-se pelo menos um dos fatores básicos que contribuíram para que a literatura para crianças firmasse a imagem de não lite-ratura, produção menor, apesar de toda a sua relevância: seu atre-lamento à escola enquanto instrumento de transmissão de normas e conduta moral, aparelho de reprodução ideológica. Por outro lado, era esse atrelamento que estimulava a circulação do livro e ampliava a demanda de títulos, fortalecendo a indústria editorial.

No século XIX, aceleraram-se a industrialização, o crescimento demográfico e a urbanização – processos estreitamente relacio-nados com a Revolução Industrial, iniciada no último terço do século XVIII – e que se caracteriza pelo surgimento e desenvolvi-mento da indústria maquinizada, pela emergência da fábrica – o que exigia e ao mesmo tempo propiciava a elevação do nível de instrução de largos setores urbanos. A obrigatoriedade do acesso à escola para todas as crianças estendeu a oportunidade do domínio da leitura para um contingente populacional imenso, abrindo pers-pectivas completamente novas para o mercado editorial.

Por volta de 1830, na França, surgiram os primeiros jornais destinados especialmente à juventude – e seu público estava situado nas camadas sociais mais elevadas da população. Nessa mesma época, diante do mercado promissor que se abria, na fábrica de Imagens de Epinal, Pélérin modernizou sua produção, orientando-a para uma clientela mais especificamente infantil, oferecendo-lhe álbuns, de 16 páginas, muitos até coloridos, ao preço de uma única imagem antiga. Com a instituição da escola-ridade gratuita e obrigatória no país, ampliou-se o interesse pela leitura e a partir de 1900 sofisticou-se a produção das publica-ções, que se especializaram por sexo, faixa etária e classe social.

No que se refere a livros, a produção e divulgação para crianças e jovens foi também muito grande. Dos livros traduzidos no Brasil, nenhum teve tanta aceitação e marcou tanto a juventude brasi-leira como Coração (Cuore), de Edmondo de Amicis. Traduzido em

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1891, Cuore teve sua circulação assegurada pelo recém-criado governo republicano que nele enxergou uma obra que corres-pondia ao ideário do projeto pedagógico da República. Com o fim da monarquia, o país entrava num processo de construção de um novo tipo de sociedade que exigia a formação de um novo homem, adequado ao novo sistema.

Esse homem deveria ser instruído dentro dos princípios da moral e do civismo, como forma de fortalecer o caráter nacional, manter a ordem social e construir o progresso do país. Coração apresentava-se como uma obra de formação, com força pedagó-gica e estética para educar e moldar o leitor na ideologia escon-dida sob elementos persuasivos, capazes de convencer que uma consciência nacional irmana e nivela, tornando todos iguais, inde-pendentemente da posição ocupada na hierarquia social. Todos têm nobreza: a de uns, advinda da riqueza de seus bens, suas terras e propriedades; a de outros, que nada possuem, advinda da riqueza de seus sentimentos, de sua lealdade. Não existem con-tradições, nessa nova sociedade idealizada. Todos são pacíficos, vivem harmoniosamente e trabalham unidos para perpetuar as instituições fiadoras dessa harmonia.

Livros e autores brasileiros a partir do século XIX

Em 13 de maio de 1808, dom João assinou um decreto que ampliava o campo de atuação da Imprensa Régia para além da impressão de serviços burocráticos do Reino. Abria a particulares a possibilidade de imprimir trabalhos, desde que o texto fosse apro-vado pela censura prévia e os interessados pagassem a edição. Muitas obras foram editadas e, no campo da ficção, o primeiro livro publicado foi O diabo coxo, de Lesage, em 1810. Orientado para crianças e jovens, o primeiro livro publicado, no Brasil, pela Imprensa Régia em 1818, foi Leitura para meninos, e em 1884, Figueiredo Pimentel publicou, pela editora Quaresma, Contos da carochinha, que seguia a fórmula bem sucedida dos contos de fadas europeus.

No final dos anos 90 do século XIX e início do século XX, o pro-cesso de urbanização trazia novo alento ao mercado editorial brasi-leiro. A República tinha novas propostas para o país e um projeto pedagógico que objetivava a formação de uma identidade nacional. Por isso, abria escolas e estimulava a produção de textos para crianças e jovens. Nesse contexto, inscreve-se o livro de Afonso Celso, Porque me ufano de meu país, publicado em 1900. Outro livro que marcou profundamente nossa literatura para crianças e jovens foi Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bomfim, de 1910.

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Nessa época, os livros em geral eram escritos por professores e outras autoridades escolares. Foram, então, organizadas famosas coleções, que atingiam as escolas por todo o país. A preocupação constante era com o ensino moral, religioso e cívico na fase prepa-ratória – e nessa etapa “deviam ser afastadas das crianças leituras fantasiosas, aventureiras e mágicas pelos perigos que podiam apresentar a criaturas imaturas, incapazes de discernirem o real do fantástico”. Dentro de um quadro como esse, é fácil imaginar o tipo de repercussão que iria causar na sociedade a emergência de um autor irreverente, irônico e livre como Monteiro Lobato. E também os efeitos da Semana de Arte Moderna, com todo o quadro de referência política em que estava inserida.

Medo das ideias e da urbanização: O poder do filtro da censura

Pouco antes do inicio da década de vinte, Monteiro Lobato lançou Urupês, por intermédio de sua própria editora. Em seguida, publicou Narizinho Arrebitado, O Saci, Fábulas, O Marquês de Rabicó.

Assim, uma nova etapa começava na área editorial brasileira. Mas era muito mais que isso, na medida em que Lobato quebrava o ritmo da produção nacional ufanista e religiosa, propunha novos caminhos para a cultura nacional. A capacidade de produção desse autor era extraordinária. No período entre 1918 e 1930, ele publicou 23 livros, sem contar artigos, crônicas, críticas, cartas, traduções.

Era um período muito conturbado. A Semana de Arte Moderna, em 1922, com suas novas propostas, havia inquietado a intelec-tualidade conservadora. A fundação do Partido Comunista gerava intensa ofensiva de educadores contra o perigo do avanço das ideias socialistas, principalmente porque eram ainda bem recentes os ecos da vitória da Revolução Russa.

A urbanização brasileira mais do que nunca passou a ser vista como uma ameaça à estabilidade política do país e a esse respeito Oliveira Viana procurava alertar, classificando a urbanização como “flagelo da civilização, uma das maiores causas do desequi-líbrio econômico das populações, factor da miséria que leva ao crime e aos delitos sociais, às revoluções, à anarquia...”

A população escolar do estado de São Paulo em 1934 era de 1.137.091 alunos. O educador Renato Sêneca Fleury analisava estes números com muita apreensão, ressaltando a necessidade de se filtrarem as ideologias que poderiam entrar nas escolas. Considerava a censura prévia, a que chamava de “filtro”, uma fer-

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ramenta valiosa para preservar o conservadorismo que marcava a sociedade brasileira.

Fazendo apologia da vida rural nos livros de leitura, que relan-çavam, continuamente, belos textos pastoris do final da década de 1890 e primeiro decênio do século XX, o que se pretendia era menos valorizar o campo por suas condições concretas, objetivas de vida e muito mais para se evitar a tomada de consciência da miséria, que ficava explícita, completamente visível, nas ruas dos grandes aglo-merados urbanos. “Criar cidades... é contrastar o rico e o pobre, o andrajo e a seda, a fome e as joias, o porão imundo e o palácio luminoso”... confessava francamente Oliveira Lima num artigo publicado em 1933. É o próprio autor deste “inspirado” discurso que reconhece abertamente a importância de manter a população afastada das grandes cidades “ninhos onde proliferam as ideias revolucionárias extremistas, que hão sacudido nosso próprio país, tão contrário, por índole às ideologias rubras”.

Os livros de Lobato caracterizavam-se pela contestação, pela irreverência, pela criatividade. E todo seu talento criador explodia livremente, porque, no plano editorial, não sofria limitações, já que era seu próprio editor – e isto equivalia a não precisar submeter seu texto ao crivo de nenhum juiz, de nenhum censor, nem ter de se ajustar a qualquer norma editorial para ser editado. Ele dava a si próprio os parâmetros que lhe parecessem convenientes.

Lobato, naturalmente, não era bem visto pelo trono, nem pelo congresso, nem pela academia, nem pela ditadura de Getúlio que o perseguiu, prendeu várias vezes até afastá-lo do país. As instituições conservadoras não o suportavam. Mas nada disso o detinha. Quando sua primeira editora faliu, fundou outra em 1925, a Cia Editora Nacional, sem parar de produzir. Mais tarde, associou-se à editora Brasiliense, sempre construindo trincheiras para continuar lutando.

Como Lobato, outros grandes escritores surgiram a partir da Semana de Arte Moderna e do Modernismo. Muitos também se dedicaram – uns mais, outros menos – à literatura infantil, como Oswald de Andrade, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Vini-cius de Moraes. Nunca, também, se calaram quando foi preciso lutar contra a censura, em favor do direito à liberdade de expressão.

Mais censura e opressão: 1964

A censura promovida pela ditadura militar, a partir de 1964, também abateu-se pesada contra escritores e o primeiro livro cen-

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153153Literatura, imprensa e censura

surado foi Assim marcha a família, de José Louzeiro, publicado pela Civilização Brasileira. A lista continuou crescendo ao longo do período repressivo e atingiu, entre muitos, Antonio Calado, Ignácio de Loyola Brandão, Dias Gomes, Renato Tapajós, Rubem Fonseca, Chico Buarque, Aguinaldo Silva, Luís Maranhão, Alex Polari, Guilherme Figueiredo. Entre muitos outros autores de obras não ficcionais vitimizados pela censura da ditadura, estavam José Álvaro Moisés, Hélio de Almeida, Lídia Rosenberg Aratangy. Sob um clima de “liberdade vigiada”, vigente na época em algumas áreas, Alcides Ribeiro Soares publicou uma série de artigos no Correio Sindical de Unidade, a partir de 1978, contra a ditadura militar e sua política econômica e social, o que acabou lhe cus-tando a proibição de trabalhar na Unesp, onde fora aprovado em concurso público, nesse mesmo ano. Mas, quem se calava?

No teatro, diante de prisões e perseguições contínuas, foram buscadas novas alternativas para denunciar o arbítrio e vencer a censura. Um dos recursos usados foi desmistificar fatos históricos do passado, a fim de criticar o momento político que o país atra-vessava, por intermédio de peças como Arena Contra Tiradentes, Para crianças, o teatro apresentava peças como Serafim-fim-fim, de Carlos Meceni, belo musical garantindo que o fim é a liberdade, ou peças como Os saltimbancos, de Chico Buarque.

Em pleno vigor da repressão, a ditadura militar foi alegorizada na literatura brasileira por J.J. Veiga, em seu romance A hora dos ruminantes e por Érico Veríssimo em Incidente em Antares, e desa-fiada por José Louzeiro na obra Em carne viva, que, mesclando ficção e realidade, denunciava a tortura de Stuart Angel e o drama de sua mãe, a estilista Zuzu Angel.

Na literatura infantil, um recurso usado para criticar o autori-tarismo e a opressão, driblando a censura, foi recorrer à carnava-lização, como fez Ruth Rocha, ao escrever O reizinho mandão. Em plena ditadura militar, essa obra foi publicada e se tornou refe-rência nacional, não só pela sua qualidade estética, mas pela qua-lidade de seu testemunho sobre a capacidade de resistência que artistas, escritores, editores e outros intelectuais brasileiros demonstravam, usando seu talento, criatividade e coragem para denunciar a censura em suas variadas formas e exercitar o direito à liberdade de expressão, para alargar cada vez mais o espaço democrático no país.

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Histórias em quadrinhos despidas

Tiago Eloy Zaidan

Há quem diga que por trás de cada palavra desferida por Pato Donald e sua turma, nas famosas histórias em qua-drinhos Disney, exista uma minuciosa estratégia de dou-

trinação. Por meio dos balõezinhos, de modo sutil, o estilo de vida norte-americano e os pensamentos conservadores de Walt Disney (1901-1966) seriam incutidos nas mentes juvenis de todo o planeta.

Não são poucos os que afiançam haver algo do gênero. Dentre os escritores e pensadores de tal teoria estão os célebres intelec-tuais Ariel Dorfman (1942-) e Armand Mattelart (1936-). Juntos, escreveram o livro Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo, publicado no Brasil pela editora Paz e Terra, com tra-dução de Álvaro Moya (1930-), escritor e ilustrador considerado um dos maiores peritos em histórias em quadrinhos no Brasil. Trata-se de uma obra de referência para os interessados no assunto.

Relações familiares – Tio Donald, Tio Patinhas, Vovô Donalda, os Sobrinhos, o primo Gastão, o primo Peninha... De fato, não é preciso ser filósofo para perceber que algo de anômalo persiste desenhado nos quadrinhos de Walt Disney. Nas relações de parentesco, não existem pais ou mães. Sequer marido e esposa. No máximo, os casais de Patópolis chegam ao estágio do noivado.

Dorfman e Mattelart sugerem que tal ocorrência é proposital. Seria uma forma de cortar as raízes dos personagens, eliminando os atos biológicos. Sem isso, as criaturas de Disney passariam a aspirar à imortalidade. Além disso, sem o título de pais biológicos, ou mesmo adotivos, os tios não possuem autoridade sólida. Como consequência, podem ser, inclusive, substituídos pelas crianças nas regências das situações. Para completar, sempre está na posse dos sobrinhos de Donald o extraordinário “Manual dos Escoteiros Mirins”, que sempre – sempre mesmo – traz resposta para tudo.

Questão de gênero – Os homens adultos de Patópolis estão sempre cometendo erros infantis. Que o diga o estabanado Pato Donald e o

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parvo Peninha, primo e coadjuvante de todas as horas. Em meio a tanta infantilidade, não raro as crianças invertem os papéis com os adultos, requerendo a ordem anterior. Para Dorfman e Mattelart, quando tais episódios ocorrem, visam remeter à exigência da estabilidade dominador – dominado.

Um único grupo não corre o risco de ser alertado pelas crianças. Age de forma mais estável e madura. São as mulheres de Pató-polis. Entenda-se por mulheres: patas, ratas e todas as demais fêmeas da natureza. Tal aparente superioridade, todavia, cai por terra se feita uma análise à Para ler o pato Donald. Ao grupo femi-nino resta apenas o poder da sedução. As personagens aceitam o papel doméstico, não se arriscando em terrenos externos. As pro-tagonistas que resolvem ir um pouco além são justamente vilãs Maga Patalógica e Madame Mim.

Terceiro mundo – A relação entre os civilizados cosmopolitas de Patópolis com os “selvagens idiotas” de outras nações – quase sempre remotas – é um dos pontos mais incisivos abordados por Dorfman e Mattelart. É, de fato, facílimo encontrar histórias em quadrinhos nas quais o multimilionário Tio Patinhas e seus sobrinhos espoliados se embrenham mundo afora, em busca de tesouros. São nestas viagens que se observam as características atribuídas pelos estúdios de Walt Disney aos nativos. Quase sempre os habitantes das terras visitadas são completamente dementes. Comportam-se verdadeiramente como crianças, ao contrário dos infantes de Patópolis.

As crianças de Patópolis não se comportam como tais. São tão capacitadas que, não raro, substituem os adultos em algumas ati-vidades. Enquanto isso, os nativos das exóticas ilhas, territórios ou países são perfeitos bons selvagens, aceitando passivamente, e até euforicamente, trocas aviltantes e suas condições de subju-gados. Nos quadrinhos os escambos realizados remetem a passa-gens históricas. Os visitantes cosmopolitas entregam bugigangas manufaturadas ao passo em que recebem matérias-primas de valor, como ouro, por exemplo. Tais negociações, quase sempre, levam os nativos ao delírio de felicidade, pois, na ficção de Disney, eles não usam seus tesouros. O ouro é inutilizável até para reverter à situação medíocre em que vivem.

Dorfman e Mattelart lembram que, obviamente, o roteiro da história não contempla uma explicação – ainda que básica – sobre o porquê da situação precária em que os autóctones se encon-

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tram. Há, ainda, o elemento do gigantismo físico dos nativos. Tal característica física serviria para sugerir a aptidão dos “bons sel-vagens” para trabalhos físicos.

Produção e consumo – Na análise e crítica dos elementos de produção e consumo de manufaturados nas histórias Disney, Dorfman e Mattelart são implacáveis. Observam que não há produtores vivos – humanos ou patos – de produtos manufaturados nas histórias. Porém, mesmo sem ninguém produzir, sempre há algum pato ou animalzinho comprando e vendendo algo em Patópolis. Como é possível?

Partindo do ponto de vista marxista, os autores de Para ler o pato Donald, “metralharam” os estúdios Disney, acusando-o de esconder os trabalhadores, colocando os produtos em cena sem levar em con-sideração o “suor derramado” pelo produtor. Com isso, é suprimida a luta de classes apontada por Karl Marx (1818-1883). “Os produtos são amorfos, sem suor e esforço, e sem a miséria da classe oprimida”, dizem os autores. Mas existem exceções nas histórias de Disney. Nas estórias ambientadas em espaços internos de fábricas, há apenas um funcionário, que atua sempre como vigia da produção, apenas zelando pelas máquinas que produzem tudo automaticamente.

Se a produção em Patópolis é sinistra, o mesmo não se pode dizer do consumo. Compra-se muito nos quadrinhos dos estúdios de Walt Disney. O ritmo de consumo é frenético e o destino da compra é alta-mente perecível. Tão alucinante quanto a voracidade dos compradores são os surgimentos de novos inventos e avanços científicos. Graças a eles, novos objetos são lançados no mercado fictício de Patópolis, tor-nando obsoleto o produto atual. As constantes inovações acabam con-tribuindo com a curta validade dos produtos presentes nas vidas dos animaizinhos humanizados do criador de Mickey Mouse.

Busca pelo dinheiro – A obsessiva busca de dinheiro, em forma de prestígio ou simplesmente de poder de compra e no desejo de adquirir algum bem, é o tema central da esmagadora maioria das histórias em quadrinhos de Disney, constataram Dorfman e Mattelart.

Em boa parte das situações, o dinheiro é representado pelo ouro, que surge de modo campestre, como se brotasse do chão. Para se ter acesso ao minério, deve-se contar com mapas e heranças. Cabe ao intrépido e dono das ideias – quase sempre o velho Tio Patinhas – abocanhar mais esse lote de tesouro. A ideia

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o torna o legítimo dono da riqueza. Os vilões, apesar de partirem rumo ao ouro da mesma forma que o mocinho, são retratados como perseguidores ilegítimos, por não possuírem um mapa.

O curioso é que mesmo com tanto tesouro dando “sopa”, nenhum mapa sequer pouse nas mãos dos Irmãos Metralhas. Tais pergaminhos que indicam onde encontrar a riqueza sempre cai nas benditas mãos de Tio Patinhas, observam Dorfman e Mattelart.

Distribuição da riqueza – As leis da propriedade privada em Walt Disney são bastante severas. Ao infringi-la a personagem passa a ser imediatamente classificado como vilão. Ariel Dorfman e Armand Mattelart ressaltam que é o nível de respeito à propriedade privada alheia que serve de parâmetro para medir a honradez da personagem. A partilha da riqueza é uma espécie de tabu em Patópolis, nunca sendo citada.

O surpreendente é que mesmo os vilões que possuem poderes mágicos – ou sinistros – como a Maga Patalógica, não os utilizam para produzir ouro, mas apenas para roubá-lo. Mesmo com suas poções e receitas a granel, nenhum dinheiro é fabricado. Para ou autores de Para ler o pato Donald, a mensagem é clara: “a riqueza não pode ser falsificada, deve vir de origem natural, em que não se intervém, apenas merece”. Os bem-sucedidos mocinhos da Disney possuem seus patrimônios de forma quase que imaculada.

Hierarquia social – Embora sejam bem dotados fisicamente, não é difícil deduzir que os vilões de Patópolis possuam alguma debilidade mental. Estão sempre se comportando infantilmente, ao passo que os pequenos personagens “honrados” dominam a intelectualidade.

Outro elemento que impressiona em Patópolis seria o sonho de qualquer prefeito do mundo. Há na terra dos patos de Disney uma notória abundância de empregos. Paradoxalmente, os irmãos Metralhas e até alguns honrados personagens, como Donald, estão frequentemente, ou quase sempre, desempregados. Todavia, reconhecem que são desajeitados e descuidados. Donald é um perfeito incapaz.

A culpa pela situação dos sem empregos é atribuída a eles pró-prios. O pobre Donald, em sua situação de passivo participante da ordem da sociedade de Patópolis, nos quadrinhos dos estúdios Disney, chega ao ponto de não se rebelar contra as arbitrarie-

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dades de seus patrões, os quais, não raro, pagam o que querem (e o patrão quase sempre é o seu tio Patinhas). Para o pobre pato com roupa de marinheiro, a inutilidade e o papel “parasitário” inerentes o desfalcam da legitimidade necessária para reclamar o que lhe é de direito. Aliás, ao que parece, não há direitos traba-lhistas em Patópolis. Aqui, os escritores Dorfman e Mattelart defendem a tese de que tal injusta relação representa a forma que deveria ser copiada pelos trabalhadores na vida real. Mas, no mundo dos quadrinhos de Walt Disney, a polêmica relação entre submissos e dominadores não para aí.

Os motivos para dividir os personagens entre duas categorias são quase sempre naturais. Ser mais belo, rico, ou mesmo mais velho garante legitimidade para coagir, agir paternalisticamente de vez em quando e, por fim, manter-se por cima na hierarquia de Patópolis.

Capacidade – Com base em tais análises é evidente a injustiça social presente entre as personagens do mundo aparentemente mágico de Disney. Entretanto, as discrepâncias da harmônica sociedade de Patópolis são cuidadosamente mascaradas. Ao menos na visão de Dorfman e Mattelart. É como se toda a infelicidade material dos personagens desfavorecidos fosse fruto da incapacidade ou falta de estrela própria. Não por acaso, o destrambelhado Donald está sempre se queixando da própria sorte, porém nunca da ordem vigente nos cenários dos quadrinhos Disney.

O lema capitalista de “igualdade de oportunidades” é perfeita-mente desenhado na biografia fictícia de Tio Patinhas. O velho pato era pobre e tornou-se rico. Além do mais, raramente, ou nunca, Patinhas recorre ao tesouro acumulado para obter mais dinheiro, tornando a disputa aparentemente justa.

O mundo ocidental, seguramente, não seria o mesmo sem as caricaturas de Disney. O par de orelhas do camundongo Mickey talvez seja o mais perfeito símbolo da presença norte-americana nos países onde a maior potência do mundo vende os seus bens simbólicos. Diante de tanta penetração – ladeada por um espeta-cular trabalho publicitário que confunde o mercantilismo do mer-chandising de Disney com a magia de um mundo perfeito –, jus-tifica-se a sensação causada por obras como Para ler o Pato Donald nos corredores dos cursos de comunicação social.

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IX. Batalha das Ideias

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Autores

Gastão Rúbio de Sá WeyneProfessor Associado do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP (aposentado), tenente-coronel reformado do Exército; advogado e doutor em Direito, na área de Filosofia do Direito (USP).

Mércio Pereira GomesAntropólogo, professor de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro .

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Manifesto Comunista versus Manifesto Capitalista

Gastão Rúbio de Sá Weyne

O comunismo e o capitalismo são dois sistemas políticos sabidamente antípodas, que defendem princípios filosó-ficos de conciliação extremamente difícil ou, com uma

visão pessimista, até impossível.

Segundo o Dicionário Oxford de Filosofia, fonte de grande credi-bilidade, o comunismo é um sistema socioeconômico baseado na posse e produção de bens da comunidade e no autogoverno cole-tivo. A palavra de ordem “de cada um de acordo com suas capaci-dades, a cada um de acordo com suas necessidades” descreve sin-teticamente a extinção dos mecanismos de troca do mercado.

No Manifesto do Partido Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram, em 1848, que o comunismo é a abolição posi-tiva da propriedade privada, da alienação humana e, portanto, a verdadeira apropriação da natureza humana através do homem e para ele. Nessa visão, o comunismo é, portanto, o retorno do pró-prio homem como um ser social, isto é, realmente humano; um retorno completo e consciente que assimila toda a riqueza do desenvolvimento da humanidade.

Por outro lado, conforme o mesmo Dicionário Oxford de Filo-sofia, o capitalismo consiste no modo de organização socioeconô-mica em que uma classe de empresários e empresas disponibilizam o capital com o qual essas organizações produzem bens e serviços e empregam trabalhadores. Em troca, o capitalista tira lucros dos bens produzidos. O capitalismo frequentemente é visto como a encarnação da economia de mercado, podendo assim resultar na

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distribuição otimizada de recursos escassos, com um consequente benefício para todos. Esse otimismo é contestado indicando-se as possibilidades de exploração inerentes ao sistema.

Ressalte-se que, em oposição ao Manifesto do Partido Comu-nista, algumas publicações foram escritas. Entre elas destaca-se, inicialmente, a obra pioneira de Kelso e Adler (1961), primitiva-mente publicada em 1958 com o título The Capitalist Manifesto. O Manifesto Capitalista, primeiro escrito para se opor frontalmente ao manifesto de Marx e Engels, foi “dirigido ao povo norte-ameri-cano e a todos os povos do mundo para encontrar na ordem esta-belecida as razões de sua renovação e as vantagens da melhor sociedade que pode ser desenvolvida”.

Um Novo Manifesto Capitalista (HAQUE, 2012), que parte da obra de Adam Smith, A riqueza das nações, é analisado e discu-tido neste trabalho. Para Haque, “Smith sintetizou detalhada-mente e com impiedosa lógica, sua nova visão de prosperidade. Embora muitos livros similares tenham se seguido, a obra-prima de Smith continua sendo o manifesto capitalista original, o docu-mento fundador da prosperidade da era industrial”.

Nesse panorama de divergências, o presente trabalho se propõe a analisar os pontos defendidos por cada um dos lados, expressos no Manifesto do Partido Comunista e no Manifesto Capitalista.

Alicerces do Manifesto Comunista

Este histórico documento foi escrito por Marx e Engels entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, tendo sido publicado, pela primeira vez em Londres, em fevereiro de 1848. O documento abalou o mundo e lançou um chamamento aos trabalhadores, conscientizando-os do quadro de desigualdades e injustiças sociais da época.

Esse Manifesto reiterava que o comunismo já era reconhecido como força por todas as potências da Europa e que já era tempo de os comunistas exporem, à face do mundo inteiro, seu modo de ver, seus fins e suas tendências, opondo um Manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo.

As vigas mestras desse Manifesto concentram-se, basica-mente, na luta de classes, no crescimento da indústria, nos mer-cados, na propriedade, na exploração do homem pelo homem, na acumulação da riqueza, no trabalho assalariado. Nele são suge-

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ridas diferentes medidas para transformar radicalmente todo o modo de produção. São elas: 1 – Expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado; 2 – Imposto fortemente progressivo; 3 – Abolição do direito de herança; 4 – Confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos; 5 – Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o mono-pólio exclusivo; 6 – Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte; 7 – Multiplicação das fábricas e dos ins-trumentos de produção pertencentes ao Estado, arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas, segundo um plano geral; 8 – Trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura; 9 – Combinação do trabalho agrícola e industrial, medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção entre a cidade e o campo; 10 – Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas.

Os diferentes tipos de socialismo receberam apoio no Mani-festo do Partido Comunista como os sistemas socialistas e comu-nistas da Europa, os de Saint-Simon, Fourier e Owen.

Em resumo, graças a este documento, os comunistas apoiaram em toda parte qualquer movimento revolucionário contra o estado de coisas social e político existente. Em todos esses movimentos, eles punham, em primeiro lugar, como foco principal, a questão da propriedade, qualquer que seja a forma de que esta se revista. Finalmente, os comunistas deviam trabalhar pela união e enten-dimento dos partidos democráticos de todos os países.

Bases do Manifesto Capitalista

Em oposição ao Manifesto Comunista, foram apresentados dife-rentes Manifestos Capitalistas, visando mostrar as vantagens do sis-tema antípoda ao defendido por Marx e Engels. Os alicerces desses Manifestos são definidos e aceitos pela comunidade empresarial.

O mais importante deles apoia-se em uma publicação recente, constante da obra de Umair Haque, Novo Manifesto Capitalista: como construir a empresa do século XXI (New Capitalist Manifesto: building a disruptively better business), publicado em 2011, pela Harvard Business Review Press, que se alicerça na obra de A riqueza das nações, publicada em 1776.

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Na obra de Haque, é ressaltada a relevância da otimização das organizações empresariais, com vistas ao grande objetivo de se chegar ao “capitalismo construtivo”. De uma forma sucinta, o objetivo do capitalista do século XXI, basicamente, é “repensar o capital”, ou seja, construir organizações que sejam menos máquinas e mais redes vivas dos muitos diferentes tipos de capital, seja ele o capital natural, humano, social ou criativo.

Os “capitalistas construtivos” da era industrial, segundo Haque, buscam alcançar eficiência operacional, agilidade estratégica, efi-cácia operacional e produtividade da mão de obra e do capital. Os capitalistas do século XXI maximizam socioeficiência, socioprodu-tividade, agilidade gerencial, capacidade evolutiva e socioeficácia.

Para atingir tais objetivos, segundo Haque, deve ser seguida uma trilha fundamentada em cinco passos, visando dominar cinco novas fontes de vantagem construtiva e a nova pedra angular sobre a qual cada uma delas repousa, o “capitalismo construtivo” e, então, finalmente, aprender a tirar delas seu efeito máximo.

Conforme defende Haque, o primeiro passo para se tornar um capitalista construtivo é aprender a alcançar uma vantagem de perdas, com base em três metas suspeitosamente benevolentes: usar 100% de energia renovável, alcançar desperdício zero e vender apenas produtos que beneficiem o meio ambiente.

O segundo passo por ele defendido é que, para se tornar um capitalista construtivo é dominar a responsividade, ou seja, implantar a rapidez das respostas nas decisões, a fim de aumentar a velocidade, a precisão e a agilidade de um ciclo de valor. A empresa deve tomar mais decisões – e decisões melhores – de forma mais rápida do que as demais.

Em continuação, o terceiro passo é dominar a resiliência, a resistência às mudanças, obtendo uma vantagem evolutiva. A resiliência acontece com o estabelecimento de uma filosofia que enfatiza os princípios primordiais e fundamentais da criação de valor, e não com o planejamento de uma estratégia focalizada na extração de valor.

O quarto passo é dotar a empresa de criatividade, passando da proteção de um mercado à sua complementação. Inovar, nesse caso, é não aceitar os limites do possível, é criar novidades lucra-tivas. Trata-se de um esforço para empurrar a equidade para além de limites já aceitos, aperfeiçoando mercados imperfeitos, em vez de meramente protegê-los, criando novos mercados.

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165165Manifesto Comunista versus Manifesto Capitalista

O último passo, o quinto da lista de Haque, é passar do lema desambicioso de “produzir bens” para “obter bens e serviços melhores”. Tal procedimento irá resultar em um impacto positivo, tangível, significativo e duradouro.

Conforme o Manifesto Capitalista, de Haque, o ponto culmi-nante do capitalismo é o crescimento e, uma vez tendo escalado até o ápice da inovação institucional, o passo final para se tornar um capitalista do século XXI é talhar um novo ponto culminante. As novas empresas não serão apenas mais rápidas, mais sólidas e com custos mais baixos. Devem ser, principalmente, mais inteligentes.

Conjecturas e reflexões

Um estudo comparativo entre os Manifesto Comunista e o Manifesto Capitalista é dificultado, inicialmente, por aspectos cro-nológicos: o primeiro data dos idos de 1848; o segundo foi publi-cado em 2001.

No Manifesto do Partido Comunista, são reconhecidas as limi-tações que poderiam acontecer com o passar dos anos, conside-rando o envelhecimento do conteúdo do documento. Na opinião dos críticos da obra de Marx e Engels, embora as circunstâncias tenham mudado muito nos últimos anos, os princípios gerais nela expostos conservam ainda hoje, no seu conjunto, toda a sua exa-tidão. Alguns pontos deveriam ser, no entanto, retocados.

O próprio Manifesto Comunista reconhece que a aplicação dos seus princípios dependerá sempre e em toda a parte das circuns-tâncias históricas existentes. Dados os imensos progressos da grande indústria nos últimos anos e os progressos paralelos levados a cabo pela classe operária na sua organização em par-tido, dadas as experiências práticas, os defensores das ideias do Manifesto admitem que esse documento “envelheceu em alguns dos seus pontos”.

Na apresentação do Novo Manifesto Capitalista, Haque diz que seu livro tem como meta ajudar o leitor “a se tornar um líder do capi-talismo do século XXI, um mestre pedreiro de novas pedras angu-lares que, quando lançadas no solo econômico dos dias de hoje, ser-virão como fundamentos fortes, compactos e duradouros. .

Fica claro que o Manifesto de Haque reconhece que o capita-lismo precisa ser revisto, devendo ser substituído por uma forma melhor, que lhe permita ser “inteligente, bonito, justo e virtuoso”.

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166166 Gastão Rúbio de Sá Weyne

Houve, portanto, o reconhecimento, como ocorreu na obra de Marx e Engels, de que há necessidade de um aperfeiçoamento contínuo dos conteúdos dos dois manifestos.

Observe-se, por outro lado que, no Manifesto do Partido Comu-nista, há uma preocupação basilar com a redução das desigual-dades sociais, enquanto o Manifesto Capitalista se concentra na otimização dos processos produtivos e, principalmente, dos lucros. Os valores, portanto, entre o comunismo e o capitalismo, são fron-talmente opostos, respectivamente, o igualitarismo e o homem, a riqueza material e o dinheiro.

Enfim, restam muitas dúvidas para os comunistas: se o capi-talismo é uma fase transitória do processo político; se as formas dos sistemas igualitaristas podem existir paralelamente com o capitalismo; qual a natureza das sociedades pós-capitalistas e quais os caminhos que essas sociedades escolherão para realizar o socialismo ou o comunismo?

O futuro é incerto, mas os comunistas continuam a busca pela redução das desigualdades sociais. Eles perderam muitas bata-lhas, sobretudo onde “o comunismo não deu certo”, mas a culpa não cabe à filosofia marxista, e sim ao homem, um ser intrinseca-mente mau. Maquiavel tinha razão.

Referências

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

BOTTOMORE, Tom (Edit.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

HAQUE, Umair. Novo Manifesto Capitalista: como construir a empresa do século XXI. Trad. de Christiane do Brito. Porto Alegre: Bookman, 2012.

KELSO, Luis O.; ADLER, Mortimer J. Manifiesto Capitalista. Buenos Aires: Kraft, 1961.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Bauru-SP: Edipro, 1998.

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Mal-estar no Brasil

Mércio Pereira Gomes

Por que tudo no Brasil ficou tão anuviado ou mofado tão de repente – e há tão pouco tempo de uma euforia social e cultural em que vivíamos? Por que já não suportamos mais

com alguma leveza as vicissitudes do nosso cotidiano?

Comecemos pelo nosso futebol que, desde a fatídica derrota contra a Alemanha, na Copa do Mundo, e em território brasileiro, mostra-se em tudo o contrário do que festejávamos: inseguro de si, burocrático, agressivo, ríspido, histérico, defensivo, perdido, individualista, descaracterizado de improviso, de tabelinhas e dri-bles, e estruturado em táticas sem o senso estratégico de gols e vitória. Para nós (boa parte dos) brasileiros, o futebol tem sido uma espécie de refúgio consolador do nosso amor próprio.

Nele nos espelhávamos como num espelho distorcido, nos tor-nando mais gordos ou mais longilíneos, conforme o ângulo de visão, porém sempre nós mesmos reconhecidos. Por esse espelho do futebol não havia nada mais que orgulhasse tanto o brasileiro pelo que ele pensa ser de bom, de belo e de nobre. Agora nos resta pouco que nos dê orgulho, já que até a bossa nova ou o forró ou o samba ou mesmo nossa decantada alegria de viver também se esgarçaram na nossa autoestima imaginada.

O mal-estar em que vivemos é provocado por uma aguda e descon-fortável consciência dos nossos muitos males. Da violência cotidiana à ineficiência dos nossos serviços, sejam do Estado sejam das empresas; da corrupção política à malandragem individual; das perdas de tempo no trânsito urbano às escaramuças entre motoristas e transeuntes, entre servidor e cliente; da desconfiança do outro à certeza da impunidade; das injustiças gritantes à desmesurada desi-gualdade social; do descaso ecológico ao desprezo religioso.

Ademais, estamos sob o peso de uma economia cambaleante, depois de alguns poucos anos de ilusório florescimento em que, por um momento, pensávamos que o caminho do crescimento seguro e sustentável estava à vista. Porém, a economia ruim é só mais um aspecto dessa derrocada rápida de nosso bem-estar psicocultural. A vergonha da corrupção, por exemplo, antecede a pegada econô-

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mica negativa. Pensar que de 7 a 10 bilhões de dólares foram des-viados só da Petrobras para satisfazer dois ou três grupos partidá-rios, sabendo nós que outros grupos participaram de outros desvios nesta e em outras estatais, e, certamente, em tantos governos estaduais e municipais Brasil afora – nos deixa atônitos, horrorizados e indignados, mas sem ânimo e sem meios para fazer nada. Protestos ao vento.

Ao menos um grupo de justiceiros no Paraná, à frente o juiz Sergio Moro, está ativo e vigilante, prendendo mais que bagres – tubarões –, algo inédito na nossa história, enquanto lhe for permi-tido. O pressentimento é de desassossego: quando e quem irá dar um chega para lá nesses nossos agentes federais do bem, para deixar tudo voltar ao mesmo? Ou serão eles vencedores e mudarão o curso da nossa velha história?

Lembremos das jornadas de junho de 2013, que trouxeram algumas esperanças calorosas ao íntimo das pessoas que delas participaram pacificamente. Aqueles dias foram arruinados por alguns grupelhos radicais cheios de petulância e agressividade que agiam como se soubessem do que estavam fazendo, como se estivessem retomando uma onda de rebelião sob o signo de uma bandeira libertária que só eles mesmos presumiam ver.

Como se deu isso sem que os participantes silenciosos tivessem sido capazes de mostrar que essas falanges políticas eram minoria ínfima e que sua mensagem não correspondia ao que a maioria desejava? De onde surgiu essa passividade inquietante, logo nas cidades mais ousadas e abusadas do país? Que consciência social é essa que se deixou ludibriar por tão pouco?

Hoje, estamos imersos em uma potencial histeria coletiva. Qualquer um tem razão sobre o que diz, todos têm razão, nin-guém, portanto, tem razão. Não há líderes, não há partidos, não há condestáveis da República, não há ideologias a seguir, não há nem ideias novas a serem discutidas.

A Dilma cai? Precisa cair? E se não cair, o que será que nos arrastará pelos próximos três anos e meio? Seremos serenos e pacientes nesses próximos anos? E se cair, quem irá substi-tuí-la? Com que ideias, com que recursos financeiros, humanos, intelectuais e morais? Que reviravolta poderemos ter, ou em que placidez permaneceremos?

Que elite brasileira é essa que não tem nada a dizer sobre o que estamos vivendo? A burguesia, como já disse Cazuza, “fede”

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– e hoje vê exposta sua catadura de cooptadora e corruptora junto a agentes políticos de colorações variadas – porque nem ao menos se dá ao desplante de ser fiel a si mesma e praticar o capitalismo em nossa sociedade, ainda que sub-repticiamente. É que a bur-guesia brasileira não sabe ser capitalista sem a vetusta vestimenta do patrimonialismo. Dela, portanto, só esperamos egoísmo, safa-deza e venalidade.

Da nossa classe média tradicional, dos nossos intelectuais, dos agentes políticos que dominam a nação, de nós mesmos, só se pode esperar por reclamações, análises velhas e cada vez mais inverossímeis, justificativas bolorentas de nossas mazelas, debates bizantinos sobre crises cíclicas e a rancorosa cantilena do imperialismo a nos sufocar. Discute-se por restos de ideologias, briga-se figadalmente pelas migalhas do pensamento que nos sobra de fora. E ignora-se solenemente, rechaça-se, a bem da ver-dade, o que aqui se produz de criativo.

Vozes de criatividade e esperança na cultura brasileira, no povo e no destino da nação ficaram para trás. Será que, ressuscitados, diante do quadro social que vivemos, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira ainda alimentariam a ideia de criarmos uma educação de qualidade para todos os brasileiros? Alguém há de pensar seriamente que podemos recuperar um mínimo de ética e moral no relacionamento pessoal de cada um de nós para com aquilo que é de todos, o que é público?

O povo-povão segura as pontas, sofre quase resignado, vê o que está à disposição na mídia mais visível e enxerga um pouco mais do fundo de seu terceiro olho histórico. O povo reage e espera, há de vir um salvador, mas poderia ser tão somente um grito comandando-nos a seguir por aqui ou por ali. Um grito que tivesse algum significado, alguma ressonância de verdade.

Nessa hora de tragédia iminente, mesmo que à moda brasileira, afofada, sem grandes perdas e danos, nem físicos nem morais; nessa hora da verdade histórica, pode-se também apelar a Deus, aos santos, aos orixás, a Tupã – a todos que puderem nos animar a seguir a vida. No entanto, por mais que a fé seja muita, é na alma de um povo, pelo espírito de uma nação, que se pode calcar algum pensamento criativo que tenha alguma viabilidade de ação cultural e social.

Que esse apelo, essa busca no fundo da alma do brasileiro, histórico e atual, venha acompanhada de alguma racionalidade, de um mínimo de razoabilidade e de uma capacidade de diálogo sem contestações fúteis e sem malquerença.

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X. Mundo

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Autores

José Flávio Sombra SaraivaProfessor titular de Relações Internacionais da UnB .

Silvio QueirozJornalista, comentarista do Correio Braziliense .

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Novo tempo nas Américas

Silvio Queiroz

A reabertura das embaixadas de Cuba, em Washington, e a dos Estados Unidos, em Havana, no dia 20 de julho, sela uma mudança de longo alcance na geopolítica hemisférica

e, mais ainda, coloca em novo patamar a discussão sobre a hege-monia dos Estados Unidos no continente. Para a diplomacia brasi-leira, em especial, o novo desenho das relações de poder na região abrange outros elementos. A 46ª Cúpula do Mercosul, ocorrida em Brasília, no dia 17 de julho, marco do encerramento de mais uma presidência semestral do Brasil, selou a adesão da Bolívia ao bloco, que passa a aglutinar 70% do PIB sul-americano.

Entre outras implicações, o que os dois movimentos sinalizam é a emergência de uma nova configuração das relações de poder no contexto interamericano. A ordem legada pela 2ª Guerra Mundial, tendo por base a hegemonia dos EUA, cede lugar a um cenário no qual se consolida, ao sul do Rio Grande, uma articulação capaz de se contrapor à hegemonia estabelecida por Washington, em 1945.

O exemplo mais completo dessa transmutação está exata-mente nas cerimônias simultâneas do histórico dia 20, em Washington e Havana: foi sob o impulso de um movimento no âmbito latino-americano para reinserir Cuba que o governo de Barack Obama se dispôs a quebrar o tabu de meio século. Arris-cado a ficar sozinho no antigo “quintal”, e já desobrigado de cal-cular os custos políticos de uma reeleição, o homem da Casa Branca faz agora opções vinculadas ao legado que pretende deixar após oito anos no comando da superpotência incontestável dessa primeira metade de século.

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A ironia histórica é que todo esse processo deslanche justa-mente no momento em que um dos seus alicerces dá sinal de falência estrutural. A crise política no Brasil, estendida ao Legis-lativo e às relações deste com o Executivo, irradia algo mais que preocupações técnicas.

Relembrando – Foi na Bahia que se reuniu a primeira cúpula de âmbito latino-americano e caribenho, em 2008. Desse processo, que resultou na construção da Celac, desdobrou-se a reabilitação de Cuba no sistema interamericano, começando pela revogação da resolução que excluía a ilha apenas por ter optado pelo socialismo.

Desde então, o caminho seguido no sistema hemisférico foi o da distensão progressiva, a despeito de fricções pontuais, como as que se produzem entre Washington e Caracas. Nesse quadro, a instabi-lidade no Brasil transforma o solo aplainado em areia movediça.

Ao longo dos quase seis anos de governo de Barack Obama, a diplomacia brasileira fez o papel de pivô no processo de reaproxi-mação entre Washington e Havana. Não que tenha cabido ao nosso país uma função determinante, mas foi o processo de inte-gração latino-americana, inaugurado por Lula na Cúpula do Sauípe, em 2008, que, de certa maneira, forçou (ou favoreceu) a reorientação do Departamento de Estado estadunidense.

Mais de um observador do cenário regional aponta, como momento de virada na questão, o recado levado a Obama pela presi-dente Dilma, em 2012, às vésperas da Cúpula das Américas daquele ano, em Cartagena (Colômbia): que seria o último encontro hemisfé-rico sem a presença de Cuba – como, de fato, terminou por ser.

Previsão do tempo – As incertezas em Brasília preocupam discretamente alguns dos parceiros do país, em particular aqueles que investem na diplomacia presidencial para impulsionar programas de cooperação e integração paralisados pelas contingências. Entre outras contingências, quem aposta em visitas presidenciais para o segundo semestre anda com as barbas de molho. Mais ainda com as notícias mais recentes em torno do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A perspectiva de uma débâcle no sistema político, como sugere a crise entre Executivo e Legislativo, sinaliza um segundo semestre tenso em toda a vizinhança.

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Maldito mundo mediterrâneo

José Flávio Sombra Saraiva

Fernand Braudel (1902-1985), no clássico O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, imprimiu his-toriografia mundial. Ensinou-nos a formação lenta e con-

traditória do sistema moderno europeu e suas instituições dura-douras que permeiam a Europa que temos hoje. Braudel historiou as margens do norte do Mar Mediterrâneo, pleno de curvas, baías e penínsulas, em movimento de transformação, na forja de novas sociedades. Ali nasceu o Estado moderno, ponderado pela força das nascentes sociedades nacionais.

O sistema mediterrâneo moderno, no tempo de Filipe II, incluía o continente africano. Começava pelo norte da África, plasmada de linhas retas e contornos geográficos calmos quando compa-radas com o norte do Mediterrâneo. O mar foi liga de troca e de encontros de valores novos para europeus e africanos, nas mar-gens do grande mar. Os contatos eram fluentes embora os regimes políticos e as formas de viver fossem diferentes.

Havia, no entanto, um Mediterrâneo único, de trocas e rela-ções, nem sempre de compreensão, até mesmo com incidências de guerras e conflitos. A Europa deve em parte o seu cosmopolitismo aos contatos do mar interior com a África e o Oriente. Esse grande mercado de bens e de ideias permitiu que a África do norte e a Europa do sul, onde hoje está a Líbia e a Tunísia, participassem da longa história de contatos e transferências. Mas elas voltaram, nos últimos tempos, com força de tragédia e de maldição.

Vivemos, nestes dias, quadra difícil para as relações das duas partes do Mediterrâneo. O mar foi cortado ao meio, separando dois mundos. A Europa não quer em seu território os migrantes do mar que sempre estiveram em contato com os dois lados ribeirinhos. Foi esse o impacto da tragédia humanitária ocorrida recentemente.

Um cemitério foi criado no Mediterrâneo, nas palavras de Francisco, o bispo de Roma. Achacada e humilhada, no dia a dia, de suas sociedades originárias, essa gente em transe migratório vem sendo cooptada. Homens e mulheres entram, sem pensar, em embarcações precárias e clandestinas geridas por falsos capitães.

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Foi isso que restou da Primavera Árabe, agregada às graves crises crescentes no Oriente Médio e na África Subsaariana.

Diante desses fatos mais recentes, particularmente as mortes no maldito mundo criado no Mediterrâneo, temos saudades de Braudel. O grande mercado de bens e ideias foi jogado às profun-dezas do mar. Maldito o balanço da Declaração de Barcelona, aprovada exatamente há 20 anos, voltada para o desenvolvimento dos países ribeirinhos no contexto da Parceria Euro-Mediterrânea, também conhecida como a União para o Mediterrâneo.

O medo europeu de uma migração em massa de africanos e outros para a Europa foi garantida por três grandes movimentos, no campo da política e segurança, na economia e finanças, bem como na área da sociedade e da cultura. Lá estava, na Declaração de 1995, a ordem da “proteção civil contra catástrofes de origem natural e humana”.

Uma Europa menos solidária é aquela que vem demonstrando diferentes formas de declínio. Inicia-se com o pífio PIB, passando pelo desemprego juvenil, ao encolhimento de seu poder global. As lideranças políticas fracassaram em criar ciclos de transformação da própria União Europeia. Estancou-se a animação de duas décadas atrás, após a chamada ampliação da Europa, com novos sócios. O terrorismo, nos últimos tempos, é o lead. A ausência da proteção dos fracos, direito humano, está no chão da nau.

Na formação do novo Mediterrâneo, conformar-se com o mundo maldito dos imigrantes do mar não poderia ser ato natural. Os títulos das ações recentes da União Europeia contra os potenciais imigrantes, todas agressivas e devastadoras, explicam as novas guerras. A última, a Operação Triton, centrada nas regras da prisão e da morte, fala por si. Perdeu-se até o grande negociador do fluxo migratório organizado, de antes, dirigido por Muammar al-Gaddafi, relativamente suportável para os dois lados do Mediterrâneo. São hoje quase 90% os migrantes que partem da Líbia, destroçada pela Primavera Árabe. Os dados são terríveis: 4.500 mortos nos últimos 15 meses nas águas frias do maldito Mediterrâneo.

Precisamos de outro Filipe II e de outro Mediterrâneo, voltado para a construção dos conceitos da solidariedade, do direito de ir e vir, do arrependimento da tragédia que se impetra. Uma Europa sem lideranças confiáveis não terá condições de resolver o novo mundo mediterrâneo.

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XI. Ensaio

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Autor

Carlos SiqueiraAdvogado, presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro e do Conselho Curador da Fundação João Mangabeira .

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30 anos de construção democrática

Carlos Siqueira

Os brasileiros têm diante de si três décadas de regime democrático, que nos aportou um enorme conjunto de conquistas, dentre as quais se deve destacar, em primeiro

lugar, a própria institucionalidade democrática, em que des-pontam a Constituição Cidadã de 1988 e um Estado democrático clássico, com poderes que se moderam reciprocamente.

Nos são assegurados como cidadãos, inclusive por força da laicidade do Estado, a livre manifestação de opinião, liberdade para expressar nossas convicções ideológicas, religiosas; garan-tias para que exercitemos nossas diferenças, com relação a aspectos como gênero, etnia, orientação sexual, entre outras.

É fato, contudo, que não se vive apenas de passado e que, uma vez que se tenha alcançado um determinado patamar de desen-volvimento social, político e cultural, se apresenta naturalmente a necessidade de ir mais adiante. Sob esse aspecto, o país não tem ido bem quanto o foi na construção de sua democracia. Estamos como que estagnados em um padrão e em possibilidades que já não satisfazem as expectativas populares.

A razão de ser dessa situação está envolvida em grande com-plexidade, de tal sorte que não se pode abordá-la aqui em toda sua extensão. Não estaremos cometendo erro, ou simplificando exageradamente o quadro, contudo, se evocarmos dois elementos essenciais para explicar a presente condição do país.

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Primeiramente há que se considerar que lutamos contra o peso de toda nossa história pregressa, em que o Estado se apresenta essencialmente como um instrumento imediato de poder das elites dominantes, no contexto de práticas clientelistas e patrimonia-listas. Deste modo, há que se ponderar que o país freou seu desen-volvimento econômico, político, social, entre outras dimensões, porque ir mais além requer romper definitivamente com privilé-gios que estão longamente aninhados em nossa cultura, no modo como se faz política, nas prioridades que vêm sendo eleitas ao longo de nossa história. Impõe-se romper com uma tradição polí-tica muito precisa e historicamente determinada, em larga medida antipopular, o que não se faz sem dificuldades e tensões.

É necessário considerar, em segundo lugar, que os arranjos hegemônicos que nos governaram no período democrático ‒ talvez com o interregno dos dois anos de Itamar Franco, a quem nem sempre se faz a devida justiça ‒ não encarnaram verdadeiramente os princípios e expectativas da Constituição Cidadã. Ao contrário, tais forças hegemônicas têm sido elementos de resistência aos avanços preconizados por nossa Carta Magna, ainda que se vejam vencidos em vários momentos por movimentos oriundos da socie-dade civil, os quais têm empurrado o país no sentido de universa-lizar o acesso a serviços públicos básicos, como são os casos da saúde, educação, seguridade social etc.

Os 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores se ins-crevem nessa mesma tópica, apesar de sua origem à esquerda, inicialmente pelo pouco apreço que esta agremiação demonstrou ter pelo esforço constituinte e pelas conquistas inaugurais da era de normalidade democrática.

Vale lembrar nesse sentido, para fins analíticos, que o PT se recusou a participar do colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves, o primeiro presidente civil pós-ditadura; a assinar a Cons-tituição Federal de 1988 − seguramente a mais progressista da história republicana; a compor o governo de união nacional de Itamar Franco, punindo militantes que o fizeram, como foi o caso da deputada Luiza Erundina; e a apoiar o Plano Real. Animado, talvez por um certo esquerdismo, que procurava soluções mais radicais, deixou passar ao largo a oportunidade de radicalizar as conquistas sociais propiciadas pelo ambiente político que emerge da Constituição, cujas postulações poderiam ser consideradas o

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piso mínimo daquilo que todos desejamos venha a ser o Brasil, como país efetivamente desenvolvido.

Nossas dificuldades presentes não se limitam apenas, con-tudo, a essa questão genética do arranjo hegemônico atualmente no poder. Nosso maior fracasso como país até aqui está clara-mente vinculado à incapacidade de promover inclusão social efe-tiva, condição que é produto de uma solução de compromisso, que se encontra na base da governabilidade dos últimos mandatos dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores.

De um modo sintético, mas acurado, pode-se afirmar que as políticas públicas adotadas, nos últimos anos, como estratégicas para o enfrentamento da pobreza e a inclusão social, salvo a política de aumento do salário mínimo, se reduzem a aspectos assistencia-listas, ou seja, são políticas limitadas para fazer face à pobreza, ainda que suficientes para seu apascentamento. Aqui a solução de compromisso: serenados os ânimos no âmbito das tensões redistri-butivas que herdamos da ditadura, ganham as elites; criada uma clientela com base nos programas assistenciais, ganham as forças políticas que estão no poder, a cada momento do tempo.

Completa o quadro do marasmo social – que, na crise atual, se evidencia com todas as suas tintas − uma profunda incapacidade para promover o desenvolvimento, dado não ter sido formulado um projeto estratégico para tanto. Aqui, novamente, nos vemos à frente com o arranjo conservador que se cristalizou no poder: a ausência de projeto consistente de desenvolvimento guarda relação direta com o acordo que se fez com o capital financeiro, na qualidade de ato inaugural do período petista, simbolizado pela nomeação de um deputado do PSDB para a presidência do Banco Central. Provavelmente por isso, não fez o governo petista, sequer tentou, realizar qualquer mudança estrutural no país.

Não é um acaso que, apesar de toda a crítica que se fez aos governos do PSDB, se tenha preservado como quadro exatamente aquele que viria a ser o presidente do Banco Central do Brasil: à inibição do ímpeto desenvolvimentista corresponderam os lucros extraordinários dos bancos, que jamais ganharam tanto dinheiro no Brasil. Aos bancos e ao rentismo não interessa, contudo, desenvolvimento e sim a integração subalterna ao sistema mundo, o que o governo tem feito de forma metódica nos últimos anos, com as consequências que todos temos podido ver e sentir, espe-cialmente sobre nossa indústria de transformação.

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Breve balanço dos êxitos

Consolidado o processo de redemocratização, o que implicou a adequada e completa institucionalização do regime democrá-tico, impôs-se ao Brasil a meta de derrotar a inflação, que além do descalabro monetário em si mesmo, colocava na ordem do dia os conflitos distributivos que a ditadura militar criou, mas não soube equacionar. Vale notar que o ciclo de crescimento que se observou ao longo da ditadura baseou-se amplamente no endivi-damento externo, estratégia que veio abaixo quando a crise do petróleo de 1974 reduziu drasticamente a liquidez nos mercados internacionais de crédito.

A inversão cíclica, ou seja, a transição do crescimento para a estagnação se fez acompanhar de uma disputa distributiva, que a inflação “resolvia” por meio da penalização de todos aqueles que não conseguiam indexar seus rendimentos à evolução dos preços. Derrotar a inflação representou, portanto, suplantar um cenário em que os segmentos populares eram submetidos a um meca-nismo perverso de transferência de renda, baseado no que se cha-mava à época de “imposto inflacionário”.

Note-se, em complemento, que a gestão macroeconômica que os governos militares fizeram da crise inflacionária sempre implicou o arroxo salarial e o desemprego, como instrumentos de acomodação do conflito distributivo, em favor dos segmentos de maior poder aquisitivo.

A trajetória que levou à superação da vaga hiperinflacionária foi longa e errática, até que se chegasse por fim ao Plano Real, cuja consolidação fez com que a cultura de correção automática de preços ficasse distante, a tal ponto que praticamente nos esquecemos da indexação, do gatilho salarial, do overnight etc.

A estabilização monetária, essencial em seus próprios termos, nos legou uma maior transparência na questão distributiva, eli-minando a situação em que os segmentos populares sempre per-diam da inflação, o que fundamentava um mecanismo perverso de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Esta conquista importantíssima deve-se à iniciativa dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

A atenção que se dirigiu ao problema da pobreza, a partir da Constituição Cidadã, é algo completamente novo em termos de políticas públicas no Brasil, porque a ação do Estado se dá não

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mais sob a perspectiva da benemerência ou da caridade, mas sim dos direitos sociais básicos da população.

Cabe notar, para fins de avaliação, que a institucionalização das políticas sociais de Estado antes indicadas antecede o período de governos do Partido dos Trabalhadores, de tal sorte que é pre-ciso creditar os avanços que representam às forças democráticas e aos movimentos sociais e populares, que influenciaram de forma decisiva para que se concretizassem referidas políticas.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a reorganização da seguridade social, que compreende a Previdência Social, a Saúde Pública e a Assistência têm um papel de amplo significado social, econômico e político na história brasileira. Para tanto basta lembrar que a atenção à saúde e a assistência social não estão baseadas exclusivamente em critério contributivo, de tal forma que prevalece a perspectiva do direito, em lugar do acolhi-mento destinado apenas àqueles que participam do mercado formal de trabalho e, nessa condição, recolhem contribuições previdenciárias. Trata-se, portanto, de um sistema de saúde público, universal e gratuito.

Quando se faz a avaliação do impacto dessas políticas sob uma perspectiva ampla se percebe a significativa condição de inclusão que compreendem, assim como o alcance e capilaridade das ações que desenvolvem. Promover saúde, nas escalas em que o faz o SUS, tem impactos sobre indicadores de mortalidade, especial-mente materno infantil; sobre a qualidade e expectativa de vida; sobre a organização da família e, consequentemente, sobre sua composição, rendimentos etc.

Devemos considerar, nesse contexto, que o SUS vem assis-tindo e apoiando os brasileiros na transição demográfica, que tem nos transformado em uma nação com mais velhos, de menor taxa de fertilidade das mulheres, de menor prole por casal etc., tendo todas essas variáveis impacto imenso sobre o modo como as pes-soas organizam suas vidas, seus rendimentos e expectativas etc.

Não se pode esquecer, em complemento, quando se considera os impactos da seguridade social e do SUS em particular, que estamos aqui diante de políticas de Estado e não de governo, de tal forma que tanto os serviços prestados à população, quanto o financiamento das políticas não dependem deste ou daquele pre-sidente e, tampouco, são apropriados como patrimônio deste ou daquele partido.

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O cânone acadêmico reconhece o papel essencial que tem a educação na determinação de uma série de variáveis de natureza socioeconômica, de que são exemplos significativos a renda indi-vidual e familiar, a qualidade do emprego em um determinado território, a disseminação de valores democráticos e de cidadania, a competitividade geral da economia vis-à-vis o resto do mundo.

Somados esses diferentes fatores, é possível inferir que a edu-cação e a universalização de acesso a suas diferentes modalidades e etapas têm um imenso papel de inclusão social, com a vantagem de promover concomitantemente a autonomia e ampliação da vida cidadã. Essas duas dimensões − educação para a vida e educação para o trabalho − contribuem complementarmente para a emanci-pação dos segmentos populares, relativamente a políticas assisten-cialistas e clientelistas que, como regra, realizam suas entregas ao custo de demandas de subserviência destinadas a seus públicos.

Neste sentido, a universalização de acesso ao ensino fundamental deve ser considerada como uma importante conquista do período democrático, em termos de enfrentamento à pobreza e inclusão social, nos marcos, uma vez mais, de uma política de Estado.

A aposentadoria social rural é anterior ao período que se inicia com a Constituição de 1988, mas com sua promulgação foi reconhecido um conjunto relevante de direitos, cabendo des-taque aos seguintes elementos: equiparação dos direitos dos empregados rurais aos dos empregados urbanos; redução de idade para aposentadoria; os respectivos cônjuges passaram a ter direito à aposentadoria; e, o benefício é definido como equiva-lente ao salário mínimo.

Cabe notar, ainda, que é significativo o valor percebido pelos beneficiários, diferentemente da transferência de renda vincu-ladas a políticas assistenciais − de que são exemplos o Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada. Basta observar, quanto a esse aspecto, que o benefício básico do Bolsa Família monta R$ 77,00, ao passo que os beneficiários da aposentadoria social rural percebem o equivalente a um salário mínimo, ou seja, R$ 788,00.

Pensados sob a perspectiva do enfrentamento da pobreza, não há como comparar os programas em questão, sob o aspecto da resolutividade. O aposentado rural, ainda pobre do ponto de vista do poder de compra, não se encontra em condição de miséria. O beneficiário do Bolsa Família, por outro lado, se mantém em

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condição de miséria, ainda que se possa imaginar que a questão da segurança alimentar fica minimamente encaminhada.

Outra grande conquista dos segmentos populares é o seguro desemprego, que é elemento da política de previdência social e que tem permitido aos trabalhadores enfrentar as agruras da perda de seus postos de trabalho. Ainda que sua previsão seja anterior à Constituição de 1988, a partir desse período ganhou nova institu-cionalidade, sendo disciplinado pela Lei 7.998, de 11 janeiro de 1990 (Governo José Sarney), que indicou a fonte de custeio, com a instituição do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Ainda que, de um modo geral, não se faça referência a esse elemento previdenciário, é importante salientar que o mesmo tem uma participação no PIB equivalente ao Benefício de Prestação Continuada (0,6%) ou, ainda, ao Bolsa Família.

Em termos absolutos, no ano de 2014, as despesas consig-nadas com o Seguro Desemprego alcançaram a cifra de R$ 36 bilhões (valores correntes), enquanto o número de beneficiários passou de 5,1 (2003) para 9,2 milhões (2014).

Muito embora as gestões do PT tenham advogado a tese da importância fundamental de programas como o Bolsa Família, para fins de inclusão social e superação da pobreza, é importante enfatizar que tais programas estão inscritos no rol das políticas de governo. É fundamental observar, portanto, que a crítica que se faz a políticas da espécie não se refere, por exemplo, à importância do Bolsa Família enquanto tal, mas à qualidade de sua institucio-nalização, visto que o Programa se sujeita às possibilidades de descontinuidade a cada ciclo eleitoral, além de criar uma espécie de “clientela” em benefício das forças políticas que exercem o poder, a cada momento do tempo.

Este cenário ficou muito claro nas eleições presidenciais de 2014, em que a candidatura que postulava a reeleição avocou para si o Bolsa Família, como se qualquer outra composição polí-tico-partidária estivesse comprometida com a extinção de pro-gramas de transferência de renda − algo efetivamente inverídico.

De toda forma, considerado o conjunto de políticas destinadas ao enfrentamento da pobreza e inclusão social, tanto Bolsa Família, quanto o Benefício de Prestação Continuada, além de serem políticas de governo e não de Estado, não se sobressaem do ponto de vista da dotação de recursos, pois correspondem somados a aproximadamente 1% do PIB.

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As realizações que o país logrou até aqui, no período democrá-tico, foram essencialmente protagonizadas pelo povo brasileiro e pelas forças políticas posicionadas à centro-esquerda do espectro político-partidário, cabendo fazer menção inclusive àquelas que se abrigaram no antigo MDB-PMDB para, a partir deste, fazer resistência à ditadura. É importante reconhecer esse elemento, para que se compreenda inclusive a natureza de nossas elites e o tipo de desenvolvimento que elas predicam. De um modo geral, ele é a um só tempo excludente e autoritário − para tanto, basta veri-ficar as políticas implementadas pelo regime militar.

Talvez pudéssemos ter ido mais além e mais rapidamente nos últimos trinta anos, se essas forças tivessem marchado com maior unidade em torno dos interesses populares, o que infelizmente não ocorreu.

As insuficiências do período democrático

Evidencia-se de forma clara no momento em que se discute no Congresso Nacional a reforma política, que ainda temos um sis-tema democrático, político, eleitoral e partidário repleto de preca-riedades que precisam ser superadas. Nesta esfera, salta particu-larmente aos olhos a pulverização partidária, pois não existem tantas convicções ideológicas e políticas quantos são nossos par-tidos, que rondam a incrível escala de três dezenas.

Evidentemente, o que explica tal número não são as diferenças ou matizes político-ideológicos de nossa sociedade − que justifica-riam um grande número de partidos, em nome da livre organi-zação e manifestação de opinião − mas os “negócios” relativos a tempo de televisão, posicionamento crítico com relação a este ou aquele candidato, “aluguel” da legenda para facilitar iniciativas nas casas parlamentares ou para fins exclusivamente eleitorais.

A par desse problema, de natureza especificamente política, há que se observar uma outra questão de enorme gravidade em nosso modelo democrático: o financiamento de campanhas eleitorais por meio de empresas. Tal prática, no essencial, cria meios para subordinar a ação política ao poder econômico, o que desqualifica a democracia e limita a soberania popular.

Tanto em um caso quanto no outro, os últimos governos pouco fizeram ou terão feito para alterar o quadro geral, se não contri-buíram de forma decisiva para agravá-lo, com o aprofundamento da cultura de balcão previamente existente. Não se desenvol-

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veram, ao longo de todo esse período, iniciativas que pudessem ao menos encaminhar reformas políticas estruturais, que criassem uma expectativa objetiva de melhoria futura.

Cabe às forças de esquerda, afinadas com as perspectivas populares, a superação desse cenário, aprofundando e intensifi-cando nossa democracia, o que significa promover o rearranjo das instituições partidárias, ao contribuir para que se eliminem as legendas de aluguel, além de facilitar e estimular o uso de instru-mentos de democracia participativa, de que são exemplos o ple-biscito, o referendo, os projetos de iniciativa popular etc.

Os êxitos que os brasileiros alcançaram no período democrá-tico, especialmente no que se refere a debelar o fenômeno hiperin-flacionário, tiveram custo significativo em termos de dinamismo econômico. As taxas médias de crescimento do PIB, considerados os diferentes mandatos desde o de Sarney, foram pouco favoráveis aos governos democráticos.

O baixo crescimento econômico decorre, por sua vez, de desarranjos significativos de nossas políticas, em que sobres-saem os baixos investimentos em infraestrutura e logística, a oferta limitada de condições para que a mão de obra se quali-fique, um arranjo macroeconômico (taxa de juros e câmbio) que pune severamente a indústria nacional. Observa-se, comple-mentarmente, uma gestão das políticas cambial e monetária que tornam, até recentemente, muito mais atrativo importar do que produzir em território nacional.

Observam-se, além desses limitantes, o parco investimento em pesquisa e inovação, ciência e tecnologia, fatores que somados aos anteriores fazem com que o Brasil seja capturado pelo sistema mundo em uma posição de subalternidade, o que tem induzido a supremacia da indústria extrativa (minérios) e do agronegócio, em detrimento da indústria de transformação.

Para o povo brasileiro, o que resta de toda essa operação são empregos de baixa qualidade, mal remunerados, pressão sobre o meio ambiente e recursos naturais, além das limitações de dife-rentes ordens, que se associam a economias de baixo padrão de crescimento ou que adentram em longos períodos de estagnação.

Ainda que o Brasil tenha avançado nas políticas sociais, com destaque para o fato de que elas passaram a ser percebidas como direito do cidadão, o primeiro elemento que se deve pontuar como pendência do período democrático está na precariedade da atenção,

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que se associa à universalização do acesso. Ou seja, se todos temos direito à saúde, há um custo implícito que se materializa nas longas filas, ou mesmo na má qualidade, em certos casos, do atendimento médico. Há que se reconhecer, entretanto, que pessoas que antes não tinham direito sequer a uma consulta médica, hoje, podem realizar, sem nenhum custo, cirurgias de alta complexidade.

Neste sentido, impõe-se investir pesadamente na qualificação do SUS, na entrega de uma educação pública de qualidade, em segurança pública, fortalecendo-se políticas de Estado destinadas ao enfrentamento da pobreza e da exclusão social.

No âmbito das cidades, em que se encontra aproximadamente 85% da população, há que se realizar uma verdadeira reforma urbana, que priorize as políticas de transporte e mobilidade, habi-tabilidade, cultura, esporte e lazer, no sentido de assegurar o direito universal à cidade, que na atualidade está limitado àqueles que, por condição econômica, residem nos territórios em que tudo está devidamente provido − desde as facilidades que o dinheiro pode comprar, até os serviços públicos que sobram nos bairros nobres e faltam às periferias.

O tema da segurança pública, em que imperam, com raras exceções, os mesmismos à direita e à esquerda, deve ser priori-zado, no contexto de uma visão socioterritorial das cidades, por meio da qual se supere a guetificação atrás da qual prosperam o crime organizado e o narcotráfico. Instituir uma sociedade segura requer a disseminação de uma cultura de paz, o que não se faz em sociedades e cidades completamente apartadas, em que o Estado se faz presente em alguns territórios, afastando-se por completo de outros.

Há evidências inequívocas de que os brasileiros esperam por uma renovação do fazer político, bem como das instituições parti-dárias e dos políticos propriamente ditos. Essas expectativas estão alimentadas, em grande parte, pelos elementos que restaram irrealizados no período democrático, ainda que tivessem sido pro-messas quando o mesmo se iniciou.

O fato de que as prioridades de políticas públicas continuem estando ao lado dos ricos, postergando-se indefinidamente as pautas populares, o que é, salvo um assalto aos princípios demo-crático populares? Que o serviço da dívida pública prevaleça sobre qualquer outra meta; que a responsabilidade fiscal praticamente autorize a irresponsabilidade social; que a conta das mazelas, como agora com o ajuste fiscal proposto pelo governo Dilma, recaia

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quase que exclusivamente sobre os debaixo. Não tem o povo o direito de se desencantar?

Sim e o fez. É preciso, portanto, uma requalificação da política, das instituições partidárias e dos políticos. Os desafios são imensos, pois a batalha se trava contra séculos de predomínio conservador sobre a agenda nacional. O sentido, contudo, do desencanto da população, para benefício das forças progressistas é simples: preci-samos subordinar todos os atores políticos às demandas populares; temos que desenvolver um verdadeiro sentimento de estar a serviço da população, de tal modo que o objetivo do partido, do deputado, não seja o interesse exclusivamente eleitoral, mas a realização de um projeto político emancipatório, para o qual o mandato é um meio e não uma finalidade em si mesma.

Não se trata, portanto, de um projeto de poder − até mesmo porque, iniciativas dessa espécie já existem e são muitas. Preci-samos urgentemente conceber e realizar um projeto de país, o que requer atores renovados e convencidos de ser inadiável a atenção às urgências populares. Dentre as muitas forças que podem se somar a essa empreitada, seguramente, estão os socialistas, que há muito se preparam para oferecer aos brasileiros uma alterna-tiva efetiva de construção de nosso lugar comum no mundo.

Nosso projeto parte da ideia simples segundo a qual o Brasil que desejamos está longe de estar pronto e deve ser construído não apenas para os brasileiros, mas pelos brasileiros, o que requer um reorganização ampla de nosso fazer político e da instituciona-lidade política, pois exige uma intensificação de nossa democracia, na qual se realize de forma plena o protagonismo popular, em que se combinam a democracia representativa sem os vícios que vemos ocorrer hoje em dia, e uma democracia participativa pujante.

De nosso ponto de vista, portanto, a solução para a crise em que se encontra o Brasil não está no gerencialismo, esteja ele à direita ou à esquerda, mas na qualificação da atividade política, a quem cabe de forma insubstituível, definir estratégias, prioridades e recursos, para levar à prática um projeto nacional de desenvol-vimento sustentável e integral.

Ao Brasil, diferentemente do que diz o senso comum, falta exercício político, na justa medida que a política se vê reduzida a negócio, transação entre grupos de interesse e poder econômico. Essa prática, que se chama de política por convenção, nada tem a ver com a atividade nobre de organizar a polis, de onde emerge a verdadeira política.

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XII. Resenha

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Autores

Oscar PilagalloJornalista, autor de História da Imprensa Paulista e coautor da história em quadrinhos O Golpe de 64.

Rafael R. MassuiaDoutorando em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara (e-mail:[email protected]).

Victor Augusto Ramos Missiato Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), na Faculdade de Ciência Humanas e Sociais, da Unesp de Franca.

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Sete ensaios sobre o Brasil

Rafael R . Massuia

O livro Política, relações sociais e cidadania, publicação con-junta da Fundação Astrojildo Pereira, Fundazione Istituto Gramsci e Editora Contraponto, desenvolvido a partir da

tese de livre-docência de José Antonio Segatto, constitui-se de sete ensaios que agem no intuito de fornecer-nos um conhecimento do processo histórico brasileiro a partir do enfoque sociopolítico desenvolvido ao longo de anos de atividade de pesquisa e docência do autor, professor titular da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

Longe de constituírem-se como textos difusos, os ensaios pos-suem um mesmo questionamento de fundo: como compreender as relações sociais e políticas a partir de uma perspectiva genuina-mente emancipadora, para além da formalidade e banalidade que muitas vezes importantes conceitos como cidadania ou demo-cracia ocupam nos debates, acadêmicos ou não, em nossa socie-dade tardo-capitalista? Como na maioria dos casos, não existem respostas ou soluções máximas para a grande questão que ocupa parte privilegiada da obra de importantes intelectuais há, pelo menos, dois séculos; porém, ao leitor mais cuidadoso, não pas-sarão despercebidas algumas ricas indicações no âmbito dessa problemática teórica e prática.

Duas das referências teóricas que orientam as indagações de Segatto se apresentam antes mesmo do início do livro, estam-padas na dupla epígrafe: tratam-se de dois importantes nomes da teoria política (em distinção à ciência política estadunidense, com

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características que a distanciam da reflexão política desenvolvida a partir de Aristóteles, passando por Maquiavel, Rousseau, entre outros), o italiano Antonio Gramsci e o brasileiro Carlos Nelson Coutinho. Ambos notadamente enraizados na tradição teórica inaugurada pelos pensadores alemães Karl Marx e Friedrich Engels, a reflexão teórica – tanto para o autor do volume a que nos propomos a resenhar, quanto para suas referências centrais – vai além de sua vocação meramente escolástica, visando fornecer um entendimento transformador da realidade social.

Os três primeiros ensaios, notadamente “Cidadania e Demo-cracia em Perspectiva Histórica”, “Cidadania e Política” e “Cida-dania de Ficção”, ainda que por diferentes abordagens, configuram um esforço de ir além da já referida dessubstancialização do con-ceito de cidadania, lançando novas perspectivas para uma reflexão emancipatória a partir do imperativo de universalização da apro-priação dos bens sociais pela população. Naturalmente, não se trata de tarefa simples, o que não deixa de ser apontado pelo autor que, ao longo do processo histórico de constituição de nossa nação, o direito ao acesso de elementos mais básicos de cidadania foram cerceados pela generalização de práticas coronelistas, de corte clientelistas e patrimonialistas – práticas que, com o advento da modernização da sociedade, com o início da República, da indus-trialização, ao contrário de extinguir-se, reinventam-se (em alguns casos, inclusive, mantendo-se assustadoramente próximas de suas configurações originais, como as diversas denúncias de trabalho escravo por parte de pessoas com amplo prestígio nos altos círculos sociais o atestam).

Como o próprio autor pontua, de forma esclarecedora, em texto publicado no Estadão (SEGATTO, 2015b), o patrimonialismo nada mais é que “(…) um prolongamento do patriarcalismo no Estado, daí derivando o desapreço pela impessoalidade na gestão da coisa pública”. Um lugar privilegiado para observarmos o auto-ritarismo recorrente no processo histórico brasileiro é a obra de escritores como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Mário de Andrade etc., como o instigante ensaio “Cida-dania de ficção” o atesta.

O quarto ensaio, “Estado, Trabalhadores e Direitos Sociais”, por sua vez, apresenta-se como o mais deslocado do volume – o que não significa dizer o menos relevante, talvez até o contrário –, já que os três últimos, que pretendemos tratar na sequência, pos-suem temática em comum. No referido ensaio, o autor discute o “novo sindicalismo” que, ao contrário do que muitos defendem (ou

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defendiam), já manifestava desde sua origem sérias limitações em suas análises e propostas, descambando para um espontaneísmo de corte corporativista, numa palavra, já possuía uma orientação teórica e prática ao que se solidificaria como uma espécie de “sin-dicalismo de resultados”. Como a questão em torno da promiscui-dade da relação entre Estado e sindicatos o atesta. Fortemente combatida pela CUT e pelo PT, ao chegar ao poder, numa espécie de redenção e reabilitação do “Estado varguista”, passam a adotar essas mesmas ideias e práticas que antes combatiam. Segundo Segatto (2015a, p. 161), as centrais sindicais “(…) tornadas cor-reias de transmissão do ‘Estado lulista’ e indistintas entre si – doravante legitimadas pela CLT – passaram a confraternizar-se entre si no Ministério do Trabalho (…)”, local privilegiado onde passaria a ocorrer a repartição de poderes e verbas.

Como mencionado anteriormente, os últimos três ensaios do volume apresentam grande proximidade, pois tratam do movi-mento comunista no Brasil, de sua gênese aos seus desdobra-mentos. Quanto à fundação da Seção Brasileira da Internacional Comunista, na forma do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em congresso realizado no Rio de Janeiro em 25 de março de 1922, em caráter de urgência em função dos desdobramentos da Revo-lução de Outubro, o autor não deixa de indicar o caráter proble-mático, em decorrência da orientação oficial do marxismo-leni-nismo e da composição majoritariamente anarquista de seus quadros (que se pense em Astrojildo Pereira).

Quanto à estratégia para a realização da revolução socialista no país, são hoje amplamente conhecidos e discutidos os equí-vocos da estratégia adotada que, visando aplicar as diretivas da III Internacional, determinava, para os casos das ex-colônias, a necessidade de uma transição para a “fase” capitalista, antes da possibilidade de criação das condições para uma transição genui-namente socialista. Por consequência, para esse intento, era man-datória a realização de uma aliança com os “setores progressivos” da burguesia nacional. A compreensão da inviabilidade dessa estratégia, entretanto, tragicamente, só veio de forma tardia. A oxigenação requerida só viria no fim dos anos 1950, com a “polí-tica de frente democrática”, simbolizada pela “Declaração de Março de 1958”. No entanto, o regime ditatorial do pós-1964 mostrou-se particularmente cruel ao PCB que, diante de cres-centes cisões, teve na queda do “socialismo real” seu golpe de misericórdia e muitas daquelas ideias não puderam ser colocadas efetivamente em prática naquele momento.

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Por fim, tratando de Luís Carlos Prestes, o autor realiza breve síntese de sua vida política, que se certa forma retoma os princi-pais momentos, positivos e negativos, do movimento comunista no país. Para além do mito do “Cavaleiro da Esperança”, surgido – e, muitas vezes, confundindo-se com ele – no âmbito do “tenen-tismo”, Prestes nos é apresentado como um político repleto de dubiedades. Como aponta Segatto (2015a, p. 213), em relação à “política de construção da hegemonia por meio da democracia”, se, de um lado, Prestes discordou de suas posições, o partido buscou incorporá-las, ainda que tenha encontrado resistências internas. E, como não podia ser de outra forma, a 1990, “(…) a morte do velho herói coincidiu com a morte do velho ‘socialismo real’ de modelo stalinista”. A tarefa de reconstrução do movimento comunista, a partir das novas determinações postas pelo com-plexo e contraditório movimento do real, estava (re)posta.

Em tempos de empobrecimento teórico e de rechaçamento dos grandes temas, o novo livro de Segatto vem como uma espécie de lembrete de que os grandes questionamentos não deixaram de existir, somente deixam, cada vez mais, de serem discutidos no ambiente acadêmico e pela sociedade como um todo. É preciso recuperá-los – e o presente livro configura importante esforço nesse sentido.

Referências

SEGATTO, J. A. Política, relações sociais e cidadania. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2015.

______. Patrimonialismo renitente. Estadão, 04/03/2015. Opinião. Disponível em: <http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,patrimonialismo-renitente-imp-,1643977>. Acesso em: 16/06/2015.

Sobre a obra: Política, relações sociais e cidadania, de José Antonio Segatto. Coleção Brasil e Itália. Fundação Astrojildo Pereira, Editora Contraponto e Fondazione Istituto Gramsci, 2015. 224p.

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A contemporaneidade latino-americana em tempos democráticos

Victor Augusto Ramos Missiato

Em tempos de “modernidade líquida”, onde a diluição das fronteiras espaciais, a aceleração do tempo e a verticali-zação do político transformam a concepção do pensar e agir

político e, por conseguinte, reorientam as perspectivas historiográ-ficas, a busca de entendimento dessa realidade expressa no livro Um lugar no mundo: estudos de história política latino-americana, de Alberto Aggio, professor no Câmpus da Unesp em Franca, SP, materializa-se como proposta de (re)visão da contemporaneidade latino-americana, a partir de reflexões tanto acerca de seu pas-sado quanto do tempo presente. Em termos mais acadêmicos, tais reflexões visam promover também uma nova tradução para um espaço especificamente historiográfico: a história política latino--americana. Tal proposta está inserida dentro de uma conjuntura latino-americana cuja hora presente encontra-se balizada pelo pêndulo da democracia.

Diante dessas novas perspectivas para a região, respaldadas por um novo “acontecimento histórico”, tendo em vista as novas relações políticas entre Estados Unidos e Cuba, que podem apri-morar a atual convivência continental americana, abre-se a possi-bilidade de superar antigos dogmas, conforme elucidou o histo-riador Joan del Alcàzar, professor de História Contemporânea da Universidade de Valencia, em brilhante prefácio ao livro.

Posicionando a América Latina na modernidade, incorporada junto ao processo de ocidentalização do mundo, Alberto Aggio ela-bora uma interpretação dessa contemporaneidade latino-ameri-cana por meio de uma crítica à “visão do atraso”, que procurou desvincular a América Latina da própria modernidade global.

Em seu texto introdutório, ao pensar as transformações decor-rentes do final do século XX, Aggio chama atenção para a neces-sidade de superar visões dogmáticas a respeito do continente. Em primeiro lugar, trata-se de “vencer as velhas orientações de rup-tura com o colonialismo ou com a dependência que faziam parte de uma forma de compreender a América Latina própria das décadas de 1950 e 1960” (p. 24).

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Em relação a essa questão, importa destacar o fato de que tanto a perspectiva da Revolução Cubana, como vetor radical da democratização social, quanto o “programa” neoliberal, e sua radical imposição de ideia de mercado, não conseguiram amal-gamar um determinado consenso político no continente e ambas as orientações fracassaram.

De acordo com o autor, após o período de redemocratização na região, a questão democrática tornou-se elemento central na com-preensão das dinâmicas político-sociais latino-americanas. No que se refere especificamente à renovação das esquerdas, a democracia possibilitou o encontro entre correntes liberais e socialistas, “abrindo-se a perspectiva de se projetar para o continente uma esquerda com vocação de governo, identificada como democrática, moderna e reformista” (p. 28). A partir de tais premissas, Alberto Aggio, entrelaçando o trabalho acadêmico e intelectual, analisa diversos processos históricos na América Latina, a fim de se com-preender melhor o lugar do continente nessa contemporaneidade.

A partir de um posicionamento abertamente democrático-re-formista, o autor avalia criticamente alguns processos políticos e categorias analíticas que, durante muito tempo, balizaram opções políticas e intelectuais na construção da história latino-ameri-cana. Temas como a teoria do populismo, os usos de Gramsci na história política latino-americana, a Revolução Cubana e a “via chilena ao socialismo”, intelectuais e política, autoritarismo e transição democrática no Brasil e Chile, entre outras dimensões, são problematizados num texto de leitura obrigatória para espe-cialistas e gratificante para o público em geral.

Um lugar no mundo toma a América Latina a partir de uma perspectiva global e universal e, por isso, uma das suas principais contribuições é a de ser capaz de realizar uma análise horizontal da história política, demarcando a complexidade “das dinâmicas e vicissitudes da política, que dão expressão aos atores em suas contradições, orientando ou reorientando tanto os processos e os sentidos como também o que é essencial na História” (p. 146).

Sobre a obra: Um lugar no mundo – Estudos de história política latino-americana, de Alberto Aggio. Coleção Brasil e Itália. Fun-dação Astrojildo Pereira, Editora Contraponto e Fondazione Isti-tuto Gramsci, 2015. 252p.

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Um crítico da esquerda em torno de 1964

Oscar Pilagallo

Em 1964 – O Último Ato, Wilson Figueiredo se dedica prin-cipalmente a apontar os erros das esquerdas brasileiras antes e depois do golpe militar.

Reunião de artigos publicados no primeiro semestre de 1964 no Jornal do Brasil, no qual o autor escreveu editoriais e textos assinados por 45 anos, o livro tem as vantagens e as desvanta-gens dos relatos escritos no calor da hora. De um lado, registra detalhes saborosos que a síntese histórica posterior acabou supri-mindo; de outro, tem o alcance limitado por não poder contar com interpretações que a distância no tempo ajudou a fixar.

Para Figueiredo, até a escolha da data do comício que marcou o início da queda de Jango – uma sexta-feira, 13 de março – demonstra que, ao desafiar a superstição popular, havia uma autoconfiança desmedida das forças de esquerda, sem lastro nos fatos. “A margem de erros possíveis foi desprezada pelos calculistas radicais” deten-tores da “certeza da predestinação”, apontou o jornalista.

Um ponto alto do livro é a reconstituição do ambiente naqueles dias turbulentos. Ao criticar as esquerdas pela inépcia de avaliar a reação conservadora, subestimando-a, Figueiredo observa como as famílias de classe média reagiram aos discursos inflamados de Jango e companheiros. Na zona sul do Rio, “velas acesas nas janelas consumiam-se no silêncio que descera sobre as ruas vazias”. Em São Paulo, “as igrejas estavam cheias de fiéis refu-giados em orações”.

O Jornal do Brasil, como de resto quase toda a grande imprensa – com exceção do Última Hora, que apoiava o presidente –, defendeu a deposição de Jango nos dias que antecederam o golpe. Figuei-redo, no entanto, embora ajudasse a expor a opinião do jornal, não conclamava a intervenção do Exército, como atesta a soció-loga Alzira Alves de Abreu no prefácio. Os textos de Figueiredo “não trazem em nenhum momento um pedido de transgressão das normas democráticas”.

O jornalista endossa a tese, dominante desde a época, de que o “fator determinante” do golpe “foi a certeza da existência real do

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perigo comunista e da suposta convivência do governo Goulart com o programa subversivo”. O comportamento de Jango a partir de meados de março teria confirmado “a suspeita de que ele se convertera irremediavelmente à esquerdização do Brasil”.

O autor também menciona a distância entre as lideranças esquerdistas e as bases, que teria sido fatal para as forças de apoio ao presidente. “A maior parte do programa esquerdista bra-sileiro não excedia os limites do aparelhamento burocrático federal”, escreveu ele, duas semanas após o golpe.

As duas observações procedem, embora não deem conta de explicar todo o quadro político que levou à quebra democrática. Faltou, por exemplo, enfatizar o projeto das forças conservadoras, que, sem sucesso nas urnas, desde os anos 50 encaravam o golpe como um atalho para chegar ao poder, independentemente da suposta ameaça comunista.

Outras análises, porém, carecem de fundamento. Figueiredo cobra das esquerdas uma tarefa revisionista no início da ditadura, o que talvez fizesse sentido, de uma perspectiva reformista, em abril de 64, quando o artigo foi publicado, mas teria sido inútil, como a história se encarregaria de provar.

Uma nota destoante é a tentativa de abordar pelo viés psicoló-gico o apoio popular ao golpe. Para Figueiredo, teria sido resul-tado do “desejo de autopunição do eleitorado janista, que não se perdoava por ter sido enganado pelo candidato vitorioso em 1960”.

Sobre a obra: 1964 – O Último Ato, de Wilson Figueiredo. Gryphus 188 p., 2014.

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