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UM NOVO HORIZONTE PARA O PAÍS

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Um novo horizonte para o país

Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

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Presidente de Honra: Armênio Guedes (In memoriam)Presidente: Alberto Aggio

política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho(In memoriam)

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2016 by Fundação Astrojildo Pereira

Obra da capa e contracapa: Aquarelas: Série Paisagens ([email protected])

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2016.ISSN 1518-7446 No 46

200p.

CDU 32.008 (05)

política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Novembro/2016

Um novo horizonte para o país

Sobre a capa

A artista plástica Conceição Rodrigues, cujas aquarelas embe-lezam esta edição de nossa revista, formou-se, em 1977, na Universidade de Brasília e, logo em seguida, foi morar no Rio de Janeiro. Trabalhou um período em publicidade e depois resolveu se dedicar integralmente às artes plásticas. Fez três anos (1990-92) de Parque Lage, onde pôde desenvolver uma rotina de ateliê na busca de uma identidade de trabalho. Ali participou da cole-tiva “Núcleo”, em 1992. Depois disso, passou a dividir ateliê com artistas e a expor suas obras em salões. Destaque-se ter sido agraciada com prêmio aquisição no 14º Salão Nacional de Artes Plásticas e em individuais e coletivas como as da Casa de Cultura Laura Alvim, do Museu Nacional de Belas Artes, do Paço Imperial, do Centro Cultural dos Correios, da HAP Galeria, da Valu Oria, em São Paulo. Assim como de feiras de artes. Em 2004, exibiu algumas de suas obras na Galeria Debret, em Paris, e, em 2007, fez Especialização em Arte e Arquitetura no Brasil, na PUC-Rio.

Sobre seu trabalho, Conceição revela: “Sempre entendi o traba-lho de arte como construção de uma linguagem, com vocabulário e questões próprias ao artista. É uma construção árdua e perma-nente, sem fim. Ao olhar o conjunto de trabalhos desses quase 25 anos, poderia afirmar que apesar das várias fases, das diversas técnicas investigadas, essencialmente, é no espaço da paisagem onde se encontram minhas questões. Não o espaço tradicional, mas um espaço de memória, de atmosferas, de vazios, de vestígios, de fragmentos, de manchas. Hoje, a questão do fragmento e do vazio poderia ser definida como a minha questão central”.

Podemos constatar suas palavras na série “Paisagens”, das quais algumas peças estão expostas na capa e contracapa deste número da PD. O leitor pode também assistir a Conceição Rodri-gues – Aquarelas, Série Paisagens, no endereço https://youtu.be/uJSpjMiqN5A. Além disso, ela se faz presente no Facebook, no endereço Conceição Rodrigues (Artista Plástica).

Sumário

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: UM NOVO HORIZONTE PARA O PAÍSO impeachment venceu nas urnasRoberto Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

O Brasil começa a virar a página da insensatezIvan Alves Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

O que resta para a esquerda?Alberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

II. ENTREVISTAEm busca de uma nova política, com o senador Cristovam Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

III. CONjUNTURAInfortúnios de uma políticaJosé Antônio Segatto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

A cultura da corrupção na sociedade brasileiraAntonio Geraldo da Siva / Fernando Portela Câmara . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Novo bloco possívelMoacir Longo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

IV. OBSERVATóRIOA nova política interativa pós-junho/2013Laécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Bresser, entre a economia e a políticaHamilton Garcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

O nosso Pacto de MoncloaLeonardo Mota Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

V. QUESTõES DO ESTADO E DA CIDADANIAO Programa Bolsa Família no enfrentamento à pobrezaMarlene Vaz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileirasMarcus Vinicius Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Pedestres do mundo, uni-vos!Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

VI. ECONOMIA & DESENVOLVIMENTOAlforriafiscalAntônio Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113Brasileiro não reconhece coerência na agriculturaAdriana Brondani . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121De joelhos para a evasão fiscalAylê-Salassié F. Quintão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

VII. MUNDOO mundo de TrumpLuiz Carlos Azedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129O fim do dilema corneilleano dos EUASamara Z. L. Sabino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132Eleição americana e o Colégio EleitoralArlindo Fernandes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

VIII. BATALHA DAS IDEIASSocialismo, liberalismo e a síntese Sérgio C. Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139Da faculdade de fingirFlávio R. Kothe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145Ideias para a transiçãoErnesto Caxeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

IX. ENSAIOFundamentos políticos e sociais da análise marxista do DireitoGastão Rúbio de Sá Weyne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

VIII. MEMóRIA & HOMENAGEMO monumento aos Pracinhas (que o Niemeyer não fez)Dulce Rosa Rocque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173Nise da Silveira, rebeldia que gera ciênciaTiago Eloy Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176Homenagem ao Geraldão Milton Coelho da Graça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

VIII. RESENHACapitalismo e população mundialAlfredo Maciel da Silveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187Uma trajetória consistente e coerenteOsvaldo Euclides . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192Charles Taylor e o psicossocial na cidadaniaPedro Augusto Pinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196

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Editorial

Um novo horizonte para o país

Após o impeachment de Dilma Rousseff e a assunção defi-nitiva de Michel Temer à Presidência da República, o país pôde, enfim, começar a se reorganizar, em todas as dimen-

sões. Contudo, os déficits e as disfunções acumuladas durante os últimos governos petistas revelaram-se de tal monta que se tornou, cada vez mais evidente, que seria cheia de obstáculos, e necessitaria de paciência e sobriedade a travessia até bom porto, com a recuperação da economia e o retorno ao diálogo saudável entre as forças políticas, abrindo novos espaços à sociedade civil.

Diante desta situação e do que prevê a Constituição de 1988, o governo de Temer se apresentou como de transição, cujo objetivo central estaria em rearranjar o país com o objetivo de chegarmos a 2018 com alguma estabilidade e a economia funcionando fora das imposições da recessão profunda em que fomos metidos; na melhor das hipóteses, já superando ou dando os primeiros passos para ultrapassar a austeridade que naturalmente qualquer polí-tica de ajuste acarreta.

O governo Temer estruturou-se, num primeiro momento, isto é, na sua fase de interinidade, de maneira extremamente dependente da aprovação do impeachment. Esse elemento condicionante ainda permaneceu regendo a orientação mais geral de sua composição, mesmo depois de consumado o impedimento. A razão é simples: trata-se de compor e manter uma base de apoio ao governo no Parlamento, que seja capaz de dar sustentação e aprovação às reformas necessárias para o país ingressar num novo curso.

A composição do pessoal governante do Executivo trouxe, no entanto, diversos problemas ao governo em razão da trajetória

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anterior do seu “núcleo duro”, quase todo ele comprometido com problemas de corrupção que foram levantados pela Operação Lava-Jato, dentre outras. Diversos ministros tiveram que ser substituídos e o último caso – a substituição do ministro Geddel Vieira Lima – evidenciou que o problema é mais grave e profundo: a emergência do velho patrimonialismo a solapar a res publica, pelo qual multidões saíram às ruas desde 2013.

O país necessita certamente de um governo que realize os ajustes necessários para que se retome o crescimento, mas em seu período transitório de dois anos não pode dar as costas ao que comanda o espírito do nosso tempo: a necessidade de trans-parência e lisura na administração pública, em defesa do que é patrimônio de todos. O país mudou e contesta com vigor a priva-tização do Estado, seja ela de que natureza for. Os órgãos da grande imprensa, as TVs e, sobretudo, a internet, com suas redes sociais acessadas permanentemente por milhões de brasileiros, colocaram a sociedade no centro da política, como um player que não quer mais deixar de influenciar nesse jogo e tem as condições (tecnológicas) para tal.

É necessário se construir, portanto, um novo horizonte a partir de uma posição de intransigência em defesa da coisa pública. As forças políticas que dão sustentação ao governo de transição devem aprofundar esse entendimento e estabelecer as orientações setoriais nessa direção, convidando também as forças políticas de oposição a ultrapassarem as fábulas que construíram “as narrativas do golpe” para darem um passo além da revanche que estão a projetar.

O país precisa se unir e buscar um novo horizonte para reali-zar essa travessia. Boa parte dos textos aqui publicados compar-tilham essa preocupação – acrescida da vitória de Donald Trump, que assumirá o governo dos Estados Unidos em fevereiro próximo – e a perspectiva.

Boa leitura!

Os Editores

I. Tema de capa

Autores

Alberto Aggio Historiador, é professor titular da Unesp

Ivan Alves FilhoHistoriador, autor de mais de uma dezena de livros, em que se destaca Memorial dos Palmares

Roberto FreireDeputado federal e presidente nacional do PPS

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O impeachment venceu nas urnas

Roberto Freire

Pouco mais de um mês após o Senado votar o impeachment de Dilma Rousseff e colocar um ponto final no desgoverno do PT, os brasileiros foram às urnas, em outubro, e deram

o seu recado inequívoco. O resultado das eleições municipais expressou um sentimento que já era predominante nas ruas e sepultou definitivamente a narrativa estapafúrdia de que a petista teria sido afastada da Presidência da República por meio de um “golpe”. O fato inconteste é que as forças políticas que apoiaram o impedimento experimentaram um crescimento significativo no pleito, enquanto os lulopetistas e seus satélites foram derrotados nos quatro cantos do país.

A indignação contra o desmantelo, a irresponsabilidade e a corrupção desenfreada que levaram o Brasil ao buraco, após 13 anos sob o comando de Lula e Dilma, foi traduzida em votos que não dão margem a qualquer dúvida. O PT sofreu uma redução de mais de 60% no número de prefeituras (de 644, em 2012, para 261, em 2016) e obteve vitória apenas em uma capital, Rio Branco/Acre, sendo expelido dos grandes centros urbanos e empurrado aos grotões do país. No estado de São Paulo, a queda vertiginosa atingiu níveis nunca antes imaginados sequer pelos seus adver-sários mais ferrenhos, ao ser derrotado fragorosamente na região do ABC, onde o partido teve sua origem.

Tais dados indicam que, se quiser continuar existindo como uma força política relevante, o PT terá de passar por uma profunda autocrítica, ainda que tardia.

1212 Roberto Freire

Por outro lado, é perceptível o avanço dos partidos que inte-gravam a antiga oposição e apoiaram o impeachment. Nesse grupo, é importante destacar o crescimento das três legendas que compõem um campo mais progressista e representam a esquerda democrática brasileira – o PPS (sucessor do Partido Comunista Brasileiro), o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e o PV (Partido Verde) –, também como forma de desmistificar a equivocada tese lulopetista de que o PT detém o monopólio das esquerdas no país, o que não passa de uma falácia.

Outro dado sobre o qual devemos refletir nessas eleições é o grande contingente de eleitores que votaram em branco ou anula-ram o voto. Quanto ao índice de abstenção, que ultrapassou os 17,5% (ante 16,4% de 2012), é necessário evitar conclusões preci-pitadas sobre esse fenômeno. É que, apesar de a taxa de não comparecimento às urnas ter subido em 17 das 26 capitais em relação a 2012, ela caiu onde houve o recadastramento biométrico obrigatório. Nesses municípios, o índice foi de apenas 13,2%. Assim, é provável que o índice geral de abstenções tenha sido inflado em decorrência da desatualização dos dados onde não foi feito recadastramento.

É evidente que a classe política deve estar atenta em relação à descrença e ao desencanto dos eleitores, mas o número de absten-ções não se explica por tais fatores, mas talvez em razão das opções de candidatos multivariados.

O que se explica, de maneira didática e indubitável, é a ampla rejeição dos brasileiros a um projeto de poder que chega ao fim de forma melancólica. O impeachment de Dilma, que se tornou reali-dade graças à mobilização da sociedade nas redes e nas ruas, e a derrota fragorosa de Lula e do PT nas eleições municipais mostram que o país virou uma página infeliz de nossa história e está pronto para construir o futuro.

Sem onda conservadora

Após verem sepultada a narrativa de que Dilma Rousseff foi apeada do Planalto por meio de um “golpe”, o PT e seus satélites tentam justificar a acachapante derrota nas eleições municipais com outra tese igualmente desprovida de qualquer sentido. A palavra de ordem entoada pelo núcleo duro do lulopetismo é de que o Brasil teria sido tomado, nas urnas, por uma “onda conser-vadora”. Trata-se de um raciocínio equivocado, segundo o qual

1313O impeachment venceu nas urnas

todos aqueles que se opõem ao PT são direitistas e, alguns, até traidores. Além de interditar o debate, tal postura é de uma deso-nestidade intelectual atroz.

No Rio, alguns apregoam que a vitória de Marcelo Crivella seria um indicativo de que a “onda conservadora” veio para ficar. É evidente que não se pode tomar um caso isolado como um retrato do que ocorreu por todo o Brasil. A cidade sentiu falta de alternativas políticas mais amplas e teve de escolher entre duas candidaturas fundamentalistas, uma de cunho religioso e outra politicamente dogmática. Uma de viés mais conservador e outra também sectária, de uma extrema-esquerda que muitas vezes serviu como linha auxiliar do lulopetismo. Basta ver o comporta-mento do candidato do PSOL que, quando confirmado no segundo turno, excluiu a possibilidade de diálogo com as correntes políti-cas que considerava “golpistas”.

Outra falácia é de que a “não política” teria sido a marca dessas eleições. É certo que houve uma forte rejeição aos políticos tradicionais, mas não à política em si. Em São Paulo, João Doria se apresentou como um empresário, mas em nenhum momento deixou de destacar que é filho de um político cassado pelo golpe militar de 1964.

Assim como a tese do “golpe” havia sido enterrada, a narrativa da “onda conservadora” foi desmentida pelo resultado das elei-ções. Basta analisar o desempenho das forças políticas vitoriosas, tendo como principal partido o PSDB, que, mesmo com suas contradições internas, é uma estultice querer confundi-la com a direita nacional. É um partido que está no campo da social-demo-cracia e, junto conosco, honrando a esquerda democrática brasi-leira, no seu sentido mais amplo.

Um longo caminho para recuperar o Brasil

Como um paciente enfermo que ainda está na fase inicial do tratamento para alcançar a cura, o Brasil começa a dar os primei-ros passos em direção ao estancamento dos efeitos da grave crise econômica que o atinge e, ainda que timidamente, enxerga no horizonte a possibilidade de retomada da geração de empregos e do crescimento. A débâcle proporcionada pelos governos de Lula e Dilma foi de tal ordem arrasadora que, por menor que tenha sido a recuperação até este momento, alguns dados positivos já fazem

1414 Roberto Freire

muita diferença e causam um forte impacto, sobretudo em rela-ção às expectativas quanto ao futuro do país.

Algumas das notícias mais auspiciosas vêm justamente da Petrobras, a nossa maior empresa e aquela que foi mais vilipen-diada pela corrupção sem limites da quadrilha que a saqueou nos últimos 13 anos. Segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, a estatal ostenta uma valorização de 168% em suas ações acumuladas em 2016, o que a levou da 11ª para a 8ª colocação em um ranking de valor de mercado que reúne as principais compa-nhias do setor em todo o mundo.

Outra conquista alvissareira é a aprovação pela Câmara dos Deputados, em 2º turno, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que estabelece um teto para os gastos públicos pelos próximos 20 anos, sempre com base na inflação do ano anterior. Trata-se de uma medida essencial para o futuro do país e que dá consequência à Lei de Responsabilidade Fiscal, oferecendo um ambiente de segurança e previsibilidade para os agentes econô-micos voltarem a investir no Brasil. Espera-se, agora, que o texto seja aprovado também pelo Senado para que o país equilibre suas contas e recupere a confiança, na perspectiva do cresci-mento econômico.

Ao contrário das bravatas propagadas pelo PT e seus satélites, é importante destacar que a proposta não ameaça, de forma alguma, os investimentos em saúde e educação. Como já explicou o próprio presidente da República, essas duas áreas são prioritá-rias e estarão absolutamente preservadas. Na educação, em 2017, primeiro ano de vigência da PEC, o gasto seguirá a regra atual (com o investimento no setor de 18% da arrecadação total líquida do governo federal) e, a partir de 2018, esse valor mínimo será corrigido pela inflação. No caso da saúde, a regra em vigência determina que o governo tem de gastar na área o equivalente a 13,7% de tudo o que arrecadar, mas com a PEC esse percentual passará, já no próximo ano, a 15%. Não há nenhum teto para investimento em saúde e educação – o que existe é apenas um piso mínimo, que pode e deve ser ultrapassado.

Com estas duras, mas necessárias, providências, pomos fim ao orçamento-ficção que, para atender as corporações, não se preocupava em atuar com dados objetivos. Desta forma, coloca-mos no centro das atenções as prioridades maiores dos brasilei-ros e passamos a entrar na realidade, como ela é e não como gostaríamos que ela fosse.

1515O impeachment venceu nas urnas

Por outro lado, apesar de alguns indicadores que permitem uma perspectiva otimista em relação à economia brasileira, deve-mos ter a consciência de que o Brasil tem um longo e árduo cami-nho pela frente até superar, definitivamente, a maior crise de sua história. A prioridade absoluta deve ser a aprovação de reformas que tenham efeitos imediatos para a rápida reativação econômica, com foco na retomada da capacidade de investimento e na gera-ção de empregos.

Ao contrário do que alguns apregoam de forma equivocada, o governo de transição que aí está não é nem tem condições de ser de “salvação nacional”, que vá resolver todos os problemas do país em um passe de mágica. Não será ele que conseguirá levar adiante, em um período de apenas dois anos, todas as reformas estrutu-rantes de que o Brasil precisa.

Neste primeiro momento, devemos nos concentrar no apro-fundamento da reforma administrativa e do enxugamento da máquina pública, no debate e na efetivação da reforma política, em projetos importantes como aquele que muda as regras de exploração do petróleo do pré-sal, entre outros. Reformas mais complexas, que demandam uma discussão muito mais intensa e profunda com os diversos setores da sociedade, devem ser tare-fas do governo eleito em 2018.

Depois de anos de pedaladas, irresponsabilidade fiscal, corrupção desenfreada, incentivo desbragado ao consumo e um total aparelhamento do Estado em nome de um projeto de perpe-tuação no poder, é evidente que o Brasil terá de enfrentar um caminho tortuoso até voltar aos trilhos do desenvolvimento. As primeiras medidas já foram tomadas e não faltam indicado-res que apontam para um futuro mais sustentável e menos turbulento. Os desafios são imensos, mas estamos na direção correta. Com uma administração responsável, o apoio expres-sivo do Parlamento e a confiança do povo brasileiro, nada será capaz de nos desviar da rota do futuro. Ainda falta muito, é verdade, mas chegaremos lá.

1616

O Brasil começa a virar a página da insensatez

Ivan Alves Filho

A marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras progressistas

iniciais e assume posicionamentos conservadores, se não reacio-nários. Após quase uma década e meia no poder central, foi o que a prática petista, cada vez mais autoritária, deu a entender. Nesse sentido, podemos até nos perguntar se o petismo e alguns aliados seus não podem ser encarados como uma variante do fascismo, movimento surgido na Itália no fim da Primeira Guerra Mundial. Ou será preciso recorrer uma vez mais à boa e velha noção de populismo latino-americano para entender a trajetória do Partido dos Trabalhadores? Tendemos a considerar que o bloco capitane-ado pelo petismo estivesse pelo menos a um passo do fascismo, o que não exclui naturalmente que tenha tido entre seus compo-nentes elementos do populismo.

Com efeito, chama a atenção o fato de que algumas das marcas estruturais do fascismo estão presentes igualmente na cultura petista ou do chamado lulopetismo. Corporativismo, conluio criminoso com o grande capital, autoritarismo político, manipu-lação das massas pelos sentimentos e emoções, venda de ilusões, recurso à demagogia barata diante das demandas vindas dos setores populares, instrumentalização dos sindicatos, política de apelo nacionalista cada vez que uma dificuldade séria se apre-senta, aparelhamento do Estado, linguagem incitando à violência, corrupção desenfreada e tentativas de estabelecer o chamado diálogo direto com as massas por intermédio de um chefe caris-mático – eis em que se assenta, ao menos nos últimos anos, a experiência do petismo. E só para refrescar a memória, o grande ideólogo do fascismo, o italiano Benito Mussolini, o Duce, fez parte de sua carreira política na esquerda.

O petismo sempre defendeu um ideário de corte autoritário, de exclusão do outro da política. É a tal postura do “nós contra eles”, “dos puros contra os impuros”. Alguns dos dirigentes petistas mais proeminentes sempre acusaram os membros dos outros partidos de fazerem o que eles mesmos fizeram depois, surpreen-

1717O Brasil começa a virar a página da insensatez

dendo a nação. Durante várias campanhas eleitorais, petistas acusavam seus adversários de proporem a privatização da Petro-brás – e promoveram, sem dúvida, a pior das privatizações, ou seja, o assalto aos cofres da nossa maior empresa para atender aos interesses de uma entidade privada, como é o caso de um partido político. O juiz Sérgio Moro, da Operação Lava-Jato, falou diretamente na existência de um “grupo criminoso estruturado e sofisticado” atuando no desvio de dinheiro público.

No tocante ao aparelhamento do Estado, a performance petista só é comparável, em termos de Brasil, ao Estado Novo de Vargas e à Ditadura de 1964. Basta citar as dezenas de milhares de nomeações que promoveu país afora. Era uma tentativa de perpe-tuação no poder como em outras fases autoritárias da nossa História recente. E como lembrou, com muita razão, Cristovam Buarque, defender o Estado não significa colocá-lo a serviço dos “funcionários das estatais”, numa espécie de “estatização neolibe-ral”. Pelo contrário, implica ampliar sua capacidade de adminis-tração e intervenção públicas.

E o que dizer dos arroubos nacionalistas que volta e meia acometem o petismo? Toda vez que se confronta com uma dificul-dade intransponível, esta corrente política grita por socorro: isto é, se escora no pré-sal, no golpe imperialista e por aí vamos, em um bolivarianismo primário (e talvez estejamos aqui cometendo um pleonasmo).

Sabemos que as atitudes racionais não estão muito em alta na política hoje. No plano das tiradas emocionais, o petismo tampouco trai sua dívida para com um certo autoritarismo. As declarações de alguns de seus dirigentes, ao longo do processo de impeach-ment, foram totalmente movidas à emoção, com insistentes lembranças por parte da ex-presidente afastada Dilma Rousseff, por exemplo, da prisão que sofreu durante o regime militar ou mesmo da doença que teve de encarar, colocando-a frente à frente com a morte. O que aconteceu com ela foi duro – mas não é preciso que seja lembrado a todo instante. Afinal, com todo o respeito, muitas outras pessoas também passaram – ou ainda passam – por situações duríssimas na vida. O discurso do ex-presidente Lula, na sede nacional do Partido dos Trabalhadores, em 25 de setembro último, um dia após ser denunciado pelo Ministério Público Federal à Operação Lava-Jato, foi na mesma direção emocional daquele da ex-presidente Dilma.

1818 Ivan Alves Filho

E aqui abordamos a questão do carisma pessoal, de que tão bem se vale o ex-presidente, com não menos insistentes referências à sua infância de menino pobre do Nordeste, de filho do povo. Alguém com a cara do Brasil atingia finalmente o mais alto cargo da República, algo que nunca acontecera na História deste país. Isso foi apresentado a todos nós como se o povo tivesse finalmente alcançado o poder. O indivíduo era a massa – quase uma versão em sinal trocado do l´Etat c´est moi, do Absolutismo. E a identificação do partido com o seu chefe passou a ser total, a ponto de podermos falar hoje em lulopetismo, conforme destacamos anteriormente.

No decorrer do processo de impeachment, chegou-se a justifi-car o recurso aos créditos suplementares – sem a devida autoriza-ção do Congresso, como determinava a Constituição Federal – em nome da manutenção do programa Bolsa Família, do auxílio aos pobres. Com um detalhe altamente significativo: um deputado revelou, com base nos próprios números divulgados pelo governo Dilma, que essa verba representava apenas 3% do total dos recur-sos arrolados pela administração federal para justificar os tais créditos. A opção pelos pobres – algo de forte conotação religiosa, elevado aqui quase a um conceito de corte sociológico, e não pelos trabalhadores, como até alguns petistas salientaram – foi se configurando como o alvo político preferencial do partido.

A coerência em relação às práticas autoritárias tampouco nega fogo quando o assunto é corporativismo. Sindicalistas muitas vezes comprometidos com o projeto petista deflagraram greves cujo centro era o ganho salarial imediato para uma determinada cate-goria profissional, em detrimento do interesse mais geral da comu-nidade ou do conjunto dos trabalhadores. Muitos ainda devem se lembrar dos grevistas que ameaçaram desligar os aparelhos nas unidades de tratamento intensivo de alguns hospitais de Pernam-buco, gritando slogans despropositados contra o governo Arraes. Ou de um chefe sindical ameaçando invadir – diante da própria ex-presidente Dilma, no próprio Palácio do Planalto, em 1º de abril de 2016 – residências e gabinetes de parlamentares.

Destacaríamos ainda que a ex-presidente afastada tentou desqualificar, o tempo todo, o processo de impeachment, alegando que tivera 54 milhões de votos. Uma vez mais, estamos diante de um grave equívoco, para dizer o mínimo. Por vários motivos. Primeiro, a ex-presidente não obteve tais votos sozinha – Michel Temer compôs a chapa com ela; e não era nem de longe o candi-dato das oposições, ao que consta. Quem votou em Dilma Rous-seff votou em Michel Temer, legitimando-o também. E nunca é

1919O Brasil começa a virar a página da insensatez

demais lembrar que o PMDB é o principal partido do país, com grande penetração nas pequenas e médias cidades, ajudando de forma significativa a eleger a então candidata do PT. Segundo: os congressistas que a afastaram do poder também foram eleitos pelo povo – e a ex-presidente Dilma, sabe-se lá por que motivo, parece ter se esquecido disso. Terceiro: a representatividade do Congresso é a mesma do Executivo, já que emana igualmente das normas eleitorais da democracia. Quarto: curiosamente, como observou o jornalista Zuenir Ventura, em artigo no jornal O Globo, a ex-presidente afastada, que tanto criticou o suposto golpe de Estado promovido contra sua gestão, se esqueceu de rechaçar o “fatiamento” da votação do impeachment, o qual a possibilitaria manter seus direitos políticos intactos. Por uma questão de coerência, deveria ter recusado o tal “fatiamento”. Quinto: os juízes do impeachment julgaram apenas as ações que a ex-presi-dente realizou no exercício do seu governo – e as consideraram criminosas, por sinal. Em nenhum momento, eles questionaram o número de votos que ela obteve ou sequer a forma como os obteve – uma atribuição do Tribunal Superior Eleitoral, que ainda vai julgar as contas da sua campanha de 2014. Somente no Abso-lutismo e nas ditaduras fascistas ou populistas é que o “príncipe” não é submetido ao império das leis.

O lulopetismo também cometeria graves equívocos no que tange a seu relacionamento com o grande capital financeiro. Segundo o próprio ex-presidente Lula, nunca os bancos ganha-ram tanto dinheiro como nos seus dois governos (2003-2006 e 2007-2010). Isso, para não aludirmos aos desacertos que promo-veram junto aos bilionários fundos de pensão (nos primeiros dias de setembro, os jornais divulgaram que o déficit atuarial atingia 46 bilhões de reais nos fundos da Caixa Econômica, dos Correios, do Banco do Brasil e da própria Petrobrás). No dia 23 de outubro deste ano, o jornal Folha de S. Paulo publicou que “sob governos do PT, de 2003 a 2015, o faturamento do grupo Odebrecht multi-plicou-se por sete, de 17,3 bilhões para 132 bilhões, em valores nominais (a inflação do período foi de 102 %).” E se formos entrar no terreno igualmente pantanoso do chamado mensalão – ou da compra de apoio parlamentar para a formação de uma base polí-tica dócil aos interesses do PT, compra essa que condenou à prisão membros destacados do governo Lula, no primeiro grande escân-dalo da sua gestão –, constataremos que sua política subordinou sistematicamente o interesse coletivo ao privado, o Estado perdendo parte de sua dimensão pública. Patrimonialismo é isso aí – e em caráter quase puro. Não por acaso, a Lava-Jato prendeu

2020 Ivan Alves Filho

mais de cem pessoas, em dois anos e meio de atuação, conde-nando mais de meia centena delas. E tudo indica que vem muito mais por aí até setembro de 2017, novo prazo dado para suas averiguações. Seguindo os preceitos de Maquiavel, o PT imaginou que os fins justificavam os meios. Só que os fins se foram e fica-ram apenas os meios – e estes eram em boa medida autoritários e marcados por práticas de corrupção. Shakespeare chegou a ser cruel quanto aos abusos que se fazem em torno da ética: “a hones-tidade é a forma mais refinada de empulhação”.

E aqui cabe uma observação de corte mais geral: determina-das práticas da política brasileira até lembram, pelo seu refina-mento, o modus operandi de organizações mafiosas. Ocorre que os agrupamentos que possuem um pé no autoritarismo têm um inegável viés marginal, uma atração irresistível pelo crime e não é um mero acaso se tantos delinquentes se sentem atraídos por determinadas ações. Quem não respeita a lei geral, costuma fazer a sua própria lei. A Alemanha do falecido Adolf Hitler chegou a ser pródiga nessa matéria e muitos chefes do Partido Nazista vieram do chamado lumpenproletariat. Os marginais não têm adversá-rios: eles têm inimigos. E inimigo tem de ser liquidado. Simples assim. O confronto é tudo e o diálogo nada. A lógica da negocia-ção e da conversa, esta sim, é que emana da prática política propriamente. Fato muito preocupante – e sem dúvida estimulado pelo clima reinante na política e na sociedade brasileiras – foi a irrupção, nas eleições municipais de 2016, do crime organizado na cena política, promovendo atentados que aterrorizaram algu-mas regiões do país e custaram a vida a muitos candidatos.

A lógica do autoritarismo é, portanto, aquela da terra arrasada. E o petismo, em particular, sempre teve dificuldades em entender ou assimilar as instituições da democracia. Os fatos não desmen-tem isto, ao contrário. Quando da ida das oposições ao Colégio Eleitoral, em 1984, o PT chegou a expulsar de seus quadros os parlamentares que votaram com o oposicionista Tancredo Neves contra Paulo Maluf, candidato da base do regime ditatorial. Aparen-temente, para uma grande parte ao menos dos petistas, era indife-rente o país continuar ou não vivendo sob uma ditadura militar. Na visão de alguns, talvez porque o PT tenha sido legalizado por ela, contrariamente ao que ocorrera com o PCB, o PCdoB e o PSB, que tiveram de aguardar a instalação do regime civil democrático para vislumbrar plenamente a luz do dia. Neste sentido, os petistas não poderiam mesmo dar tanto valor assim a algo que receberam de bandeja do regime militar moribundo.

2121O Brasil começa a virar a página da insensatez

Seja como for, o porquê disso é, ainda hoje, motivo de grande controvérsia. Prosseguindo, convém recordar que a chamada Cons-tituição Cidadã não foi bem absorvida pelo PT por ocasião da sua promulgação, em 1988, já que o partido se recusou a participar da sua homologação coletiva. Apesar de ter assinado formalmente a Carta Constitucional, o PT votou contra o texto, infelizmente. Em 2013, o próprio ex-presidente Lula reconheceria que se “o Regi-mento (do PT) fosse aprovado, o país seria ingovernável”. Mais: quando Itamar Franco assumiu a Presidência da República, o petismo simplesmente lançaria a palavra de ordem “Fora, Itamar”, chegando a pedir seu impeachment assim como o de Fernando Henrique Cardoso mais adiante. Em 1993, quando do plebiscito sobre a forma (se regime republicano ou monarquista) e o sistema de governo (se presidencialista ou parlamentarista), os petistas se posicionaram contrários ao parlamentarismo, apesar de ser esse modelo bem mais avançado do que o presidencialismo.

E o que dizer das propostas feitas pelo petismo ao longo de todos estes anos? Talvez isso: nunca saíram praticamente dos gabi-netes. PAC, Fome Zero, Primeiro Emprego, Pátria Educadora não passaram de promessas. Mesmo um programa como o Bolsa Famí-lia se revelou muito mais assistencialista do que transformador. As reformas prometidas tampouco se concretizaram. Pior: os dados oficiais demonstram que, entre 2003 e 2010, ou seja, durante o consulado de Lula da Silva, a área ocupada pelo latifúndio passou de 51,6% para 56,1% do total das terras agricultáveis.

Em outras palavras, o petismo abalou a esquerda brasileira. Concordemos ou não com suas propostas, os comunistas iam para a cadeia por subversão. Infelizmente, altos dirigentes petis-tas foram encarcerados por suspeita de corrupção – algo que deixará marcas profundas na História do Brasil, muito tempo após o desaparecimento de cena do lulopetismo. E pensar que muitos desses dirigentes repetiram, durante anos, o slogan “ética na política” até à exaustão. Vai ver que alguns acreditavam mesmo que uma inverdade dita muitas vezes poderia virar a mais sincera das verdades. Como o fazem agora com a narrativa do “golpe”.

Em 2016, diante da iminência da derrota de seu projeto de governo, uma resolução da direção do PT publicava um docu-mento em que se podia ler: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso

2222 Ivan Alves Filho

democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação”.

Trata-se inegavelmente de um projeto autoritário, de corte bolivariano. Tão grave quanto estas tentativas, felizmente aborta-das, foi o estrago causado pela corrupção em quase todos os seto-res da vida nacional.

A trajetória do PT dá o que pensar. Muitos jovens acreditaram sinceramente nesse projeto partidário e alguns se veem hoje desi-ludidos com a política. Afinal, como os jornais destacaram, a soma dos votos brancos, nulos e abstenções foi superior aos votos do candidato que ficou em primeiro lugar em nove capitais, no primeiro turno das eleições. Mas desanimar, daqui e dali, não significa desistir. E a esperança deve voltar. Se o Brasil começa a virar a página da insensatez, podemos notar também que o petismo pode ganhar uma sobrevida por meio de outros movimentos que se põem a trilhar o mesmo caminho seu do início dos anos 80.

Não foi fácil lidar com estas dificuldades durante todos estes anos. O isolamento de alguns setores da esquerda democrática, por exemplo, foi grande. Para que uma outra prática se imponha, é preciso que o campo democrático se mantenha unido em torno de dois objetivos claros e imediatos, a saber: recuperação da economia e manutenção das regras constitucionais. Isto vai muito além das esquerdas. Isto é, superar a gravíssima crise econômica, gerar empregos e aprofundar a democracia representativa são tarefas fundamentais, nacionais. Tarefas árduas, sem dúvida, implicando reformas incontornáveis, tamanho o descalabro que grassa em várias esferas da vida brasileira, da educação à saúde, da segurança ao sistema de transporte. Antonio Gramsci escre-veu, certa feita, que toda a luta da Humanidade implicava a cria-ção de instituições cada vez mais democráticas e que satisfizes-sem as necessidades de cada um. Este nos parece ser o caminho. E aqui cabe realçar o protagonismo dos liberais nas diversas fren-tes que derrotaram todos, mas absolutamente todos, os governos autoritários ou populistas entre nós, do Estado Novo de Vargas à ditadura dos generais e desta ao “Estado Novo do PT” (esta última expressão foi desenvolvida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna, um dos maiores intelectuais brasileiros). Ontem como hoje, empo-derar a virtude parece ser a única maneira de fazer triunfar os valores da civilização – liberdade, igualdade e fraternidade.

2323O Brasil começa a virar a página da insensatez

O que queremos dizer com tudo isso, em síntese? Que o Huma-nismo é uma força considerável do nosso tempo, no plano interna-cional. E suas bases estão assentadas em duas premissas. De um lado, se alicerça na crescente consciência que o indivíduo vai tomando sobre seu papel na sociedade e, de outro, se alimenta da sensação que esse mesmo indivíduo tem de que vive em um mundo extraordinário, passível de ser explorado ad infinitum. Tal como o filósofo e estadista inglês Francis Bacon, no século XVIII, entendeu a importância da técnica para o pleno desenvolvimento da socie-dade, hoje, da mesma forma, o pleno desenvolvimento do mundo atual pressupõe o recurso às tecnologias de ponta, cujo impacto sobre as forças produtivas não para de nos assombrar. É que não há democracia nem desenvolvimento sem o conhecimento. O grande desafio é saber exatamente qual a cara política que terá esta nova realidade alicerçada nas profundas transformações por que passa a base material da sociedade contemporânea.

Seja como for, a batalha da sociedade brasileira por mais transparência e exercício pleno da cidadania deve continuar se expandindo e se manifestando. Os movimentos que ganharam as redes sociais e as ruas do Brasil, em junho de 2013, constituíram apoio decisivo a essa notável Operação Lava-Jato e ao próprio Congresso Nacional, culminando com o afastamento de Dilma Rousseff. Além disso, a ampla vitória eleitoral das forças do campo democrático nas principais cidades do país, em outubro de 2016, também demonstra que o povo, em centenas de cidades, não deseja mais ser governado pelo sistema político do lulopetismo, derrotando as ameaças autoritárias.

Isso tem que ver igualmente com transformações profundas que se operam no aparelho produtivo e com a conformação da força de trabalho no Brasil, nos últimos tempos: mais de um terço dos trabalhadores do país desenvolvem atividades por conta própria e isso coloca problemas novos para as forças que traba-lham com as propostas politicamente renovadoras. Sopram ventos democráticos, apesar de alguns impasses, como no Rio de Janeiro (mesmo assim, os partidos mais identificados com o campo demo-crático, que infelizmente se apresentaram divididos, tiveram mais votos do que os dois primeiros colocados vistos separadamente).

Democracia como meio e fim, ampliação da autonomia e dos direitos individuais, transparência e gestão compartilhada das riquezas, inovações tecnológicas incidindo sobre o modo de vida aqui e agora, luta pela diminuição do fosso entre a ciência e a população, oportunidades iguais para todos, trabalho por conta

2424 Ivan Alves Filho

própria ou empreendedorismo, estão entrando na ordem do dia entre nós e modificando profundamente o quadro atual e apon-tando para novos desafios. Com isso, vai surgindo também uma nova intelectualidade, mais técnica, o trabalhador da ciência; ao mesmo tempo em que se renovam as práticas do Direito, com a entrada em cena de um grupo de jovens procuradores e juízes, na esteira da Carta Constitucional de 1988.

Aprendemos com Armênio Guedes que o conceito de esquerda não é fixo e que o que era considerado esquerda lá atrás não o é mais hoje. Na verdade, ampliou-se talvez o espaço para uma polí-tica de novo tipo, a política do campo democrático, ao mesmo tempo em que se verificou um certo cansaço em torno de posicio-namentos demagógicos. Se uma parte da antiga esquerda resvala, via populismo, cada vez mais em direção ao fascismo, a sua parte mais sadia demonstra a vitalidade da sua opção democrática, incorporando valores como liberdade de imprensa e de expressão, alternância de poder, liberdade de reunião. Todos estes são valo-res, hoje, do próprio processo civilizatório, do Humanismo. E ainda temos um grande aliado nessas redes sociais, hoje prati-camente um novo poder, ao mesmo título que as instituições da sociedade civil e do próprio Estado.

Ernst Bloch chegava a falar em “escuridão do momento vivido”, ao tentar entender uma determinada conjuntura. Real-mente, não é nada fácil. Porém, é incontornável que o cerco agora vai se fechando com uma tripla vitória das forças democráticas: política (impeachment), jurídica (Lava-Jato) e eleitoral (com o grande passo dado nas eleições municipais de 2016, quando as forças que se juntaram para apoiar o impeachment de Dilma Rousseff foram as grandes vencedoras). Na base disso tudo, nunca é demais lembrar, se encontram as extraordinárias mani-festações de massa de junho de 2013.

Acabou o tempo das ilusões com propostas que quase nunca saíram do papel no Brasil. Adeus, populismo – aos vencedores, a Democracia.

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O que resta para a esquerda?

Alberto Aggio

No início da década de 1990, Norberto Bobbio chamou a atenção para o fato de que, se era constatável a morte do comunismo, seria necessário admitir que as razões da

sua existência permaneciam vivas, na medida em que se faziam presentes, ao redor do mundo, as marcas da desigualdade. Guar-dadas as situações e identidades diferenciadas, o argumento de Bobbio talvez possa ser útil na reflexão sobre a situação que se impôs depois do desastre eleitoral do PT.

Os resultados eleitorais indicam, se não o fim do PT, ao menos o fim da era eleitoral de predomínio do petismo. Contudo as razões que marcaram a simbologia desse partido ainda se fazem presen-tes, além de outras que vão seguramente além do PT. Não à toa, voltou-se a falar em “refundação do PT”, em “nova esquerda” e mesmo numa “outra esquerda”.

Nascido na transição para a democracia, o PT contestou as instituições estatais da modernização autoritária, notadamente as que bloqueavam a livre ação sindical. Buscou um protago-nismo exclusivo para demarcar sua identidade e virou as costas para os atores democráticos que lutaram contra a ditadura. Além disso, alicerçou-se na transformação societária que estimulou o consumismo de cima a baixo da sociedade, tornando homólogos interesses e direitos.

Seu grupo dirigente deriva de uma simbiose entre os derrota-dos da luta armada, católicos de base e sindicalistas que viam a lógica dos interesses econômicos como superior a qualquer outra. Cristalizou uma cultura política de rechaço, mesclando-a com a representação de interesses corporativos e setoriais. Ambas as operações serviram à lógica de conquista do poder. Foi assim que o PT se moveu nas disputas eleitorais sucessivas até conquistar a Presidência da República, em 2002.

Depois da conciliação inicial, o governo petista voltou a buscar sua identidade exclusivista por meio de um deslocamento regres-sivo notável: de um partido contestador do Estado e da sociedade, que se havia formado a partir da modernização autoritária, o PT

2626 Alberto Aggio

retomou o programa nacional-desenvolvimentista, reafirmando a centralidade do Estado, para dar passagem a uma aliança instru-mental com o grande empresariado, visando à sua inserção compe-titiva na economia globalizada. Essa estratégia reforçou o projeto de poder, que não poderia sofrer contestação, sob o argumento de que se tratava da defesa dos mais pobres e do interesse nacional.

Essa operação regressiva impactou a linguagem e as condutas da competição política, produzindo um efeito nefasto: a introdu-ção da contraposição “nós versus eles”, que causou um efeito devastador para a convivência democrática. Em simultaneidade, os movimentos sociais foram perdendo a autonomia propositiva e de ação que tinham e, estatizados, passaram a servir ao projeto de poder do petismo. Com acerto, Luiz Werneck Vianna caracteri-zou essa regressão como “o Estado Novo do PT”.

A crise de 2008 e o aprofundamento da estratégia nacional-desenvolvimentista, redefinida como “nova matriz econômica”, jogou o País na maior crise econômica da sua História e a socie-dade voltou a se defrontar com o flagelo da inflação, da recessão e do desemprego. Este cenário dramático e os processos de corrup-ção movidos pela Operação Lava-Jato evidenciaram o vínculo entre o controle corrupto de estatais, como na Petrobras, e o projeto de poder do petismo. O bumerangue não tardaria seu retorno, explo-dindo nas manifestações multitudinárias pelo impeachment até sua conclusão. O resultado eleitoral nada mais fez do que jogar uma pá de cal no projeto de poder do PT, sem remissão.

O que resta agora para a esquerda? Em primeiro lugar, é preciso ultrapassar o PT e superar o binarismo instituído na competição política e eleitoral. O raciocínio binário carrega consigo uma estupidez intrínseca, com suas oposições estanques e uma visão de futuro canhestra e inflexível. Depois do desastre eleitoral, o PT e a esquerda, que gira entorno dele, atualizaram esse binarismo com o diagnóstico de que sua derrota corresponde a um “avanço do conservadorismo”. Trata-se de um desdobra-mento mecânico da fábula do “golpe” e do “Fora Temer”.

Obviamente que há uma ascensão do conservadorismo na opinião pública. Isso é visível no plano cultural, mas ainda não atingiu com vigor a dimensão do político. Aliás, expressando-se por meio de lideranças de extrema direita, nessa dimensão, ele é francamente minoritário. É observável, contudo, que o conserva-dorismo ganha desenvoltura em confrontação com o binarismo petista, um modo de pensar apodrecido que não serve para nada.

2727O que resta para a esquerda?

De nada serve também advogar por uma “nova esquerda” buscando repor um passado que atribua a ela estratégias e o espírito de ação inspirado em Che Guevara ou no ativismo de maio de 1968. O mundo mudou substantivamente e isso já ficou para trás há muito tempo. Em paralelo a essa confusão há quem construa a utopia de uma “esquerda movimentista”, na qual a sociedade seja o “grande ator”, em substituição e de costas para os partidos. Os paradigmas seriam a Grécia insurgente do Syriza e a Espanha pré-Podemos: uma perspectiva de grandes ilusões e parcos resultados.

O mimetismo uruguaio é outro modelo reivindicado. Por ele se pensa a refundação do PT por meio de uma Frente Ampla de parti-dos e movimentos sociais. Essa operação visa a passar ao largo de uma autocrítica rigorosa e de inúmeras questões decisivas, tanto teóricas quanto políticas, deixando-se dominar inteiramente pelo cálculo eleitoral. Parece ser uma “solução” instrumental e retó-rica, nada mais do que isso.

Todas essas proposições estão fadadas ao fracasso. Elas não enfrentam seriamente o problema e não empreendem verdadeira-mente uma ultrapassagem do PT. O tempo exige uma “outra esquerda”, plural, democrática e reformista que possa superar as visões finalistas e ingressar no século 21 com corpo e alma novos.

Prosseguindo o debate

Para aprofundarmos mais a discussão, seria importante relembrar que dentre os vários ensinamentos, que a história e a sociologia política nos legaram, está a noção de que “conceitos são palavras em seus contextos”. Tanto mais se o conceito em questão guarda uma polissemia construída historicamente. É esse preci-samente o caso da noção de “esquerda”, assimilada como um conceito que, no plano político, deve ser pensado de maneira rela-cional. Assim, em relação à esquerda talvez não se deva buscar nem uma normativa fora da história nem uma suposta evolução conceitual que derive em significados absolutos e imutáveis.

Olhando historicamente, é constatável que a esquerda pode, muitas vezes, estar ausente ou ser muito rarefeita num determi-nado sistema de forças políticas, tornando difícil sua identifica-ção. Não é incomum que a esquerda se mostre dividida em vários grupos, sem que se possa dizer qual deles é mais representativo ou autêntico. Também não são poucas as ocasiões em que a

2828 Alberto Aggio

esquerda se expressa como uma força antagônica ao sistema social, ou, como conciliatória no sistema político, não se descar-tando até mesmo uma combinação, às vezes surpreendente, entre ambas. Desnecessário dizer, portanto, que estamos diante de um universo de possibilidades quase infinito.

Em função da crise vivenciada pelo PT e do debate que está provocando, nota-se que, não raro, emergem equívocos de inter-pretação a respeito dos problemas de identidade da esquerda. Por vezes, vemos predominar nas intervenções de intelectuais e polí-ticos um reiterado dogmatismo, ao se sugerir diversos invólucros para abrigar o que seria uma “verdadeira esquerda”, como uma espécie de Graal capaz de dirigir as massas que, em tese, esta-riam dispostas a se manterem vinculadas ao PT ou ao que vier a emergir da sua crise.

Há problemas de diagnóstico no enfrentamento da crise do PT e dos destinos da esquerda brasileira. Além do corporativismo, do personalismo e do reconhecimento do que agora se chama de “reformismo fraco” promovido pelo lulismo, justificadamente levantados, há questionamentos mais amplos a respeito da visão totalitária presente em parcelas da esquerda, da sua inclinação para o adesismo e, por fim, do seu viés populista.

A retomada do tema do totalitarismo dá a impressão de um recuo no tempo. É curioso observar que a parcela da esquerda brasileira que há anos rechaça práticas do totalitarismo seja desconsiderada no debate, especialmente aquela que assumiu como central a perspectiva da “democracia como valor universal”. Imaginava-se que o PT também havia cumprido esse percurso, mas depois se percebeu que entre seus dirigentes havia mais retó-rica do que convicção nessa direção. De resto, felizmente, a esquerda que valida práticas totalitárias é, entre nós, residual. Surpreende, contudo, termos que retornar a tal ponto para pensarmos numa “reconstrução da esquerda”. Talvez este seja um forte indicativo das limitações intelectuais que este campo sofre para avaliar o fracasso do petismo e os desafios do futuro.

O mesmo ocorre com o tema do adesismo, uma ideia banal presente no imaginário esquerdista. Trata-se de uma definição de esquerda a partir do seu status antissistema, de sua eterna voca-ção anti-institucional. Suspeita-se da incorporação da esquerda ao sistema da democracia representativa e da afirmação de uma “esquerda de governo”, quer como líder de uma coalizão quer como um dos partidos coligados de um governo democrática e constitu-

2929O que resta para a esquerda?

cionalmente instituído. Este fantasma martiriza a esquerda por se temer uma identificação com a socialdemocracia ou com um “reformismo” que busque soluções positivas por meio de refor-mas institucionais, de programas sociais universalistas e de transformações culturais democráticas e emancipadoras. Na velha linguagem, o que há é o temor de que a esquerda adminis-tre o capitalismo, como se esta fosse a questão definidora no nosso tempo. Novamente, há um retorno a uma abordagem antiga, inviabilizando um diagnóstico mais preciso da crise e dos elementos teóricos que devem ser mobilizados para a recons-trução da esquerda, especialmente diante de um cenário de ruínas deixado pelo petismo e de um contexto mundial cheio de sobressaltos e riscos para o país.

O populismo, por fim, é um problema mais profundo. Trata-se de um conceito fracassado na interpretação da história latino-ame-ricana. Contudo, o que chamamos hoje de populismo, vindo da esquerda ou da direita, ultrapassa suas origens, fronteiras e marcos históricos de referência, manifestando-se essencialmente, e em perspectiva, como uma política de rechaço à democracia. Para se afirmar como “antielitista”, o populismo mobiliza o conceito de “democracia iliberal” para relativizar seu rechaço aos sistemas democráticos do nosso tempo. Caracterizado como ideologia ou apenas como uma retórica, o fato é que a contraposição entre popu-lismo e democracia indica que não poderá haver uma esquerda democrática que compactue ou coqueteie com o populismo. As experiências recentes do bolivarianismo, que arrasaram a econo-mia da Argentina e da Venezuela, comprovam tal evidência.

No Brasil, este problema é visto de soslaio e se perde num esca-pismo que não consegue dar conta de explicar que as razões do fracasso do PT repousam mais no colapso do esquema mafioso de poder e de uma política econômica desastrosa do que da imposição de um “populismo orgânico”. O PT, de bom grado, deixou-se asse-nhorear por Lula e hoje vive para defendê-lo. Sendo impossível deslocar seu protagonismo, Lula passou a ser um poderoso obstá-culo para que a esquerda, a partir do petismo, se reinvente no país.

O debate em torno do futuro da esquerda brasileira deve ser mais exigente e se colocar à altura dos desafios do nosso tempo, buscando um novo lugar no mundo para o Brasil, e não se pautar por um catá-logo antigo dos pecados cometidos pela esquerda histórica.

II. Entrevista

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Em busca de uma nova política

Entrevista com Cristovam Buarque, economista, engenheiro, ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-governador do Distrito Federal e ex-ministro da Educação, atual senador

da República (PPS-DF), feita por Arlindo Oliveira, Caetano Araújo, Francisco Almeida e Luiz Carlos Azedo, do Conselho de Redação da revista Política Democrática.

Política Democrática – Como caracterizar o Brasil de hoje?

Cristovam Buarque – Somos um país dividido em uma parcela moderna, decomposta em corporações, sem um interesse nacional comum e sem uma perspectiva de longo prazo que beneficie as futuras gerações; e uma parcela excluída da educação, da saúde, da renda, da participação política. Não há, entre nós, um senti-mento de nação federativa, já que cada grupo deseja se apropriar da maior parcela possível dos recursos públicos e da maneira mais imediata. Eles se aliam para forçarem os governos a atenderem a todas as reivindicações e gastarem mais do que os limites possíveis e provocam endividamento, juros altos e inflação. As corporações dos bancos ganham com os juros; as dos sindicatos, sobretudo as dos funcionários públicos, porque passam a se justificar como os promotores dos periódicos reajustes de salários e vencimentos; e as dos empresários, porque remarcam os preços. Na República Corpo-rativa, procura-se aumentar os ganhos de cada grupo, não como beneficiar a todos e ao país. Querendo atender à corporação a qual pertence e da qual depende na sua reeleição, cada parlamentar faz

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acordos concedendo tudo o que as corporações pedem, pressio-nando nos corredores do Congresso. Nesse sentido, o Estado foi apropriado pelas corporações e pelos grupos políticos.

PD – Os movimentos contra a PEC do Ajuste Fiscal têm relação com esta sua visão?

CB – Claro, o corporativismo não aceita a ideia de um limite para os gastos públicos porque isso exigiria que alguma corpora-ção perdesse para outras – ou para os que não têm corporação. A proposta de emenda à Constituição que define um limite nos gastos traria o realismo na política, forçaria uma disputa entre grupos com o sentimento mínimo de nação. Entretanto, por mais necessária que seja para frear a voracidade corporativa dentro da democracia, a PEC poderá fracassar por falta de uma liderança que consiga convencer os brasileiros corporativizados a fundarem uma República Federativa de um só Brasil. Condição básica para o realismo fiscal.

PD – Nesse sentido, qual seria o papel do Estado?

CB – Tenho impressão que o público não é mais sinônimo de estatal. Às vezes, o público preserva privilégios de minorias e, outras vezes, o privado, sob certas regras, pode servir ao público. Então, é preciso publicizar o Estado e publicizar o setor privado. Na relação com o setor privado, respeita-se o lucro, mas o papel do setor privado é público, por isso que há setores que o Estado retira da exploração econômica, como a produção de drogas. O Estado determina que não se pode ganhar dinheiro com droga. Trata-se de uma intervenção do Estado. Creio que o papel do Estado é fiscalizar. Outro ponto importante diz respeito às finan-ças. A esquerda em geral e a esquerda socialista, na verdade, foram sempre responsáveis no trato das finanças públicas. Mas a nossa esquerda desenvolvimentista, à frente o PT, tem sido irres-ponsável com as finanças públicas. Temos que ter coragem de dizer que a austeridade é uma qualidade, é um valor da esquerda, no tocante às finanças públicas e ao dia a dia da vida do consumo.

PD – Explique melhor sua posição.

CB – Quando éramos jovens, o consumo excessivo era coisa de burguês, agora virou um direito proletário. Quando o Lula diz que todo mundo tem direito a ter dois carros, sinceramente não entendo

3535Em busca de uma nova política, com o senador Cristovam Buarque

o que ele quer dizer com isso nem aonde pretende chegar. Há limi-tes ambientais claros a que todos tenham o nível de consumo dos ricos, hoje. Se o consumo exagerado não universalizável não é um direito, mas um privilégio, a esquerda deve se opor a todos os privi-légios. Temos que repensar o papel do Estado, não só separando o interesse estatal do interesse público, mas também tomando cons-ciência dos limites do Estado, sobretudo os financeiros.

PD – E a responsabilidade fiscal?

CB – Acho que é uma bandeira a ser defendida. A inflação é antipovo por duas razões: primeira, é um imposto perverso, rouba o povo, quando você entrega 100 uma quantidade de moeda que só vale 80; e, segunda, provoca um retrocesso na cabeça do povo, que deixa de perceber a situação de escassez de recursos públicos e a necessidade de definir prioridades para sua utilização. Vou dar um exemplo: a PEC 241 (agora PEC 55) vai provocar um avanço na consciência do cidadão. As pessoas irão perceber que os recursos são escassos e os interesses e prioridades das diferentes classes e grupos sociais são diferen-tes. Ao reivindicar uma fatia maior do orçamento, todos terão que indicar de onde sairão esses recursos. O embate de interes-ses vai ser colocado na discussão do orçamento, a cada ano. Isso vai provocar uma conscientização política.

O PT e os que lhe acompanham na defesa da educação nem sempre entram nessa briga, preferem “denunciar” que reduziram o dinheiro que era para a educação, em vez de brigarem para aumen-tá-lo. Por exemplo, gastam-se hoje 5 bilhões de reais, com isenção de impostos, para financiar a educação privada. Por que eles não têm coragem de propor a transferência desse dinheiro para a rede pública? E as isenções fiscais milionárias que beneficiam a indús-tria, por que não repassar esse dinheiro para a educação?

PD – Como você avalia o ocorrido no pleito municipal deste ano?

CB – As eleições municipais, nos dias 2 e 30 de outubro, mostraram que o lulopetismo e seus seguidores foram enterrados. Há muitas razões para isso, como a divulgação da corrupção, do aparelhamento da máquina estatal, da cooptação de partidos e parlamentares, mas não podemos esquecer também que eles tomaram posição contra a história, ao tentar barrar a globaliza-

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ção e o avanço técnico, que estão em marcha. Não é tentando barrar o processo da globalização e do avanço científico e tecno-lógico que vamos resolver o problema, mas debatendo, formulando e implementando um novo sistema, que possa ampliar os benefí-cios e minimizar os danos. Precisamos ser capazes de navegar nesses novos tempos e formular alternativas a favor do povo, das massas, da humanidade, de todos.

PD – Pelas suas observações, deduz-se que você defende uma nova política.

CB – Evidente que sim e por duas razões: primeiro, porque uma nova política, focada no aprofundamento da democracia e na subordinação do Estado aos interesses da sociedade e não de suas corporações pode efetivamente atrair pessoas e estimulá-las a uma maior atividade pública; e, segundo, porque uma nova política pode criar condições para que possamos dar novos rumos ao país.

PD – A globalização, até o presente, sempre beneficiou os países centrais. Talvez por isso tenha gerado uma reação ambígua na esquerda. Mas hoje se constata que a globaliza-ção provoca perdas na Inglaterra e nos Estados Unidos e gran-des benefícios na China, na Índia, no Vietnã e na África. Esta nova situação confunde a análise da esquerda tradicional?

CB – Quem trouxe a ideia de internacionalização na esquerda foi Karl Marx. Ele era um internacionalista total. E o movimento comunista foi internacional. É evidente que precisamos de uma internacionalização que vá além dos interesses do capital, aten-dendo aos interesses da humanidade. Por exemplo, temos que defender os emigrantes do mundo, expulsos de seus países pelas forças da globalização. Temos que sair em defesa da livre imigra-ção. Os interesses das crianças da África e do mundo inteiro, que são os verdadeiros portadores da utopia do futuro, devem ser por nós defendidos nos fóruns internacionais, com programas de educação mundializados, não no conteúdo, pois devemos respei-tar o local, mas, no que toca ao acesso, na qualidade da escola. Assim, devemos defender uma globalização positiva.

PD – Retornemos à questão do avanço técnico.

CB – Vou pegar um caso, o Uber. E por que? Porque podemos usá-lo para tudo. Acho que vamos passar por uma “uberização” geral. Até por questão pessoal de amizade com vários taxistas,

3737Em busca de uma nova política, com o senador Cristovam Buarque

fico revoltado com o estrago que o Uber está fazendo com eles. A saída para a esquerda, no entanto, não é proibir, mas é ver como incorporar a todos na “uberização”, inclusive os taxistas atuais, e não deixar que estes sigam sacrificados nesse processo, ao qual eles não conseguiram ainda se integrar. Podemos pensar em adotar programas sociais, promover treinamento, mas barrar não vai ter como, nos próximos dez anos. E isso vale para quase tudo.

As transformações nas relações trabalhistas não têm como parar. Surgem novas profissões e todas estão ficando com prazo determinado de existência. Como é possível pensar em uma esta-bilidade de 35 anos em uma profissão que não dura cinco anos?

PD – No caso concreto do Uber, qual seria a diferença entre a esquerda e a direita?

CB – A visão da esquerda seria: “Chegou o Uber, é impossível frear isso no tempo, mas precisamos saber como faremos para os taxistas não passarem fome, porque hoje estão passando”. Temos que olhar para esse pessoal, porque temos sentimento de solida-riedade com as pessoas, temos compaixão, palavra fundamental, que não está no vocabulário político da direita. A visão desta seria: “Deixa vir a concorrência”, sem pensar na situação dos taxistas. Agora, há uma esquerda que quer ficar contra o avanço e outra que não fica contra o avanço. Se a esquerda é progres-sista, tem que está a favor do avanço técnico. Mas não vou deixar que as pessoas sofram ou ignorem o sofrimento.

PD – Então, você diria que os objetivos da esquerda conti-nuam atuais, mas os meios que antes ela estava empregando ficaram ultrapassados?

CB – Os objetivos da utopia também mudam. Primeiro, creio que se deve romper com a ideia da utopia como produto de uma engenharia social, criada por intelectuais e políticos. Utopia hoje é definida no processo, não é mais uma premonição do destino, do objetivo final. Segundo, tem que ser democrático este processo e, às vezes, submeter-se a retrocessos porque esta é a vontade da maioria. Terceiro, os próprios objetivos da utopia estão sujeitos à validação democrática da maioria. Ou seja, objetivos, propostas e políticas que não sejam convincentes para a maioria perdem a relevância política. Utopia imposta é uma contradição em termos.

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Há algumas questões que se apresentam de maneiras novas. Uma delas é a sustentabilidade ambiental, o equilíbrio ecológico, tema subestimado no pensamento da esquerda tradicional. Outra é a questão da desigualdade social. Penso que hoje devemos consi-derar aceitável a desigualdade, no consumo e na renda, no inte-rior de dois limites. O inferior seria o mínimo necessário a uma vida digna. O superior, as limitações impostas pelas restrições de caráter ambiental, como consumo de energia e de recursos natu-rais. Encaradas a sério, estas restrições imporiam a restrição pesada ao transporte individual, ao consumo de certos alimentos, bem como ao uso de recursos hoje considerados inesgotáveis, como a água. Haveria uma desigualdade eticamente tolerada no consumo e na renda de cada um, no interior desses limites.

Não pode haver desigualdade em dois pontos inegociáveis: o acesso à educação e à saúde. O acesso à educação, numa nova política, tem que ser igual para todos: ricos e pobres, patrões e empregados, no fim do processo, uns terão estudado mais, outros menos, mas com acesso igual. E, na saúde, ninguém pode viver mais que outro porque tem dinheiro, ou seja, não deve ser possí-vel comprar vida com dinheiro ou perder a vida por falta de dinheiro, assim como o talento não pode ser comprado por quem tem dinheiro e negado a quem não o tem.

PD – Por que uma nova política é necessária, hoje?

CB – Antes de tudo é, preciso defini-la. Na minha opinião, três características a definem: 1) insatisfação com o status quo; 2) ter uma utopia como norte; 3) a consciência de só podermos nos aproximar da utopia pela prática política. Vivemos uma situação em que a desigualdade social, a depreciação ambiental e a aliena-ção nas relações interpessoais aumentam. Temos razões muito boas para não estar satisfeitos e para abraçar um conjunto de valores como objetivo utópico. O corpo social não se organiza espontaneamente, precisa da política. E como faliram as forças que se apresentavam, até agora, como únicos representantes desse campo, nunca uma política de novo tipo foi tão necessária.

PD – Para construir um novo projeto político, como vamos sair das imensas dificuldades em que estamos, não só do ponto de vista da montagem do Estado?

3939Em busca de uma nova política, com o senador Cristovam Buarque

CB – Deveríamos começar um processo amplo de discussão a respeito das características da nova política e suas diferenças com política tradicional. Um debate amplo com a militância do PPS, com outros partidos, movimentos sociais e intelectuais. Nesse debate, um primeiro aspecto é afirmar que a velha política acabou, e um segundo é a necessidade de uma nova política, e, por fim, definir que temos uma proposta a oferecer ao debate sobre uma nova política democrática e republicana, pois pode ser que estejamos errados em nossa visão e em nosso projeto.

Creio que o PPS é um partido que pode apresentar uma alter-nativa, por sua rica trajetória, sem dúvida alguma pela coragem de ter rompido, mais de uma vez, com uma série de dogmas e concepções equivocadas e ter-se construído como uma organiza-ção antenada com o novo.

Acho que outro grande mérito do PPS é não ter ficado ligado às corporações. É isso que nos dá independência hoje, não sermos vassalos dos sindicatos. Eleitoralmente, foi um desastre, porque os sindicatos têm dinheiro, têm gente. Mas ideologicamente foi positivo, pelos novos tempos. Não ficamos prisioneiros do Estado arcaico, do Estado aparelhado.

PD – Em que momento da trajetória do PT no governo teve origem o fracasso econômico que resultou na presente crise?

CB – Foi Dilma quem errou mais, pois Lula manteve a política econômica de Fernando Henrique, por bastante tempo.

PD – Como vê a questão de reformar as instituições políti-cas, mantendo as conquistas já obtidas?

CB – Primeiro, preciso lembrar que algumas conquistas são privilégios, não conquistas, uma vez que não é possível universa-lizá-las. Devemos separar o que é conquista e o que é privilégio, e temos que trabalhar isso com coragem.

Segundo, temos que descobrir o que é direito e também formu-lar nossos deveres. A Constituição é carente de deveres que unifi-quem os cidadãos, condição para que as pessoas se sintam parti-cipantes de uma mesma nação. E o direito individual, às vezes, põe as pessoas em oposição, enquanto os deveres unificam as pessoas numa mesma direção. Ouvimos que a Constituição é cidadã. Acho que ela é ainda muito corporativa, já que nela vão se

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relacionando direitos, sem a necessária contrapartida dos deve-res para com a sociedade.

Temo que esteja em curso um processo de desagregação nacio-nal. E não temos vetores aglutinantes. O salário, por exemplo, não aglutina, cada um tem o seu, cada um quer o máximo.

A educação sim aglutina, por isso ela é tão importante. Seria aí que viria o espírito nacional. Temos que ter coragem para trabalhar, separando o que é direito do que é dever, o que é direito do que é privilégio. A nova política não pode ser patroci-nadora de privilégios. Há coisas que são legítimas, mas não dá para todos terem. Um grande médico tem o salário alto. Tudo bem, ele ganhou aquilo no processo de formação, de estudo, no acúmulo do capital do conhecimento. Não é possível que todos tenham o seu salário, mas, nesse caso, há legitimidade, pelo que ele tem de capital e pelo que ele dá de retorno para a sociedade. Vamos sair do médico e ir para o esportista ou o artista popular. O Neymar da vida tem legitimidade para ter aquele salário, pela alegria que transmite para todo mundo. Mas tem uma parcela da população que tem certos salários e outra que tem certos lucros, além de outros que têm certas isenções de impostos, sem legitimidade. São privilégios que não podemos tolerar. E temos que identificar onde estão os privilégios na sociedade brasileira e começar a lutar contra esses privilégios.

O povo está querendo uma nova visão e prática políticas que não apenas denunciem e combatam os privilégios, mas tudo façam para eliminá-los.

PD – Dentro do que você está dizendo, a gente pode pensar então que, na sua ideia, acabou aquela velha concepção de que o Estado seria o grande construtor de uma utopia socialista. A sociedade civil hoje seria a grande protagonista. É isto?

CB – Por exemplo, o Brasil quis, durante um largo tempo, que o Estado fizesse portos, estradas e escolas. Ficou com portos ineficientes e escolas ruins. É muito mais interessante dar os portos para o setor privado, já que ele é o principal usuário, assim como os aeroportos e as estradas. Como não quis que o usuário pagasse a estrada, e, de graça, as estradas ficaram ruins e as escolas também.

Em ciência e tecnologia, por exemplo, não dá pra ter pedágio, embora eu creia que se deva incentivar o surgimento de pequenos

4141Em busca de uma nova política, com o senador Cristovam Buarque

bancos que financiem pesquisas, pequenos grupos de pessoas que se reúnem e trabalham...

Mas as grandes pesquisas são financiadas pelo Estado, e aí entramos num ponto muito polêmico: as universidades devem ser grátis ou pagas? Eu defendo que a universidade presta dois servi-ços: um que eu chamo de escada social para o aluno, que deve ser pago, e outro que é uma alavanca para o progresso da nação, que deve ser grátis. Por exemplo, quem quer estudar para ser profes-sor do ensino médio tem que estudar de graça, mesmo que o pai seja rico. Pesquisador tem que estudar de graça, assim como os músicos, porque ambos trabalharão para o progresso de todos. Há áreas diferentes, por exemplo, como a Medicina, na qual você nunca sabe onde o médico vai trabalhar. Se ele vai para o SUS, acho que não tem que cobrar, mas se ele vai para o consultório privado, tem que cobrar e ele assume o débito.

PD – Como explicar isto à opinião pública?

CB – É difícil. Muita gente hoje é a favor que pague quem for rico, ou filho de rico. Eu acho que esta posição é a que mais preva-lece hoje, se a pessoa está na universidade ou fora dela. Mas eu acho que tem que se fazer um debate, ajustar o discurso ideoló-gico a um programa eleitoral. A gente pode agora não se opor mas pode se ajustar, ou dizer que, nos próximos dez anos vamos manter como é, e depois caminharmos numa nova direção.

PD – O que o Estado financia e o que ele não financia?

CB – Tem que escolher. Para ter uma escola boa vai ter que deixar de fazer algumas coisas, como não usar o dinheiro público para pagar aeroportos, por exemplo. E não ter medo da palavra privatização, embora prefira publicizar com o dinheiro privado e publicizar o que é do Estado.

PD – São várias as pessoas que dizem que a principal crítica ao ciclo político que findou recentemente, no Brasil, não se refere à competência econômica, e nem à corrupção, mas sim à má qualidade dos serviços públicos, que resultou do controle da educação e da saúde, por interesses corporativos.

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CB – Eu ainda não tinha ouvido ninguém falar nisso, mas acho muito pertinente. A esquerda tem que ter compromisso com a qualidade do serviço público. Pra isso vai ter que escolher por quais serviços públicos o Estado deve se responsabilizar e quais devem ser transferidos para o setor privado.

PD – E há a questão da responsabilização dos servidores nos serviços públicos. Algumas pessoas acham que cobrar do médico que esteja presente no hospital seja algo que vai contra o interesse da categoria. Na verdade, trata-se de defen-der a sociedade. Não é isso?

CB – Isto é a meritocracia, que alguns acham ser uma coisa conservadora. Ou você é meritocrata ou entramos numa situação de irresponsabilidade com a prestação de serviços públicos. Hoje, o trabalhador estatal está acima de críticas e avaliações: ninguém toca, ninguém tira, ninguém reclama, ninguém avalia. Temos que defender a meritocracia, mas não podemos admitir que o mérito seja definido exclusivamente pelo diretor da escola ou pelo superior imediato. Tem que ter critério, como ouvir os professores para saber o que é mérito. Eu acho que uma boa parte dos profes-sores quer ser avaliada por mérito, desde que isso seja feito de uma maneira séria, porque eles se sentem incomodados com aqueles que não trabalham. Não é universal a ideia do acomoda-mento na estabilidade.

PD – Como comunicar com clareza estas propostas à população?

CB – Num curso que proferi recentemente, ao invés de chamar de Reforma da Previdência eu chamei uma Previdência Perma-nente, pois esta que aí se encontra vai acabar. Ou então dizer, uma Reforma da Previdência para servir aos jovens, não aos mais velhos, como ocorre hoje. A Reforma Trabalhista, que me permite trabalhar 12 horas em um dia, estava dando liberdade ao trabalhador de escolher trabalhar 12 horas no dia e 4 no outro, ou trabalhar dois dias seguidos as 12 horas e ficar um dia de folga, o que é positivo e já acontece em algumas categorias profissionais. Esta PEC do Teto, eu chamaria, em nome da clareza, de a PEC do óbvio, pois não se pode gastar mais do que se tem. A dificuldade de comunicação é uma das coisas que me preocupa no governo Temer.

III. Conjuntura

Autores

Antonio Geraldo da SilvaPsiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

Fernando Portela CâmaraPsiquiatra e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

José Antônio SegattoProfessor Titular de Sociologia da FCL/Unesp

Moacir LongoJornalista, ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo cassado, consultor e assessor de imprensa

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Infortúnios de uma política

José Antônio Segatto

Lá vem a nega Luzia/ No meio da cavalaria/ Vai correr lista lá na vizinhança/ Pra pagar mais uma fiança/ Foi cangebrina demais/ Lá no xadrez/ Ninguém vai dormir em paz/ Vou contar pra vocês/ O que a nega fez/ Era madrugada/ Todos dormiam/ O silêncio foi quebrado/ Por um grito de socorro/A nega rece-beu um Nero/ Queria botar fogo no morro.

“Nega Luzia”, de Wilson Batista e Jorge de Castro

Desde o primeiro momento em que o impeachment da então presidente da República, Dilma Rousseff, foi aventado por setores da oposição a seu governo, ilustres dirigentes

petistas e líderes de movimentos sociais, seus aliados, passaram a proclamar, em alto e bom som, que tal desígnio seria intolerá-vel sob todos os aspectos. Caracterizado como golpe, deveria ser obstado por todos os meios possíveis e imagináveis. Os métodos, quaisquer que fossem, de defesa do governo seriam justificáveis, já que se tratava de impedir uma armação contra o poder popular, montada por forças de direita, majoritárias no Congresso Nacio-nal, legitimado pelo Judiciário arbitrário e pela mídia monopo-lista e reacionária.

Com este entendimento, as advertências aos propósitos ou tentações golpistas ganharam modulação estridente. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, prome-teu inédita mobilização dos trabalhadores, “para ir às ruas entrin-cheirados de armas nas mãos”. João Pedro Stedile, dirigente do

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), advertiu que iria colocar seu exército de trabalhadores rurais nas ruas. Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ameaçou botar fogo no Brasil. No mesmo diapasão, Lula da Silva anunciou que “poderia incendiar o país”. José Guima-rães, deputado federal e líder petista, anunciou: “Agora, é rua e guerra” – os golpistas haveriam de arder em praça pública ou quei-mar no fogo do inferno. Os ímpetos sediciosos e as obsessões piro-maníacas, que visavam atemorizar velhos e novos inimigos, trans-formaram-se, entretanto, em meros blefes e não encontraram ressonância nem mesmo em seus supostos representados.

Tal qual a barafunda promovida pela “nega Luzia”, o caso da reação loquaz ao pretenso golpe da direita por parte daqueles personagens íntimos do poder, tendo ou não recebido “um Nero”, envolvido ou não em “cangibrina demais”, é fato que a suposta resistência limitou-se, ao fim e ao cabo, a algumas bravatas, esperneios e espasmos de oratória retumbante. Tirante algumas tentativas de demonstração de força, afirmações de desagravo e prédicas altissonantes de indignação para o público interno, aqui e ali, até mesmo a direção do PT pareceu resignada e, por que não, aliviada com o desfecho.

Parte significativa dos filiados ou coligados, em especial, deputados e senadores, governadores e prefeitos, vereadores e comissários procuraram rapidamente salvaguardar suas carrei-ras; muitos, inclusive, ignoram o governo destituído, fazendo de conta que nada tinham a ver com ele. Alguns dirigentes conside-ram mesmo que o impedimento da presidente foi uma espécie de tábua de salvação, oportunidade excepcional de unir o partido por meio da vitimização, além de conveniente para livrá-los do compromisso de sustentar a companheira-governante incômoda que só causava desgaste para a imagem partidária.

Como explicar que um governo – com mais de 13 anos contí-nuos no poder – que chegou a ter uma poderosa base aliada no Congresso, com altos índices de popularidade, que parecia contar com o apoio compacto da sociedade civil e estar solidamente incrustado nos aparatos do Estado, repentinamente viu-se isolado e apeado do mando, abandonado à própria sorte?

A resposta, entendemos, envolve um conjunto complexo de fatores e questões, sobretudo as de natureza política. Entre eles, há alguns que podem ajudar na compreensão deste processo: 1) o inusitado estelionato eleitoral de 2014, quando a coligação PT/

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PMDB não só camuflou a real situação de crise do Estado e da economia, como prometeu o paraíso e entregou o inferno – milhões de trabalhadores, que haviam tido alguma melhora nas condições de vida, voltaram à situação antecedente; 2) o acúmulo de práti-cas e valores políticos antirrepublicanos, deficitários de ética e democracia, saturados de patrimonialismo e clientelismo na gestão de instituições públicas para preservação do poder, de maneira permanente; 3) ao contrário do expresso na retórica e no marketing, da implementação de um projeto nacional desenvolvi-mentista, a economia política dos governos petistas redundou em recessão e, a seguir, numa depressão econômica sem preceden-tes: crise fiscal e descontrole dos gastos públicos, aumento da inflação e brutal desemprego, descapitalização e/ou dilapidação de bancos e empresas estatais, subsídios e financiamentos públi-cos colossais a grupos empresariais aliados, desindustrialização e regresso à economia primário-exportadora; 4) o desarranjo da governabilidade, ancorada na aliança PT/PMDB e partidos satéli-tes, organizada e operada por meio da negociação de cargos, da oferenda de verbas e de recompensas políticas e pecuniárias – o desmanche do presidencialismo de coalisão ocasionou a pertur-bação do arranjo de poder petista e pôs empecilhos, que transtor-naram a já débil capacidade governativa; 5) ao deixar de ser um partido da e para a sociedade civil, o PT, concomitantemente, estatizou e/ou cooptou movimentos sociais, organizações, entida-des (CUT, MST, MTST, UNE etc.) – procedendo dessa forma, imobi-lizou-os e despojou-os de suas finalidades e, quando alijado do poder deles necessitou, viu sua capacidade mobilizatória obstada.

Os elementos antes enumerados, juntamente com outros fatos e contingências, acarretaram a corrosão lenta e contínua da credibilidade do governo, conduzindo-o, mesmo, à perda de legiti-midade política. Possibilitada, outrossim, pelo fato de, em quase quatro décadas de existência e mais de treze anos de poder, o PT não ter sido capaz de conceber e implementar um projeto de hege-monia política. Optou por exercer o poder pelo domínio, desconsi-derando as exigências para habilitar-se como dirigente.

Ao contrário, restabeleceu antiquados métodos de mando das velhas classes dominantes brasileiras: cooptação de parte da sociedade civil e política (corporações, movimentos, sindicatos, partidos, igrejas, imprensa, personalidades do mundo da cultura e intelectuais etc.) por meio do aliciamento ou submissão, merca-dejando patrimônio e fundos públicos. “O PT governou o país com práticas políticas da República Velha, mesmo que em nome de

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valores e princípios da esquerda pós-moderna” (MARTINS, 2016). Isto criou condições para o revigoramento da cultura política antidemocrática e de forças hiperconservadoras e fisiológicas (expressas hoje no “centrão”), que medraram à sombra ou em zonas soturnas do poder petista, alimentadas pelo clientelismo, pelo patrimonialismo e pelo corporativismo.

Fernando Henrique Cardoso (2016) tem advertido para as consequências perniciosas da ascensão de “setores fundamentalis-tas”, portadores da “agenda do atraso”, “que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas etc.)”. Em síntese: “Nessa reviravolta, mais do que a abdicar da agenda do moderno, que pressupõe autonomia dos seres sociais e suas organizações, o PT alinhou-se sem alarde à tradição da modernização pelo auto que nos vinha da Era Vargas, reanimada pelo ciclo do regime mili-tar, em especial sob o governo Geisel, com escoras do tipo de “presi-dencialismo de coalizão” bastarda que praticava e de suas políticas de cooptação dos movimentos sociais” (VIANNA, 2016).

Essa política errática do PT teve implicações várias, que redundaram não só no impedimento da presidente da República, Dilma Rousseff, mas manifestaram-se de maneira categórica nas eleições municipais de outubro de 2016. O PT teve uma derrota acachapante: perdeu mais da metade das prefeituras que admi-nistrava, principalmente as de cidades de grande porte, preser-vando muitas de menor importância e nos grotões; sua votação despencou de 17,2 milhões de votos em 2012 para 6,8 milhões; dos quase 5.200 vereadores eleitos há 4 anos, elegeu agora cerca de 2.800 (46% menos). Em contrapartida, houve um razoável aumento do PSDB e um crescimento tímido do PSB, PDT, Rede, PSOL, PCdoB e uma pequena diminuição de PV e PPS (apesar de que este, a partir de 2018, vai gerir uma população municipal maior do que a do PT).

Preocupante, no entanto, é que a maior parcela dos votos petistas parecem ter migrado para partidos conservadores e clien-telistas, siglas fisiológicas e de aluguel, como PSD, PRB, SD, Prós, PSL, PHF, PTN, PRP, PTC, PEN, PMB etc., que tiveram ampliação significativa de suas representações nos executivos e legislativos municipais. Este fato terá, sem dúvida nenhuma, reflexos negati-vos nas eleições de 2018 e no futuro imediato das instituições e nos procedimentos democráticos.

4949Infortúnios de uma política

A superação desta situação, muito provavelmente, não será consumada pelo governo recém-empossado. Não obstante propor-se a alguns remendos e modificações pontuais, no essencial será continuidade do anterior, preservando comportamentos e valores, inclusive com a manutenção de muitos de seus personagens. Apagado o fogo, de seu rescaldo, protagonismo capital poderá vir a ter, no processo político reconstituinte, uma esquerda democrá-tica com práxis renovada e com projeto reformista vigoroso, capaz de superar concepções e práticas antidemocráticas e permitir a expansão e o usufruto, em condições de igualdade, dos direitos de cidadania; a publicização do Estado; a atualização da cultura política; a criação de instrumentos para supressão de iniquidades e das múltiplas desigualdades etc.

Enfim, que permita a desobstrução de condutos que dificul-tam o livre curso da dinâmica democrática. Ou como pontuou, recentemente, Eugênio Bucci (2016): “Ainda existe possibilidade de uma esquerda moderna no Brasil. É possível mesmo dizer que, sem essa vertente (...), a vida política em nosso país não vai se aprumar. Ainda precisamos de uma alternativa que seja capaz de igualar os seres humanos naquilo que a sociedade de classes os diferenciou – e de diferenciá-los naquilo que a sociedade de massas os igualou. Pode parecer muito, mas é viável”.

Referências

BUCCI, Eugênio. A esquerda atordoada (mas viva). Época, 17/10 /16, p.18.

CARDOSO, F. Henrique. A história ensina. O Estado de S. Paulo, 07/08/2016, p. A2.

MARTINS, José de S. Desmontar de novo. O Estado de S. Paulo, 04/09/2016, p. E1.

VIANNA, Luiz W. Retomar o moderno, retomar a modernização. O Estado de S. Paulo, 07/08/2016, p. A2.

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A cultura da corrupção na sociedade brasileira

Antonio Geraldo da Siva / Fernando Portela Câmara

A corrupção está tão disseminada em nosso cotidiano, que virou uma instituição cultural. É como a propina para se fazer vis tas grossas e facilitar o andamento do caso. Nossa

sociedade aprendeu a conviver com essa anomalia, não sem a tensão e a revolta dos mais esclarecidos, que sabem perfeita mente que todo atraso, carestia e desordem econômica a tem como causa primária.

Di zer que a corrupção é uma cultura entre nós pode chocar algumas pessoas, cuja primeira opinião é a de se tratar de desvio de caráter. Naturalmente, o caráter é uma variável nes sa questão, pois a cobiça – o ganho fácil é al go humano e aqueles que têm uma educa ção mais frouxa não hesitarão em prevaricar se as condições lhes forem favoráveis.

A índole da cada um pode ser regrada por educação e leis, pois para isso existe a sociedade e, do seu bom desempenho, de pende a observação de certas regras de con duta individual, social e de trabalho. A transgressão existirá sempre, mas numa so ciedade bem regulada isso se reduz a uma baixa prevalência. O eficiente uso da fiscali zação e da supervisão, junto a uma legisla ção adequada, corrige a maior parte deste problema.

No Brasil, há uma dissonância cognitiva que leva à confusão entre autori dade e autoritarismo, um vício nacional herdado do escravagismo e do coronelismo de aldeia, com práticas que redun-dam um comportamento antissocial e, por vezes, criminoso, de detentores de poderes econô micos e de posses.

Ora, se a corrupção é endêmica em nos so país, a causa não está no caráter, mas no afrouxamento de todas as instituições na observância da lei, na moralidade e na éti ca. Em outras palavras, em uma cultura institucionalizada do molhar a mão do guarda, somos levados ao que denomina mos de cegueira ética, uma doença crônica social que altera a percepção e o julgamen to da maioria das pessoas.

A pressão disso é nefasta e torna a corrupção algo natural, aceitável. De todos esses fatores, resultam uma dissonância cognitiva que distorce a consciência para noções, como morali-

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dade e ética. A autoridade se relativiza, afrouxan do o rigor com que regras e leis devem ser seguidas e a cegueira ética se instala. Essa atonia moral leva ao fenômeno da vitimiza ção, para o qual nossa sociedade é especial mente vulnerável.

Em contrapartida, as personalidades an tissociais são resis-tentes a sentirem remor so. Além disso, não admitem culpa e têm to dos os seus problemas com a Justiça ou seu grupo projetado nos outros. Eis que muitos são culpados pelos seus crimes, como a so ciedade injusta que o criou, seus pais que o reprimiram e as maquinações políticas con tra ele. Na política brasileira, isso é bem co nhecido. Em vez de um mea-culpa libera dor, vemos nossos políticos não admitirem seus erros. Eles culpam adversários polí-ticos e se autoimolando, como membro de uma minoria perse-guida – aliás, não raro, vio lenta.

A corrupção na política é cultura ar raigada no espírito nacio-nal e grande incen tivo à desvirtuação em todos os níveis. A cor rupção generalizada torna todos cúmplices e, assim, o crime se instala sem que o remor so e a culpa criem obstáculos. Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, ob servava que, quando um crime é cometido em nome de um grupo que o incen-tiva, ou de uma ideologia, ou da fé que o absolve, o indivíduo não se sentirá culpado.

A corrupção extrapola, em muito, a pre valência de personali-dades antissociais. Isto porque muitas pessoas com este tipo de comportamento entre nós, especialmente. criminosas, não são antissociais do ponto de vista psiquiátrico, mas sim por pressão cul tural do meio em que vivem. Em psiquiatria, denominamos de feno cópias de personali dades antissociais quando as pessoas adqui rem essa forma de comportamento por se rem pressionadas culturalmente, e não por constituição.

Essa situação vem crescendo assustadoramente entre os jovens, que se rão nossos futuros comerciantes, funcioná rios, diri-gentes, políticos e, sobretudo, elei tores. Não basta a educação se também não se forma, em nossas escolas, consciências éticas e verdadeiramente republicanas.

Algo precisa ser feito.

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Novo bloco possível

Moacir Longo

Graças à intervenção autônoma da sociedade civil, iniciada com as manifestações de rua de junho de 2013, continua-das em março/abril de 2015 e de dimensões gigantescas no

dia 13 de março de 2016, tivemos o afastamento de Dilma Roussef da Presidência da República; processo concluído pelo Congresso Nacional, nos termos da Constituição, seguido da massacrante derrota do lulopetismo nas eleições municipais de outubro. As manifestações populares adquiriram dimensões nunca vistas em nossa história sem que houvesse um ou mais partidos políti-cos na liderança ou qualquer tipo de liderança caudilhesca que, em muitas situações de crises econômicas e sociais, costuma aparecer no cenário político como salvador.

As ações de grandes massas que presenciamos logo após a posse da presidente petista eleita em 2014, à base de uma campa-nha suja, fantasiosa, cheia de promessas e de mentiras, explodi-ram inicialmente com um panelaço, quando Dilma foi à TV para falar sobre o Dia Internacional da Mulher. A partir dali, ficou claro que a impostura apregoada estava chegando ao fim. As ilusões vendidas ao povo, e compradas pela mídia e amplos setores de formadores de opinião, como um sistema de poder de esquerda que acabaria com a pobreza no Brasil, não passavam de propaganda enganosa.

Para milhões de brasileiros de todas as classes sociais, na verdade aquele sistema de poder nada tinha de esquerda, ele apenas escondia um sistema de assalto ao Estado e suas empresas estatais para, com os recursos roubados, comprar apoio de aliados representativos das oligarquias que atuam em beneficio de grandes grupos econômicos e também para enriquecimento próprio.

De modo que, ao fim de 13 anos, certo partido de número 13 começou a cair em um dia 13 de um mês 3, repudiado por milhões de pessoas que se reuniram na Avenida Paulista, em São Paulo; na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro; nas ruas e praças de Brasília, de Belo Horizonte, de Recife, de Salvador, de Porto Alegre, de Curitiba e de mais de 330 cidades de todo o Brasil, exigindo o fim da incompetência, da roubalheira, das mentiras, da recessão

5353Novo bloco possível

econômica, do desemprego e dos péssimos serviços públicos ofere-cidos pelos governantes, enquanto não paravam de aumentar a carga tributária e os juros, reduzindo a renda dos trabalhadores e prejudicando o crescimento econômico.

Felizmente, tudo indica que, com as eleições municipais de outubro de 2016, o lulopetismo se transformará em um fantasma que sobreviverá reduzido à insignificância política, apesar da estridência de suas ações, desligadas da realidade e que vêm sendo repudiadas pela sociedade que deseja viver no Brasil uma nova era, um novo rumo político, econômico, social e cultural; com as instituições funcionando, com a consolidação de práticas de governança verdadeiramente republicanas, pautadas pela ética, austeridade e zelo para com os recursos públicos.

Para atender a esses postulados e aos anseios do povo mani-festados nas ruas e nas urnas, é preciso que as lideranças mais lúcidas do universo político-partidário, dos movimentos sociais organizados e das ações autônomas da sociedade civil, se reúnam para elaboração de um programa de reformas estruturais visando tirar o país da crise e forjar os elementos duradouros para um desenvolvimento sustentável, não só da economia, mas também da democracia com extensão social, e que propicie uma justa distribuição da renda e acesso a serviços públicos de qualidade, em especial, moradia, saúde e educação.

Um projeto dessa relevância e amplitude vai exigir a formação de um novo bloco de forças políticas, que tenha em seu núcleo um partido forte, nacionalmente estruturado, para ocupar um vazio que o lulopetismo deixa, e que PSDB e PMDB, os grandes vitorio-sos do último pleito municipal, não serão capazes de ocupar, por continuarem a representar a velha política, com suas práticas viciadas aos arranjos do toma-lá-dá-cá, no balcão de negócios de cargos e verbas públicas, para formar maiorias nos legislativos, nos três níveis de poder, a começar pelo nível federal, passando pelo estadual e municipal.

As manifestações de rua e os resultados das eleições de outu-bro último apontam quais as lideranças que podem e devem cons-tituir esse novo bloco hegemônico de Poder de uma esquerda democrática moderna, portadora de um programa avançado, comprometido com o fortalecimento da democracia e desenvolvi-mento sustentável da nação. Pela afinidade já demonstrada em tempos recentes, tanto que chegaram a formalizar projetos de fusão que acabaram não se concretizando, PPS, PSB, PHS, PMN e

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com agregação do PV, poderiam se juntar para dar o passo inicial rumo à constituição do bloco, com a musculatura e a força que demonstraram no pleito último. Pois os cinco partidos somados obtiveram 14.062.502 votos para as câmaras municipais, elegendo 8.135 vereadores e 709 prefeitos em todos os estados, consti-tuindo-se, desde já, na terceira força política do país.

O PPS poderia retomar a tradição do velho Partidão, de quem é sucessor, e propor a esses partidos, com afinidades já reconhe-cidas, um encontro para debater um projeto comum, agregando-se como uma federação inicialmente, tendo como bandeira:

– reforma do Estado a partir da repactuação da federação, com a repartição do bolo tributário pela qual os estados e municípios ficam com uma fatia maior para que assumam encargos, hoje com a União, reduzindo o centralismo atual-mente exercido pela administração federal;

– reforma tributária indutora do crescimento econômico, com adequada taxação dos que podem pagar mais, além de uma simplificação da legislação para inibir a sonegação e bara-tear os custos dos contribuintes;

– reforma da Previdência, partindo da unificação em um só sistema, sem distinção entre setor público e privado;

– reforma educacional nos três níveis, considerando experiên-cias curriculares de outros países e os avanços da ciência, da informática, dando atenção especial ao ensino profissio-nalizante e pesquisa nos centros de ensino superior;

– modernização e aceleração de projetos de infraestrutura e logística, visando adequar os programas de crescimento acelerado dos setores industriais, agrícolas e de serviços;

– elaboração de um programa de longo prazo para desenvolvi-mento harmonioso dos estados do Nordeste, priorizando investimentos em infraestrutura e formação de mão de obra qualificada. Além disso, oferecer incentivos a investidores privados para compartilhar com o setor público iniciativas geradoras de renda que substituam programas filantrópicos por rendimentos frutos do trabalho;

– projetar assentamentos agrícolas, de trabalhadores sem terra com assistência financeira e técnica para que a produ-ção gerada seja sustentável e sirva ao consumo dos assenta-dos, e possa gerar excedentes para o mercado;

5555Novo bloco possível

– estabelecer metas para crescimento do PIB e aumento da renda das famílias, incluindo aumentos reais anuais do salário mínimo;

– estudar a hipótese de lançar um programa de empréstimos compulsórios para que fiquem claramente descartados aumentos de impostos visando colocar ordem nas contas da administração federal e estancar o crescimento da dívida pública;

– reforma política que considere a pluralidade partidária prevista na Constituição que permita a junção de legendas em federações de partidos;

– reforma sindical e trabalhista cuja flexibilização não preju-dique direitos adquiridos. No que diz respeito aos sindica-tos, manter a organização por base territorial e a unicidade, avaliando, contudo, se cabe manter as federações e confede-rações, já que com a legalização das centrais sindicais, estes órgãos da antiga estrutura da Era Vargas perderam funções, mas mantêm altos custos.

Estes pontos programáticos são sugeridos para discussão com os parceiros, podendo ser modificados e até descartados, alguns deles substituídos por outros.

Finalmente, uma rápida consideração sobre o desempenho do PPS nesse processo de mudanças que ocorreu no país. Os mili-tantes do partido estiveram presentes em todas as manifestações de rua, muitos foram oradores abordando a gravidade da crise e apontando o caminho do impeachment como solução para que o Brasil voltasse a crescer e fortalecer as instituições democráticas. No Congresso, os parlamentares do partido chegaram a compar-tilhar protagonismo no decorrer do processo de afastamento da presidente e da cassação do mandato de Eduardo Cunha.

É provável que o destaque alcançado pelo PPS na mídia, durante os últimos acontecimentos, tenha influenciado no bom desempe-nho partidário nas eleições municipais ao alcançar a expressiva votação de 3.454.999 de votos, cerca de um milhão a mais em comparação com a eleição anterior. Merece destaque, também a eleição de cerca de 120 prefeitos, incluindo grandes cidades e 1.670 vereadores. Esta recuperação do PPS, no cenário político, pode servir de base para propor a parceria com os demais partidos cita-dos neste texto, rumo a uma poderosa formação partidária com potencial para liderar mudanças estruturais no país.

IV. Observatório

Autores

Hamilton GarciaCientista político, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)

Laécio Noronha XavierAdvogado, doutor em Direito Público/UFPE, mestre em Direito Constitucional/UFC, especialista em Economia Política/UECE, professor de Direito Internacional Público/Unifor e de Ciência Política e Direito Urbanístico/Unicatólica

Leonardo Mota NetoJornalista, diretor da revista mensal Carta Polis

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A nova política interativa pós-junho/2013

Laécio Noronha Xavier

A maioria dos partidos políticos brasileiros, na louca espe-rança de concorrer com a esquerda no seu próprio campo, concederam ao PT, vitorioso na eleição presidencial de

2002, o monopólio da propaganda ideológica e se transforma-ram em dóceis instrumentos do hegemonismo político e da “revo-lução cultural” patrocinada por vários segmentos da sociedade civil organizada, mídia e academia e da quase totalidade parti-dária que usufruiu o poder central desde 2003. Pelo menos até 2013, quando a sociedade, decepcionada com a classe política, mobilizou-se por redes sociais e contestou toda a ineficiência da máquina pública nas ruas. A partir daí, por diferentes iniciativas populares, acadêmicas e midiáticas, montou-se um front de resis-tência séria à propaganda política do intervencionismo estatal na economia, à esquerda e à direita, e historicamente travestida de “cultura política progressista”.

Até bem pouco tempo, a nomenclatura “intelectual” era auto-maticamente conferida a qualquer pessoa que engrossasse alguma campanha de propaganda político-ideológica do interven-cionismo econômico do Estado, mesmo utilizando fundamentos teóricos desprezíveis e linguagem panfletária. Vale lembrar que o nacional-estatismo é uma concepção heterodoxa atavicamente defendida, tanto à direita (governos militares, de Sarney e Collor), como à esquerda (segundo mandato do governo Lula e governos Dilma). O legado heterodoxo do estatismo econômico advindo do Estado Social e do “socialismo real” moldou o pensamento político brasileiro, à exceção dos anos de coerência ortodoxa do Plano

6060 Laécio Noronha Xavier

Real, lançado pelo presidente Itamar Franco em 1993, e que teve sequência nos governos de FHC e Lula.

Todavia, como na era digital (ou da informação) qualquer pessoa pode acessar informações sobre as temáticas que fazem sentido para si, para a sociedade e o Estado, a declaração de “nova guerra cultural” alastrou-se sob o patrocínio da crise de repre-sentatividade política, escândalos de corrupção, ineficiência da máquina pública e eclipse da concepção econômica nacional-es-tatista. E a confluência desses cinco fatores tecnológicos, políti-cos, éticos, administrativos e econômicos fez com que a política brasileira iniciasse um inexorável processo de transformação na sua forma e conteúdo a partir de junho/2013, cujas simbolizações foram as expressivas manifestações por melhoria dos serviços públicos durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo/2014. Posteriormente, tal ruptura ganhou significação com as passeatas anticorrupção, contra a crise econômica e pró-impeachment em 2015 e 2016.

Com a sociedade informada de todos os fatos, em tempo real, menos afetada pela doutrinação ideológica à esquerda e à direita, e linkada por telefonia móvel, redes sociais, internet e mídias tradicionais, as pessoas se transformaram em protagonistas da crítica política e de ações participativas em prol da eficiência da máquina pública e da ética na política. Fato é que as manifesta-ções foram representadas mais pelo CPF e menos por CNPJ, com cidadãos anônimos lutando pelos ideais do bem comum e desmon-tando o “monopólio da representação política e social” guindado a líderes carismáticos, partidos políticos, entes da sociedade civil e movimentos sociais.

Com a declaração da guerra cultural pela “sociedade civil anônima”, em junho/2013, processou-se a nova política intera-tiva, em que as pessoas defendem bandeiras, ideias, causas ou pautas específicas sem a tradicional presença de ideologias, parti-dos, entidades e lideranças. As teorias e as formas antigas do “fazer político”, mesmo ainda não tendo desaparecido por completo, estão inequivocamente em xeque, vide contestações aos antigos caciques políticos e seus ultrapassados métodos eleitorais e inefi-cientes modelos de gestão administrativa. Portanto, cabe aos partidos, essenciais para qualquer transformação na democracia, adaptar-se a essa nova realidade imposta pela nova política inte-rativa ou ser atropelados por ela. Igualmente, cabe à sociedade ingressar nos partidos já existentes para modificá-los ou criar novos partidos.

6161A nova política interativa pós-junho/2013

Certo também é que nenhum partido político conseguirá mais chegar ao poder “vendendo sonhos”. A última utopia ideo-lógica de transformação social foi enterrada com a contradição performativa entre os discursos e as ações do PT. O próprio conservadorismo de costumes, a mais atrasada representação da direita, encontra-se com seus dias contados com a ascensão da “filosofia libertária” representando menor intervenção do Estado na economia, necessidade de reformas políticas e liber-dade nos costumes.

De sorte que a sociedade, agora mais inclinada ao “centro” da política, presencia a débâcle do destino manifesto de que a “classe operária vai ao paraíso” e do determinismo histórico de que o polo dominante do mundo mudaria pela primazia da polí-tica sobre a economia. E com os estragos da crise econômica que assola o país desde 2008, a sociedade começou a perceber que, na vida real, a inclusão social é representada pela estabilidade e crescimento da economia, e não por obra de surradas ideologias que apostaram no gigantismo estatal e viciaram os atores e as disputas políticas.

A nova política interativa é o começo do fim da “política suicida” em que entidades de direito privado (partidos políticos), sem fins lucrativos (ONGs e sindicatos) e comerciais (empresas privadas), servem-se do aparato do Estado e sugam seus recursos financei-ros para chegarem e/ou manterem-se no poder, e assim continua-rem o ciclo de poder. Com a nova política interativa tem-se também o arrefecimento do doutrinamento ideológico, uma vez que a quase totalidade dos partidos e representantes políticos não encontram eco nos seus discursos quando as temáticas são moral e ética. Ademais, a nova política interativa preenche um vácuo político no universo partidário em face da ausência de um padrão discursivo ideológico moderado nos costumes, política e economia, contra-pondo-se, também, às hostilidades e incoerências políticas expos-tas pelo antagonismo moral entre as pautas dos movimentos multiculturais e as do conservadorismo punitivo e religioso.

Acerca do quadro ideológico e dos efeitos da decepção social com a representação política, uma pesquisa de julho/2016, do Instituto DataSenado, incluiu, pela primeira vez, a pergunta Na política se fala em esquerda e direita. Em uma escala de 0 a 10, onde 0 representa a posição mais à esquerda, e 10 a posição mais à direita, em que número você estaria? O resultado detalhado foi o seguinte: 20% dos entrevistados se definiu “de esquerda”, com respostas de 0 a 3; 41% se apresentaram como “de centro” (4 a 6);

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32% afirmaram ser “de direita” (7 a 10); e 8% não souberam responder. Somados, “centro e direita” represou 73%, enquanto “centro e esquerda” ficou com 61%.

Exemplifica bem esse novo espectro, a derrocada do PT, partido protagonista da política nacional desde 2003, que teve uma espé-cie de referendo pró-impeachment com as eleições/2016, exau-rindo, assim, a sua narrativa do “golpe parlamentar”, com a perda de 60% de suas prefeituras (passando de 630 em 2012 para 256 em 2016) e evaporação de 23,2 milhões de votos para prefeito (27,6 milhões em 2012 para 4,4 milhões em 2016), com queda desas-trosa do 3° para o 10° lugar em número de prefeituras conquista-das entre 2012 e 2016.

Apesar do processo de renovação da política ser mais lento do que o desejado, existe um elenco de pessoas com potencial para pensar, inspirar, transformar e liderar em diversas áreas, inclu-sive politicamente. Gente brilhante e espaço para agir, com ou sem partido ou mandato. E a guerra cultural aponta que é chegado o momento do “cidadão de bem da sociedade civil anônima” ingressar na política. Escândalos de corrupção, ineficiência esta-tal, crise econômica, métodos eleitorais arcaicos e crise de repre-sentatividade política, de um lado, e campanhas mais curtas, sem financiamento empresarial e formas virtuais de marketing, por outra via, estão a estimular quem tem bons currículos, conta-tos populares, autenticidade social, respeito público, boas ideias e propostas exequíveis a postular eleitoralmente os cargos políti-cos ou administrativos.

A fuga de modelos não espontâneos, a desconfiança com o bad marketing traduzido pelos fakes e memes e o apreço pela transparência são características fortes da sociedade da era digital, com projeções dessas práticas de “comunicação autên-tica” para a política, o mercado de trabalho e as relações sociais. A sociedade da era digital quer ver os indivíduos sem filtro nos palcos da realidade e saber o que existe de sincero nos bastido-res da vida. E quem tiver alguma aspiração a liderar, coordenar ou inspirar tem de entender que a abertura despretensiosa à sociedade tornou-se fundamental. Por incrível que pareça, será mais difícil, doravante, conectar a sociedade a líderes políticos carismáticos, chefes de empresas deslumbrados ou ídolos midiá-ticos pré-fabricados, cujo poder de influência social seduziu gerações anteriores quase em bloco.

6363A nova política interativa pós-junho/2013

Não surpreende que o modelo de representação política clás-sica ao apresentar candidatos como quem vende uma nova marca de sabonete, não dialogue com esses eleitores desideologizados, sem engajamento político formal e baixa lealdade a partidos polí-ticos. Até porque a sociedade, por sua nova geração, participa politicamente com instrumentais abertos, formatos não tradicio-nais e entendimento de que a democracia não se limita ao voto. (SOPRANA, 2016).

Para além das linhas de manobra partidárias, a nova política interativa reúne pessoas para discutir política com suas próprias bandeiras (ambientais, raciais, gênero, homossexualidade, libe-ralização das drogas e equidade social) e almeja discursos conectados com a ação. Mesmo acreditando nas atividades on-line, a juventude não se furta a amplificar o teor de suas mensagens nas ruas.

A sociedade da era digital tem instrumentais e ambientes propí-cios para se expor, testar, errar e acertar sem medo. No mundo interconectado, as ideias circulam por todas as poligonais, com os pontos mais altos da política, mercado ou altruísmo social podendo ser vistos de qualquer lugar. E as pessoas nem precisam mais de poder político ou econômico para criticar ou agir nas redes sociais ou nas ruas. A seu favor, e a incentivar seus experimentos, a socie-dade conta com famílias mais abertas e tolerantes às diferenças, economia em perspectiva de conquista de confiança (mesmo que ainda em crise), novas fontes de capital social, elevação do ideal ético e difusão da cultura empreendedora. E ao se lançarem em seus projetos de vida na busca de satisfação individual, as pessoas vão mudando a coletividade e o mundo.

E quem nasceu, a partir dos anos 1990, cresceu plugado à tecnologia digital que traz ajuda inestimável na hora de criticar algo ou transformar projetos em realidade. Os pais e avós desses jovens que também foram insatisfeitos na juventude contestavam algo que, antigamente, chamavam de “sistema”. As contestações das gerações analógicas utilizavam os meios de quem não tinha poder político nem econômico, como poesia marginal, guitarras punks, cinema alternativo, vestimenta fora do padrão e teorias políticas radicais, em especial, à esquerda.

O jovem desideologizado, desconfiado e informado da atuali-dade tem mais visão crítica do mundo e facilidade em contestar, uma vez que não é afetado por disputas ideológicas pueris (esquerda x direita, socialismo x capitalismo, revolucionários x

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conservadores, nós x eles). Tais brasileiros que, daqui a alguns anos, moldarão a sociedade também não demonstram receio em testar iniciativas, compartilhar ideias e dividir experiências, e sabem muito bem que as redes sociais representam o palco da expressão, aprendizado, debate, experimentação e transformação do mundo. O espaço virtual é uma sessão permanente de brain storm sobre variados temas, principalmente nos costumes, ética, política, economia e administração pública.

Dados de 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-tica, mostram que os jovens entre 15-29 anos representam 1/4 (um quarto) da população ou 51,3 milhões de pessoas, sendo que 84,8% habitam nas cidades e 15,2% moram no campo. Seguem outros indicadores do IBGE acerca do perfil da juven-tude brasileira:

a) Escolaridade – o Brasil tem 53 milhões de alunos no ensino básico (jovens ou não), mas apenas 16,2% dos jovens chegam ao ensino superior, com 46,3% concluindo o ensino médio, 35,9% limitando-se ao ensino fundamental, e cerca de 1,7 milhão de jovens entre 15-17 anos fora da escola. Com disciplinas engessa-das pela falta de diálogo entre si, ausência de flexibilização para áreas técnicas e profissionalizantes e sem as escolas executarem ao menos um projeto de conhecimentos gerais em cada ano letivo, os alunos do ensino médio se veem pouco estimulados a conti-nuar os estudos, protagonizando o grave problema de evasão. Todavia, comparando suas escolaridades com a de seus pais, os dados representam um ganho de escolaridade para essa nova geração, uma vez que somente 5% dos pais e 6% das mães aces-saram o ensino superior e 22% dos pais e 23% das mães concluí-ram o ensino médio.

b) Trabalho – em todo o Brasil, 53,5% dos jovens entre 15-29 anos trabalham, 36% estudam e 22,8% trabalham e estudam simultaneamente. Já na faixa de 15-17 anos, 65% estudam e 16% trabalham, e entre os jovens de 25-29 anos, 70,2% trabalham ou estão procurando trabalho, enquanto apenas 12% ainda estu-dam. Todavia, o ingresso no mercado de trabalho dá-se predomi-nantemente aos 18 anos e sendo marcado por desigualdades sociais. Os jovens de renda mais elevada estão sujeitos a menores índices de desemprego, enquanto a chamada “inatividade” juvenil atinge intensamente jovens mulheres e negras. No tocante aos “trabalhos informais”, estes são ocupados, sobretudo, por jovens de baixa renda e pouca escolaridade, mulheres e, principalmente, negros de ambos os sexos.

6565A nova política interativa pós-junho/2013

c) Gênero e Etnia – com distribuição de sexo quase idêntica (49,6% homens e 50,4% mulheres), 45% declararam-se de cor parda, 15% preta, 34% branca e 6% de outras cútis.

d) Religião – 56% dos jovens responderam ser católicos, enquanto 27% afirmaram ter credo evangélico, 16% assevera-ram não ter religião, e 1% se pronunciaram como ateus. Compa-rando com pesquisas anteriores do IBGE, os jovens católicos diminuíram 9% (somavam 65%), com os evangélicos que eram 22%, tendo aumentado 5%.

e) Estado Civil e Condição Familiar – 66% dos jovens brasilei-ros responderam ser solteiros e 61% afirmaram viver com os pais, com 40% dos jovens atestando já ter filhos.

f) Tecnologia – 80% dos jovens usam computadores e internet, e 89% têm celulares.

g) Visão de Mundo – o grande problema que afeta a juventude é a Segurança Pública (43%), com 51% dos jovens tendo perdido alguém próximo (amigos e parentes) em razão da violência. O segundo assunto que mais preocupa os jovens é emprego ou profissão, com 34%. Em seguida, estão as questões de saúde (26%) e educação (23%). Entre os assuntos que os jovens conside-ram mais importantes para serem discutidos pela sociedade estão desigualdade social e pobreza (40%), drogas e violência (38%), política (33%), cidadania e direitos humanos (32%), educação e futuro profissional (25%), racismo (25%) e meio ambiente (24%).

Já em conformidade com pesquisas da J. Walter Thompson e Datafolha de 2016, os jovens brasileiros se decepcionaram com o “fazer político” tradicional e os partidos políticos; estão ampla-mente conectados às tecnologias da era digital; e são mais tole-rantes às diferenças individuais. Seguem os dados em detalhe:

i) Atuação Política – partidos políticos não são vistos como mediadores dos anseios dos jovens, uma vez que consideram as legendas desconectadas da realidade e têm pouco apreço ao modelo político adotado pelos governantes. Entre 2009-2015, o número dos filiados com até 24 anos em grandes partidos caiu drasticamente: PT (60%), PMDB (59%), PDT (53%) e PSB (41%). Em 2015, a parcela de jovens entre 16-24 anos sem preferência por nenhum partido era de 69%; entre 2010-2014, o número de jovens que optou por votar em algum candidato caiu 31%, ou seja, de 2,4 milhões para 1,6 milhão; e 80% dos jovens entre 16-19 anos consideram que a população deve ter o poder de tirar um

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representante público antes do fim do mandato quando não agir conforme as expectativas da sociedade.

ii) Conectividade Tecnológica – os jovens não veem diferença entre estar nas redes sociais dentro ou fora de casa, sendo que 50% consome e aprende cada vez mais por imagens, com pelo menos duas horas diárias de conteúdo no YouTube; 40% pensam em grupo, via Facebook; 72% confiam nas redes sociais, sentindo-se tão confortáveis com compras on-line quanto off-line; 82% aces-sam as redes sociais pelo celular; e 32% preferem a rede social Instagram, superando Twitter, Facebook, WhatsApp e Snapchat.

iii) Tolerância Social – notório como os jovens lutam pela igualdade entre diferentes, ao mesmo tempo em que diluem tais diferenças. Exatos 70% consideram que espaços públicos deve-riam oferecer banheiros mistos; 59% já participaram de movi-mentos on-line ou off-line contra a discriminação racial; 56% eventualmente compram roupas feitas para outros gêneros; 53% acreditam que homens e mulheres são tratados de forma diferente no trabalho; e 52% assumem não ser “exclusivamente heterossexual”.

Percebe-se que se não houve uma significativa mudança no perfil socioeconômico da juventude brasileira, pelo menos, identifica-se atualmente uma opinião hegemônica desideologi-zada, fruto da decepção com a classe política, os atos de corrup-ção e a ineficiência da máquina pública. Ademais são visíveis as mudanças comportamentais em face da maior tolerância social com as diferenças de gênero, sexo e etnia, prevalecendo uma forte aproximação geracional em muito facilitada pelos avanços tecnológicos.

É mais provável que haja atualmente uma quantidade maior de pessoas envolvidas com a política do que antes do junho/2013, graças ao acesso diário das pessoas a espaços de expressão cívica encontrados nas redes sociais. E, pela primeira vez na história, uma geração participa da guerra cultural sem ligar para rótulos naturalizados e preconceitos sociais, e decepcionada com líderes carismáticos, ideologias, partidos e movimentos políticos tradi-cionais. A geração que nasceu pós-1990 encontra-se mais preocu-pada com a liberdade dos indivíduos e o bem-estar da coletivi-dade, por meio de diferentes pautas, ampla conectividade com a sociedade e novo “fazer político”. As formas clássicas dos partidos políticos atraírem, mobilizarem e conquistarem o voto do cidadão

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estão em processo de desuso desde junho/2013. E rumando para serem minoritárias ou extintas.

O “fazer político” das novas gerações evidencia-se mais pela relação CPF-CPF do que CNPJ-CPF. E a desideologização da juventude foi a maior inspiração para a declaração de guerra cultural pela sociedade civil anônima. Por meio da comunicação autêntica se desfraldam diferentes bandeiras pelo óbvio na polí-tica: induzir o Estado para que abra mais espaços à meritocracia do mercado em suas hostes e se encaminhe com prioridade, compromisso, probidade, respeito e eficiência para as pessoas que socialmente mais precisam.

Considerações finais

Mesmo sendo herdeiro da política autoritária e do intervencio-nismo econômico do “socialismo real”, inclusive, ressuscitando o “nacional-estatismo” dos militares (1964-1965), o PT conquistou, em 2003, o poder político, valendo-se, em especial, do “hegemo-nismo cultural” imposto pela vitória dos movimentos por costu-mes libertários.

No Brasil, do século XXI, ainda que influenciado pela queda do Muro do Berlim, perestroika e glasnost, com consagração da democracia representativa e a economia capitalista, a guerra cultural provocada pelo antagonismo moral entre socialistas e conservadores somente tomou corpo em face da ausência de um terceiro polo de pensamento cultural social-democrata capaz de encampar os consensos teóricos dos ideais progressistas (polí-tica), racionais (economia) e humanistas (costumes).

Todavia, com a declaração de nova guerra cultural pela “sociedade civil anônima” em junho/2013, as pessoas passaram a defender pautas específicas, sem a tradicional presença de partidos, entidades e lideranças. Teorias e formas antigas do “fazer político”, mesmo ainda não tendo desaparecido completa-mente, estão em xeque. Ou seja, a nova política interativa insti-tuída em junho/2013, e que culminou com o impeachment e seu “referendo” nas eleições/2016, fez com que o PT perdesse a dire-ção do protagonismo político brasileiro, e retroagisse enquanto partido de médio porte.

E no universo discursivo brasileiro ainda existe um vácuo a ser ocupado por este terceiro polo de pensamento cultural social-democrata (centro e centro-esquerda) em relação aos avanços dos

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costumes libertários, às reformas político-administrativas e à menor intervenção do Estado na economia, como provam as tendên-cias comportamentais da juventude nascida na década de 1990 e que encampou o junho/2013, bem como os resultados gerais das eleições municipais/2016. E caso os partidos políticos não se adap-tem a essa nova realidade imposta pela nova política interativa serão atropelados, cabendo à sociedade ingressar nos partidos existentes para modificá-los por dentro ou criar novos partidos.

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Bresser, entre a economia e a política

Hamilton Garcia

Em artigo publicado na Folha em 27/03, na Ilustríssima, sob o título “Onde foi que erramos? Quando e por que a economia saiu da rota”, o economista Bresser-Pereira traça

em linhas retas um programa consistente para a esquerda brasi-leira chamar de seu e deixar de improvisar num quesito tão sensí-vel quanto estratégico: a economia como calcanhar de Aquiles da política. Mas, a linha torta de seu artigo restou subjacente e mal resolvida: qual política ou qual esquerda?

O socialismo moderno, inaugurado por Marx e Engels, suplan-tou todos os movimentos socialistas e comunistas de sua época justamente ao questionar a falta de base econômica que susten-tasse, de maneira consistente, a crítica ao capitalismo, o que, na prática, significava agregar às lutas sociais por justiça os elemen-tos materiais capazes de concretizar e dar sustentabilidade a qualquer alternativa a longo prazo; em outras palavras, dotá-las de um programa político-econômico que fosse além das conquis-tas econômico-sociais do capitalismo, superando suas contradi-ções e entraves. Estava inaugurada a social-democracia como alternativa progressista à revolução burguesa. Na América Latina, o Oriente perdido do Ocidente, a trajetória econômico-social engendrou outras saídas, acabando por predominar uma visão, de fato, regressista, desde a Revolução Cubana (1959) – da qual o bolivarianismo é o filho dileto –, onde a perspectiva da distribui-ção suplanta a da produção.

Marx e Engels, no Manifesto (1848), como nos lembrou Lênin, em O Estado e a revolução (1917),1 entendiam a conquista do poder político de forma totalmente distinta: como um protagonismo da sociedade civil capaz de retirar, gradualmente, das mãos da burguesia o poder econômico e, assim, acelerar o desenvolvimento das forças produtivas em proveito das necessidades sociais. Tudo o mais, a liberdade, a dignidade (equidade) e a felicidade para todos – prometidas nas revoluções burguesas –, estaria na depen-

1 El Estado y la revolucion – la doctrina marxista del Estado y las tareas del prole-tariado en la revolucion (V.Lênin), in: Obras Escogidas, Moscú: Progreso, 1978, p. 307-308.

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dência da extensão dos avanços do capitalismo para além do mercado, propiciando trabalho e, portanto, transformação mate-rial-moral – dois elementos inseparáveis – dos indivíduos em benefício da coletividade, não de minorias dirigentes.

Em A ideologia alemã (1846),2 nossos autores, na mesma dire-ção, colocaram a revolução social como obra de uma sociedade evoluída, em linha com a modernidade, não obstante a ela crítica, na qual a divisão do trabalho é elevada e o acúmulo de riqueza e cultura gera conflitos que não admitem soluções idílicas. Caso contrário, numa revolução sob o atraso, “só a penúria se genera-liza, e (…) a miséria recomeçará a luta pelo necessário e se cairá de novo na imundície anterior”. O comunismo, que eles conce-biam em oposição às utopias, “não é (…) um estado de coisas que deve ser estabelecido, um ideal ao qual a realidade deva obede-cer”, mas sim o “movimento real que supera o atual estado de coisas” e se desenvolve sob condições que “resultam de premissas atualmente existentes”.

Alguns ecos longínquos desta perspectiva chegaram ao Brasil no final do séc. XIX3, totalmente descolados de nossa realidade social, para, em seguida, se alastrarem como uma doutrina acabada, sob a influência do bolchevismo vitorioso (1917), até sua consolidação, nos anos 1930 – com toda a carga negativa dos dogmas e manipulações ideológicas do stalinismo –, sob a lide-rança dos tenentistas de esquerda4, como a doutrina da revolução nacional-democrática que arrancaria o Brasil de seu atraso colo-nial. Foi assim que a esquerda se tornou um protagonista impor-tante, ainda que desempenhando, em momentos cruciais de nossa história, um papel muitas vezes errático, como em 1935, quando, já sob a liderança de Prestes, os comunistas desperdiçaram um promissor movimento antifascista (ANL) na aventura de um golpe militar, ou quando, em 1964, temendo a marginalização diante da radicalização das esquerdas e de um Goulart inclinado a um segundo mandato não previsto pela Constituição, aderiram – contrariando a linha programática de 1958, de frente democrática para a transformação do país – à ideia de uma constituinte para

2 A ideologia alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus represen-tantes Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner e do socialismo alemão nos seus diferentes profetas (K.Marx e F.Engels), São Paulo: Centauro, 2006, p. 45-46.

3 Ver Leandro Konder, O Marxismo na batalhas das ideias, Rio de Janeiro:. Nova Fronteira, 1984, 2º cap.

4 Ver Manoel Palácios, Pensando a formação do PCB, Dissertação de Mestrado em Ciência Política pelo IUPERJ, 1991, mimeo, passim.

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contornar o Congresso Nacional e promover as reformas de base,5 contribuindo, assim, para a desestabilização do governo e a rever-são das árduas conquistas sociais dos anos 1950-60.

Nos anos 1960, em particular, ficou clara a ausência de um verdadeiro programa econômico para calçar as pretensões trans-formadoras da esquerda – como de resto também sucedera aos bolcheviques e seu “comunismo de guerra”6 –, o que fez o PCB, na semilegalidade, se tornar caudatário de outros segmentos radi-cais, como o brizolismo e as Ligas Camponesas, que, ao atacarem Goulart por suas tentativas de “conciliação”, solaparam a única alternativa programaticamente embasada – a da esquerda posi-tiva de Santiago Dantas, apoiada no plano econômico de Celso Furtado (Plano Trienal, 1963) e na política de frente democrática da bancada parlamentar comunista,7 entre outros – para tirar o país da crise na qual o Governo se enredava, selando a sorte do progressismo ao estreitar sua base de apoio em meio a uma inédita radicalização político-social.

O aparecimento do PT, em 1979 – portanto, após o colapso do populismo e das ideologias revolucionárias –, tendo à frente uma nova liderança sindical de matiz católico, avesso ao apostolado marxista-leninista, e aberto à exigência social de um novo arranjo partidário (democrático-pluralista) e político, hostil à estadolatria do stalinismo e do nacionalismo, parecia promissora em termos da superação dos limites filosófico-políticos que impediram o PCB de se posicionar e dar bom encaminhamento às crises de hegemo-nia8 do pré-1964. Tudo isto, num contexto de redemocratização com fortes ventos renovadores e uma esquerda tradicional frag-mentada, com o brizolismo desprovido da legenda do PTB e ainda prisioneiro do caudilhismo gaúcho, o PCdoB preso aos dogmas do stalinismo e atuando como satélite de partidos maiores, e o PCB destroçado, dividido e incapaz de capitalizar os acertos estratégi-cos de sua política de resistência democrática – perseguido pela

5 Ver Hamilton Garcia de Lima, O ocaso do comunismo democrático: o PCB na últi-ma ilegalidade (1964-84), Tese de Mestrado defendida em 1995 na Unicamp), p. 80-86/152. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000101148&opt=3>.

6 Ver Stephen Cohen. Bukharin: uma biografia política (1888-1938), São Paulo:. Paz e Terra, 1990, passim.

7 Ver Lima/1995, op. cit., p. 109/137.8 Hegemonia entendida como direção política com ênfase no aspecto ideológico-

-cultural de um processo, à moda de Gramsci; ver Hugues Portelli, Gramsci e o Bloco Histórico, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, cap. III.

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PF até os estertores da ditadura militar, quando da reunião semi-legal do VII Congresso (dez./1982).

Enquanto a velha esquerda declinava, a nova esquerda emer-gente dava sinais de inapetência em relação à superação dos limi-tes de seus antecessores em vários temas, em particular quanto à capacidade de elaborar programas partidários efetivos, portanto, política e economicamente viáveis, ao invés de meramente panfle-tários. Isto pode ser explicado por variados motivos. Um deles estaria na base da nova esquerda, formada por uma jovem mili-tância arredia ao debate literário sobre os rumos do socialismo, por um lado, e, por outro, pela emergência de segmentos popula-res com déficit de escolaridade, influências doutrinárias religio-sas e histórica aversão às práticas revolucionárias, tudo isso afastando-as da tradição programática da esquerda moderna, que Bresser procura interpelar.

Ao mesmo tempo, as narrativas foram, gradualmente, perdendo sua densidade programática em proveito da necessidade de fundir, num mesmo projeto partidário, correntes ideológicas e estratos sociais muito distintos – como o trotskismo e a socialdemocracia dos intelectuais, o stalinismo e o maoísmo dos quadros técnicos, e o socialismo cristão das CEBs, entre outras denominações e segmentos sociais –, ao mesmo tempo em que se perseguia o poder de Estado nos velhos moldes exclusivistas do bolchevismo. Bastante sintomático, a este respeito, foi o modo como o PT resol-veu o impasse programático de 1989,9 elaborando uma narrativa abstrata de mudanças que, de um lado, não ofendesse a percep-ção anticapitalista da maioria de seus dirigentes e militantes, e, de outro, não assustasse a sociedade e as instituições, em geral, e os potenciais aliados partidários, em particular, ao mesmo tempo permitindo aos dirigentes ampla margem de arbitragem em um eventual governo. Um comportamento que mantinha o partido unido e em rota de ascensão, mas impedia que ele ultrapassasse os limites da esquerda na eleição presidencial, o que só foi corri-gido pela Carta aos Brasileiros (2002), com a qual o candidato Lula se comprometeu a seguir as linhas mestras do Plano Real, sagrando-se vencedor naquelas eleições.

De costas para a tradição dogmática que buscava superar, o PT se arvorou à posição demiúrgica de reinventar a esquerda

9 Ver Hamilton Garcia de Lima. PCB e PT em dois tempos – socialismo, pragma-tismo e poder, Tese de Doutoramento defendida em 2005 na UFF, p. 326-327. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/tesesonline.php>.

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pragmaticamente, sem passar em revista a experiência anterior – tarefa isolada e problematicamente empreendida por seus inte-lectuais, mas nunca absorvida por seu núcleo duro, cujo tripé se apoiava nos sindicalistas pragmáticos sem traquejo intelectual, nos quadros bolcheviques de pendor conspirativo e nos teólogos da libertação de vocação puramente filosófica, todos, cada qual com suas especificidades, avessos à tradição intelectual progra-mática defendida por Bresser –, cometendo, assim, o pecado mortal da repetição de erros, que, outrora, custaram caro ao país e ao movimento progressista, sobretudo ao desprezar as duras lições aprendidas pelos pecebistas – e plasmadas nos documentos de 1958 e 1967 – ao subestimarem a luta legal nos marcos da Constituição de 1946.

Assim, Lula, e toda a esquerda que ele dirige, desde que assu-miu o governo, fez do Fome Zero, depois Bolsa Família, o seu “programa econômico” – o da Carta tomara emprestado do PSDB –, agora reduzido a colocar na mesa do trabalhador três refeições por dia. Para tal, na verdade, nenhum programa econômico coerente-mente pensado seria necessário, como não o foi enquanto o vento soprava a favor e a herança não era maldita. Exatamente por isso, o petismo nos arrastou “de novo para a imundície anterior” – como anteviram Marx e Engels – assim que os ventos e as condições mudaram adversamente.

Bresser, deixando de levar em conta tal démàrche, sugere que a incompetência petista foi mais contingencial do que estrutural, quando afirma que “vivíamos a euforia do governo Lula e do boom de commodities, que maravilhava o povo e encantava as elites”, mas tudo acabou e agora, que nos encontramos “em profunda reces-são”, teremos que responder à pergunta: “onde foi que erramos?”.

A resposta que ele nos oferece peca por ser estritamente econô-mica – de maneira inversamente análoga à da esquerda petista –, deixando a lacuna de, como notório economista político que é, buscar a concretude de sua alternativa econômica na forma de um programa político que expresse a formação de um novo bloco histórico10 – conceito gramsciano que busca atualizar o legado de

10 Aglomerado político onde a sociedade civil, enquanto esfera privada, se articula com a esfera pública, na fronteira da política com a economia, constituindo-se em veículo para a disputa do Estado e instrumento para o exercício da hegemo-nia, onde "classes fundamentais" e suas frações se articulam num projeto de poder. Ver a respeito, S. Hall, B. Lumley e G. McLennan, in: Da ideologia, Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 62-63.

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Marx e Engels na era do americanismo11 – capaz de implementá-lo como política pública de Estado. Como bem sabe Bresser, todo programa econômico precisa encontrar e encarnar uma perspec-tiva política que o transforme em diretriz de governo. Não é por outro motivo que ele abandonou o ninho tucano – sabidamente liberal, não obstante heterodoxo, onde outros economistas desen-volvimentistas, como João Paulo de Almeida Magalhães, Yoshiaki Nakano, entre outros, não encontraram os interlocutores políticos que os traduzissem – e se aproximou da esquerda petista na espe-rança de encontrar uma janela e um público para sua propositura econômica, que visa dar respostas efetivas à crise do bloco histó-rico que nos dirige desde 1985. Num trecho fulcral, diz ele:

[...] após 35 anos de semiestagnação, nosso problema é mais grave; é regressão. O Brasil, que entre 1930 e 1980 crescera de maneira extraordinária (4% ao ano, per capita), com base em um projeto nacional de industrialização, […] perdeu o rumo e passou a crescer apenas 1% ao ano […].

Tal posicionamento tem sua lógica, mas ela se ressente da desconsideração em relação à inépcia histórica da esquerda brasi-leira – reiterada, num patamar ainda mais preocupante, pelo lulopetismo – em diagnosticar e enfrentar problemas complexos no plano social por meio de programas político-econômicos realis-tas e percucientes. Não é por outro motivo que sua propositura tem grande chance de cair no vazio se não se colocar a tarefa, concomitante, de uma terceira via entre tucanos e petistas.

Ao tentar alcançar o público progressista, fazendo tabula rasa do estado ético-mental atual da esquerda petista, Bresser não deve ter melhor resultado do que Furtado – outrora, em posição bem mais privilegiada do ponto de vista político –, esbarrando de novo no irracionalismo dogmático, no vazio programático dos salvadores da pátria e no total desinteresse das novas elites de origem popular em tudo que não seja imediatamente ligado ao controle dos aparelhos governamentais e suas respectivas benes-ses – as famosas “delícias do poder”, que cimentaram o domínio totalitário de Stalin, nos anos 1930, por meio de truculentos e sequiosos apparatchiks (nova elite burocrática soviética).

11 Conceito onde, como nos diz Renato Zangheri, "Gramsci capta, contra todo dog-ma, o poderoso desenvolvimento das forças produtivas deflagrado nos Estados Unidos pela racionalização do trabalho". ("Gramsci e o século XX – uma introdu-ção", in: Gramsci e o Brasil, 2010. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1184>.

7575Bresser, entre a economia e a política

Pior ainda, o uso que nosso autor faz da catilinária lulopetista contra as “elites avarentas” e o “golpismo da direita”, para se opor ao impedimento de Dilma, ignorando convenientemente as rela-ções carnais do PT com estas elites em seu governo, e mesmo o histórico golpismo da esquerda em episódios como a insurreição militar de 1935 e as “reformas de base na lei ou na marra” de 1964, demonstra uma visão nostálgica e anacrônica, distante da crise em curso. Quando Bresser afirma ver “muita gente indig-nada” e diz que “é preciso fugir da indignac ̧ão moralista”, pois “a corrupc ̧ão está em toda parte” e “o grande problema que o Brasil enfrenta hoje é econo ̂mico” em função de termos um “povo (…) ainda muito pobre” e de o “desenvolvimento econo ̂mico conti-nua(r) a ser uma prioridade”, ele tem em mente um Brasil que ficou para trás, onde o Estado, globalmente, arrecadava, em 1955, cerca de 15% do PIB,12 e ainda mal conseguira abarcar todo o território e toda a população.

A era do “moralismo udenista” e do ademarismo (“rouba, mas faz”), foi um período em que a expansão dos direitos sociais ainda não havia se institucionalizado e a classe política se aproveitava disso para privatizar a questão social em benefício próprio, a partir de máquinas eleitorais que tinham muito mais capilari-dade do que o Estado. Hoje, ao contrário, as políticas públicas estão plenamente institucionalizadas e sua capilaridade é preju-dicada por tal privatização, que se constitui, sim, num dos mais sérios empecilhos à plena racionalização do imenso aparelho estatal que abarca o país em suas diversas instâncias.

Ademais, entender a indignação atual contra a corrupção como mera questão moral dissociada do problema econômico (“regressão”) não guarda coerência com a compreensão do autor sobre o papel central do Estado no processo de desenvolvimento, sobretudo num quadro em que a arrecadação global do Estado mais do que dobrou, em termos relativos, em relação aos anos 1940-60, atingindo a casa dos 33,47% em 2015.13 Como bem sabe Bresser, a inversão eficiente dos excedentes sociais apropriados pelo Estado é de vital importância para a eficiência global do

12 Vide Tributação no Brasil: características marcantes e diretrizes para a reforma. J. R. R. Afonso, R. Varsano et al. [sd], p. 3, tab. I. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev902.pdf>.

13 Vide Carga Tributária no Brasil – 2014 (Análise por Tributo e Bases de Incidência)", p. 33, Tab. INC 02-B – Continuação. Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-esta-tisticas/carga-tributaria-no-brasil/29-10-2015-carga-tributaria-2014>.

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sistema econômico e sua capacidade de ampliar a produtividade, os investimentos e garantir a própria estabilidade democrática ao suprir as bases materiais da cidadania. Na verdade, a crise atual – na contramão da narrativa petista – supera qualquer udenismo residual ao ligar a questão moral diretamente à questão econô-mica e à questão democrática, o que passou a ser percebido por parcelas cada vez mais amplas da população, inclusive aquelas beneficiadas pelo último ciclo de expansão.

Sem se dar conta deste fenômeno, Bresser se aproxima do neopopulismo petista – que, tal como o varguismo, mostra a mesma propensão acomodativa/conflitiva em relação às práticas neopatrimonialistas das classes possidentes, com os mesmos resultados ambivalentes em relação à política e à economia – sem perceber a maturação, em processo, da sociedade urbana e os efeitos políticos da recente massificação do mercado capitalista, que faz dos eleitores um público cada vez mais economicamente dirigido para uma perspectiva racional de escolhas, o que signi-fica dizer, cada vez mais avesso ao idealismo utópico dos socialis-tas e ao inclusivismo curto-prazista dos neopopulistas. O PT pôde se manter no poder por 13 anos ininterruptos, exatamente porque sua isca cambial-consumista, incrementada por um conjunto mais amplo de privilégios setoriais – de benefícios corporativos, como as isenções tributárias irresponsáveis em benefício de gran-des empresas à política inconsequente de juros exorbitantes que hipertrofiam a dívida pública e comprometem a poupança estatal –, se sustentou na onda do crescimento global propiciada pela alta produtividade chinesa e sua fome por bens primários. Contudo, quando tal fome perdeu força, declinou do mesmo modo o poder atrativo deste modelo.

Os governos petistas, de fato, priorizaram “o combate à pobreza”, mas o fizeram na perspectiva do neopatrimonialismo, de olho meramente no voto dos mais pobres, para cativá-los – como na política tradicional –, não para elevá-los a formas sustentáveis de autonomia, como queria um dos idealizadores do Fome Zero (Frei Beto),14 ele mesmo incapaz de elaborar um programa econômico sustentável. Portanto, a prioridade social não apenas não se liga automaticamente ao tema do desenvolvi-mento, como supõe Bresser, como tem se prestado, até aqui, a legitimar uma ordem consumista/concentracionista em proveito

14 Para quem o Governo Lula "trocou um projeto de nação por um projeto de poder. vide Estadão, 09/03/2009. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/no-ticias/geral,para-frei-betto-bolsa-familia-e-projeto-de-poder,335703>.

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do capital financeiro meramente especulativo, que destrói o trabalho mais evoluído em prol do menos evoluído ao priorizar o consumo (globalizado) em detrimento da produção (nacional) por meio do populismo cambial.

O processo político que liga as lideranças beneficentes aos concentradores de capital, não necessariamente produtivo, com base em arranjos governamentais os mais diversos, inclusive ilegais (cartéis de superfaturamento de fundos públicos, etc.) e legais (incen-tivos fiscais, câmbio valorizado etc.), se viabilizou nos governos petistas utilizando a corrupção como ferramenta fundamental de cooptação de apoios nos partidos políticos e no Parlamento, e não por acaso, mas porque esta se mostrou a forma mais rápida e confiá-vel de neutralizar a crítica a um projeto de inclusão sem “o desenvol-vimento esperado”, via um consenso sem programa econômico.

Destarte, o combate à corrupção, minimizado pelo autor, nunca é demais repetir, longe de ser um moralismo udenista, é a forma política por excelência capaz de neutralizar o principal instrumento das elites dominantes para manter sua artificiosa direção (oculta) sobre o bloco histórico da Nova República, que tem no neopatrimonialismo uma prática político-social tão resis-tente quanto insustentável – como demonstra a severa crise pela qual passamos –, e que, malgrado os atritos com o liberalismo-social tucano, ainda não encontrou quem desafiasse sua ilusória representatividade no interior do pacto democrático vigente, baseada fundamentalmente no modo como o sistema político-elei-toral permite que ele fidelize seu público por meio do uso privado de verbas e órgãos públicos.

Bresser, ao contrário, descrê do neopatrimonialismo como partido dominante (subjacente) a ser derrotado na direção do Estado e sugere, ao contrário, que, na melhor das hipóteses, seja neutro quanto ao programa econômico:

[...] diante da quase estagnac ̧ão e da grave recessão, ao invés de as elites políticas se unirem para resolve ̂-la, deixaram-se levar pelo medo causado pela Operac ̧ão Lava-Jato”, que teria mergu-lhado o país “em uma crise política grave”. Ao mesmo tempo, Bresser credita a crise à “eleic ̧ão presidencial, na qual as elites econo ̂micas foram derrotadas, mas não se conformaram […]”, tentando “anular o resultado das urnas”.

A insatisfação popular generalizada, depois do estelionato eleitoral de 2014 e seus efeitos econômicos desastrosos para o país, que terminaria por desagregar a base político-parlamentar

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do Governo Dilma e levá-lo à paralisia total, não foi considerada por Bresser – preso à armadilha narrativa do lulopetismo – como causa real da crise, sendo, por conseguinte, desprezada como vetor potencial de um novo bloco histórico, que encontraria em seu programa econômico um novo norte.

Do mesmo modo, não se percebeu que o esgotamento do presi-dencialismo de cooptação, forma epitelial de operacionalização do bloco dominante, está com seus dias contados, e que a conjuntura pós-impedimento será, como foi no passado recente, um tempo de busca e construção de alternativas, superficiais ou profundas a depender do modo como se ligue a economia à política.

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O nosso Pacto de Moncloa

Leonardo Mota Neto

As contribuições de Itamar Franco ao aperfeiçoamento das instituições levarão tempos para serem avaliadas. Por enquanto, rejubilemo-nos com a sobrevivência de um mito

que se cristalizou em apenas 732 dias de exercício do poder. O que são 732 dias para pôr a casa em ordem após o trauma do impeachment de Collor? Um nada.

Para os grandes homens, a marca da presença no Olimpo prescinde do fator gregoriano. O calendário é apenas um detalhe, quando não se é um mero aproveitador do espaço republicano para se nutrir de glórias fátuas.

Não para o Itamar. Ele aproveitou cada dia de uma curta passagem pela Presidência (até diríamos, cada hora) para inse-rir seus próprios valores e julgamentos no modo de desempe-nhar seu mandato.

Pareceu, ao final, que tinha sido um mandato presidencial inteiro, de 4 anos, e mais, com a possibilidade de reeleição (que viria mais tarde com FHC) tal a densidade e a qualidade dos acon-tecimentos por ele produzidos.

E quem precisa eternizar-se no poder quando se tem o dom de extrair o sumo da verdadeira identidade com a população? Bastam atos, transparentes e vigorosos, e sobretudo coerentes, que expli-citem a presença de uma consciência no mando. E mais: simplici-dade, rigor, austeridade, senso ético, capacidade administrativa. E saber trabalhar em grupo.

São os chamados “homens providenciais”, que chegam em momentos de grave paralisia do organismo institucional e forne-cem a bula para estabilizar o doente estatal.

Para os esotéricos, a escolha de Itamar para vice-presidente de Fernando Collor carregou os sinais de uma obra de destino.

Aliás, sobre destino, aliás, o de Itamar amolda-se à citação de Goethe: “Quando uma criatura humana desperta para um grande sonho e sobre ele lança toda a força de sua alma, todo o universo conspira a seu favor.”

8080 Leonardo Mota Neto

Tudo conspirou em favor dele. Eram três as opções de Collor para compor sua chapa presidencial. Itamar, apenas o terceiro. As demais foram caindo, por hipóteses não comprovadas, combi-nações não costuradas.

Recorte na história: Collor desejava um vice de Minas Gerais, por ser o segundo maior colégio eleitoral do país, que pesava na eleição de um presidente. Os dois primeiros nomes cotejados – Hélio Garcia e Júnia Marise – recusaram a sondagem. Itamar, filiado ao extinto PL fundado pelo deputado carioca Álvaro Valle, desde que rompeu com o PMDB, aceitou.

A sequência dos fatos políticos, institucionais e jurídicos a que o Brasil assistiu naquela quadra confirmou o enredo que o destino goethiano reservou para Itamar. O homem vindo de Minas da sua Juiz de Fora, por um suposto acaso, passaria a ser o tecelão de um amplo acordo político nacional, entre todas as facções e falcões, para legar ao país 732 dias de absoluta coesão das forças no Congresso Nacional.

No plano parlamentar, teve a colaboração do que havia de melhor na representação da política nacional, como Pedro Simon, seu líder no Senado e que havia sido a figura de maior destaque na CPMI do impeachment de Collor, e Roberto Freire, seu líder na Câmara, uma cabeça antenada e um político de diálogo e de boa articulação.

Recheou seu ministério de nomes tão progressistas como identificados com as lutas da sociedade brasileiras em diversos campos, pinçados através de uma visão bem itamarista: eram também ótimos gestores ou mestres em alguma humanidade: Jamil Haddad, Henrique Santillo, José Israel Vargas, Murilo Hingel, Alexis Stepanenko, Henrique Brandão Cavalcanti, e outros do mesmo naipe.

A eles juntou perfis com bagagem de sintonia fina com o Congresso Nacional e Tribunais Superiores, como Henrique Hargreaves e Mauricio Correa.

Além de promover a unidade de vistas na questão política, pacificando os partidos e as tendências, Itamar aventurou-se com rara percepção na relatividade do tempo-espaço de que dispunha para se cobrir de êxitos nas áreas social e econômica. Legou resultados admiráveis tanto numa como noutra área.

Na economia, fundeou a âncora da responsabilidade fiscal em que o país se apoia até hoje. Ao ter a intuição (um ato de coragem, diga-se) de retirar seu ministro das Relações Exteriores, Fernando

8181O nosso Pacto de Moncloa

Henrique Cardoso, e colocá-lo no Ministério da Fazenda, Itamar deu-lhe os instrumentos para que reunisse sob seu comando uma brilhante geração de economistas e engendrasse as bases do equi-líbrio macroeconômico brasileiro.

Nasceria depois o Plano Real, cujo berço de águas límpidas foi o governo Itamar e nesse plano a História, seus fatos, registros e escritos são indesmentíveis. Ele alimentou sentida mágoa por ter sido relegado ao esquecimento quando as versões sobre a paterni-dade do plano passaram a conter narrativas emplumadas.

E sua Política Social, descrita magnificamente pela professora Denise Paiva, sua ex-assessora, em seu livro Era outra história, editado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, no qual enumera um impressionante desenrolar de programas e ações que disseminaram no país a verdadeira consciência participativa da sociedade civil.

Eram os tempos de Betinho, do bispo dom Mauro Morelli, das igrejas, das comunidades, dos grupos coordenados.

Foi de tal ordem vitoriosa a Política Social de Itamar que – anota o historiador Ivan Alves Filho na introdução do livro de Denise – que “contribuiu de forma decisiva para eleger o sucessor de Itamar Franco, na figura do seu ex-ministro Fernando Henri-que Cardoso.”

Está posta na mesa, para aferventar o debate histórico, uma versão instigadora: o social de Itamar foi o grande eleitor de FHC, e não (exclusivamente) o Plano Real.

Plataforma para Michel Temer

Por analogia, os 732 dias de Itamar, avaliados no conjunto de sua obra, servem de estímulo e fornecem uma plataforma de legitimidade ao Governo de Michel Temer, que terá, até o final de seu mandato de complementação ao de Dilma Rousseff, 852 dias no poder.

Isso, se contarmos somente o tempo de mandato como presi-dente da República efetivo, após o julgamento do impeachment pelo Senado – e não o período em que o exerceu na qualidade de “em exercício”.

Itamar deixou a lição de que em 852 dias dá para se fazer muita coisa. Porém, o arcabouço da travessia terá que ser neces-sariamente político. Exercitado no campo do acordo. Não há alter-

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nativa. Ao seu tempo, o político mineiro promoveu no Brasil o que na Espanha se fez com o Pacto de Moncloa, em 1977: todos os partidos sentaram-se à sua volta para consertar uma saída.

O PSOE (Partido Socialista-Operário Espanhol), de Felipe Gonza-lez, venceu 4 sucessivas eleições para formar o governo, o que, muta-tis mutantis, correspondeu ao Partido dos Trabalhadores, atuante em similar época transitiva brasileira pós-regime ditatorial.

A concertação espanhola nasceu daí, originando décadas de crescimento econômico e social naquele país. Quando o acordo cessou seus efeitos, deu-se a perda de vontade politica nacional pela união. Sobreveio a recessão e com ela o desemprego brutal da Espanha de hoje.

Nos tempos de agora, no Brasil, um pacto é inviabilizado pela intolerância e ódio entre as correntes políticas, de um lado, e pulve-rização dos partidos políticos, do outro lado, somados ao extremo corporativismo do aparelho estatal e dos três Poderes da República.

O ambiente sindical-trabalhista é impregnado de sectarismo e a Constituição gerou uma paquidérmica clientela social exigente de direitos e não deveres.

Michel Temer orbita em torno de questões bem mais comple-xas que as de Itamar Franco, mas não existe plataforma compa-rativa tão perfeita nem melhor estímulo à praxis do que jogar ambos num mesmo plano de compromisso histórico.

As duas presidências se alinham num eixo de forças assemelhado e que somente funciona se for dinamizado por um “homem providen-cial” que, de décadas em décadas, povoa nossa historiografia.

Em vez de se inspirar em Margareth Thatcher, para chegar ao final de sua travessia, o melhor será consultar o livro dos feitos de Itamar Franco. Um livro tão simples como a receita de pão de queijo de Juiz de Fora.

V. Questões do Estado e da Cidadania

V. Questões do Estado e da Cidadania

Autores

Marcus Vinícius RodriguesDoutor em Engenharia da Produção, mestre em Administração, coordenador geral do MBA Executivo Global da Fundação Getúlio Vargas (Brasil) /ISCTE-IUL (Portugal), professor adjunto da FGV e atualmente é gestor executivo do Núcleo de Cooperação com África e Portugal da Diretoria Internacional da FGV

Marlene VazSocióloga, pesquisadora e consultora na área de violências contra crianças e adolescentes, [email protected]

Rodrigo CosenzaProfessor de História

Valdir RibeiroProfessor de Filosofia

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O Programa Bolsa Família no enfrentamento à pobreza

Marlene Vaz

A ideia de políticas sociais brasileiras na época da ditadura militar moveu-se para a criação de uma “mão de obra qualificada e sadia”, com o objetivo de eliminar os obstácu-

los do desenvolvimento econômico. Como exemplo, o incremento da moradia popular não tinha como prioridade a moradia para os pobres e sim fomentar o desenvolvimento da construção civil. Este modelo satisfez à economia até a década de 70, mas gerou mais pobreza. Surgiram as discussões na pauta nacional sobre os modelos distribuição de renda e o governo da ditadura aumentou os recursos para a área social. Todavia, não se concretizaram as políticas públicas propostas. Os recursos foram tragados pela corrupção política.

O governo da ditadura decidiu então não esperar mais que o “bolo da riqueza crescesse”. No discurso militar a renda seria, imediatamente, distribuída para os pobres, na tentativa de cons-truir uma população de consumidores.

Assim, durante a ditadura militar as políticas sociais eram elaboradas apenas pelo governo.

Com o processo de democratização do Brasil na década de 80, tornou-se transparente uma crise econômica e a má distribuição de renda. Por conta disso verificou-se:

• Crianças, adolescentes e jovens vivendo em extrema pobreza.

• Políticas sociais sem produzir resultados desejados.

8686 Marlene Vaz

• Crianças, adolescentes e jovens sendo assassinados.

E foi o assassinato de crianças e adolescentes, denunciado no I Encontro do Movimento Nacional dos Meninos de Rua, que levou a sociedade efetivamente a organizar-se sob a forma de organiza-ções não governamentais (ONGs) exigindo do governo que a cria-ção e a execução dessas políticas se tornassem o resultado da parceria sociedade civil organizada, isto é, ONGs, e organizações governamentais (OGs). Nasceu, então, a política pública.

Ainda na década de 80, a Constituição Federal introduziu a noção de Seguridade Social, ampliando os deveres do Estado para proteção do cidadão. Naquela ocasião, o discurso acadêmico do resgate da dívida social era conveniente, portanto, ao Estado. Contudo, a crise fiscal do Estado, da década de 90, segundo Silva, Yazbek e Giovanni, impuseram limites para as políticas sociais.

O governo Fernando Henrique, enfrentando grave crise econô-mica internacional, elegeu como prioridade o ajuste e estabilidade econômica, por ter sido “a solução para a consequência econô-mica brasileira de ter adiado a implantação do projeto neoliberal”, de acordo com Yazbek, modelo econômico exigido pela comuni-dade mundial. Com os recursos exclusivamente voltados para solução dessa crise econômica, a crise social se aprofundou. A partir de 2001, aquele governo se viu obrigado a fazer seu dever de casa, criando uma “rede de proteção social”. Assim, o Governo FHC implantou um programa de renda mínima, o Bolsa Escola, aceitando a proposta do então Governador do Distrito Federal, pelo PT, Cristovam Buarque, transferindo a renda dos dois terços do Imposto de Renda arrecadado. Acrescentaram-se mais dois programas sociais, o Bolsa Alimentação e o Bolsa Gás.

No Governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério do Desenvol-vimento Social e Combate à Fome divulgou dados das famílias aten-didas pelos programas de transferência de renda. O objetivo foi transferir para o chamado Cadastro Único os beneficiários do Bolsa Escola, do Auxílio-Gás, do Bolsa Alimentação e do Cartão Alimenta-ção. O Ministério extinguiu, assim, os chamados programas rema-nescentes, levando seus beneficiários para o Bolsa Família. As prefeituras receberam R$6 por ficha atualizada, como incentivo para efetuar o novo cadastramento e, ainda assim, um significativo número de municípios continuou com cadastros nebulosos.

O discurso do Governo Federal, para justificar a unificação dos benefícios no Bolsa Família, era de coibir fraudes nos cadas-tros sociais que davam direitos a benefícios, até então uma

8787O Programa Bolsa Família no enfrentamento à pobreza

colcha de retalhos. E a fiscalização seria coordenada pelo Minis-tério do Planejamento.

Em março de 2006, François Bourguignon, economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), proferiu que o programa Bolsa Família era eficiente na redução da pobreza, mas que os responsáveis pelo programa social de transferência de renda teriam também de se preocupar coma execução futura do programa, pois o benefício do Bolsa Família era político e econômico.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em feve-reiro de 2007, divulgou, uma análise revelando que os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, contribuíram para queda da desigualdade social no Brasil na última década. Os dados indicaram que esses programas geraram uma redução de 21% no índice de Gini, que mede a desigualdade na distribui-ção de renda em uma sociedade. Ainda assim, o emprego foi a principal fonte de renda no país, onde correspondeu a 72,6% dos rendimentos da população.

Jairo Werthein, doutor em educação pela Universidade de Stanford dos EUA e assessor especial do secretário-geral da OEI – Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, expressou em editorial na Folha de S. Paulo, de 14 de março de 2007, sobre a importância do Bolsa Família como forma de atrair jovens a permanecerem na escola. O texto citou a queda do número de matrículas no Ensino Médio, entre 2004 e 2005, e afirmou que 27% dos jovens brasileiros não estu-davam e nem trabalhavam.

Disse ainda que a escolaridade de nível secundário também funciona como uma espécie de antídoto contra a pobreza e a exclusão social, e que vários estudos internacionais concluíram que são necessários entre 11 e 12 anos de educação formal para que uma pessoa tenha acesso a empregos com remuneração sufi-ciente para possibilitar que ela não caia ou saia da pobreza. Pros-seguindo, analisou naquele editorial:

Não é exagero dizer que a exclusão dos jovens dos bancos esco-lares e do mercado de trabalho compromete – por vezes, irre-versivelmente – a integração social dos jovens no seu trânsito para papéis adultos, além de gerar consequências negativas para a equidade socioeconômica, para o desenvolvimento do país e para sua inserção mais ativa na economia globalizada. Por isso, se faz necessária uma reação urgente, corajosa e de impacto no âmbito das políticas públicas no sentido de assegu-

8888 Marlene Vaz

rar a permanência do jovem na escola de nível médio. Para tanto, é fundamental que a escola seja atrativa, isto é, que o currículo traduza as necessidades e demandas da juventude e do mundo contemporâneo. Mas também é fundamental que o jovem tenha condições materiais de avançar nos estudos, o que significa, necessariamente, destinar recursos para ações volta-das para sua permanência na escola.

Para uma das principais especialistas do Banco Mundial, a economista americana Kathy Lindert, o Bolsa Família não é sufi-ciente para acabar com problemas tão profundos como a pobreza e a desigualdade. Nesse sentido, considerou, em março de 2006, que a iniciativa era importante na melhoria imediata das condi-ções de vida da família, mas deveria ser complementar a investi-mentos na qualidade da educação e da saúde. Aconselhou:

O Bolsa Família não trabalha do lado da oferta de serviços. Ele cria a demanda por educação e saúde, por exemplo. Na outra ponta, os ministérios respectivos e governos locais têm de atuar no atendimento dessa demanda com mais serviços e de mais qualidade.

Tendo o aval do Banco Mundial, a comunidade internacional apoiou o programa de renda mínima, Bolsa Família, no Brasil.

Contudo, em 2007, técnicos do Ministério do Desenvolvimento admitiram que as famílias até então beneficiadas pelo programa ainda não haviam conseguido sair da linha da pobreza. A saída, pelo diagnóstico do Ministério, seria garantir o acesso dessas famílias a outras políticas públicas destinadas a enfrentar as demais dimensões da pobreza, além da renda. Porém, nenhuma medida concreta foi tomada por esse Ministério.

Ainda em 2007, os que defendiam a transferência de renda mínima, que eram os especialistas, os políticos, as organizações diversas, tanto da comunidade nacional como internacional, podiam ser classificados em três posicionamentos. O primeiro, de natureza liberal, considerava o Bolsa Família como um instrumento compen-satório para redução da pobreza e combate ao desemprego.

Na segunda posição se enquadravam os progressistas, consi-derando o Bolsa Família como uma forma de distribuir a riqueza nacional. Enquanto o terceiro posicionamento de pesquisadores autônomos considerava o repasse da renda mínima como um programa provisório para que se conseguisse a inclusão social dos mais pobres, através da capacitação dos membros da família para o mercado de trabalho e geração de renda.

8989O Programa Bolsa Família no enfrentamento à pobreza

Por outro lado, a promessa de controle do Cadastro da Distri-buição de Renda pelo Governo Federal não se efetivou na prática, sendo explicitado tanto pela mídia de grande porte bem como por radialistas e jornais de várias cidades do interior do Brasil, inúme-ras situações de desvio dos recursos.

Em 2016, o Ministério Público Federal, por meio da coordenadora do trabalho, a procuradora Renata Ribeiro Baptista, divulgou um levantamento com informações disponibilizadas no Portal Transpa-rência, bem como dados fornecidos pela própria Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (Senarc), sobre o repasse de renda do Bolsa Família, no período de 2003, quando foi implantado o cadastro único, até 2014, cruzando dados do antigo Ministério de Desenvolvi-mento Social, informações de órgãos da Receita Federal, do Tribunal de Contas da União e do Tribunal Superior Eleitoral. Foi detectado que entre os que receberam indevidamente o benefício estão pessoas falecidas, pessoas sem CPF, pessoas com vários CPFs, funcionários públicos com menos de quatro membros na família, servidores públicos independentes da composição familiar, proprietários/responsáveis de empresas ativas, e até doadores de campanhas polí-ticas com doações iguais ou superiores ao valor do Bolsa Família. Nesse período do levantamento foram desviados 2,5 bilhões de reais.

Pelo visto, a política social no Brasil começou como política governamental, depois avançou para política pública e regrediu para política eleitoreira para eleger representantes daquele partido do Governo e dos partidos aliados, conforme dados do levanta-mento do Ministério Púbico Federal.

Diante da situação atual, o programa Bolsa Família somente será assimilado e aceito pela sociedade se for executado por um determinado período de tempo, quando o Governo Federal, os Estados da Federação, as Administrações Municipais e um Conse-lho de Controle Social dos Recursos do Bolsa Família com repre-sentações diversas, tornarem visível um instrumento de controle para que os recursos cheguem somente às famílias que estiverem dentro dos critérios estabelecidos pelo programa.

E, concomitantemente, seja criado um Programa de Capacita-ção para o Mercado de Trabalho destinado às famílias de baixa renda, para que os beneficiários do Bolsa Família recebam a complementação de renda até que atinjam um patamar mínimo de renda, a ser atualizado de acordo com a realidade brasileira, libertando-se do programa Bolsa Família ou conquistando a dignidade de cidadão brasileiro.

9090 Marlene Vaz

Porque distribuição de renda se faz com ampliação de vagas escolares em espaços físicos adequados, com a manutenção dos alunos na escola, com o sucesso escolar resultante do ensino de qualidade, incluindo aí o ensino profissionalizante, e com a inser-ção do portador de diploma no mercado de trabalho. Enquanto que o Bolsa Família é um benefício temporário, devendo ser plane-jado o percurso de desligamento desde o primeiro mês de repasse às famílias de baixa renda.

Referências

VAZ, Marlene. As identidades dos caminhoneiros. Estudo sobre a exploração sexual de meninas em rodovias. Salvador, BA: UFBA e Secretaria de Bem-Estar Social do Governo da Bahia, 2007.

SILVA, Maria Ozanira; YAZBEK, Maria Carmelita; DI GIOVANI, Geraldo. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2007.

MINISTERIO PÚBLICO FEDERAL, SITE, 2016: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Of.16292016SecretariaNacionaldeRendaeCidadaniaSENARCMDS.pdf

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Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras1

Marcus Vinicius Rodrigues

O Brasil, rico exemplo de grandes e ambiciosos projetos, é infelizmente também exemplo de modelos de gestão sem eficácia que, além de não atingirem os resultados, trazem

desperdício de recursos, desmotivação, descrença da sociedade e pobreza. Porém, o que nos falta?

Encontrar a resposta a essa questão tem sido muito difícil para o cidadão que se torna governante no Brasil, mas é quase trivial para quem paga seus pesados impostos, sem retorno em benefícios, segurança, saúde, educação ou qualidade de vida.

Um governante, ou ex-governante, poderia dizer que “quase” tudo já foi tentado, com o que concordo, mas de forma não inte-grada, não comprometida, sem transparência ou legitimidade e, em muitos casos, aparelhada. Consequentemente, pode ter exis-tido de forma não eficaz, trazendo prejuízos aos cofres públicos e não beneficiando a parte da sociedade que mais precisa.

Qual a causa raiz que nos leva a esses resultados indesejados? É possível relacionar diversas alternativas para a busca de uma resposta. Porém, todas teriam uma base comum: a falta de um modelo de gerenciamento coerente e eficaz dos programas, dos projetos e dos negócios do governo; e a baixa capacitação de nossos gestores.

Existem excelentes ideias, recursos, expectativas e necessida-des por parte da sociedade, “às vezes” até vontade política, mas a transformação dessas ideias em projetos e o gerenciamento destes, e principalmente a gestão dos processos e ações decorrentes, têm se apresentado ineficazes e realizadas sem um mínimo de conhe-cimento, técnicas gerenciais ou transparência. É o “vamos que vamos”, regado a posições político-partidárias simplistas e com base no “nós sabe”.

É preciso e é possível mudar. Mas não se pode continuar dando uma “carga rápida em uma bateria cujos elementos estão danifi-

1 Este artigo é de responsabilidade exclusiva de seu autor, não representando, necessariamente, posições das instituições com as quais o mesmo tem víncu-los profissionais.

9292 Marcus Vinicius Rodrigues

cados”. É preciso sim, antes resolver o “problema dos elementos”, para ter um resultado eficaz e continuado.

Mas, apesar de todas as críticas, a posição do governante que precisa fazer não é fácil. Mesmo que este seja comprometido e tenha boas intenções, no atual sistema político brasileiro não se tem liberdade para indicar os assessores mais competentes ou íntegros, que poderiam transformar em realidade muito dos proje-tos necessários. A indicação termina sendo dirigida para aqueles que dão apoio político à sua sustentação. Muitas vezes campeões de voto, mas medíocres gestores. Alguns até velhos conhecidos da Justiça ou do Ministério Público.

Um sentimento de mudança permeia hoje toda a nossa socie-dade, motivado principalmente pelas últimas e significativas derro-tas nacionais: na educação, na saúde, na segurança, na economia, na produtividade, ... e até no futebol. Tudo isso em um país que tem “grandes craques” gestores, mas com uma pesada herança de não organização, não planejamento, não transparência, não conheci-mento da arte da gestão, e consequentemente com muitas derrotas em importantes “jogos”, em um passado recente.

Liderança, honestidade, ética, carisma, comprometimento, entre outros, são pré-requisitos para comandar uma sociedade. Porém, para o sucesso desse empreendimento, o conhecimento é vital, em particular, o conhecimento da arte da gestão, que pode e deve ser “construída” ou aperfeiçoada. Esta é a hora! Sem uma boa gestão, com profissionais capacitados, não se terá sucesso na concepção e gestão dos projetos necessários para o desenvolvi-mento do Brasil. E não se pode perder este momento.

Tudo isso não é um sonho! Os governantes podem e devem iniciar o processo.

Os brasileiros estão se conscientizando e querendo contribuir. É preciso realinhar de forma eficaz e com conhecimento, sem “achismos”, esse grande e rico país.

Em uma visão simbólica, a boa gestão dos negócios públicos, base para o sucesso sadio de qualquer empreendimento gover-namental, pode ser vista como uma mediana das posições e escritos racionais, algumas jurídicas, e das posições e escritos não racionais, algumas poéticas. O principal governante do Brasil já deu claros sinais que sabe navegar entre estes dois mundos. Assim, é só questão de querer. O caminho, o poder e o conhecimento, ele os tem.

9393 Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras

Os outros governantes estaduais ou municipais podem não ter estas mesmas condições. Mas vão ter que entender ou aprender que os tempos mudaram. A sociedade acordou e está sendo impla-cável. Os recentes resultados eleitorais e as ações da Polícia Fede-ral e Ministério Público mostram que a má gestão vem sendo punida com a exclusão do governante da vida pública, com sua ida para casa ou para a cadeia.

Sugestões de uma Carteira de Projetos

Permitam-me explicitar meus questionamentos e descrença quanto à concepção e implantação de belos e sofisticados progra-mas de mudança ou modernização, destinados a unidades ou organizações, com profissionais despreparados, não comprometi-dos e sem foco. E advertir que somente as reformas ou moderni-zações de organizações privadas ou públicas, estados ou municí-pios, não serão suficientes ou estruturantes para um realinhamento nacional. O governo é o principal responsável pelas diretrizes e criação de condições para que isso ocorra, porém para o sucesso, antes é imperioso que se promova, de forma ampla, uma revolução na capacitação gerencial dos profissionais das duas áreas: pública e privada.

É preciso lembrar que mudanças duradouras para melhoria e eficácia têm origens na boa gestão. Os programas e estruturas modernizantes são consequências naturais dessas gestões. Platão nos ensinou que “Deus governa todas as coisas, e que o acaso e a oportunidade cooperam com ele no governo dos negócios huma-nos. Há, contudo, um terceiro e menos extremo ponto de vista: a arte também deve contar; eu diria, pois que, no meio de uma tempestade, seria certamente de enorme vantagem que contásse-mos com a ajuda da arte do piloto.”

É preciso preparar os milhares de “pilotos” necessários para colocar o Brasil em uma rota segura e eficaz. É ainda preciso que seus “passageiros”, os cidadãos, saibam como e aonde querem e precisam ir. Com esse objetivo e seguindo o posicionamento histó-rico de Henry Ford, ao sugerir que não se deve encontrar ou expli-citar apenas os defeitos, afinal, “qualquer um sabe queixar-se”, rascunhei, a partir de reflexões, algumas considerações e suges-tões. Penso que algumas delas poderiam ser as bases iniciais para projetos na busca da eficiência e eficácia na gestão, motivadores para as ações necessárias na busca de uma consistente mudança no Brasil, de forma transparente, continuada e permanente.

9494 Marcus Vinicius Rodrigues

Projeto 1

Criação de um programa nacional de capacitação profissional e gerencial em diversos níveis ou segmentos, com conteúdo mínimo pré-definido, objetivando melhores resultados e maior eficácia dos recursos investidos em projetos ou processos, nas áreas pública e privada. A coordenação deveria ser centralizada na esfera do governo federal. É preciso ter muito cuidado com as iniciativas ou órgãos de capacitação ou desenvolvimento já exis-tentes no governo ou de movimentos setoriais. Alguns têm sido muito restritos; outros elitistas ou personificados; outros ainda, desvinculados do conhecimento de gestão já dominados por vários governos de outros países. Mas todos, com orçamentos generosos, sem objetivos definidos, com conteúdos não apropria-dos, custos alarmantes e resultados mínimos. Alguns até, com direções amadoras ou pitorescas, buscando ensinar o que não conhecem e não praticam: os métodos e as práticas para a boa gestão. Existem hoje excelentes gestores no Brasil, escolas de gestão reconhecidas e com conhecimentos contextualizados à realidade brasileira. Todo esse potencial poderia ser aproveitado. Penso que o ensino gerencial no setor público é imperioso para o sucesso de todas as ações com vistas à operacionalização eficaz das políticas públicas do governo, ou dos resultados de mercado para nossos empresários.

Projeto 2

Concepção de um programa nacional amplo de conscientização e capacitação do cidadão nos diversos níveis sociais e de faixa de renda, diante de temas cotidianos e simples que estejam relaciona-dos com desperdício, baixa produtividade e baixa qualidade. Seja nos micro e pequenos negócios urbanos ou rurais, seja nas rela-ções diárias, seja no nível doméstico. O único aspecto constante para a melhoria de uma sociedade é educação e conscientização para sempre fazer mais com menos. Este programa deveria contem-plar temas cotidianos e ser oferecidos à população, sem custos, de forma presencial e à distância, por meio de instituições de ensino públicas ou privadas, empresas, sindicatos e outros. Apenas para delimitar a natureza e foco do que aqui é sugerido, os Projetos poderiam ter temas como: utilização adequada dos alimentos, redução do consumo de agua e energia domésticas, concepção de um orçamento doméstico, compras corretas diante das reais neces-sidades, otimização do tempo útil, responsabilidades sociais e

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ambientais do cidadão, sustentabilidade doméstica, entre outros. Os temas seriam definidos e concebidos com um conteúdo mínimo. Seriam selecionados e capacitados monitores locais, por metodolo-gia à distância, em empresas, em municípios, em pequenas comu-nidades. Seria também de vital valia a utilização das novas tecno-logias de comunicação de acesso massificado. Tal programa poderia ter um financiamento privado via incentivos fiscais, e da obrigato-riedade para entidades que detêm concessões do Estado. Ele seria incentivado por uma massificada e inovadora campanha publicitá-ria de combate ao desperdício, priorizando temas cotidianos e de fácil entendimento, destinados principalmente à base da sociedade e às classes menos favorecidas.

Projeto 3

Criação de mecanismos e estrutura para o fortalecimento das Escolas de Governo e a utilização das mesmas como propulsoras para disseminação do conhecimento e da arte da gestão na esfera governamental. Estas escolas, pedagogicamente e diante de seus objetivos, poderiam ter uma abertura maior do currículo, a partir de uma visão multidisciplinar e da busca de um conhecimento dinâmico e aplicado. Contribuiriam ainda com a construção de um novo modelo de aprendizagem que tenha como foco a interde-pendência entre conhecimento, habilidades e atitudes. Assim, se abandonaria o sistema de “adestramento” para um pensar livre na busca de alternativas diferenciadas na gestão pública. Estes profissionais seriam ensinados não só a resolver os problemas, mas principalmente a identificá-los e delimitá-los. O resultado esperado seria a preparação destes profissionais, em particular de gestores públicos, com uma visão crítica e global nas diversas áreas do governo, sem se distanciar da perspectiva local e dos problemas da sociedade.

Projeto 4

Criação de novos mecanismos em níveis diferenciados para promover o desenvolvimento da capacidade dos gestores públicos em conceber e implantar políticas públicas. Para tanto é funda-mental criar métodos para inibir o aparelhamento do Estado e promover o aumento de qualificação e interação com a sociedade. É ainda necessário patrocinar o aumento do conhecimento em técnicas e metodologias de gestão, bem como da produtividade do

9696 Marcus Vinicius Rodrigues

profissional do serviço público na implantação das políticas públi-cas. O primeiro melhora a qualidade das políticas e o segundo a quantidade e qualidade das entregas. Estas estruturas integra-das e convergentes vão viabilizar a eficácia do elo entre as políti-cas públicas e a administração pública e os consequentes e melhores resultados para a sociedade.

Projeto 5

Concepção de uma metodologia para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos mecanismos de certificação profissional para atestar a capacitação e preparo para o exercício específico ou setorial de funções na Administração Pública: no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Tais mecanismos teriam a inclusão de certificação para funções comissionadas estratégicas e fortale-cimento, a partir da criação de novos métodos de ensino profissio-nal, como forma de atingir as administrações federais, estaduais e municipais, nos três poderes.

Projeto 6

Criação de mecanismo de avaliação de políticas e serviços públicos externos aos dos órgãos prestadores, que monitore na ponta os resultados, a qualidade e a percepção da qualidade do serviço prestado. Isso poderia ser feito, preferencialmente, utili-zando o mecanismo de agência ou de auditorias independentes, que teria maior autonomia, mas com acompanhamento dos órgãos de controle. Estes procedimentos podem levar em consideração metodologias de pesquisa social, governos eletrônicos, entre outros. O Brasil não seria o pioneiro, já que existem experiências em outros países.

Projeto 7

Promoção de campanhas de conscientização para os gestores públicos, de que após o ciclo da concepção das políticas públicas, vem o Ciclo do Planejamento e da Implantação, ou seja, o Ciclo da Gestão. O controle e a medição dos resultados são imperiosos. Só se pode gerenciar, só se pode controlar, só se pode melhorar aquilo que pode ser medido.

9797 Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras

Projeto 8

Os desenvolvimentos de programas que valorizem e que moti-vem o Planejamento das Políticas Públicas de Gestão, o qual precisa sempre considerar duas dimensões: o Estado e o Governo. Na dimensão Estado, os objetivos são de longo prazo, são as polí-ticas de caráter permanente, que exigem estabilidade e continui-dade no setor público. Na dimensão Governo, o objetivo é criar condições para operacionalizar o plano de médio prazo, para atender as escolhas políticas da sociedade, garantindo a melhoria continua dos serviços públicos. O instrumento para o suporte das duas dimensões é o Planejamento Estratégico. Instrumento de gestão e controle eficaz, de implantação conhecida e motivadora, que traz a transparência da gestão, permite o acompanhamento dos indicadores de desempenho, e que, sua utilização plena depende principalmente da vontade política dos principais gesto-res do governo.

Como implantar as sugestões

A implantação dos projetos antes sugeridos exige experiência e conhecimento, que provavelmente devem ser fornecidos por assessorias externas ou consultorias. Mas é preciso refletir sobre a eficácia e como agir para a implantação destes projetos para prováveis buscas de soluções. Na área pública, no início de suas gestões, é prática o gestor contratar uma assessoria externa ou consultoria, sem antes saber o que realmente precisa, definir os objetivos e ter conhecimento do potencial ou experiências já reali-zadas por sua unidade organizacional que ora comanda.

No meio organizacional, e em particular no setor público, a busca desses serviços de assessoria externa ou consultorias para diagnósticos e busca de soluções, e seus consequentes resultados, tem se apresentado ineficaz no Brasil. Trata-se de propostas com elevados valores, promessas milagrosas, entregas por meio de ideias e relatórios sofisticados, alguns conservadores, outros revo-lucionários, outros ainda pitorescos. Porém, a operacionalização dessas ideias ou relatórios quase nunca ocorre em sua plenitude.

Infelizmente poucos desses relatórios são criteriosos, com conteúdos elevados e dirigidos à problemática. Mas também pecam, ao esquecerem que quem vai implantar e gerenciar o dia a dia não tem conhecimento gerencial ou infraestrutura adequada. Alguns ainda não definiram ou reconheceram a problemática ou

9898 Marcus Vinicius Rodrigues

as reais necessidades de mudanças que motivaram os serviços de assessorias externas ou consultorias. É importante lembrar que não é possível resolver um problema sem admitir a existência do mesmo e delimitá-lo de forma adequada.

De forma irresponsável e inconsequente, quando isso ocorre no setor público, muitos atores diretos do processo agem como se não fosse um grave problema com serias consequências. O relató-rio que muito custou aos cofres públicos é geralmente engavetado e esquecido. O próximo governo, por sua vez, novamente busca outros serviços de assessorias externas ou consultorias. Assim, o ciclo é reiniciado para felicidade de muitas empresas de assesso-ria ou consultorias e sangria dos cofres públicos.

Só é possível identificar o real problema quando se elaborar as perguntas adequadas. E para a concepção destas perguntas é necessário experiência e domínio das técnicas e metodologias de gestão, adaptadas ao contexto próprio da organização-foco.

O conhecimento nas técnicas e metodologias de gestão que tiveram seu berço entre o final do século XIX e o início do século XX sofreu, nos últimos vinte anos, mudanças estruturais, moti-vadas pela dinâmica do desenvolvimento tecnológico, pelo fenô-meno da globalização, pela fragilização do Estado nacional e por novas atitudes dos indivíduos, produzindo um novo modelo de sociedade com novos valores, novas necessidades e novas expec-tativas. O que passou a exigir diferenciadas e eficazes formas de gestão das organizações e negócios, em particular na área pública.

A adaptação das organizações públicas brasileira a esse contexto é urgente e imperiosa. Mas os caminhos para esta adap-tação têm sido dificultados pela baixa capacitação dos profissio-nais que ocupam posições que exigem eficácia gerencial e por processos organizacionais inconsistentes ou superficiais.

Muitas assessorias externas ou consultorias, em suas atua-ções na área pública, ainda tentam inserir as novas tecnologias e modelos de gestão sofisticados de forma segmentada e sem contextualização, utilizando estruturas, conhecimentos ou paradigmas organizacionais já vencidos e sem considerar a capacidade dos profissionais e o ambiente onde essas mudanças serão implantadas. Evidentemente, os resultados a médio e longo prazo mostram-se desastrosos.

Hoje, não é mais possível atingir resultados competitivos sem um conhecimento multidisciplinar, consistente e atualizado para

9999 Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras

a integração, aprendizagem e comprometimento de toda organiza-ção em torno de seus negócios, objetivos e metas. Uma constata-ção junto a muitos profissionais do setor público é uma significa-tiva resistência a essas mudanças, e que legitima a posição de que o problema maior não tem sido o que as essas organizações públi-cas e seus gestores não sabem, mas sim o que eles sabem, mas que não é mais verdadeiro. Questiona-se então, o que fazer?

Inicialmente, tem-se que se reconhecer que é preciso sim contar com assessorias externas ou consultorias capazes e foca-das, para auxiliar nossas organizações públicas no caminho para as mudanças, idealização e implantação de novos programas. Porém, estas assessorias externas ou consultorias precisam rever seus métodos de ação, principalmente diante do fato de que grande parte de nossas organizações públicas não têm hoje uma massa crítica para decodificar ou implantar os produtos entre-guem por estas.

Penso ser necessário fazer uma analogia para ajudar o enten-dimento e justificativa inicial para o modelo que é apresentado a seguir. Imagine que é preciso ensinar um grupo a chegar a um determinado local, da forma mais rápida possível e confortável. Porém, para uma parte deste grupo diante de valores, crenças ou princípios, não é possível ensinar-lhe a pilotar um avião; a outra parte do grupo, também diante de outros valores, crenças ou princípios, não é possível ensinar-lhe a dirigir um automóvel. A solução, que apesar de não ser a mais rápida, será a possível e diante do contexto a mais eficaz – ensinar as duas partes a andar de bicicleta.

É com base nesse posicionamento e diante da não eficácia dos processos tradicionais de assessorias externas ou consultorias, que desenvolvi e apresento o método que denomino de Oficinas de Tecnologia de Gestão (OTG). Não é tão veloz, sofisticado e eficiente como um “avião ou automóvel”. É simples e eficaz, e também de baixo custo, como uma “bicicleta”. Trata-se de um método de intervenção organizacional, com formação e transferência de tecnologia, destinado a organizações de diversos tamanhos dos diferentes setores de atividades públicas ou privadas. Os serviços realizados com base nas OTGs tomam como suporte conceitual, independente do foco específico do problema inicial apresentado pela organização-foco, seja pública ou privada, a metodologia GEIQ – Gestão Estratégica e Integrada de Processos para a Quali-dade, idealizada pelo autor desse escrito e hoje de utilização comum em muitas empresas privadas. Tal metodologia, por meio

100100 Marcus Vinicius Rodrigues

de um sistema integrado de gestão e com o suporte em modernas técnicas gerenciais e organizacionais, prioriza quatro ações: as estratégicas, as estruturais, as comportamentais e as operacio-nais, nas quais:

• As Ações Estratégicas buscam conceber o foco estratégico da organização, com seus respectivos elementos, no sentido de analisar os ambientes externo e interno, com a finalidade de estabelecer os caminhos adequados para atingir os obje-tivos definidos pelo nível estratégico, diante do foco princi-pal dos serviços a serem realizados. Na área pública, elas buscam decodificar e associar as Políticas Públicas Finalís-ticas às Políticas Públicas de Gestão, definindo posições de longo prazo com foco no Estado, e de curto e médio prazo buscando o atendimento das politicas de Governo.

• As Ações Estruturais buscam a concepção de uma arquite-tura compatível e alinhada com os objetivos estratégicos. Estas adaptações estruturais estão vinculadas a novos conceitos, valores e posturas organizacionais, diante do foco principal dos serviços a ser realizados e da eficaz busca de soluções. Na área pública, as Ações Estruturais buscam alinhar a máquina governamental pelo remanejamento, extinção ou criação de unidades para viabilizar as ações de governo. A estrutura organizacional de governo é a moldura para viabilizar as Ações Estratégicas. Não se deve aqui confundir com as clássicas, suntuosas e intermináveis reformas administrativas, serviço predileto e bastante rentável para as assessorias externas ou consultorias.

• As Ações Comportamentais têm dois papéis fundamentais: (a) busca de uma melhor qualidade de vida e do comprome-timento do colaborador diante das causas e objetivos defi-nidos pela organização; (b) preparação do colaborador para os processos de mudanças, capacitando-o em técnicas de gestão, com foco na criatividade e inovação, diante de uma visão empreendedora. Na área pública, elas passam pela moralização e cumprimento dos contratos de trabalho. Não existe mais espaço para falar de emprego, mas sim de trabalho, com foco em objetivos, metas e resultados. Isto não é utopia na área publica, já tem sido praticado por unidades governamentais brasileiras. É preciso que cada unidade busque seu modelo possível, sem paternalismo e com foco nos objetivos maiores da sociedade, refletidos por Planos de Ação decorrentes do desdobramento das Ações

101101 Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras

Estratégicas. O cidadão paga muito caro pelos serviços com seus impostos.

• As Ações Operacionais buscam os resultados organizacio-nais, diante do foco principal dos serviços a ser realizados e da busca de soluções, via gestão, modelagem e melhorias dos processos, alinhados aos objetivos estratégicos, moldu-rados por uma arquitetura organizacional compatível e com colaboradores capacitados e comprometidos. Para que isso seja possível, com eficiência, eficácia, criatividade e inova-ção, utilizam-se como suporte as confiáveis técnicas analí-ticas e de gestão. Na área pública, estas AOs precisam reco-nhecer que os princípios de gestão são únicos. O que pode se fazer são contextualizações e adaptações a setores espe-cíficos. O núcleo básico de conhecimento é o mesmo. Assim, é preciso espantar o mito que “aqui é diferente”, “aqui não funciona”. Tendo um líder gestor, processos delimitados, objetivos definidos, metas estabelecidas, sem aparelha-mento ou paternalismos, a boa gestão na área pública funciona sim. Só que não se pode fazer gestão na busca de resultados com política partidária. Com essa base de posi-cionamento de responsabilidade organizacional, é possível utilizar o que há de mais moderno e eficaz em técnicas e métodos de gestão para a busca de eficazes resultados.

Assim, as OTGs com o suporte conceitual e direcionador da metodologia GEIQ considera ainda os princípios da sustentabili-dade e autonomia organizacional com a identificação de suas reais necessidades operacionais e de conhecimento, o que será contemplado pela plena transferência de conhecimento e tecnolo-gia de gestão à organização foco, para a implantação das soluções e mudanças continuadas.

O foco prioritário para a solução do problema da organização foco é trabalhado dentro do seu próprio contexto organizacional, com todas as suas variáveis, elementos, aspectos culturais e limi-tações. O que aumenta a probabilidade de sucesso ao fazer com que a mudança proposta se integre a todas as etapas e segmentos da vida organizacional.

Com as OTGs não se pretende enviar assessores externos ou consultores a organização-foco para executarem uma tarefa, com base em modelos já predefinidos, como tem sido tradição e prática no Brasil. E sim, estes deverão atuar como especialistas junto aos gestores e colaboradores da organização foco, desenvolvendo um

102102 Marcus Vinicius Rodrigues

conjunto de atividades para entender e diagnosticar o problema e encontrar a melhor alternativa de solução.

Isto será feito pela construção de um ambiente de aprendiza-gem próprio, constituído de reuniões, parte destas realizadas no local do trabalho onde a tarefa é executada, e parte em sala de reuniões. Neste ambiente de aprendizagem e inovação, existe uma troca de conhecimentos teórico e prático, possibilitando aos espe-cialistas (assessores externos ou consultores) se familiarizarem com as práticas e o dia a dia da organização foco, e aos gestores e colaboradores uma eficaz oportunidade para obterem novos conhecimentos, alinhados com as melhores práticas de gestão, aplicadas à realidade de sua organização. E ainda de participa-rem de um espaço de reflexão e debates, com liberdade e criativi-dade, sobre questões importantes relativas à sua organização.

Com as OTGs, a organização-foco deve identificar e enten-der o problema, participar ativamente da elaboração do diag-nóstico e estar conjuntamente envolvida com os especialistas na busca de uma solução inovadora, e também, de sua efetiva implantação. Ou seja, neste método, a ação de formação não é fundamentada em um modelo passivo de treinamento ou consultoria, mas sim, emprega uma metodologia de educação participativa com grande troca de experiências, na qual os conceitos são aplicados de forma prática pelos colaboradores e gestores, que são motivados, preparados e assessorados para agir em questões da própria organização.

Ao final desta intervenção, os colaboradores e gestores devem apresentar um conhecimento estruturado e crítico sobre o tema e, principalmente, desenvolver a capacidade de efetivamente aplicar as técnicas de gestão e mudanças para a otimização dos proces-sos críticos da organização nas áreas trabalhadas, constituindo uma espécie de grupo de assessoria ou consultoria organizacio-nal interna de gestão e melhoria de processos. Isso pode ser a base para a futura implementação de um núcleo interno, visando assessorar a direção de forma continuada e eficaz.

É este método de intervenção organizacional que penso ser hoje o mais eficaz e de menor custo. Seu desenvolvimento é dinâ-mico e pode ser entendido não como um método, mas principal-mente como um norte para uma nova postura nas relações “consultorias x organizações”, em particular as do setor público.

103103 Reflexões e considerações sobre a gestão das organizações públicas brasileiras

Considerações finais

É preciso mudar! Nossos governantes precisam adotar novas posturas gerenciais, de comprometimento e respeito às organiza-ções e aos cidadãos. Os princípios da boa gestão, diante da dico-tomia público x privado, do modelo de governo mais adequado, dos “pré-requisitos” para ser um governante, precisam ser discu-tidos de forma transparente, elevada e sem posições predefinidas. Nossos governantes precisam olhar para o interior de suas unida-des organizacionais e partir de seus próprios recursos humanos, materiais e técnicos, do conhecimento acumulado, das caracte-rísticas próprias ou culturais e da necessidade da sociedade, para criarem o seu modelo de desenvolvimento com base no conheci-mento das técnicas e métodos de gestão.

E é preciso ainda lembrar que trabalhar no governo é servir ao cidadão. É ter este como patrão. O setor público não é local para quem deseja acumular fortunas. Para isto tem o dinâmico setor privado com seus riscos e oportunidades. O cidadão brasileiro está mudando. Hoje, ele busca seus direitos e está excluído da vida publica como os maus gestores públicos. Somente com a consolidação destas mudanças será possível melhorar a quali-dade de vida do cidadão, consolidar o desenvolvimento e a compe-titividade, e garantir a sustentabilidade e o crescimento deste grande país chamado Brasil.

Nosso objetivo com este escrito é a busca de uma reflexão dos leitores cidadãos, para terem a certeza que é possível mudar, e assim poder exigir mais seus direitos; dos leitores governantes, para apelar para o bom senso e consciência de cada um para procurar gerir o negócio público com seriedade e competência.

É possível!

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Pedestres do mundo, uni-vos!

Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro

E a cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações

Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs

Chico Science

As cidades são vivas e dinâmicas, nelas as pessoas vivem seus direitos e deveres. Acessam e produzem os diversos bens culturais, constroem uma realidade concreta com ruas,

pontes, edifícios. Na medida em que o fazem, desenham sua própria realidade. Elas atuam politicamente e de citadinas tornam-se cida-dãs. Esta atuação e autocriação das pessoas na cidade devem ser vistas sob a ótica das lógicas de organização dos municípios. Duas especialmente se opõem: a de que os municípios concorrem entre si em busca de investimentos e a de que os municípios podem coope-rar para bem atender à demanda de seus habitantes.

As cidades brasileiras adotaram fortemente a primeira pers-pectiva. As políticas de isenções fiscais, extensamente aplicadas a partir da década de 1990, são exemplo maior dessa realidade. Na prática, a distribuição competitiva de isenções fiscais pelas cidades e estados da federação criou uma “guerra fiscal” no território nacional agravando as desigualdades regionais e entre municípios vizinhos.

Pensem nas cidades do ABC paulista. Elas dividem as frontei-ras e seus habitantes interagem ativamente. É comum que as pessoas habitem em um município e trabalhem na cidade vizi-nha, utilizando-se nesta de serviços como saúde e educação. As pessoas em seu movimento ativam a rede de serviços de trans-porte, de educação e de trabalho que ultrapassam os limites dos municípios. O que não se entende, a partir desses poucos exem-plos, é porque a administração dessas cidades deve favorecer a concorrência e não a coordenação e cooperação entre as cidades dentro de uma política alinhavada e construída de forma cidadã.

Estas cidades se interligam. Muitas vezes se coadunam com outras muito maiores, em sentido amplo. Cidades com mais popu-

105105Pedestres do mundo, uni-vos!

lação, mais empregos, mais vida cultural, enfim, grandes cidades. Tal integração, seguindo a lógica concorrencial, torna os municí-pios vizinhos às grandes cidades imensas periferias. Basta repa-rar na relação do Rio de Janeiro com a Baixada Fluminense. Há um gigantesco fluxo diário de pessoas no sentido Baixada-capi-tal, pela manhã, e capital-Baixada, no fim do expediente de traba-lho. O mesmo vale para Niterói e as cidades da Região Serrana, por exemplo.

A disparidade entre os municípios encontra uma contrapar-tida na organização interna dos bairros do município. Camadas sociais inteiras são impedidas de habitar em determinadas áreas. O critério para seleção de quem deve morar em que bairro é, primeiramente, o acesso à renda. O rentismo define a face da cidade. Por meio de um aparato técnico-burocrático, as segurado-ras e imobiliárias selecionam quem tem direito a habitar qual bairro. Quanto maior o valor do m² e maiores as exigências para a contratação do aluguel, mais “nobre” aquele bairro. Na prática, a renda distribui o direito à moradia.

O zoneamento socioeconomicamente determinado pela renda nos permite ler a realidade das cidades como o espaço atual onde a exclusão de grupos sociais e a própria luta de classes ocorrem de maneira mais avançada. A cidade torna-se campo de batalhas, tanto para que as camadas mais pobres não percam os espaços que ocupam, como para que as condições de vida dessas camadas mais oprimidas e mais exploradas não se tornem mais difíceis, visto que as formas diretas, indiretas e maquiadas de privatiza-ção da vida foram ganhando uma força brutal e destruidora.1

A própria lógica de organização da cidade vinculada à guerra fiscal para conseguir investimentos é muitas vezes estéril ao cidadão. Impossibilita o encontro e o vivenciar da cidade. Cria instrumentos públicos impedidores do convívio: grades, muros, falta de bancos e praças, falta de banheiros públicos. A cidade, aos poucos, deixa de pertencer aos cidadãos e transforma-se em propriedade das empresas que se instalam com todas as vanta-gens fiscais.

1 Tais ideias foram inspiradas pela fala do historiador Ivan Alves Filho acerca do pensamento do urbanista Edgar Greaff, na Conferência Nacional das Cidades, realizada pela Fundação Astrojildo Pereira, em Vitória do Espirito Santo, em março de 2016, assim como pela fala de David Harvey – entre outros palestran-tes – no evento Cidades Rebeldes, realizado em São Paulo, entre os dias 09 a 12 de agosto de 2015, pela Editora Boitempo.

106106 Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro

Pensada no critério para atender às necessidades do capital – afinal, é a pressão da especulação imobiliária e o espaço para empresas se instalarem ao menor custo o que determina os rumos atuais das políticas para as cidades – todos os outros elementos constitutivos da cidade são pensados e efetivados para atender à produção de mercadorias e capitais, à construção imobiliária e a dificultar o acesso ao espaço público para todas as outras coisas que não sejam ir e vir do trabalho e/ou receber os trabalhadores das cidades-dormitório que se acumulam em seu entorno.

Outro elemento importantíssimo deve-se à relação do poder público citadino com construtoras. Ao arrepio de planos diretores e códigos de postura, prédios comerciais e residenciais vão sendo construídos, desvinculados de qualquer planejamento, estudos de impacto ambiental, estudo de viabilidade ou necessidade. É muito comum ver Câmaras de Vereadores e prefeituras aprovarem cons-truções de prédios comerciais, quando há sobra de unidades para locação nas cidades. O mesmo vale para residências. Prédios com percentual baixíssimo de ocupação não são pensados para aten-der carência de moradia digna de grande parte da população e em descumprimento com a determinação legal de uso social da terra e de direito à moradia digna.

A concentração da oferta de serviços e de empregos nos centros das cidades precariza as periferias e incha os centros, provocando toda sorte de dificuldades, a começar pelos engarrafamentos, seguidos pela poluição sonora e do ar, lentidão no trânsito, enca-recimento e lotação nos transportes públicos, culminando com inviabilização de acesso às demandas básicas da sociedade e marginalizando diversos bairros, comumente os mais pobres.

O transporte público foi tomado pelos princípios concorrenciais. Para começar vejam-se as políticas de concessões. Grandes empre-sas do setor de transportes assumem a administração dos serviços públicos de massa e oferecem o serviço mais lucrativo. Exercem uma enorme pressão ao poder público em busca de isenções fiscais ou amenização dos impostos devidos. São agraciados anualmente com reajustes generosos. Não bastasse, ainda são subsidiadas para ofer-tarem vagas prioritárias para idosos e estudantes. O lobby das empresas do setor direciona o investimento. Trens, metrôs, barcas e ônibus disputam – com as armas do dinheiro – a hegemonia das políticas de transporte nos municípios.

De outro lado, privilegia-se o acesso ao transporte privado. As organizações urbanas voltam-se ao transporte motorizado indivi-

107107Pedestres do mundo, uni-vos!

dual. Disputa-se a disposição dos sinais, pinturas e asfaltamento das vias, preço de combustíveis e dos próprios automóveis. Ainda nos tempos de hoje, o automóvel é vendido como sonho individual, ter um carro configura acréscimo de status, realização de fetiche. Há elementos objetivos. Muitas vezes ter o carro permite ao cida-dão, mesmo morador de áreas marginalizadas, ampliar seu acesso à cidade, mesmo quando somente como espectador. Da perspec-tiva do motorista dono de veículo, uma cidade bem organizada, sinalizada e sem engarrafamentos é um sonho realizado.

Aos moradores das periferias nos conglomerados urbanos exige-se cada vez mais tempo. Às jornadas de trabalho devem-se acrescentar as jornadas para o trabalho. O direito ao transporte público e à cidade é, em última instância, uma imensa e inglória disputa pela direito ao tempo livre. O tempo despendido para chegar ao trabalho por quem sai de regiões afastadas do local de trabalho ou de estudo, por exemplo, pode em certos casos chegar a 25% do tempo do dia.

Muitas cidades são ainda reduzidas à dimensão de imensos dormitórios urbanos que vão se formando para atender ao grande conglomerado de produção de capitais que outrora se pretendeu cidade.

O que temos, portanto, é um espaço onde sobrevivem pessoas que despendem seu tempo para um massacrante ir e vir de seus empregos, com poucas e caras opções para locomover-se, destina-das a um toque de recolher surdo, visto a falta de transporte público a partir de certo horário. A vida torna-se complicada até mesmo diante das fatalidades, já que na necessidade de socorro médico o cidadão precisa deslocar-se e fica ao sabor das vontades que as manobras de empreses e agentes políticos provocaram.

Pode-se perguntar se não seria possível, todavia, outra lógica que orientasse a vida das cidades. A cooperação e coordenação entre os municípios apresentariam algumas consequências dife-rentes? A Carta Mundial de Direito à Cidade indica este outro caminho. São três os eixos deste documento:

1) Exercício pleno da cidadania: realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assegurando a dignidade e o bem-estar coletivo dos habitantes da cidade em condições de igualdade e justiça, assim como o pleno respeito à produção social do hábitat; 2) Gestão democrática da cidade. A cidade é uma construção coletiva, com múltiplos atores e processos. Deve ficar garantido o controle e a participação de todas as

108108 Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro

pessoas que moram na cidade, por formas diretas e represen-tativas no planejamento e governo das cidades, privilegiando o fortalecimento e a autonomia das administrações públicas locais e das organizações populares; 3) Função social da cidade e da propriedade urbana. Entende-se como prioridade do inte-resse comum sobre o direito individual de propriedade, o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano. Todas as cidades têm direito a participar na proprie-dade do território urbano dentro de parâmetros democráticos, de justiça social e de condições ambientais sustentáveis.2

Para começar, os municípios não são empresas lucrativas, mas construções sociais colaborativas. Portanto, este deveria ser o tipo de integração das administrações públicas municipais. Sempre tendo em vista impedir que um município se torne a peri-feria do outro, isto é, garantir que nenhuma cidade arque com o ônus do desenvolvimento do vizinho. Para isto, é necessário repen-sar a lógica concorrencial.

A palavra-chave para pensar as questões urbanas é democra-cia. Isto significa que as pessoas, independente de estarem ou não ligadas a movimentos sociais, precisam encontrar espaços públi-cos para determinar os rumos de seus municípios e de seus bair-ros, ou seja, a política de urbanização de seu município. A ideia é favorecer a criação e a organização livre dos comitês e associa-ções de bairro. Criar espaços na gestão pública para que essas organizações, diversos movimentos sociais e o cidadão atuem com autonomia e sejam ouvidos. Neste sentido, as conferências das cidades cumprem um papel exemplar.

Democratizar e dar força à atuação dos cidadãos para cons-truírem, em conjunto com um corpo técnico, um novo modelo urbanístico é essencial. É assim que se constrói a cidade que queremos. Esta é uma obrigação dada pelo Estatuto das Cidades,3 no qual a participação popular é incentivada. É necessário dar força a este princípio normativo para que ele se efetive. Como vem ocorrendo, este direito circunscreve-se a uma participação mera-mente opinativa4 que antes legitima a ação dos Estados em conluio com diversas empresas privadas.

2 Disponível em: <http://www.mobilizacuritiba.org.br/files/2014/01/Cartilha--Direito-%C3%A0-Cidade-Plataforma-Dhesca.pdf>. Acesso em: abr./2016.

3 Lei Federal de Desenvolvimento Urbano (Lei 10.257/2001). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: abr./2016.

4 SOUZA, Marcelo Lopes de. A cidade, o seu Estatuto e a sua gestão “democrá-tica”. Disponível em: <http://www.nuped.geografia.ufrj.br/textos/acidadeoseu-

109109Pedestres do mundo, uni-vos!

As cidades são para habitar, morar e circular, usufruir de seu espaço. Sendo assim, a lógica de ocupação do território é tema urgente. Moradias dignas, em áreas sem riscos ambientais ou sociais, que dão acesso aos bens que se produzem em uma cidade são direitos fundamentais. Portanto, a distribuição do território ocupável deve ser decidida democraticamente e não pode obede-cer a critérios econômicos, financeiros ou ficar à mercê da espe-culação imobiliária. Os projetos locais de urbanização devem ser considerados a todo o momento. As experiências da Vila Autó-dromo indicam que este caminho é possível.5 É preciso substituir as políticas de desocupação por políticas de urbanização.

Os serviços fundamentais, sempre que possível, precisam ser ofertados de forma descentralizada e os prestadores desses servi-ços devem ter gestões e administrações transparentes, inteira-mente sujeitas ao controle e à fiscalização da sociedade. A socie-dade precisa atuar efetivamente na construção dos Planos Diretores e nos conselhos municipais. As associações de bairros, respeitadas às condições de cada bairro, precisam ter espaços garantidos de atuação política e sua organização precisa ser democrática e também transparente, mas sem intervenções do poder público.

Até que se possa realmente afirmar que as cidades são territó-rios democráticos, é necessário pensar na situação das vias e do transporte público. As cidades, infelizmente, não são pensadas para os pedestres, nem para os cidadãos. Elas estão sendo orga-nizadas a partir do consumidor e do motorista do veículo privado. Por essa razão, entende-se que o caminho para a mobilidade urbana é qualificar e intensificar o transporte de massas, público e o transporte alternativo, além de pensar na mobilidade do pedestre como elemento fundamental. Este é o caminho para ruas desengarrafadas e acesso rápido àquilo que a cidade pode oferecer. O exercício cidadão, desta forma, caminha ao lado da necessidade de qualificar a mobilidade urbana.

O transporte é antes de tudo um bem público, por isso, as prestadoras desse serviço, seja o próprio poder público, empresas privadas ou de capital misto, devem atuar de forma transparente e se sujeitarem ao controle de toda a sociedade. É necessário, então, além de valorizar essa modalidade de transporte, garantir

estatutogestao.pdf>5 Moradores da Vila construíram um plano popular de desenvolvimento urbano,

econômico, social e cultural. Disponível em: <https://comitepopulario.files.wor-dpress.com/2012/08/planopopularvilaautodromo.pdf>. Acesso em: abr./2016.

110110 Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro

a todos o acesso às planilhas financeiras das empresas de trans-porte público, chance de fiscalizar seu trabalho e seus gastos, além de intervir no processo de decisão sobre a organização da oferta desse serviço fundamental.

A mobilidade urbana é a espinha dorsal do direito à cidade. As políticas de mobilidade devem considerar todos os elementos compo-nentes da cidade. Moradia, distribuição de renda, descentralização do trabalho e da oferta de serviços, transporte público, saneamento básico. Isto significa que esta é uma reflexão interdisciplinar.

Finalmente, resta se indagar sobre o papel do Estado na arti-culação de políticas públicas de mobilidade. É necessário ainda lutar pelo Estado ou esta é uma disputa inglória, desperdício de energia criativa? Ou será que justamente essa energia criativa é o que permite a sociedade tomar e domar o Estado para que este seja o desdobramento das aspirações criadas coletivamente? É uma bela provocação encontrar maneiras de construir a cidade-cidadã, escapando do caminho que a relação Capital/Estado tem oferecido de guia.

Referências

CARTA MAIOR. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 1. ed., 2013.

______. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 1. ed., 2012.

DIREITO HUMANO À CIDADE. Plataforma Dhesca Brasil (Org.). Disponível em: <http://www.mobilizacuritiba.org.br/files/2014/01/Cartilha-Direito-%C3%A0-Cidade-Plataforma-Dhesca.pdf>. Acesso em: abr./ 2016.

LEI FEDERAL DO DESENVOLVIMENTO URBANO, n. 10.257, de 10/07/2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: abr./2016.

PLANO POPULAR DA VILA AUTóDROMO. Plano de desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural. Disponível em: <https://comitepopulario.files.wordpress.com/2012/08/planopopularvilaautodromo.pdf>. Acesso em: abr./2016.

SOUZA, Marcelo Lopes de. A cidade, o seu Estatuto e a sua gestão “democrática”. Disponível em: <http://www.nuped.geografia.ufrj.br/textos/acidadeoseuestatutogestao.pdf>. Acesso em: abr./2016.

VI. Economia & Desenvolvimento

Autores

Adriana BrondaniDiretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia

Antônio MachadoEconomista

Aylê-Salassié F. QuintãoJornalista, professor, doutor em Historia Cultural

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Alforria fiscal

Antônio Machado

Com a indexação do aumento das despesas federais à infla-ção do ano anterior aprovada, depois da significa tiva vitó-ria do governo, nas votações em primeiro e segundo turnos

na Câ mara, o debate sobre a chamada PEC do Teto ganhou inten-sidade, assim como a reação dos potenciais pre judicados – a nata do funcionalismo.

Tal reforma não é a solução final e única contra o aparta mento do aparelho de Estado da realidade nacional, a razão maior da débâcle das contas fiscais e de suas sequelas sobre o crescimento potencial da economia, vale dizer, também das expectativas de melhora social.

Ela é apenas um roteiro para o que tem de mudar nas rela ções entre o público e o privado, principalmente o custo da gestão estatal. E as regras de aposentadoria dos regimes priva do (INSS) e público.

É também uma espécie de terapia coletiva, ao expor as maze-las dos programas agasalhados nas rubricas da lei orçamentária (LOA), o que inclui a receita desfalcada por desonerações desmo-tivadas. A LOA é o objeto do regime fiscal proposto pela PEC do Teto, que sur ge para durar 20 anos, com primeira revisão em 2027. Já há flagrantes.

O mais visível tem sido a reação das corporações mais aqui-nhoadas pelo governo (que propõe os aumentos salariais e as re galias extrafolha) e pelo Congresso (instância decisória), como os procuradores federais. Um dos departamentos da Procurado ria

114114 Antônio Machado

Geral da República, por exemplo, foi ao Supremo Tribunal Federal pedir a inconsti tucionalidade da emenda, ou seja, da PEC do Teto. Alega que ela ignora a autonomia dos poderes.

Pouco importa que tais categorias ganhem muito acima dos salários médios recebidos pelos empregados da iniciativa privada e mesmo bem mais do que remu neram funções equivalentes no exterior. Procurador no Brasil re cebe, segundo o economista João Manoel Pinho de Mello, o equi valente a 26 salários mínimos, contra o máximo de 11 salários mínimos nos Estados Unidos.

Como disse o ex-ministro Delfim Netto, em cu jo apogeu nos governos mili tares a burocracia ascendeu ao status de tecnocra-cia, “o cor porativismo estatal tomou con ta de Brasília”. O governo, diz ele, precisa ir à TV denunciar quem manda no Brasil. Curioso é que, antes do mensalão, Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e os metalúrgicos que fundaram a Central Única dos Trabalhadores (CUT) tinham o mesmo juízo so bre a burocracia, temendo sua influência.

Mas há mais revelações na esteira da bronca contra a disci-pli na da evolução do gasto público. Elas não dizem respeito ao que propõe a PEC, mas à qualidade do argumento (e, por analo-gia, ao que ensinam) de setores da academia que se veem como de fensores dos pobres – em tese, prejudicados pela redução de verbas para a saúde e a educação.

Não há corte de gasto público na proposta do governo, há so mente a inflexão de seu ritmo de crescimento. A nova regra inde xa o avanço do gasto realizado este ano à inflação em 12 meses, mas não impede que se gaste mais com saúde ou educa-ção, por exemplo, se se cortar em outro item. O teto só se aplica sobre o agregado do orçamento e não sobre os itens que o compõem. Is to significa que ele não cassa o direito de o Congresso modificar o orçamento, ele o enobrece.

Hoje, devido à automaticidade de várias despesas sujeitas a regras de vinculação ou indexação, mais da metade do gasto primário (isto é, exceto juros) independe da vontade parlamen tar. Isso vai mudar.

Tais mudanças implicam perdas aos programas mantidos com recursos fiscais? Não necessariamente. Mas parece que sim, de acordo com o método usado por economistas, inclusive do presti-giado Ipea, centro de estudos ligado ao Ministério do Planeja-mento – a regra de três.

115115Alforria fiscal

Quer dizer: calcula-se quanto a saúde deveria receber nos próximos 20 anos a partir do histórico dos valores recebidos até agora e se compara com o que receberá se o dinheiro for apenas corrigido pela inflação. Isso é regra de três. Ela ignora que o en ve-lhecimento da população requer mais cuidado de saúde, da mesma forma que diminui o gasto com educação devido à re dução dos jovens em idade escolar.

Mais gritante nesses comparativos – e na projeção do tal estudo do Ipea, desautorizado pela direção do instituto, a perda em 20 anos vai a R$ 743 bilhões, se fosse mantida a regra atual – é a ausência dos fatores de produtividade, o sujeito oculto da péssima qualidade dos serviços públicos. Aliás, formam-se milha-res de administradores no país, porém sobre gestão pública mais falam os macroeconomistas, os sociólogos e os ativistas sindicais. E o povo? Ora, o povo...

Se falta um sistema regular de monitoramento de resultados, não há o que reclamar. Quanto a saúde precisa para funcionar nos trinques? Pelos dados do SUS nos estados, faz-se mais e melhor sem pre que há gestão, como atesta a rede municipal de São Paulo gerida pelo Sírio e pelo Einstein. Nestes espaços públi-cos, a PEC do Teto é ociosa.

Palmatória da sociedade

Quem sabe dos meandros dos processos e disfuncionalidades do setor público não se espantou com a PEC do Teto, embora co brando o resto das reformas que lhe permitam ser apenas um freio de arrumação. Sem isso, o resultado implícito do reordena-mento fiscal não acontecerá – o resgate da autonomia fiscal e fi nanceira do Estado brasileiro, que é a condição decisiva para a normalidade dos juros no país.

Não se chega a isso sem que o governo governe o Estado e as con tas públicas, algo muito longe de ser trivial. Estudo do Credit Suisse sugere que o país poderia ter o mesmo resultado ruim gastando 43% menos do que gasta com todos os serviços públicos federais. A conta inclui dispêndio 53% menor em educação e 70% em saúde.

Trata-se, na visão moralista, de descaso do setor público, embora o que falte é a sociedade estatizar o Estado, dirigi-lo para todos e não para uma elite de servidores e exigir que os políticos cobrem resulta-dos e punam os malfeitos. A PEC do Teto é esta palmatória.

116116 Antônio Machado

Vamos combinar: nenhum assunto hoje em dia é páreo para o roteiro de suspense da Operação Lava-Jato, cujos capítulos momentosos convenceram a Netflix a apostar no potencial de uma série baseada no realismo sem escrúpulos da política brasileira. O cineasta José Padilha começou a produzi-la. Ê o que torna mais surpreendentes os desdobramentos da proposta de emenda cons-titucional para limitar o gasto público.

Pelos usos e costumes de Brasília, a chamada PEC do Teto era para estar no ostracismo, com o Congresso paralisado, o Governo travado e a economia desarvorada como estouro da boiada depois da queda de um raio no meio do pasto. Mas há uma ordem aparente na tramitação da mais ousada proposta econômica desde a reforma monetária de 1994 tanto quanto nos sinais emanados do colapso fiscal da Federação.

A crise econômica já não é mais atribuída a demônios exter-nos como se fazia até à reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff, ela mesma responsável pelo início da discussão sobre o fim de linha do regime de gastos e receitas fiscais da Constituição de 1988 – primeiro com Joaquim Levy; depois, com Nelson Barbosa, mentor intelectual da PEC do Teto, não do texto final, pois ele a concebia de outro jeito.

Apesar de fazer da indexação das contas da LOA federal à inflação do ano anterior algo demoníaco, que levará à ruína das políticas sociais, a verdade é que o plano mais sério para discipli-nar o crescimento tipo rosca sem fim do gasto público foi conce-bido no primeiro governo Lula, a quem faltou argúcia, além de bom aconselhamento, para entender o que tinha em suas mãos.

A seu mando, Dilma repeliu como “tosca” proposta levada pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, visando zerar, em até quatro anos, o déficit público nominal – a medida ampla do resul-tado fiscal ao incluir o pagamento de juros da dívida federal.

O plano atual é mais brando que o do PT de 2005 porque o vulto do desastre que se seguiu foi dantesco, continuando com a analogia do inferno alardeado pelos petistas sem memória. O défi-cit nominal era de 3% do PIB. Hoje é de 10%. Nem fechando o governo, por alguns anos, haveria superávit. Tal resultado exige tempo, reformas e firmeza.

Os que criticam a PEC argumentam que ela vai reduzir o dinheiro da saúde e da educação ao indexar à inflação os gastos de 2017 (apenas nesses casos, já que o ponto de partida das

117117Alforria fiscal

demais rubricas é 2016) – o certo, alegam, seria indexar ao aumento das receitas ou do Produto Interno Bruto.

O que os críticos ignoram? Que a dotação federal só custeia 25% do orçamento da educação. O ensino básico, como a saúde, é função de estados e municípios, ambos excluídos (como o Fundeb) da regra do teto. Pobres dos alunos se for isso o que esses lumi-nares ensinam.

A PEC do Teto é o preâmbulo das reformas que lhe darão nexo, como a idade mínima para a aposentadoria e a revisão da iniqui-dade entre o pródigo regime público e o privado. E a questão da produtividade? Esta história de fazer mais com menos já foi comprovada, na saúde, por consultorias de processos acionadas por governos estaduais para melhorar a emergência em hospitais e mitigar a chamada “loteria da morte”. Trata-se de ocupar a UTI com casos menos graves ou conforme a especialização dos médi-cos presentes. Aos demais, só resta rezar.

Organização funciona, mas em regime emergencial. A consul-toria vai embora e volta a bagunça, que existe não bem pela falta de recurso, mas de gestão. A estabilidade funcional deserdou a produtividade. E a vinculação da receita tirou o empenho perma-nente pela eficiência. No fim, a verba sempre crescente vai para salários, gente e obras, cujo custeio demanda mais vagas e por aí vai. Talvez faltem verbas. Mas com segurança ninguém sabe, pois faltam indicadores confiáveis.

Este é o efeito mais notável da PEC do Teto: obrigar a pensar fora da caixa. “Leis escritas com maior clareza”, como disse num artigo recente o empresário Pedro Passos, “serviriam melhor à sociedade que um Judiciário enorme e um vasto mercado de serviços jurídicos”. É isto: o problema não é bem o setor público, mas as leis ruins, a gestão deficiente, a desídia dos governantes e, last but not least, a tolerância de todos nós.

Tais revisões ajudam a relativizar o viés fiscal dos problemas. O Judiciário, por exemplo, seria menos oneroso (e moroso) se as leis fossem mais claras. Vale mesmo para o rebu tributário, gerando um sem fim de arbítrios. Vendedores de facilidades bebem nessa fonte, pajeada por um exército de funcionários sempre menor que a demanda. Simplifique-se tudo, que o custo cai. A receita sobe e a economia deslancha. Não é a sociedade que gosta de complicar. Complicômetro é coisa de quem não sabe o que faz ou tem segundas intenções.

118118 Antônio Machado

Onde erramos?

Sabe aquele misto de exclamação e pergunta “onde foi que errei?” – o clássico desabafo diante das frustrações da vida? Pois é... Aplica-se a este momento do país, em que jovens ocupam esco-las em alguns estados para protestar contra a proposta sanea-dora do gasto público, a PEC do Teto, e a Medida Provisória que muda o currículo do ensino médio. Eles defendem o indefensável, já que a educação é uma das causas profundas, talvez a maior, de nosso atraso secular.

Onde foi que o Brasil errou? Provavelmente, no gasto público sem a aferição do resultado e sem controle pela sociedade do que se fez e se faz com ele, como indica a relação entre a carga tribu-tária e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador da Organização das Nações Unidas (ONU) que avalia a qualidade dos bens e serviços prestados pelo Estado.

A correlação entre a carga de impostos e o IDH é alta, conforme estudo de junho último do Simprofaz. Na América Latina, países como o Chile, em que os impostos totalizam 21,3% do Produto Interno Bruto (PIB), Argentina (29%), México (11%), Peru (17,4%), Equador (16,9%), todos têm IDH superior ao do Brasil, cuja carga tributária é de 33,8% do PIB. Em geral, países com IDH seme-lhante ao nosso, 0,718 (quanto mais perto de 1, maior a qualidade de vida), têm metade da carga de tributos praticada aqui.

Esta já é uma medida robusta do flagrante de desperdícios no país, justificando o freio de arrumação que deve resultar da PEC do Teto, ao limitar a expansão do gasto federal à inflação do ano anterior. A rigor, não haverá corte, mas avaliação e transparência em muito maior escala sobre a aplicação dos dinheiros com função social.

Tome-se a educação. É razoável que alunos invadam escolas alegando temer a eventual redução do custeio do ensino público e a perda da qualidade curricular? Não, não é, mesmo assumindo que tais invasões envolvem poucos alunos – cerca de 20 a 30 em escolas com mil a 3 mil estudantes –, mobilizados por grêmios estudantis operados por partidos e sindicatos de professores e de funcionários. Aos fatos.

O gasto público com educação cresce desde 2000 e já repre-senta 19% do total das despesas do governo. Na média da Organi-zação para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que reúne os países desenvolvidos e alguns emergentes,

119119Alforria fiscal

tal fração é de 13%. A questão, portanto, é o que se faz com o dinheiro, mas os alunos engajados na onda de invasões não ques-tionam coisa alguma.

Os governos federal, estaduais e municipais não gastam pouco com educação, mas gastam de modo desigual em relação às prioridades. O gasto público por aluno do ensino superior é quatro vezes maior que o do ensino fundamental – a maior dispa-ridade entre os países da OCDE e parceiros. As universidades públicas absorvem o grosso da verba da educação pública, mas é a rede particular que mais recebe alunos de graduação – 75% das matrículas em 2015, graças ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

O gasto é também sem foco no que se faz necessário. Os cursos mais essenciais para as novas demandas, envolvendo ciência, tecno-logia, engenharia e matemática continuam com elevada evasão, embora a taxa de ingresso por 10 mil habitantes, de 8,5% a 12,3% em 2010, até fosse maior que a da OCDE. Essas taxas chegaram, ao fim dos cursos, reduzidas, respectivamente, a 3% e a 5,2%. E o viés continua desfavorável, apesar do aumento das verbas.

A proposta do governo para alçar a qualidade do ensino médio prevê três matérias obrigatórias, matemática, português e inglês – o resto sendo modulado conforme o interesse dos alunos, além da gradativa expansão para período integral das aulas. A discus-são está aberta.

O que não se pode é manipular politicamente adolescentes, como se a reforma fosse desnecessária. Ainda que não seja o que se propôs, como está não pode ficar. Nossa escolaridade média em 2000 era um pouco acima da dos EUA, Canadá e Austrália em 1900, segundo outra análise do blog Economia de Serviços, de Anaely Machado. Aqui o tempo médio de escolaridade é de quase oito anos, contra 13 nos EUA e Coreia do Sul. Isso sugere que não se chegará a 10 anos de estudos até 2040, abaixo da marca dos demais países do Brics.

Então, estamos assim com a educação: se gasta muito, tanto em termo absoluto como relativo, paga-se mal aos professores e os estudantes aprendem pouco. E isso quando ficam até o fim de cada ciclo letivo. No ranking do Programa Internacional de Avalia-ção de Alunos (Pisa) da OCDE, espécie de Enem aplicado em 37 países, somos o penúltimo.

120120 Antônio Machado

É uma tragédia com efeitos mais duradouros que o banzé fiscal das últimas três décadas. E é mais trágico quando se assiste no mundo desenvolvido e mesmo na China, ao viés de substitui-ção de gente por máquinas cada vez mais autônomas e inteligen-tes. O tempo para indulgências acabou. E como ficamos? Ocupando escola é que não dá.

Se o acúmulo de erros não permite distrações num mundo sem chance para quem aposta no futuro (como se dizia do Brasil) e descuida do presente, decisões surpreendentes nos últimos dias parecem denotar algo promissor. A PEC do Teto passou com duas votações expressivas na Câmara, por exemplo, algo incomum até nos governos Lula e FHC.

O Supremo Tribunal Federal normalmente, absurdamente lento, rejeitou a desaposentação e autorizou o corte de salário de funcionário público em greve. Em manifestações pontuais, minis-tros do STF também criticaram juízes e procuradores lenientes com a invasão de escolas. E, ainda não muito visível, percebe-se uma movimentação de parlamentares, em especial na Câmara para resgatar a agenda perdida de reformas envolvendo a moderni-zação e (sobretudo) a simplificação da microeconomia, campo vastíssimo de oportunidades para promover crescimento e emprego.

Não é certo que tal disposição prospere. Mas seria injusto ignorá-la, até porque a história ilustra que progressos reais acon-teceram, no mundo, quase sempre em situações limite. Estamos neste ponto.

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Brasileiro não reconhece coerência na agricultura

Adriana Brondani

Pesquisa conduzida pelo Ibope Conecta revela que o brasi-leiro não relaciona a produção de alimentos com a aplica-ção de conhecimento científico. Segundo dados do levanta-

mento, apesar de 79% dos entrevistados declararem ter interesse por ciência, apenas 23% dos respondentes acredita que o conheci-mento científico auxilia na produção de alimentos. O dado surpre-ende, uma vez que a agricultura é um dos setores no qual o Brasil mais se destaca.

A pesquisa, ao mostrar que o brasileiro se interessa por ciên-cia, mas não a relaciona com a produção de alimentos, mostra que é necessário aproximar esse tema do cotidiano das pessoas para que elas reconheçam que nem só de eletrônicos e medica-mentos vive a pesquisa e que, principalmente no caso do Brasil, a inovação está no essencial, na alimentação.

Outros dados da pesquisa revelam que o entendimento das tecnologias é diretamente proporcional ao interesse do respon-dente pelo conhecimento científico. É o caso, por exemplo, dos organismos geneticamente modificados (OGM) ou transgênicos. O Ibope Conecta apurou que 80% das pessoas responderam corretamente ao serem questionadas sobre o que é um transgê-nico e este número cresce entre os interessados por ciência.

Ao analisarmos especificamente a percepção pública da trans-genia, nota-se uma oportunidade. A grande maioria de responden-tes (73%) afirma já ter consumido transgênicos e, entre os 27% que não sabem ou afirmam que não ingeriram, 59% se mostram aber-tos a experimentar. Também neste caso, quanto maior o conheci-mento sobre ciência, maior a receptividade aos OGM.

Em linha com os estudos científicos, testes e análises de bios-segurança, que garantem que os transgênicos são seguros para a alimentação humana, animal e para o meio ambiente, apenas uma minoria acredita que eles fazem mal (33%) ou causam reações alérgicas (29%).

Apesar disso, nenhum dos entrevistados enumerou com exati-dão as culturas geneticamente modificadas (GM) plantadas no

122122 Adriana Brondani

Brasil. O país cultiva hoje sementes transgênicas de soja, milho e algodão. Na pesquisa, os dois primeiros são citados por, respecti-vamente, 60% e 51%. A resposta correta é mencionada por apenas 11% dos participantes, mas eles também acrescentam outros produtos na lista, como trigo (30%) e tomate (23%), que não possuem versões GM no mercado. Nesse cenário, apenas 15% sabem que essa tecnologia está disponível para o algodão, apesar de fazermos uso dela há mais de 10 anos.

O levantamento também investigou que características os brasileiros avaliam que são inseridas nesses alimentos por meio da transgenia. Até hoje, no Brasil e no mundo, prevalecem os OGM resistentes a insetos e/ou tolerantes a herbicidas, inovações que conferem facilidades para o agricultor. A resistência a pragas foi adequadamente mencionada por 77% da amostra, mas 61% também atribuiu a essas plantas uma maior durabilidade que elas não têm.

Um último dado da pesquisa Ibope Conecta confirma o distan-ciamento entre o cotidiano das pessoas e o conhecimento sobre as tecnologias empregadas na produção de alimentos. Ao serem questionados sobre que tipo de substância eles acreditam que consomem ao ingerir alimentos, apena 17% demonstraram saber que também ingerem DNA ao se alimentar de carnes, frutas, verduras e legumes. Mais do que isso, 73% dos entrevistados demonstram preocupação em ingerir essa molécula.

A pesquisa sugere, portanto, que há um hiato no conhecimento básico. Possivelmente, para aumentar o entendimento sobre a transgenia e seus benefícios, será necessário investir em educação básica, para aprofundar a noção de que a ciência é abas de toda inovação e está presente em todos os aspectos da nossa vida.

A constatação de que as pessoas não sabem que há DNA no que ingerem mostra a falta de conexão entre as informações técnicas e a realidade. A pesquisa foi realizada pela plataforma Conecta do Ibope Inteligência e teve como amostragem 2011 homens e mulheres a partir de 18 anos, das classes A, B e C, de todas as regiões do país, que não trabalham com biotecnologia ou em áreas correlatas.

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De joelhos para a evasão fiscal

Aylê-Salassié F. Quintão

Alimentos, serviços de saúde, economia informal e até mendigos, todos pagam impostos no Brasil, e muito. Quem paga pouco são os ricos. A informação é do professor Paulo

Dantas da Costa, do Conselho Federal de Economia (Cofecon), para quem, por aqui, o Estado parece que sempre esteve de joelhos para os desonerados, sonegadores, para os mais de quinhentos diferentes modelos de fraudes e centenas de artifícios dos quais o sistema não consegue de livrar.

Se a proposta de Temer “é consertar o país”, então deve-se entender que, mais cedo do que se espera, ele vai desencavar a reforma tributária, há 13 anos em tramitação no Congresso. Sem ela, o Governo terá dificuldades para reduzir os sucessivos défi-cits orçamentários que atormentarão aqueles que o sucederem e para assegurar novos investimentos.

Somados, os impostos não recolhidos corresponderiam a um montante equivalente ao do orçamento federal. Num único exercí-cio, 2009, a evasão somente na área da economia informal repre-sentou 18,4% do PIB (R$ 578 bilhões).Na concepção do Estado Democrático, descrito no Preâmbulo da Constituição, os impostos destinam-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e indivi-duais numa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, garantindo e protegendo os cidadãos do desemprego, da fome, da doença, na invalidez, na velhice e até contra a violência. Contudo, quase 40% do imposto é recolhido indiretamente nos produtos e serviços consumidos pela própria população. No exercício de 1995, a arrecadação tributária brasileira era composta de 51% de tributos sobre produtos e apenas 20% sobre o capital, relação que, de fato, pouco se alterou.

Enquanto isso, explorando o desconhecimento do contribuinte sobre a questão fiscal e tributária, especialistas e a mídia fazem comparações grosseiras sobre o total dos impostos cobrados, tipo o “Brasil é o 14º país do mundo com a maior carga fiscal” ou “Você trabalha 4 meses e meio para pagar impostos”. Com explicações simplórias, estabelece-se um comportamento anômico (indiferente e conformista) com relação ao papel dos tributos. Na realidade,

124124 Aylê-Salassié F. Quintão

impostos, antes de representarem encargos, são uma necessidade para dar consequência a uma política de redistribuição de renda.

A rejeição aos impostos é fomentada sistemática e ideologica-mente pelos liberais, ou criminosamente, sem que alguém a conteste explicitamente. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), de acompanhamentos processuais no campo tribu-tário, termina por confundir-se no julgamento dos interesses empresariais, que procuram claramente maximizar apropriação individual de parcelas da renda nacional, pela redução das despe-sas tributárias. As discussões são, quase sempre, acompanhadas da descaracterização do papel do Estado.

As perdas do Estado/sociedade começam pela ineficiência fiscal e passa pela economia informal, considerada a fonte primá-ria da sonegação. Gera-se uma cadeia de perversidade tributária contra a população nos municípios, nos estados e até em produ-tos, com renúncias fiscais destinadas a aliviar a carga de impos-tos sobre uma classe, atividade ou região econômica. Às vezes, para beneficiar amigos.

Ninguém tem interesse em ensinar para que servem os impos-tos ou lembrar que as distorções no processo de arrecadação ou a omissão no pagamento dos tributos estão tipificadas criminal-mente como delitos passiveis de cadeia, porque significam roubar da sociedade.

Em novembro último, reuniu-se em Brasília, no espaço do Minis-tério Público Federal, um grupo de tributaristas franceses, canaden-ses, americanos e brasileiros, sob a coordenação do professor Maurim Falcão, da Universidade Católica, para discutir a Sociologia Fiscal, o Direito e o Humanismo Tributário, temas considerados pouco comuns. A discussão girou em torno do fato de que o “tributo é, acima de tudo, um direito da sociedade”, cujo fim é financiar a superação das carências das classes menos privilegiadas.

Portanto, o sucesso de um sujeito ou de uma empresa benefi-ciada por uma desoneração ou as fraudes cometidas contra a receita tributária penalizaria indiretamente os mais pobres. O tributo pertence à sociedade, e o Estado é o único ente compe-tente para processá-lo e redistribuí-lo, atrelando-o sempre aos efeitos sociais, entre eles o de também estimular o desenvolvi-mento equânime das regiões, bem como as exportações.

Concordou-se que o sistema tributário no Brasil não transita religiosamente pelas suas concepções técnicas e constitucionais.

125125De joelhos para a evasão fiscal

Estudos comparativos demonstraram que apenas 9,5% dos tribu-tos voltam à sociedade sob a forma de investimento público em educação, saúde, segurança, habitação e saneamento. Parte significativa dos tributos é usada inclusive para financiar o funcionamento da máquina pública, essa mesma que anda fazendo greve para conseguir mais privilégios.

Efetivamente, isso não tem relação direta com os compromis-sos de uma sadia política fiscal. “Consertar o país” passa, portanto, por uma reforma tributária, de maneira a tornar compulsórios dispositivos constitucionais e a restabelecer a mora-lidade tributária perdida já nos primeiros anos da Republica (1889), e que se arrasta no tempo.

VII. Mundo

Autores

Arlindo Fernandes de OliveiraBacharel em direito e consultor legislativo do Senado.

Luiz Carlos AzedoJornalista, repórter especial e colunista do Correio Braziliense

Samara Z. L. SabinoFormada em Direito pela Fundação Getúlio Vargas e mestranda em Ciências Políticas na Sciences Po Paris, com especialização em Economia e Políticas Públicas

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O mundo de Trump

Luiz Carlos Azedo

Estamos todos perplexos, ainda, com a ascensão de um empresário arrogante e aventureiro, que faliu quatro vezes e não esconde o passado de sonegador “legal” do fisco de seu

país, ao comando da maior potência mundial, os Estados Unidos da América. Histriônico, xenófobo e machista durante a campa-nha, ‘Trump atropelou uma quinzena de pretendentes ao posto no seu próprio partido e, depois, derrotou a democrata Hillary Clinton no colégio de “superdelegados”, que define o presidente americano. Ela, com longa estrada na política, venceu a disputa no voto popular. Todas as pesquisas e os principais comentaristas políticos diziam que a ex-primeira dama e ex-secretária de Estado seria a sucessora de Barack Obama, um presidente que orgulha-ria qualquer país. Deu Donald Trump!

A propósito da eleição, um velho amigo, o sociólogo Marcos Romão, líder negro de sua geração, num comentário carregado de emoção, disparou nas redes sociais:

Quem é este homem que votou no Donald Trump? Sim, eu o vejo na Rússia, na Hungria, na Alemanha, na Polônia, na Argentina, nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil. E para onde eu olhar, é um homem, em geral, precarizado no mundo do trabalho, que perdeu todos os direitos e que possuía, ao perder o emprego, seguro que tinha. Este homem que rumina toda tarde diante da televisão, com uma cerveja ao lado, destila no saco um ódio a todos os vizinhos – mexicanos, muçulmanos, negros, estrangeiros, mulheres, gays –, que ele imagina terem ocupado o seu lugar e são as causas de sua

130130 Luiz Carlos Azedo

desgraça e perda do poder que tinha, em um mundo em ordem, num passado distante.

Romão, que durante muitos anos morou na Alemanha, onde constituiu família, prossegue com sua alma de poeta anarquista, mas que sabe das coisas do mundo:

Este é o homem que sai nas ruas da Alemanha contra refugia-dos. Este é o homem que na Rússia sai na rua para espancar gays. Este é o homem que nos EUA destila o ódio contra todo o resto do mundo que não mais reconhece a sua supremacia imperial americana. Este é o homem que aplaude os esqua-drões da morte no Brasil e nas Filipinas. Este homem frustrado e ressentido descobriu o voto. Descobriu o mesmo voto que os lutadores pelos direitos civis descobriram na década de 1960.

É uma visão mais antropológica do que política, mas faz todo o sentido diante de um fenômeno que foge aos paradigmas estabe-lecidos. O filósofo polonês Adam Schaff, no ensaio A identidade cultural na pós-modernidade (DP&A Editora), analisa a descons-trução da identidade do sujeito moderno e a crise de representa-ção política no Estado-nação, bem como o fundamentalismo, a diáspora e o hibridismo na globalização. O fortalecimento do nacionalismo e da xenofobia na Europa já era uma realidade, agora exacerbada por uma crise humanitária sem precedentes.

A vitória eleitoral de Trump desnuda a crise de identidade da América profunda, digamos assim. Sua resposta política era inima-ginável: a negação do “sonho americano”, do qual Barack Obama é o maior símbolo contemporâneo. A divisão da mais poderosa nação do Ocidente se aprofundou com sinal trocado: o Partido Republi-cano chegou ao poder pela via do nacionalismo e do populismo.

O Oriente

Mudando de eixo, a eleição de Trump é uma resposta à deca-dência da hegemonia econômica e política dos Estados Unidos num mundo cada vez mais multipolar. É uma resposta intuitiva que provavelmente ressuscitará o anticomunismo como narrativa política, em razão do fato de que a República Popular da China é o grande vilão da globalização para a massa de trabalhadores norte-americanos que elegeram Trump.

Negros e hispânicos foram hostilizados por Trump na campa-nha, o racismo foi um ingrediente de sua campanha, mas, do ponto de vista da geopolítica mundial, o problema é outro. Quando

131131O mundo de Trump

Trump sinaliza para o presidente da Rússia, Vladimir Putin, como o fez durante a campanha, está mandando um recado para a China. Ou seja, está sinalizando uma mudança de estratégia não somente em relação à Europa, mas em relação a todo o Oriente. Não é uma mudança trivial na política externa norte-a-mericana, desde Richard Nixon.

No seu livro Sobre a China (Objetiva), o ex-secretário de Estado, Henry Kissinger, grande artífice da reaproximação com a China, destaca que a disputa pelo controle do comércio mundial no Pací-fico entre esta potência continental e os EUA, uma potência marí-tima, seria a grande polarização do século.

No passado, a Inglaterra (potência marítima) e a Alemanha (potência continental), que disputaram o controle do comércio no Atlântico, protagonizaram duas guerras mundiais. Para alguns autores, a China e outros países asiáticos levam vantagem na concorrência com o Ocidente por serem regimes autoritários, sem os percalços da democracia, que vive uma crise de representação.

Qual será a resposta de Trump?

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O fim do dilema corneilleano dos EUA

Samara Z. L. Sabino

Na literatura clássica, um dilema corneilleano é aquele em que alguém é obrigado a escolher entre duas opções que lhe serão igualmente prejudiciais, ainda que as consequências

dessas escolhas sejam diversas. Na tragicomédia O Cid, de Pierre Corneille, que deu origem ao termo, o protagonista tem de escolher entre vingar o seu pai e perder a mulher que ele ama ou casar-se com essa mulher e desonrar a imagem de seu pai. Este foi o senti-mento de muitos norte-americanos diante do drama binário Hillary Clinton/Donald Trump nas acirradas eleições presidenciais de 2016.

Trump, que assumirá em 20 de janeiro um dos cargos mais influentes do mundo, começou sua campanha como um candidato extremamente improvável, ganhou popularidade ao defender proje-tos pouco realistas, como a construção de um muro na fronteira com o México e a imposição de tarifas de importação de até 45% à China.

Os resultados da eleição demonstram que nem mesmo os seus problemas tributários e as denúncias de assédios sexuais foram capazes de impedi-lo de chegar ao cargo maior de presidente da República. A verdade é que o principal problema de Hillary Clin-ton foi o fato de o apoio à sua candidatura ser mais ligado ao repúdio a Trump do que à sua própria popularidade. Hillary falhou ao não conseguir superar a forte rejeição ao seu nome, não sendo salva nem mesmo pelo apoio massivo de celebridades e pela inédita campanha política conduzida pela atual primeira dama, Michelle Obama.

Sua fama de imprudente consolidada no escândalo do uso de e-mails privados para discutir informações sensíveis e sigilosas na época em que era Secretária de Estado levantou suspeitas até mesmo sobre a imparcialidade do FBI na investigação do caso. Se o fato de ser mulher e os boatos relacionados ao seu estado de saúde ajudaram a sepultar as suas chances de sucesso, o financia-mento nebuloso das atividades da Fundação Clinton foi decisivo.

Contudo, não foram apenas as pesquisas pré-eleição que não conseguiram adiantar o resultado da votação. A literatura político-econômica que avalia o comportamento do eleitorado em pleitos presidenciais nos Estados Unidos tem demonstrado que é possível fazer projeções precisas dentro de alguns pontos percentuais, meses

133133O fim do dilema corneilleano dos EUA

antes da votação acontecer, exceto em eleições acirradas. Este fenô-meno acontece, principalmente, quando o presidente em exercício não participa da eleição como candidato, como ocorreu nestas elei-ções. O interessante é que a eleição de Donald Trump como presi-dente dos Estados Unidos é apenas mais um episódio no ano do drama da imprevisibilidade de votações majoritárias polarizadas.

Primeiro, o surpreendente resultado do Brexit, depois o temido “não” dos colombianos para o acordo de paz com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e, em breve, o referendo que decidirá o futuro do primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi.

Agora, passado o drama eleitoral estadunidense, apenas após a sua posse, Trump revelará o quanto do seu discurso é de fato implementável e, infelizmente, a volatilidade dos mercados será inevitável nesse período. O seu plano econômico está longe de ser claro. Há apenas algumas certezas, como a diminuição de impos-tos e o aumento de gastos com infraestrutura e defesa, o que aumentará o endividamento do Estado.

De fato, muito está em jogo: o Obamacare, as promessas de depor-tação massiva, as temidas políticas protecionistas e a oposição a acor-dos comerciais, como o Transpacífico. E, ainda, possíveis mudanças nas políticas do FED (o Banco Central norte-americano). É impor-tante se ter em mente que Donald não conta apenas com uma significante maioria republicana no Congresso, mas provavelmente frustrará de vez as expectativas de democratas de formar uma maioria liberal na Suprema Côrte norte-americana. Sem levar em consideração uma das vagas atualmente abertas, há pelo menos mais três juízes em idade avançada, que podem deixar o cargo durante o governo Trump, dois deles de posicionamento liberal. Isto pode significar a rediscussão de vários assuntos, como direito ao aborto e direitos da comunidade LGBT.

Além disso, nesse cenário de mais de uma nomeação, uma vez constituída a maioria conservadora na Suprema Côrte, ela poderá levar adiante diversas proposições polêmicas do Partido Republi-cano por mais de uma geração. Isso significa que, em tese, Donald Trump não enfrentará a mesma oposição sofrida por Barack Obama e poderá realizar mudanças impactantes na economia norte-americana. Mesmo assim, o desafio de acalmar os ânimos e harmonizar os interesses do Partido Republicano permanece.

Observaremos, no longo prazo, se o crescimento econômico resistirá à gestão do novo presidente e quão preciso era o temor dos mercados.

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Eleição americana e o Colégio Eleitoral

Arlindo Fernandes de Oliveira

No início das apurações das eleições presidenciais norte-ame-ricanas do ano em que disputavam o incumbente Barack Obama, Democrata candidato à reeleição, e Mitt Romney, desafiante pelo Partido Republicano, estava clara a vitória de Obama no Colégio Eleitoral, embora não se soubesse ainda qual candidato seria vencedor nos votos populares. Nesse momento, o empresário republicano Donald Trump, que apoiava Romney, postou um twit-ter com o seguinte texto:

Ele [Obama] perdeu o voto popular por muito e ganhou a elei-ção. Deveríamos ter uma revolução nesse país. Esse Colégio Eleitoral fraudulento fez da nossa nação motivo de chacota. Não podemos deixar isso acontecer. Deveríamos marchar até Washington e parar essa farsa. Nossa nação está totalmente dividida! Vamos lutar como nunca e parar essa enorme e nojenta injustiça. O mundo está rindo de nós. Mais votos gerando uma derrota… revolução!

Adiante, como a situação seguia a mesma, Donald Trump voltou ao Twitter, mais breve: “O Colégio Eleitoral é um desastre para a democracia”, afirmou o hoje presidente eleito dos EUA. Em seguida, as apurações passaram a mostrar a vitória de Obama também no voto popular, e os tuítes foram apagados. Mas, de fato, é uma pecu-liaridade do sistema político dos EUA que um candidato a presidente possa ter menos votos do que o seu adversário e mesmo assim vencer a eleição, desde que tenha superado o outro em alguns estados-chave. Tal fato voltou a ocorrer nestas eleições do ano de 2016. Neste mês de dezembro, o Colégio Eleitoral – que é um processo, não um lugar – irá eleger Trump para presidente dos EUA, pelo voto de algo como 306 dos delegados representantes dos 30 estados nos quais Trump venceu as eleições contra os 232 delegados representantes dos 20 estados onde ganhou Hillary Clinton.

Entretanto, à altura em que este artigo é escrito (22/11), Hillary Clinton obtém 63.747.686 votos populares (47,8%) contra 62.020.213 (46,5%) de Trump. Ou seja, a candidata do Partido Democrata recebe cerca de 1.727.000 (um milhão setecentos e vinte e sete mil votos) dos eleitores a mais do que o candidato que venceu a eleição.

135135Eleição americana e o Colégio Eleitoral

Esta é a quinta oportunidade, na história dos EUA, em que ocorre esta situação. Nunca, entretanto, o candidato derrotado obteve tantos votos a mais do que o candidato vencedor.

Existem duas regras para a composição do Colégio Eleitoral que elege o presidente dos Estados Unidos: pela primeira, os dele-gados dos estados são definidos pela representação desse estado nas duas Casas do Congresso. Ocorre que, enquanto a represen-tação dos estados na Câmara dos Deputados (a Casa dos Repre-sentantes), é proporcional à população, os representantes de cada estado no Senado são sempre dois. A segunda regra é que pessoas que ocupam os cargos de senador e de deputado (representante) não podem ser delegadas ao Colégio Eleitoral.

Aos 435 delegados correspondentes aos membros da Casa dos Representantes e aos 100 relativos aos integrantes do Senado são acrescidos os três representantes do Distrito de Columbia, onde fica a capital, Washington, unidade federada que não conta com representação no Congresso. Tudo somado dá o número de 538 membros do Colégio Eleitoral.

A igualdade da representação dos estados no Senado é que acaba por implicar a distorção na representação da população no Colégio Eleitoral. A Califórnia, com seus quase 40 milhões de habi-tantes, é representada por um número de delegados que corres-ponde à sua bancada na Câmara (43) mais 2. Por outro lado, o estado de Wyoming, que tem pouco mais de meio milhão de habi-tantes, é representado pelo número correspondente de deputados (1), mais 2. O mesmo ocorre com vários estados que têm população escassa, tais como o Vermont, Dakota do Norte e o Alaska. Soma-dos os delegados representantes desses estados menos populosos (que, se fossem simplesmente proporcionais à população, seriam representados por um ou dois delegados e que indicam o número mínimo de três) acabam por levar à distorção na composição do Colégio Eleitoral no que diz respeito à população.

Claro que o problema seria muito mitigado se a definição dos delegados representantes fosse proporcional, em cada estado, aos votos recebidos pelo candidato nesse mesmo estado. Mas não é assim: hoje, mesmo que o candidato vença no estado por apenas um voto, todos os delegados dessa unidade federada serão a ele vinculados, sem qualquer proporção. A alteração do critério de definição dos delegados de cada estado para proporcional ao número de votos, ao invés do manejo da tradicional regra do “the winner-take-all” ou “o vencedor leva tudo”, em tradução livre, pode-

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ria ter também outro efeito, além de aproximar o Colégio Eleitoral da vontade popular: tornar interessante a campanha eleitoral nos maiores estados dos EUA, como a Califórnia, o Texas e Nova York e em muitos outros, dominados por um ou outro partido.

Hoje, como se usa o critério de o vencedor ficar com todos os delegados, e se sabe que o Partido Democrata deve vencer nos estados liberais, como Califórnia e Nova York, e o Partido Republi-cano deve vencer no Texas, quase não há campanhas eleitorais nesses estados, que concentram os maiores eleitorados do país, e isso diminui a capacidade da campanha eleitoral de atrair o inte-resse da cidadania.

Adotada a proporcionalidade, poderia fazer grande diferença para o candidato republicano obter 40% (ao invés de 30%) dos votos na Califórnia ou em Nova York, e a mesma lógica se aplicaria ao candidato democrata no Texas. O mesmo vale, aliás, para a maioria dos estados dos EUA, pois hoje a campanha tende a ficar concentrada nos estados-pêndulo (ditos swing states) aqueles que às vezes votam democrata e às vezes votam nos republicanos. Estes são por volta de uma dúzia dos cinquenta estados dos EUA. Adotada a proporcionalidade em cada estado, a campanha eleitoral ganha-ria maior interesse, e todo eleitor teria o seu voto mais valorizado.

Claro que existe, em tese, a hipótese de simplesmente acabar com o Colégio Eleitoral e estabelecer eleições diretas, como em qualquer regime democrático. Mas aqui falamos de um país que tem apreço pelas tradições, especialmente aquelas que represen-tam os seus mitos fundadores, fortemente calcados na ideia de Federação. Mesmo a hipótese de corrigir parcialmente, para conferir proporcionalidade à representação de cada estado, é de difícil viabilidade política e legislativa. É que o Colégio Eleitoral, embora possa ser hoje criticado, como fez Trump em 2012, resulta de uma engenhosa construção constitucional, fundada na histó-ria, que guarda relação com a própria ideia de uma nação que se construiu mediante a decisão de alguns estados (as antigas treze colônias da Inglaterra) que, observadas certas regras, como o próprio Colégio Eleitoral, optaram por ficar unidos.

VIII. Batalha das Ideias

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Autores

Ernesto CaxeiroProfessor, advogado formado pela UFRJ e especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea

Flávio R. KotheProfessor titular de Estética na Universidade de Brasília

Sérgio C. BuarqueEconomista, mestre em Sociologia e professor aposentado da FCAP/UFPE

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Socialismo, liberalismo e a síntese

Sérgio C. Buarque

Nos últimos duzentos anos, o pensamento político esteve dividido em duas grandes correntes antagônicas que, com diferentes nuances, comandaram o mundo e induzi-

ram diversos experimentos políticos e sociais com alguns suces-sos e dramáticos fracassos: o socialismo e liberalismo. De forma simplificada, é possível dizer que estas correntes se diferenciavam em dois aspectos dicotômicos: direitos individuais versus direitos sociais; e mercado versus estado. Enquanto o liberalismo combi-nava os direitos e liberdades civis com o livre funcionamento do mercado, o socialismo defendia a atuação dominante do estado (no controle ou anulação do mercado) e os interesses coletivos (acima dos direitos individuais). No fundamental, a diferença entre liberalismo e socialismo se manifestava também na ênfase dada à liberdade ou à igualdade, à escolha entre competitividade, com ênfase econômica, e a equidade social.

Parecia existir um incontornável trade off entre as duas grandes correntes de pensamento, seus princípios e seus objetivos que obri-gavam a uma escolha entre liberdade e equidade ou entre mercado e Estado. O liberalismo partiria do princípio que, assegurada a liber-dade dos cidadãos, caberia a cada um deles construir sua posição na sociedade, desconsiderando que as próprias relações sociais desi-guais herdadas da riqueza e propriedade acumuladas gerariam e perpetuariam desigualdades nos próprios espaços de liberdade das pessoas. Em outras palavras, que alguns seriam mais livres que outros. Ou que, assim, a desigualdade se manifestaria também na própria liberdade individual. No outro extremo, o socialismo poderia

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tolerar e aceitar restrições às liberdades e direitos individuais, para dizer o mínimo, desde que considerasse necessárias para promover a prometida igualdade social. Sacrificaria, assim, o direito igualitá-rio à liberdade em nome da igualdade social que deveria ser cons-truída de fora das relações sociais dominantes e para além das desi-gualdades da propriedade.

Durante os 72 anos da existência da União Soviética e do seu bloco de nações, o socialismo parecia ser um sistema bem suce-dido de crescimento econômico e elevação da qualidade de vida, mas estaria sustentado pela anulação do mercado, numa econo-mia totalmente estatizada, e pela restrição forte das liberdades civis. Liberdades civis e mercado eram objetivos do liberalismo e, assim, incompatíveis com o socialismo caracterizado por um estado totalitário e paternalista. Na mesma época, o experimento mais avançado do liberalismo estaria ocorrendo nos Estados Unidos com o funcionamento do livre mercado (mesmo com a presença forte dos oligopólios) e a garantia das liberdades civis sustentadas por bases contratuais (ainda que, até a década de 80, fossem inalcançáveis pelos afrodescendentes).

No meio dos dois extremos, surgia e se consolidava na Europa a socialdemocracia se equilibrando entre objetivos do socialismo e valores e princípios do liberalismo, incorporando aspectos rele-vantes de cada um dos modelos e combinando doses significativas de liberdade e de igualdade, de mercado e de Estado, de competi-tividade e de equidade. Desde o pós-guerra, este tem sido o expe-rimento social e político mais avançando, contornando e negando o trade off liberdade/igualdade pela combinação de democracia política com um Estado provedor e regulador. Com diferentes combinações e ênfases, a socialdemocracia associou o liberalismo político – com a implantação e o fortalecimento das instituições democráticas e dos direitos civís – à atuação do Estado no provi-mento dos serviços públicos de qualidade de forma equitativa na sociedade e na regulação do funcionamento do mercado, orien-tando para a eficiência e a produtividade econômica. Desta forma, a socialdemocracia (o chamado Estado de Bem Estar Social) nos países europeus é uma síntese de duas vertentes ideológicas em conflito que, reconciliando aspectos positivos das mesmas, elimina a falsa dicotomia.

Importante ressaltar, contudo, que este fenômeno social tornou-se possível apenas pela combinação dos grandes avanços tecnológicos, com o fortalecimento dos sindicatos e dos partidos de orientação social-democrata (incluindo os trabalhistas na

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Grã-Bretanha). Desde a segunda metade do século XX, as profun-das inovações tecnológicas permitiram um aumento continuado do excedente produtivo, parte do qual apropriado pelo Estado e que viabilizaram sua atuação crescente na economia e nas rela-ções sociais. Até os anos 30, na maioria das economias industria-lizadas, o Estado se apropriava, através das diferentes formas de arrecadação e tributação, de modestos 6% do PIB, o que limitava fortemente a sua atuação no provimento dos serviços públicos. Atualmente, na maioria dos países do mundo, a receita pública representa mais de 20% do PIB. E nos países europeus de forma-ção socialdemocrata este percentual flutua entre 35 e 40% do PIB (a Dinamarca, com a maior carga tributária, tem hoje 45,2% do PIB apropriado pelo governo).

A social-democracia é uma economia de mercado, mesmo que regulado pelo Estado, e mantem a propriedade privada dos meios de produção, características do sistema capitalista. E, no entanto, superou o socialismo estatal do bloco soviético na qualidade de vida e na equidade social da população, ampliando e democrati-zando as oportunidades no acesso a bens e serviços sociais, espe-cialmente educação, para não falar nos ganhos democráticos e dos direitos civis. A presença do Estado na social-democracia se concentra na promoção do desenvolvimento e da competitividade econômica e no provimento dos serviços públicos à sociedade.

Mas, ao longo das últimas décadas do século passado, o Estado foi se agigantando e se burocratizando nos países socia-democratas tornando-se pesado, caro e ineficiente, principal-mente diante das mudanças demográficas e da forte concorrência externa de países capitalistas emergentes. Na década de 80, ao mesmo tempo em que o bloco soviético desmoronava como espuma (vítima do estatismo e do autoritarismo), emergia, em várias partes do mundo, um novo movimento de inspiração liberal numa reação direta contra uma exagerada presença do Estado na regu-lamentação e nas atividades produtivas e contra a força do sindi-calismo e do corporativismo.

O caso mais emblemático foi a Grã-Bretanha com a vitória do Partido Conservador, liderado pela primeira ministra Margareth Thatcher. No meio de uma grande crise econômica, inflação e estagnação alimentadas pelo choque do petróleo, e com um Estado obeso e paternalista, o governo Thatcher promoveu reformas drásticas na economia e nas instituições britânicas. Ao longo de onze anos, o governo da primeira-ministra conservadora privati-zou cerca de 50 empresas nas atividades minerais e siderúrgicas,

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ferrovias e portos, empresas aeronáuticas e de telecomunicações, telefônicas, gás, eletricidade, agua, e até indústrias automotivas, como Jaguar e Rolls Royce. O Estado foi praticamente retirado do setor produtivo, especialmente em áreas de baixa produtividade, alta ineficiência e limitada competitividade. Além disso, o projeto liberal de Thatcher desregulamentou várias áreas econômicas e introduziu mudanças na prestação dos serviços sociais.

No entanto, ao contrário do que se propaga e do que, provavel-mente, queria o governo conservador britânico, o Estado manteve o seu papel de provedor dos serviços públicos sociais e de regula-dor em alguns segmentos oligopolizados do mercado. Embora de inspiração liberal radical, a implementação do projeto tatcherista foi mediada e contida pelas condições estruturais e históricas de um país com arraigado sentimento e valores de bem-estar social e com instituições fortes e poderosos interesses corporativos. O resultado deste processo está longe de ter transformado a Grã-Bre-tanha num país liberal. Ao contrário, o embate político do projeto liberal de Thatcher com os trabalhistas e o movimento social gerou uma síntese que combina a base socialdemocrata com os princípios liberais. Conservou o Estado provedor, mas introduziu reformas na atuação e no papel do setor público, tanto na ativi-dade produtiva quanto na regulação do mercado.

O que houve na Grã-Bretanha e em outros países em que houve reformas do Welfare State não foi uma vitória da vertente liberal sobre a socialista. Na verdade, nos processos sociais, rara-mente, ocorre a vitória completa de um projeto (ou ideologia) sobre o outro, formando-se quase sempre uma síntese da disputa polí-tica com diferentes nuances e predomínios. A estratégia liberal de Thatcher empurrou reformas liberais que, nas condições políticas do país, serviram para atualizar o sistema econômico e social às novas condições históricas, contribuindo para aumento da compe-titividade econômica sem comprometer a equidade social.

O fato é que, mesmo depois da avalanche liberal e com o indis-cutível custo social da mudança, a Grã-Bretanha continua sendo um dos países de melhor qualidade de vida e de baixa desigual-dade social no mundo, e o Estado britânico continua sendo o provedor dos serviços públicos; o sistema de saúde britânico é um modelo para o mundo e os governos garantem educação de quali-dade e gratuita para todo cidadão. Em 2013, a carga tributária de Grã-Bretanha era de 32,9% do PIB, abaixo da carga tributária do Brasil (35% do PIB), mas o IDH-Índice de Desenvolvimento

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Humano era 0,892, muito acima do índice brasileiro (0,744).1 Em grande medida, a Grã-Bretanha aproveitou e equilibrou o melhor das duas grandes correntes políticas incorporando aspectos que estão longe de serem antagônicos: o Estado provedor favorece os direitos sociais e a liberdade individual e garante igualdade de oportunidades sociais; e o Estado regulador permite que o mercado exerça melhor seu papel de promotor da inovação e das atividades econômicas com eficiência e competitividade.

Na mesma época do avanço liberal na Grã-Bretanha, a Nova Zelândia realizou uma reforma do Estado mais radical que a britânica, liderada por um governo trabalhista e enfrentando problemas semelhantes de hipertrofia do Estado e ineficiência dos governos. Em 2013, a Nova Zelândia tinha uma carga tributária de 32,1% e um IDH de 0,910, superior ao da Dinamarca que tem a maior carga tributária do mundo (45,2%). Tanto na Grã-Breta-nha quanto na Nova Zelândia, foi realizada uma privatização ampla de atividades produtivas e uma reforma administrativa substituindo traços burocráticos por um sistema gerencial que eleva a sua eficiência. Mesmo quando transferiu para o setor privado a produção de bens e serviços e a oferta de alguns servi-ços públicos, o Estado continuou sendo o provedor dos serviços sociais e o regulador do mercado.

Como disse o economista Luiz Carlos Bresser Pereira, a reforma do Estado que se defendia, nos anos 1990, não significou a redução do Estado. Embora tenha procurado “limitar suas funções como produtor de bens e serviços e, em menor extensão, como regulador (....) implicará provavelmente em ampliar suas funções no financiamento de organizações públicas não-estatais para a realização de atividades nas quais externalidades ou direi-tos humanos básicos estejam envolvidos necessitando serem subsidiados, e em dotar o Estado de meios para que possa apoiar a competitividade internacional das indústrias locais”2(Bresser-Pereira, 2001, p. 6).

Se, no final do século passado, um movimento interno de inspiração liberal promoveu correções de rota na socialdemocra-cia amarrada por um Estado obeso e uma economia ineficiente, neste século são, principalmente, fatores externos que ameaçam o Estado de Bem-Estar europeu. Por outro lado, não é o tão temido

1 Dados do “Estudo sobre a Carga Tributária/PIBXIDH” de Gilberto Luiz do Ama-ral, João Eloi Olenike e Letícia Mary Fernandes do Amaral, de maio/2015.

2 ENAP. Texto para discussão 09. A administração pública gerencial: estratégia e estrutura para um novo Estado. Brasília/DF, out./2001.

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neoliberalismo que volta a assolar o socialismo liberal europeu, mas, muito ao contrário, é a China, com uma mistura exótica de capitalismo de Estado e socialismo autoritário. A aceleração do processo de globalização e das mudanças tecnológicas convive com uma crise do sistema financeiro e, por último, dos Estados nacionais em escala global. Mas o principal elemento de desorga-nização do Welfare State europeu tem sido a emergência da China na economia internacional com agressiva atração de empresas e disputa de mercados com base em mão de obra barata. Em vez de representar uma alternativa ao neoliberalismo, o neocapitalismo chinês ameaça a capacidade de concorrência do modelo de bem-estar social europeu, com elevados custos da força de traba-lho e amplos benefícios sociais. A tudo isso se agrega o intenso fluxo migratório dos países em guerra e conflitos sociais, acompa-nhado dos atentados do islamismo fanático que geram insegu-rança e xenofobia.

Este ambiente de instabilidade e insegurança coletiva reali-menta a crítica interna ao socialismo liberal europeu e mesmo ao ambicioso e até agora bem sucedido projeto de União Europeia. Outra vez, a Grã-Bretanha assume a dianteira, agora com uma reação retrógrada de isolamento da antiglobalização. Interessante lembrar que a liberal Margareth Thatcher, quando tinha o poder britânico, resistiu à entrada do seu país na União Europeia, o que levou à não adoção do euro como moeda nacional, ao contrário da esmagadora maioria da Europa.

O fantasma que assombra o continente europeu, no momento, não tem nada de liberal, nem na economia, na medida em que, ao contrário, combate o processo de integração comercial da globali-zação, nem no que se refere aos direitos civis. Mesmo que tenha de se adaptar às condições externas e internas, parece improvável uma mudança relevante nos fundamentos do modelo de socie-dade que combina valores do liberalismo – democracia, liberdade e direitos civis – com a presença ativa do Estado como provedor de bens e serviços públicos que promove a igualdade de oportunida-des. Embora retrocessos sejam possíveis na história, a síntese da generosidade do socialismo – que contempla a ação do Estado na promoção do bem-estar social – com a garantia das liberdades e dos direitos civis definidos pelo liberalismo deve resistir às amea-ças do neopopulismo europeu.

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Da faculdade de fingir

Flávio R. Kothe

Tanto as artes são manipuladas quanto servem para manipu-lar: são manipuladas porque servem para manipular. Isso é tão intrínseco à sua história que não se evidencia, embora já

Kant tenha conceituado a arte como exercício da ideia de liberdade, portanto não apenas como vontade do poder. Um modo seguro e eficaz de manipular por meio de obras é promovê-las à arte: isso gera temor reverencial, como se fossem algo sagrado, que impede que se questione aquilo que por ela é sugerido e dito. Significa que por meio dela se mobilizam crenças poderosas, que não querem ser questionadas, exatamente porque não se sustentam diante da razão crítica. Apresenta-se, então, como arte o que não é arte, enquanto o realmente artístico é menosprezado e sufocado.

Um modo bastante visível de manipulação pela arte está na espinha dorsal da história da arquitetura ‒ a construção de palá-cios e templos ‒, tão visível que, em geral, não se vê, ou seja, “a gente” (on, man, man em francês, inglês ou alemão) não enxerga, mas se ofende quando alguém tem um olhar crítico. Um palácio é uma “casa grande” (aliás, a casa grande nem era tão grande assim), em que habita o senhorio, para que pareça poderoso a quem fica de fora, como que gigantesco: o estranho é que, quanto mais alto o pé direito, menor fica quem está lá dentro. Os templos antigos abrigavam deuses, dos quais se acreditava depender a aparição do sol ou a ordem do mundo, sendo punido até com a morte quem não acreditasse nisso. Governantes são deuses ou diabos modernos.

Mudaram as crenças, mas a crença permanece. No mundo cristão, a “casa de deus” serve para abrigar uma divindade que é considerada infinita no espaço, no tempo, no poder e no saber: por natureza, ela não cabe numa “casa” nem precisa dela, ou seja, a obra é o monumento à incoerência, uma exibição pública do erro. Heidegger, nas aulas sobre Lógica, de 1925/26, pergunta por que Kant não aprofundou a noção de tempo na Crítica da razão pura. Talvez uma resposta seja que ele estava proibido pelo rei de escrever sobre religião. Se ele dissesse que tudo o que ocupa espaço se ordena em relação a outros corpos, havendo movimento entre eles, a conclusão seria que deus não poderia estar presente

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em todos os lugares sem ocupar lugar e, portanto, ele estaria sujeito à temporalidade que é inerente a tudo o que ocupa espaço: não poderia ser eterno. O que está no espaço se move, e o que se move se modifica, não podendo ser “perfeito”. Aliás, quem é perfeito não pode fazer nada, pois está em repouso total: um ser perfeito não poderia criar nada. A arte precisa repensar essa teologia de que a obra precisa ser perfeita, nada podendo se alte-rar nela sem que piore. É inerente à obra que ela se modifique no tempo e seja vista de novos modos, em outros lugares.

Não se costuma ver isso nem se permite que se exponha. A Constituição garante a liberdade de crença, dentro do parâme-tro das religiões institucionais, mas não garante a liberdade de descrença nem aventa que a crença amarra e inibe a razão crítica. Em 1809, Schelling propôs a tese de que, se há um deus que tudo sabe e tudo pode, qualquer ato humano só acontece porque “Ele” o permite, ou seja, a liberdade humana é incompatível com a crença em um deus infinito. Subjacente ao tema da liberdade, tão presente a partir do século XVIII, está a decadência da religião cristã, no sentido de que cada vez menos as pessoas esclarecidas se deixam nortear por padres ou pastores.

A proposta iluminista diz que todo direito e toda moral se fundam na liberdade, sendo esta a característica diferencial do homem. A liberdade não é o mesmo que “livre arbítrio”, pois este só se dá dentro do parâmetro, ditado pela Igreja, de que o homem escolhe entre céu e inferno pelo que faz. Se não se crê nessa opção e representação, livre arbítrio perde sentido. A noção de liberdade tem, por contrapartida, a morte de Deus, quer se tenha noção disso ou não.

No urbanismo, quando se coloca uma igreja ou a catedral no centro da cidade e, em torno, uma praça, está-se dizendo que o homem é uma criação divina e que Deus é o centro em torno do qual toda a vida deve girar: o traçado urbanístico é uma pregação contínua. Insere as pessoas dentro da obra, fazendo com que elas cumpram o seu traçado, condicionando o seu modo de ver, de existir e de ser, os percursos que elas fazem a cada dia, o modo como se acomodam, aquilo que avistam e lhes é impregnado doutrinariamente. O urbanista que não percebe nem mostra isto está envolto na mesma visão de mundo que determinou os plane-jamentos e as construções. Acha que faz ciência, mas é um prega-dor. Quando omite os fundamentos metafísicos, compactua com a opinião da “gente”. O urbanismo, que tem ficado fora do sistema

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das artes na tradição filosófica, expande e radicaliza a questão presente na arquitetura.

Nem sempre e nem por todos, a arquitetura tem sido conside-rada arte. Aliás, há um consenso de que a maior parte das obras arquitetônicas não é arte: apenas espaço construído. A dificul-dade não está em definir o espaço construído, mas em conseguir discernir aquele que possa ter a pretensão de ser arte. No sistema das artes do idealismo alemão, a arquitetura, embora abrigue as demais artes, é a mais baixa na hierarquia porque teria menos condições para dizer por si o que ela pretende significar em suas obras. Ela seria mais artística à medida que se aproximasse da escultura, ou seja, à medida que se liberasse do utilitário para priorizar o significativo.

Nem tudo o que comparece como arte é efetivamente artístico, os cânones são constituídos conforme conveniências e políticas da época, mas aparecem como padrões universais. Quem tem mais prestígio e força impõe seu gosto como padrão geral, o que serve para lhe dar ainda mais prestígio e força. As aristocracias de sangue e religiosas fizeram da arte um modo de se legitimar e auratizar, o padrão que impuseram se mantém subjacente às mudanças de gosto, pois a sociedade ainda se divide entre senho-res e servos. Um modo moderno de servidão é o salário mínimo. A dominação passa a parecer natural, correta. A elite que domina não gosta que surjam grupos tentando tomar o espaço que ela considera dela. Às vezes, há negociações que permitem mudanças de superfície, para manter as mesmas estruturas básicas: “plus ça change, plus il est la même chose”.

Até onde vai o âmbito da arquitetura? Em Vitrúvio e Alberti, faziam parte dela a engenharia militar, a engenharia naval, de estradas e de pontes, a construção de armas e muralhas. O culto e refinado Vitrúvio não tinha pruridos morais em construir armas que ajudassem a matar milhares de pessoas em povos invadidos pelos romanos. O bispo Alberti devia rezar muito, o que não o impediu de ajudar a matar tantos quanto possível dos que resis-tiam à ânsia de poder temporal do papa: por conveniência, prefere nem contar o que fez. Os dois se mereciam, e são reverenciados na arquitetura por suas contribuições teóricas.

Ambos tinham forte formação retórica e suas obras sobre arquitetura são a transposição de princípios da oratória. Os arquitetos contemporâneos não costumam mais ter essa forma-ção e, por isso, fica difícil divisar a transposição havida. Mais

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difícil ainda é sair de dentro da tradição teológica ocidental ‒ grega, romana, italiana e cristã ‒, para discernir documentos da barbárie nos monumentos da cultura. Como isso não é feito, e quem tenta fazer sofre reações e é silenciado, prefere-se repassar a história dos monumentos, sem questionar seus fundamentos metafísicos, que são realmente a razão da existência deles.

Em Vitrúvio: utilitas, firmitas e venustas são transposições das três categorias básicas do discurso: inventio, dispositio e elocutio. Primeiro, o orador precisava saber o que ele pretendia repassar a quem: precisava, então, estudar o assunto, descobrir argumentos, conhecer o seu auditório, ver como poderia repassar certo convencimento. Depois ele tinha de organizar seu discurso, com uma introdução, a apresentação das teses básicas, o desen-volvimento da argumentação, concatenando cada parte com as demais e com o todo, para induzir todos a uma determinada conclusão. Isso devia garantir solidez ao que seria apresentado, de maneira que resistisse a contra-argumentos. Na arquitetura, isso se tornou a firmitas. Por fim, ele deveria saber apresentar isso diante de uma plateia, de modo convincente, com voz límpida e clara, de acordo com o tema e o público, prendendo a atenção de todos e conseguindo convencê-los de que o que havia sido dito era verdadeiro e correto, o caminho a seguir. Era preciso haver prazer em assistir a uma boa peça de oratória. O arquiteto romano chamou isso de venustas, o que hoje as feministas diriam ser machista, pois define o belo da perspectiva masculina.

Mais importante do que discernir “como foi feito”, “como foi transposto”, é tratar de entender a obra de arte como um discurso destinado a impor certo convencimento, a transposição de uma vontade para um material e, daí, a quem a admire. Qual é a “ideia” subjacente, mas que está presente em cada um dos materiais? Como a arquitetura é a mais bruta e volumosa das artes, aquela que tem a linguagem mais simples e direta, que apresenta com mais evidência uma mensagem unívoca e clara, ela se torna estra-tégica para entender algo que tem norteado a produção e a valori-zação de um discurso de convencimento, de imposição de uma vontade, algo que se tem chamado de “arte”, mesmo que seja a negação e a traição do artístico visto como expressão da liber-dade. A oratória se torna a chave para entender a história e a teoria da arte.

Uma obra é construída de determinado modo para poder repas-sar, com os recursos disponíveis, aquilo que se quer sugerir com ela. O modo de construir uma obra, sua análise técnica, é, portanto, o

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caminho para chegar a essa “ideia” recôndita. Como ela não deve ser dita em sua singeleza para que não pareça simplória, a técnica é também o meio de obstruir este acesso. É preciso entender, portanto, a técnica em suas duas facetas: construção e obstrução.

O que determina a história da arquitetura não é apenas a evolução dos materiais de construção. Pelo contrário, são as necessidades políticas e “metafísicas” que levam ao desenvolvi-mento dos recursos técnicos. As artes são em geral determinadas por algo que não é estritamente técnico. Há uma dimensão “meta-física” na arte, que escapa à cogitação apenas técnica. A técnica não pensa isso, embora ela seja usada para alardear certa “visão de mundo” e a casta que a representa.

Em São Petersburgo, na União Soviética, quando a cidade se chamava Leningrado, havia, na principal fábrica de calçados, uma faculdade de arquitetura do sapato. Sendo a meta produzir calçados para toda a população, não só para madames, não se produziu uma grife mundial, mas o diretor geral se orgulhava da automação alcançada para produzir em massa. A inovação no tênis surgiu, porém, no Ocidente. Desenhar joias é trabalho de arquiteto? Este se ocupa também com interiores de residências, construção de móveis e imóveis, projeção de praças. Quando Christo e Jeanne-Claude recobriam prédios de Berlim, Paris ou Nova York com panos, eles destacavam nessas instalações de arte ambiental o caráter escultórico da arquitetura, até mesmo do urbanismo, mas também o pictórico, ao recobrir as construções com uma pátina de tecido, uma tela gigante, de cor uniforme, em que a forma dava o tom.

O princípio arquitetônico não é monopólio do que se tem chamado de arquitetura. Ele existe em todas as artes e até mesmo no que não é arte. O equilíbrio na distribuição dos volumes, a simetria na ocupação dos espaços, a proporção entre as partes, isso existe em obras de arte, em cristais, em plantas, em animais. Não só a arte é propaganda do poder como a definição e o sistema das artes também são ideológicos, não só pelo que dizem, mas pelo que omitem.

Se arquitetura é uma “arqui-técnica”, a técnica existe em todas as artes, em todos os ofícios, em ações e em modos de pensar: o princípio arquitetônico está em tudo isso também. Faz parte da relação do homem com o mundo, para conseguir atender às suas necessidades mediante bens que ele coleta e elabora. Para os gregos, não havia um termo específico para a arte. Eles a

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subsumiam na “téchne”, mas isso não nos basta. O diferencial do belo, do “kállos”, leva à questão que a arte moderna agudizou, ou seja, saber se a beleza ainda é condição necessária à arte ou se, como disse Adorno, ela teria deixado de ser bela para poder ser verdadeira. O pressuposto disso é que o mundo não é belo e que a arte deve mimetizar o mundo, dois problemáticos pressupostos.

Para definir e classificar as artes, há quatro vetores tradicio-nais na Estética: 1) o caráter mimético; 2) a restrição dos sentidos de captação das obras; 3) espaço e tempo; 4) a liberdade na cria-ção artística. Estes vetores podem estar escondendo outro, de que pouco se fala: como a arte é usada para legitimar e auratizar o poder, especialmente daquele que não se legitima por si, que precisa dela para subsistir. O poder prestigia a arte que o presti-gia, ele dá poder a quem e ao que lhe dá mais poder.

Hitler tinha planos de montar grandes museus na Alemanha. Se tivesse vencido a guerra, apareceria como grande mecenas, talvez até como bom pintor. Frederico, o Grande, é responsável pela morte de um percentual maior de súditos do que Hitler ‒ só na terceira guerra da Silésia, só no lado dos vencedores prussia-nos, morreram mais de 500.000 pessoas ‒, mas ele é chamado de Grande, é visto como um monarca esclarecido e progressista, é celebrado como um bom compositor e respeitável intelectual. Hitler é responsável pela extinção total de três povos germânicos ‒ silésios, sudetos e pomeranos ‒, mas é lembrado, sobretudo, pelo genocídio de judeus.

O rei Francisco I, da França, ficou com fama de ter sido tole-rante em questões religiosas, mas mandou o exército real massa-crar a população francesa que se desviava do catolicismo orto-doxo. Ele usou a arte, especialmente a arquitetura, para legitimar o poder, construindo e reformando palácios que transmitissem a imagem pública de grandeza do monarca. Seguia assim o que haviam feito diversos papas e príncipes italianos.

Os livros e cursos de história da arte correntes entre nós elogiam os gênios do Renascimento Italiano, sem examinar como obras foram financiadas vendendo lotes no céu, explorando povos europeus e arrancando ouro e prata dos indígenas americanos. Não examinam como as obras não eram apenas assim financia-das, mas serviam para exaltar os que promoviam a venda de indulgências, a prepotência, a hipocrisia, o genocídio. Reclama-se muito hoje da corrupção dos políticos. Para os cristãos, é difícil perceber o que o ateu chamaria de corrupção ativa como princípio

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inerente à fé: a expectativa de que, com algumas missas e esmo-las, seja possível obter a salvação da alma e a glória eterna. Por pouco, quer-se o infinito.

Se a corrupção é um bom negócio para o qual não fomos convi-dados, o Cristianismo convidou a todos, democratizou a eterni-dade dos deuses greco-romanos, prometendo-a a quem o adotasse. Era um bom negócio. Por um tempo finito, a bem aventurança eterna. Funciona até hoje, vai funcionar depois de nós. Pessoas queridas apostam nisso. Todos querem aí ser mais do que podem, eternos como os deuses imortais, cujo culto já morreu. A religião deles foi vencida, o Cristianismo prometia a qualquer escravo mais que o Olimpo: com água benta e palavras mágicas, abria-se a porta do céu. Quanto maior o sofrimento em vida, maior a benesse eterna.

De uma perspectiva não católica, o mártir seria o mais corrupto dos corruptos: por alguns minutos de sofrimento, bem-a-venturança eterna e glória post-mortem. Por um investimento limitado, infindáveis juros, na moeda mais forte, a eternidade. Ele é a primeira vítima de sua crença; depois, todos que o veneram. Estes compradores, quando poderiam cobrar o que esperam rece-ber, já estarão mortos, não poderão mais reclamar por terem sido ludibriados. Acredita, porém, quem quer.

No século XVII, Pascal propôs uma aposta sobre o que se teria após a morte, tudo ou nada, para sugerir que se deveria apostar na vida eterna. Só no século XX, com Ser e tempo de Heidegger, surgiu a proposição de que a existência humana se dá dentro do mundo, entre a concepção e a morte. Se durante séculos, não só no Brasil, o ensino foi ministrado por servos brancos de batina, de graça porque esperavam um lote no céu, a escola nunca favo-receu o debate destes fundamentos do homem. Não por acaso, é uma profissão sem prestígio.

A corrupção é inerente ao capitalismo. O capitalista precisa facilitar seus negócios, comprando indulgências, precisa ter depó-sitos seguros, longe de impostos, para seu dinheiro e seus bens, especialmente os artísticos. O capital precisa se capitalizar, ou seja, ele toma quanto puder do trabalho para o dono do capital. O argumento de que precisa remunerar o risco desconsidera o risco maior de quem trabalha e pode ser mandado embora, a qualquer momento. O capitalismo aumenta a distância entre as classes e, portanto, a inveja, o rancor, a cobiça, o menosprezo.

152152 Flávio R. Kothe

Como se fica diante de uma história da pintura em que se exaltam mártires, santas e santos? Da música feita de cantatas, oratórios e missas solenes? Da incapacidade de ler a Bíblia como ficção? Se num templo se canta “o Senhor é meu pastor, nada me há de faltar”, eu preciso me perguntar se sou ovelha para querer um pastor: se eu fosse, o primeiro a evitar seria quem me tosquiasse e comesse a carne. Se careço de muitas coisas, não posso reclamar, pois nada me falta, já que tenho um pastor. Se me faltam e eu aposto que não irão me faltar caso eu acredite no Senhor, não seria mais razoável perguntar o que me falta e o que eu posso fazer para suprir minhas necessidades?

O cinema e a televisão são os meios mais eficazes de propa-ganda na atualidade. Os heróis de gibi pedem que os fracos se identifiquem com eles, compensando na fantasia o que eles não têm no dia a dia. Procura-se fazer disso a arte do nosso tempo. Sempre em defesa do capital. O sistema de ensino e a tecnologia da mídia não servem para esclarecer, para desenvolver a raciona-lidade crítica. Antes a ilusão que a verdade.

Será que se está diante de grandes obras, como nos tem sido asseverado, ou diante de algo que é apenas engodo, propaganda de erros, exaltação de inverdades? Um museu de arte sacra não costuma ser muito visitado. Esculturas sacras são procuradas como antiguidades por colecionadores, mas só conseguem ser arte, algumas, quando não se crê mais na religião que as sacrali-zou. Elas não custam mais por representar um santo ou uma santa, mas há quem as queira ter em casa num oratório, para dar proteção: seu valor é de culto, não de arte. Será que os templos são a manifestação suprema da verdade, podendo por isso aspirar ao posto de arquitetura como arte, ou serão eles a consagração do engodo, monumentos do erro, documentos da barbárie?

Tais perguntas são evitadas pelos teóricos da arquitetura, de Vitrúvio a Alberti, de Camilo Sitte a Leopold Zevi. São perguntas evitadas pelos filósofos da arte, de Kant a August Schlegel, de Karl Solger a Hegel, de Benjamin a Adorno, mesmo de Freud a Jung. São perguntas incômodas, que geram incômodos a quem as faz. Pascal dizia que a verdade pode ajudar a quem a ouve, mas costuma não ajudar a quem a diz. O impulso comum é exorcizar quem as faz, pois ele é o capeta. São perguntas do capeta. Sócrates diz que é um daimon que o move a filosofar: este daimon foi visto como demônio pelo Cristianismo. Não fazê-las não resolve os problemas subjacen-tes. Como estes são centrais em toda a teorização e toda a história,

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precisam ser recolocados. Quanto mais sombria a época, mais necessário se torna o espírito desassombrado.

O Renascimento é reduzido ao italiano, por mais admirável que seja, e o italiano ao católico. O Renascimento, com a marca luterana, tende a ser desconsiderado nos países católicos. Há esquemas de inclusão e exclusão na historiografia, que ela própria não explicita nem questiona. A repetição se torna dogmática. Não se trata de mudar um nome aqui e acolá. Há algo mais profundo, que não se quer fazer ouvir com clareza.

Ao se perguntar sobre história da arte, é preciso antes se perguntar: Com que concepção de tempo está se operando aí? Com que concepção do artístico? Se a arte tem sido usada para levar ao público as convicções da casta dominante e legitimá-la, então a chave do entendimento está na oratória, no discurso destinado a repassar convicções. Aristóteles, na Arte retórica, diz que a verdade é fraca e frágil, mas necessária para levar as pessoas a entender o que seja o bem comum. Seria preciso equi-pá-la, portanto, com os recursos retóricos, para ela poder funcio-nar melhor. Para isso, estuda o perfil do público, a psicologia das massas. Assim, ele já está dando um passo no sentido de saber como manipular as pessoas, impondo-lhes a vontade do orador. Acaba parecendo verdadeiro o que estiver de acordo com a vontade.

Com o correr dos séculos, a retórica se reduziu às figuras de linguagem, um recurso para tornar o discurso mais expressivo. O que se queria era, portanto, levar as pessoas a se dobrarem à vontade do orador, fazer com que se tornasse delas a convicção que o leva à peroração. Quer-se, portanto, repassar a vontade de um a muitos. Este um representa a vontade de um grupo e, por isso, é promovido a orador. A preocupação original com a verdade se perdeu nesse percurso. Todo orador diz que está preocupado tão somente com a verdade, enquanto trata de passar a outros a sua versão e visão.

O orador quer cobrir o silêncio dos ouvintes com o poderio de sua convicção. Apenas aceita aplausos e, no caso do orador sacro, o silêncio contrito que nada questiona. O silêncio é, no entanto, inerente à conversa autêntica. Enquanto um fala, outro silencia; ambos têm direito à fala, mas quem cala indaga o silêncio da fala. Há um silêncio da própria fala, aquilo que ela apenas pode suge-rir, sem chegar a dizer. Só se entende a fala autêntica a partir do seu silêncio, que pode começar não dizendo o que “a gente fala por aí”, mas precisa avançar na direção do que nunca se disse. O que

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não se disse é o que mais se precisa dizer. A maior parte do que se diz serve para calar o silêncio que indaga.

É preciso desconfiar da história canônica das artes, que nos é doutrinada e nos usa para se perpetuar. Temos de desconfiar tanto de seus critérios de exclusão, condenando ao inferno do olvido o que não lhe parece propício, quanto de seus critérios de inclusão. Isto significa que temos de rever as definições de arte, de um modo mais radical do que simplesmente inverter a proposta de que a obra é tanto mais preciosa quanto maiores os custos de produção dizendo que ela seria tanto mais artística quanto mais banais os seus materiais.

Tudo se torna inseguro. É preciso rever os critérios no sistema das artes. Mais ainda, é preciso rever se a restrição da tradição metafísica, desde Platão, da arte aos sentidos da visão e da audi-ção, ainda se sustenta, qual é seu fundamento. Não basta dizer que a arquitetura não é apenas visual. O paladar está excluído das artes, mas se diz que um bom apreciador de arte é uma pessoa de bom “gosto”. A inversão da estética idealista pelo Marxismo tendeu a ficar presa aos mesmos parâmetros. Está-se numa situação de perplexidade.

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Ideias para a transição

Ernesto Caxeiro

Eu já disse que defino o mandato do presidente Michel Temer como de transição. Continuo sendo contra eleições, porque isto não vai solucionar o problema, mas antes pode

até agravá-lo.

Transição significa preparar o caminho para o próximo presi-dente, debelando as crises política e econômica; transição é apro-veitar as manifestações de 2013, que pediam e pedem reforma política para fazê-la do modo que o povo quer.

Neste último caso, não vai ser assim, porque é lógico que os critérios de realização da reforma serão todos comandados por interesses dos partidos e principalmente do fisiologismo renitente e histórico do PMDB.

Então, nos resta ficar olhando? Não. O que temos a fazer é pressionar no sentido de aproveitar os espaços possíveis e amadu-recer a nossa democracia, pela implementação de novas bases políticas e novos elementos de programa.

Não se há de usar esta necessidade para que os maiores parti-dos atinjam os menores, mas há que se ter coragem para reconhe-cer o fim de certas tradições de esquerda, que estão aí como zumbis a pichar muros, sem repercussão.

È uma ideia positiva sim reduzir partidos, pelo menos evitar que todos tenham acesso aos meios de comunicação. Uma cláu-sula de barreira.

Lutar para separar o funcionalismo, as profissões, dos inte-resses políticos. Abrir a caixa preta do Judiciário e retomar as verdadeiras teses do movimento social e trabalhista.

Tarefas da esquerda e dos democratas

O mais importante agora é usar esta crise como um meio de transicioná-la para uma mudança real na democracia brasileira, que dê expressão às mudanças da sociedade, no seu pensamento e nas suas necessidades, um processo que já se iniciou e que deve

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continuar permanentemente pela próxima década, sob pena, sim, de golpes de todos os tipos.

Foi o desgoverno da ex-presidente Dilma que açulou o cresci-mento da direita, o qual não vai parar mais. Quem pode garantir que este desaquecimento não continuará? Que esta tentação de namoro civil/militar não prossiga? Basta a classe média conti-nuar sendo considerada como não-trabalhadora que ela vai se voltar, como está se voltando agora, para a inevitabilidade do governo Temer ou para algo pior.

Mas isto implica numa “despolitização” do processo, no fim das manifestações, porque o governo Temer vende a ideia (e todo mundo quer e precisa) de regenerador da democracia (um discurso da ultradireita também) que, por si só, abre espaço para uma reforma política, silenciosa, que expressaria as reivindicações de 2013, o que não é verdade.

O que está diante de nós não é governo, projeto de poder, elei-ções, o que está diante de nós é o Estado, a nação, a soberania, um novo modelo que revitalize esta democracia refém da corrup-ção e dissociada dos interesses do povo.

Contudo, há um elemento novo nesta cantilena tantas vezes vista no cenário político brasileiro, antes mesmo de 1930: parece haver um consenso geral, o que ocorre é que não repercute total-mente em cima.

As tarefas da esquerda

A esquerda sempre raciocina como internacionalista e ligada ao mundo do trabalho. Stálin dizia: “nação é um conceito eminen-temente burguês”, ou seja, esquerda de verdade não tem nada que participar disto.

Gramsci permanece como o guru da “esquerda moderna”, porque lá está o conceito de hegemonia, mas, mesmo na década de 1980, a ideia de cerco ao capitalismo já era ultrapassada, porque dentro da “concepção ampliada do Estado” é impossível fazer esta separação entre as classes. Então, a postura de negociação com a burguesia não é feita só na fábrica, mas no âmbito de todas as relações ideológicas (no sentido de consciência verdadeira).

No passado (e na cabeça da esquerda atual), a luta na fábrica precedia a revolução, hoje isto não dá mais para fazer. Gramsci chegava ao cúmulo, no jornal Ordine Nuovo, de separar uma

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nação dos trabalhadores da dos burgueses, mas ele mesmo colo-cou os limites definitivos deste erro, que ele hauriu no pensa-mento de Lênin. Quando aplicou, os operários ficaram isolados (da nação).

Na época de Marx, só existiam duas classes, hoje existem outras classes produtivas, e elas têm que ser levadas em conside-ração, notadamente a classe média.

Se do ponto de vista mental, ideológico (como consciência verda-deira), ela tem uma atitude fascistizante (classe média), elitista, cabe à esquerda moderna fazer o trabalho que deveria ter feito em 1945 e não pôde fazer e posteriormente antes de 1964: um trabalho de educação. Socialismo não é arma na mão, mas educação. Em qualquer lugar, mas principalmente num país ocidental.

Dito isto, as tarefas da esquerda no Brasil, além desta já posta, é pensar a nação. As balizas foram colocadas por Getúlio Vargas, mas é evidente que o tempo é outro e que há necessidade mais que de atualização.

Dilma e Lula fazem esta identificação e buscaram esta conti-nuidade por oportunismo porque o presidente Getúlio, ainda que tivesse a intenção pelega de manipulação, tinha propostas que eram avanços reais (porque nacionais).

A remessa de lucros, a jornada de 8 horas, a sindicalização, com todos os erros e limites, foram mudanças de conteúdo real.

O que o PT faz é assistencialismo. Há, sim, um processo de inclusão real e isto é mudança real, mas, no todo, o uso do Estado, que inchou terrivelmente, foi só isso.

Então, uma esquerda moderna não pode pensar com os termos do passado, mas incluir estas novas classes. Se, em 1945, era necessário fazer a cabeça do operariado, agora é importante também a da classe média.

Deve-se abandonar estas ideias de municipalismo, porque elas criam uma falsa abstração de problemas estritamente muni-cipais quando os grandes problemas são nacionais, guardando uma relação dialética ente o local e o geral.

É possível hegemonia nacional?

Hegemonia é um conceito associado às classes, mas quando se fala em nação pensa-se logo que não há como falar em hegemo-

158158 Ernesto Caxeiro

nia porque todas as classes estão unidas neste projeto nacional (o PT pensa assim, embora não o admita).

Não é bem desta forma. Eu não prego aqui conciliação de clas-ses, mas uma negociação, que sempre permeou a atividade do movimento social.

Parece que Lênin, em seu Doença infantil do esquerdismo, liberou aquilo que já estava escondido em Marx: a negociação no plano da produção é necessária na medida em que prepara a consciência do trabalhador para entender o seu estado de explo-ração e daí fazer a revolução. Porque as contradições do capita-lismo eram inevitáveis e levariam sempre à miséria, mas isto não ficou provado e, já no tempo de Marx, a necessidade de negocia-ção desviou as massas da revolução.

E isto não é pouco, porque admitir este desvio é pensar que o capitalismo é inevitável e é “melhor”. Talvez este seja o sentido final do melhorismo italiano.

O que eu digo é que, sob certas condições, é possível pensar o capitalismo como capaz de debelar a miséria e que a exploração pode ser reduzida a muito pouco, mas o apelo futuro (que começa hoje) dos comunistas é uma sociedade apta a oferecer, em qual-quer tempo e lugar, todas as benesses da riqueza, sem distinção de classes, sem nenhuma forma de mando (como Engels preco-niza no texto sobre o anarquismo), mas isto pode vir do refor-mismo e não da postura rupturista e como há que considerar a nação primeiro e também, temos que desenvolvê-las no sentido básico que prepara o comunismo: capacidade produtiva plena e cidadania consciente.

Se houver a superação destas desigualdades entre os países, poderemos fazer uma grande mudança no futuro, sem os proble-mas engendrados pelo leninismo e que jogaram o comunismo onde hoje está.

A hegemonia

Os partidos, portanto, do arco de esquerda têm que partir de uma aliança com a burguesia nacional, mas não da maneira como o PT fez, porque isto é conciliação: assistencialismo. Mas, se um dia, a burguesia aceitou os sindicatos, agora é preciso que os sindicatos exerçam a sua função mais moderna e perene, que é evitar a “acumulação primitiva”, a rotatividade da força de traba-

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lho. A função do sindicato é evitar a capacidade ociosa, que ajuda a exploração no âmbito do capitalismo predatório. Nada de demis-são imotivada, mas estabilidade; crescimento com a consulta aos sindicatos, que deverão ser responsáveis por alocação dos traba-lhadores nos empregos criados pelo crescimento. A célula de toda exploração pontual do capitalismo é a “acumulação primitiva”.

De nada adianta juros mais baixos para fomentar o cresci-mento. O que resolve é a imposição desta obrigação de contratar e manter os empregos, queira o capitalista ou não.

Um dos momentos em que isto podia ter nascido foi quando Luiza Erundina, na Prefeitura de São Paulo, criou a lei que proi-bia mandar o empregado embora. Isto é uma proposta socialista moderna, que dá continuidade a um marxismo resignificado, reformista, e que não é sozinho nem na frente do processo de mudança, mas um companheiro de viagem experiente. Isto é inclusão. Esta é a esquerda moderna: relação com os sindicatos para modernizá-los (e ao país [nação]) neste sentido.

IX. Ensaio

Autor

Gastão Rúbio de Sá WeyneProfessor Associado (aposentado) do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP; tenente-coronel reformado do Exército; advogado e doutor em Direito, na Área de Filosofia do Direito (USP)

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Fundamentos políticos e sociais da análise marxista do Direito

Gastão Rúbio de Sá Weyne

A análise marxista do Direito pode conduzir à substitui-ção dos tradicionais processos de mera especulação das normas jurídicas pela análise das causas de sua criação e

de sua aplicação, mudando-se, assim, o enfoque habitual e pondo--se em evidência uma reflexão dos efeitos práticos do direito sobre a sociedade. Esta postura advém da compreensão de que a socie-dade contemporânea é injusta, desigual e opressiva. Este cená-rio pode ser transformado com a minimização das desigualdades sociais pela aplicação do direito que se condiciona aos costumes e à conscientização da população. Marx defende que não é o direito que condiciona a sociedade, mas é esta que condiciona o direito.

A análise marxista do direito fundamenta-se na teoria crítica, nascida na Escola de Frankfurt que se confessa herdeira do tipo de ciência criada com a obra Crítica da Economia Política, de Marx. Desde os seus primórdios, a teoria crítica expressou um interesse explícito pela abolição da injustiça social. Desta forma, a metodologia da análise marxista do direito deve estar associada ao compromisso ideológico em relação às injustiças sociais.

Concepções marxistas do Direito

Quando as ideias de Marx se dirigiram ao direito, configurou-se, de forma significativa, uma visão dinâmica e social, situan-do-o no plano da superestrutura política, alicerçada na infraes-trutura econômica. Lembra-se que, segundo Marx, a base

164164 Gastão Rúbio de Sá Weyne

econômica da sociedade, a infraestrutura, é o alicerce da supe-restrutura que é dividida em dois planos: o ideológico, que engloba as ideias políticas, religiosas, morais e filosóficas, além do plano político que inclui, basicamente, o Estado, a polícia, o exército, as leis e os tribunais.

O direito, segundo a concepção de Marx, situa-se na infraes-trutura política, contrariando frontalmente, portanto, as concep-ções kelsenianas que vinculam o direito somente à ciência e não à política. Reitere-se que a teoria kelseniana (Teoria Pura do Direito) defende princípios opostos à concepção marxista no direito. Kelsen (1988, p. 17) fundamenta a sua teoria afirmando que “não importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito”. A Teoria Pura do Direito, para Kelsen, “é ciência jurídica e não política do direito”. Em oposição a Kelsen, Marx defende que a criação de um texto legal deve ser caracteri-zado pelo afastamento do positivismo puro e vincular-se com as necessidades da vida, com os componentes que interessam à cole-tividade, particularmente aos pobres.

O controle do Direito

Considerando-se que a estrutura capitalista busca fundamen-tar a sua dominação via atuação da classe hegemônica, o controle do direito é uma das necessidades para a consecução deste obje-tivo. Para dificultar essa possibilidade, vê-se a importância de que as leis devem se subordinar aos objetivos da sociedade, ou seja, que os textos legais primem pela sua legitimidade. Uma posição realista é a de que as leis devem ser antecedidas pelo costume e que a lei só é eficaz quando ratifica os costumes. Para Gramsci (1999, vol. 3), “existe algo de verdade na opinião segundo a qual o costume deve anteceder o direito. Nas revoluções contra os Estados absolutos já existia como costume e como aspiração uma grande parte de tudo o que posteriormente se tornou obriga-tório.” O controle do direito, para ser eficiente, exige, portanto, que as normas jurídicas criadas sejam legitimamente subordina-das aos interesses da sociedade.

Bases para análise marxista do Direito

Na abordagem de um problema jurídico, usualmente se apre-sentam ao analista duas linhas diametralmente opostas para o estudo de um caso em questão. A primeira delas ocorre quando se

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acentua a importância da pergunta ou do questionamento, envol-vendo diferentes campos de estudo como o sociológico, o histórico, o político e o econômico. O enfoque considerado neste caso é o enfoque zetético. Se, ao contrário é acentuado o aspecto da resposta, mantida como solução final, fora de questionamentos e, portanto, sem relacionamento com outras ciências, tem-se o enfo-que dogmático. A análise marxista do Direito, fundada, basica-mente, na dialética e na teoria crítica, é, portanto, de natureza zetética e não dogmática. Ressalte-se, no entanto, que a zetética não objetiva as transformações sociais.

A fim de melhor caracterizar o problema da análise do direito, ressalte-se que o pensamento abstrato consiste precisamente em se poder evocar objetos ou realidades na sua própria ausência. O pensamento crítico, porém, é mais abrangente do que o pensa-mento abstrato, pois é preciso acrescentar-lhe a dialética. O pensa-mento dialético parte da experiência de que o mundo é complexo e o real não mantém as condições da sua existência senão através de contradições, quer sejam elas conscientes quer inconscientes.

A análise marxista do direito constitui-se, portanto numa abordagem crítica, dialética e – acresça-se – vai além da zetética. Fundamenta-se, além disso, no estudo das relações do direito com alguns atributos das normas jurídicas como a legitimidade, o modo de produção, o fetichismo, a alienação, o materialismo histórico, o materialismo dialético, a práxis e a ideologia. Estes parâmetros são estudados a seguir.

Legitimidade do Direito

Pode-se constatar que, na visão marxista, a faceta primordial do sistema jurídico está na primazia da elaboração da lei a partir dos interesses da maioria da sociedade, ou seja, que a lei criada tenha legitimidade. A legitimidade, conforme Almeida (1965, p. 19), caracteriza a norma jurídica como elaborada em conformidade com os princípios de justiça, de moral e de ética, pressupondo, além disso, a boa fé nas relações jurídicas. A legitimidade, portanto, está associada ao sistema de valores da sociedade. Observe-se que a ética, como estudo geral do bem e do mal, busca as justificativas para as regras propostas pela moral e pelo direito, não estabelece regras e é fortemente vinculada à legitimidade das leis.

A legitimidade é, em última análise, o valor que, associado ao fato jurídico, conduz à elaboração das normas. No entanto, os valo-

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res considerados por estes autores são os valores admitidos e acei-tos pelas classes dominantes. Além disso, conforme Gramsci (1999, p. 235), admitindo-se uma concepção materialista, a moral de um determinado povo, o direito e o Estado são condicionados, de forma direta e imediata, pelas relações econômicas próprias desta coleti-vidade e estas relações, neste enfoque ideológico, são consideradas como uma função das forças produtivas da sociedade.

Direito como modo de produção

Marx não considerou a ideia de produção social inerte e sem resultados. Ao contrário, integrou todos os acontecimentos produ-zidos pela sociedade numa teoria da “produção da vida social”. A reflexão científica de Marx vai mais longe e o direito, para ele, é considerado gerado pela sociedade como um modo de produção. O modo de produção não tem, como se poderia pensar, o signifi-cado unilateral econômico que se lhe costuma dar. Ao contrário, é o conceito que designa a maneira como uma sociedade se orga-niza para produzir a vida política e social.

Para Miaille (1979, p. 63), “na verdade, a expressão “modo de produção” foi também utilizada por Marx no sentido restrito de modo de produção econômico. É necessário, no entanto, sublinhar que esta expressão permanece então incompleta se não se compreender que a contribuição decisiva de Marx é ter pensado o modo de produção para o conjunto da sociedade, ou seja, tê-lo, portanto, pensado como modo de produção da vida social. Sobre isto, é lamentável que alguns economistas ainda se apropriem da expressão, perpetuando assim a confusão”. É o próprio Marx quem dirime quaisquer dúvidas sobre o assunto quando sublinhou a afirmação: “A religião, a família, o Estado, o direito, a moral, a ciên-cia, a arte etc., não são mais do que modos particulares de produ-ção e caem sob o império de sua lei universal”, segundo Markus (1974, p. 56). O direito, portanto, pode ser considerado como um modo de produção no universo das relações sociais.

Fetichismo da norma jurídica

Marx afirmou que, na sociedade capitalista, os objetos mate-riais possuem certas características que lhes são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem naturalmente. Esse fato, que impregna a produção capitalista, é por ele denominada de fetichismo, e sua forma

167167Fundamentos políticos e sociais da análise marxista do Direito

elementar é o fetichismo da mercadoria, enquanto repositório ou portadora do valor. No plano econômico, o fetichismo da mercado-ria faz esquecer que a produção e a circulação das mercadorias escondem na realidade relações sociais entre os indivíduos, e essas relações são, assim, reificadas (ou coisificadas).

Pela fetichização atribui-se à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca como a obrigatoriedade e a imperatividade, por exemplo, justamente quando estas qualidades pertencem não à norma, mas ao tipo de relação, de relação social real de que esta norma é a expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria valor, mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais. Este fetichismo se acentuou na sociedade capita-lista quando o sistema jurídico se tornou, entre todos os sistemas normativos, o que conquistou a hegemonia na função de ditar o valor dos atos políticos e sociais.

Direito e alienação

De uma forma geral, entende-se por alienação o afastamento da realidade, situação que pode ocorrer por ação própria do indi-víduo ou de outros. É o afastamento do próprio eu, situação em que o homem pode não perceber. A alienação é um afastamento do real, em que as pessoas não conseguem ser elas mesmas. É um comportamento em que se aceita parte da realidade para obtenção de objetivos ou de interesses.

No sentido em que é dado por Marx, “a alienação é a ação pela qual um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade ou à natureza na qual vivem, ou a outros seres humanos”.

Relacionando o direito com a alienação, Marx entendia que o direito real, vigente, era uma forma de alienação que abstraía o sujeito jurídico e os deveres e direitos legais dos seres humanos concretos e das realidades sociais, proclamando uma igualdade jurídica e política formais. Esse direito alienante, ao mesmo tempo em que tolerava e, na verdade, encorajava a servidão econômica, religiosa e social, divor-ciava o homem como sujeito jurídico e o homem como cidadão político do homem econômico da sociedade civil.

168168 Gastão Rúbio de Sá Weyne

Direito e materialismo histórico e dialético

Na teoria marxista, o materialismo histórico tem sido, de um modo geral, considerado como a ciência do marxismo, distin-guindo-se assim da filosofia marxista, o materialismo dialético. O componente dialético afirma que a realidade concreta não é estática e indiferenciada, mas uma unidade diferenciada e espe-cificamente contraditória. O materialismo histórico afirma o primado causal do modo de produção dos homens e de reprodu-ção de seu ser natural (físico), ou, de um modo mais geral, do processo de trabalho no desenvolvimento da história humana.

Veja-se que, na produção e reprodução da vida social, o homem não somente produz bens materiais e relações sociais, mas, sobre estes alicerces, produz as ideias e as concepções e tudo isso pode ser canalizado para a criação do direito. Nesta premissa, o direito guardará profundos vínculos com o processo histórico e com a realidade social, ou seja, o direito estará compromissado com a sociedade, dela emanando, como defendeu Marx.

A práxis no Direito

Marx argumentava que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de maneiras diferentes; agora se trata de transformá-lo”. Restringe-se, contudo, de forma genérica, o alcance desta assertiva. O seu autor, de fato, não pretendia somente pôr um fim à atitude puramente explicativa da filosofia clássica e não almejava, também, somente com o pensamento desinteressado, fazer uma alavanca da ação. Mais profunda-mente, visava a fazer da ação a chave do pensamento, conforme Piettre (1963, p. 49). Observe-se que, para Marx, a práxis é uma guia para a ação, ou seja, é a unidade de teoria e prática que molda a ação consciente do homem.

Com um enfoque marxista, por meio da práxis, concebe-se a existência do homem como capaz de elaborar ou transformar a realidade social, retirando-se da sociedade os insumos para o processamento do direito, gerando assim, normas legítimas, efica-zes e vinculadas à ética, à justiça social e aos princípios igualitá-rios. Pela práxis e pela consequente abertura do homem para a realidade em geral, a geração do direito é enriquecida também pela praticidade do seu conteúdo e da sua aplicação e, além disso, pela criação e transformação das circunstâncias do universo social com vistas aos procedimentos coletivistas.

169169Fundamentos políticos e sociais da análise marxista do Direito

Referências

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MARKUS, Gyorgy. Teoria do Conhecimento do jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Centauro, 2000.

______. Contribuição à crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao Direito. Lisboa: Moraes, 1979.

PIETTRE, André. Marxismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.

WEYNE, Gastão Rúbio de Sá. Legitimidade das leis, um enfoque social. São Paulo: Scortecci, 2005.

______. Igualdade e poder econômico. São Paulo: Memória Jurídica, 2005.

X. Memória & Homenagem

Autores

Dulce Rosa RocqueEconomista, por conta do exílio, viveu cerca de três décadas na Europa, sobretudo na Itália, e hoje é uma das líderes de uma organização social que atua nos bairros de Belém na luta em defesa do patrimônio histórico da capital paraense

Milton Coelho da GraçaJornalista, advogado, economista e comentarista de revistas, jornais, emissoras de rádio e TV

Tiago Eloy ZaidanMestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco

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O monumento aos Pracinhas (que o Niemeyer não fez)

Dulce Rosa Rocque

Em meados de 1976, em Bolonha, Itália, foi realizado um seminário sobre as ditaduras na América Latina. Éramos quatro os representantes do Brasil em tal ocasião: Carlos

Nelson Coutinho, Leandro Konder, Ivan Ribeiro e eu, então conhe-cida como Marzia Cioni.

Em um intervalo das intervenções do primeiro dia, fomos procurados pelo dr. Arnoaldo Berti, advogado italiano herdeiro da propriedade situada em Monte Castelo, a qual hospedou os praci-nhas brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial. Na sua casa situada naquela montanha dos Apeninos, foi montada a base para as batalhas e ataques aos alemães que se encontravam no entorno. Praticamente era a frente de batalha dos brasileiros.

Durante sua apresentação a nós quatro e após esse preâmbulo, ele simplesmente nos ofereceu o terreno pertencente à sua família naquele local, para fazermos um monumento para os Pracinhas que tinham ido parar ali, defendendo a Itália dos nazistas. Pergun-tamos por que não a oferecia à embaixada brasileira e ele respon-deu que já o tinha feito e que haviam refutado a proposta.

De fato, disse: “Procurei vocês não somente porque são de esquerda, mas também porque eles não aceitaram, então pensei que ‘se as instituições não aceitam, eu a ofereço ao povo’. Ainda sem crer no que estávamos vivenciando e orgulhosos de tal oferta, ouvimos suas condições: queria que o monumento fosse feito por Oscar Niemeyer e que contivesse a frase “per i brasiliani morti difendendo l’Italia dal fascismo e ai brasiliani che oggi muoiono

174174 Dulce Rosa Rocque

sotto una dittatura fascista”. Ou seja: Para os brasileiros mortos defendendo a Itália do fascismo e aos brasileiros que hoje morrem sob uma ditadura fascista”.

E isso nos deixou mais emocionados ainda. E foi esta frase a causa da recusa da Embaixada brasileira. Eu fiquei responsável pelo andamento das tratativas com Niemeyer, por meio de Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, exilado em Moscou.

Primeiro ato: a tradução da carta que Arnoaldo Berti escreveu para Prestes, na qual, além de oferecer o terreno, contava histo-rias dos Pracinhas. Não demorou muito tempo e Prestes me avisou que já entrara em contato com Niemeyer e que brevemente um enviado seu nos procuraria.

Mais alguns dias se passaram e recebi a visita do companheiro arquiteto responsavel pelas obras de Niemeyer na Argélia, Marcos Jaimovitch, e, juntos com Bertti, partimos para Porreta Terme, na província de Bolonha, onde paramos para tomar um café. Berti aproveitou para nos mostrar onde, uma vez por mês, os brasileiros desciam para ali tomar banho...

Visitamos rapidamente o local e nos juntamos a quem nos acompanharia até Monte Castello. Subimos mais um pouco a montanha e chegamos ao local da casa “dos pracinhas”: Guanella se chamava. Numa área muito acidentada, uma pequena casa típica da montanha dos Apeninos, sobrepujava um vale, lá embaixo. O arquiteto tinha que ver como era o terreno e mandar a Niemeyer as informações necessárias para que ele pudesse fazer o projeto. E assim foi feito.

Passa mais algum tempo e recebemos a notícia que Niemeyer viria à Europa para inaugurar a sede do Partido Comunista Fran-cês, em Paris, e a sede da Mondadori, na Itália. Aproveitaria a ocasião e viria até Bolonha para visitar Monte Castello. A euforia de Berti e a minha eram indescritíveis. O PCI começava a preparar a recepção para sua chegada, inclusive querendo saber como era a bandeira do Partido Comunista Brasileiro, para mandar confeccio-nar algumas para dar às crianças que o saudariam. Um carro iria me pegar e levar ao aeroporto. Eu já estava pronta quando chegou a notícia que o avião francês tinha partido sem ele, pois se lembrara, já no aeroporto, que não gostava de viagem aérea.

Foi muito grande nossa decepção e tristeza. Mais um ano se passou. Começávamos a ver o resultado das nossas lutas contra

175175 O monumento aos Pracinhas (que o Niemeyer não fez)

a ditadura. Já no final de 1979, Prestes voltou ao Brasil. Com a derrota da ditadura, eu também pude voltar ao Brasil, depois de dez anos de ausência. Aproveitei a oportunidade e fui visitar Pres-tes. Entre os temas da conversa, não poderia faltar evidentemente o monumento aos Pracinhas na Itália e ele me confirmou o inte-resse e disponibilidade de Niemeyer, a respeito do assunto.

Dois anos depois, novamente de férias na Cidade Maravilhosa, fui com Givaldo Siqueira a um seminário no Centro do Rio e encontramos Niemeyer. É logico que abordei o assunto e ele me disse que, para desenhar o monumento, precisava ver melhor o terreno, pois as informações dadas pelo arquiteto não foram sufi-cientes. Além do que, precisava ver as fotografias aéreas, também, pois o terreno parecia ser bem irregular – e de fato o era.

Nós o deixamos, com a certeza de que um desses dias à frente receberíamos o projeto na Itália. Voltei para Bolonha e relatei tudo a Berti, que tomou as providências cabíveis e eu não me preocupei mais com aquilo. Naquela província italiana já existia, além do francês Le Corbusier, uma obra do finlandês Alvar Aalto e outra do japonês Kenzo Tange. Niemeyer iria completar o quarteto dos melhores arquitetos dos anos 70 – outro sonho de Arnoaldo Berti, o herdeiro da Guanella.

Muitos anos depois, já em fevereiro de 1999, foi colocada a pedra fundamental de um monumento aos Pracinhas em Monte Castello. O projeto, porém, era de uma arquiteta brasileira, Mary Vieira. O medo de viajar de avião foi o principal motivo que impe-diu Niemeyer de realizar a obra.

PS: Décadas depois, tive a satisfação e a alegria de ver o docu-mentário que a minha filha, Ana Marília, dedicou aos brasileiros que lutaram em Monte Castelo. O filme se intitula “O filo brasi-liano. A luta contra o fascismo não tem fronteiras”.

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Nise da Silveira, rebeldia que gera ciência

Tiago Eloy Zaidan

Ao sair de Maceió rumo a Salvador, para cursar Medicina, no início da década de 1920, uma jovem alagoana levou consigo uma frase do pai, professor de Matemática: “Nunca

aceite privilégios por ser mulher”. O pai a amava, mas a frase demonstrou ser mais irônica do que feliz. Durante a vida, o fato de ser mulher em uma área então dominada por homens, exigiria da jovem um esforço dúplice. Em 1926, Nise da Silveira (1905-1999) se tornou a primeira médica alagoana. E este foi apenas o prelúdio do que estava por vir. Uma revolução na Psiquiatria.

É possível que, justamente por ser do sexo feminino, Nise tenha se mudado para o Rio de Janeiro depois de formada. Não é difícil imaginar, em meio à década de 1920, a resistência da socie-dade baiana ou alagoana a uma jovem médica.

Na então capital federal, todavia, a vida também não foi fácil. Nise morou em pensões de segunda categoria e fez refeições em casa de amigos, até que conseguiu ser aprovada em um concurso público. Passou a trabalhar no Hospital Nacional de Alienados, onde começou a ensaiar um modus operandi diferenciado no tratamento dos pacientes. Mas não teve muito tempo. O clima de ódio e denuncismo incitado pelo governo e por setores da imprensa, na época, interrompeu a história da médica.

Nise morava no próprio trabalho. Em seu quarto, uma enfer-meira teria encontrado livros marxistas – considerada leitura subversiva. Denunciada, a psiquiatra foi detida no próprio hospi-tal e conduzida ainda com a vestimenta de trabalho. O episódio de intolerância infelizmente encontra paralelo nos dias de hoje.

Para se ter ideia, recentemente, o blogueiro Rodrigo Constan-tino, o qual ganhou notoriedade como colunista da revista Veja, divulgou uma lista com nomes de artistas, intelectuais e jornalis-tas. A conclamação era para que os relacionados fossem boicota-dos e fustigados por serem o que chamou de “petralhas”. Prece-dendo a lista, o blogueiro explicou que, para os integrantes de sua Index, “O desprezo público também é muito bem-vindo, como vaias, olhares hostis e até xingamentos. […]”. No espaço destinado aos comentários sobre a postagem, os leitores do blog de Constan-

177177Nise da Silveira, rebeldia que gera ciência

tino denunciavam outras pessoas, por suspeitarem serem elas simpatizantes do PT ou do comunismo.

Na prisão, Nise conheceu o conterrâneo escritor Graciliano Ramos (1892-1953) – o qual também estava preso por motivos políticos. O período de reclusão de Graciliano rendeu, aliás, o clássico Memórias do cárcere (1953).

Mesmo depois de solta e absolvida, a vida de Nise jamais foi a mesma. Exonerada do antigo trabalho e estigmatizada, a médica passou por dificuldades até ser reincorporada ao serviço público em 1944. Foi lotada no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. Neste espaço, a despeito da oposição de muitos de seus pares, a alagoana entraria para a história ao introduzir a arte no tratamento dos pacientes, em contraposição a práticas sádicas – como o eletrocho-que e castigos físicos. No antes marginalizado setor de terapia ocupacional, os pacientes eram convidados a confeccionar, livre-mente, as suas próprias peças, tais como pinturas e esculturas.

O professor do Instituto de Psicologia da USP, João Frayze-Pe-reira, relata um dos casos: “Internada em 1937, Adelina Gomes, camponesa humilde, cuja tragédia resumia-se no desejo de ser flor, foi acolhida pela doutora Nise em 1946. Daí em diante, por mais de quatro décadas, pintou e esculpiu todos os dias. O desejo de ser deu lugar ao de fazer. Adelina fez flores”. Justamente por propugnar a proatividade, no contexto do tratamento, Nise prefe-ria o termo cliente à paciente, já que o último indicava resignação e passividade.

Outra técnica heterodoxa empregada pela médica – fã de animais, desde a tenra idade – era utilizar cachorros vira-latas como “coterapeutas”. A jornalista Bárbara Mengardo faz saber que em “Um determinado dia, um doente trouxe um cachorro machucado e ela deu condições para que ele tratasse do animal. À medida que o animal melhorava, o doente também melhorava. A partir daí criou um setor de uso do animal em terapia”.

O afeto – antes ausente naquele espaço – passou a abundar, e a recuperação dos pacientes era notória – o que não placou a oposição à médica dentro do hospital. Diante do sucesso das pinturas – reconhecidas por críticos de arte, como Mário Pedrosa (1900-1981) – um diretor do hospital chegou a dizer que “[...] à noite, Nise trocava as obras feitas pelos loucos, por outras, feitas por grandes artistas”, revela Bárbara Mengardo.

178178 Tiago Eloy Zaidan

É curioso notar que foram os atores do campo da cultura quem primeiro legitimaram o trabalho de Nise e de seus pacien-tes, e não os pares médicos. Justamente o campo cultural, afeito às vanguardas e, hoje, tão vilipendiado pelos setores conservado-res da sociedade.

A repercussão alcançada – sobretudo na imprensa – e a intensa produtividade dos artistas do centro psiquiátrico motivaram a criação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 20 de maio de 1952, idealizado pela própria médica. Antes e depois da inaugu-ração do espaço, no Rio de Janeiro, os trabalhos artísticos foram expostos em locais tão diversos como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (out./1949), Salão Nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (nov./1949) e em Zurique, por ocasião do II Congresso Internacional de Psiquiatria (set./1957). Esta última exposição foi aberta por ninguém menos que Carl Gustav Jung (1875-1961).

Filme biográfico

O longa Nise: no coração da loucura, atualmente nos cinemas, é uma empreitada do diretor carioca Roberto Berliner, conhecido por documentários como Herbert de Perto (2009). Aliás, a expe-riência como documentarista faz-se sentir aqui.

O enredo se inicia justamente em um momento delicado da vida de Nise da Silveira: o regresso da médica do constrangedor período de reclusão – de cerca de um ano e meio – pelo “crime” de posse de livros marxistas. Portanto, como se não bastasse o fato de ser mulher, em uma área dominada por homens machistas, e de propor uma revolução na Psiquiatria, pairava, ainda, sobre Nise, a pecha de comunista – de fato, um crime, no ambiente conservador em que se vivia.

A primeira cena do longa retrata, justamente, o momento da volta da médica ao trabalho, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. A metafórica tomada inicial, em que Glória Pires, no papel de Nise, precisa bater repetidamente no portão do manicô-mio (chega a esmurrá-lo), para finalmente ser recebida, já dá pistas do quão difícil será a acolhida das suas ideias pelos cole-gas. Mas, indica também, desde já, que a médica é persistente.

Em seu trabalho, Berliner humaniza a psiquiatra. E relata o hercúleo esforço de Nise para estruturar o setor de terapia ocupa-cional do hospital, o qual estava abandonado em detrimento de

179179Nise da Silveira, rebeldia que gera ciência

tratamentos como a eletroconvulsão e a lobotomia – exaltados como inovadores pelos demais psiquiatras de então.

Além de Glória Pires, o longa tem, em seu elenco, Augusto Madeira, Roberta Rodrigues e Felipe Rocha, os quais interpretam a equipe de enfermeiros que trabalham com a médica. Dignos de louvor, constam os atores que interpretam, convincentemente, os internos do Centro Psiquiátrico Nacional: Claudio Jaborandy, Simone Mazzer (irreconhecível, no papel da emblemática paciente Adelina Gomes), Roney Villela, Bernardo Marinho, Flávio Baura-qui, Fabrício Boliveira e Júlio Adrião.

A produção tem rodado festivais pelo mundo, sem deixar jura-dos e público indiferentes. Prova disso são os prêmios conquista-dos no Festival de Tóquio (melhor filme e melhor atriz) e no Festi-val do Rio (melhor filme do júri popular).

Conjuntura

O filme surge em um contexto de refluxo do empoderamento das mulheres no Brasil, especialmente nos campos social e polí-tico. A primeira mulher eleita para chefiar o Executivo federal na história do país foi recentemente afastada do cargo, em um processo controverso e criticado internacionalmente. Em seu lugar, um novo governo foi instalado, sob a liderança do pemede-bista Michel Temer. Já na composição da equipe ministerial de Temer, nenhuma mulher foi contemplada. Ou seja, todos os nomeados ministros foram homens, seletividade que não ocorria desde o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), durante a dita-dura militar – o que dá uma noção do tamanho do refluxo.

Como se não bastasse, na esteira do exaltado movimento que levou ao impedimento da presidenta Dilma, alguns políticos ultraonservadores ganharam notória projeção. É o caso do depu-tado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), o qual ostenta uma vasta coleção de declarações sexistas e de defesa aberta à supressão de direitos das mulheres.

É de Bolsonaro a declaração “já disse que não estupro porque você não merece”, destinada à também parlamentar Maria do Rosário (PT-RS), dentro do Congresso Nacional, em 2014. O depu-tado já havia feito declaração semelhante em 2008, diante das câmeras da Rede TV!. Na ocasião, conforme relata matéria da revista Exame, “Indignada, a deputada [Maria do Rosário] se aproxima dele, que a empurra e a chama de vagabunda”.

180180 Tiago Eloy Zaidan

Fazendo a vez de zeloso liberal, Bolsonaro também já defendeu redução de direitos trabalhistas das mulheres. Em depoimento trazido à luz pela revista Crescer, da Editora Globo, o deputado afirmou: “Se você tem um comércio que emprega 30 pessoas, eu não posso obrigá-lo a empregar 15 mulheres”. Na sequência, Bolsonaro se coloca no lugar de um empregador: “Entre um homem e uma mulher jovem, o que o empresário pensa? ‘Poxa, essa mulher tá com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade...’ Bonito pra c..., pra c...! Quem é que vai pagar a conta? O empregador. No final, ele abate no INSS, mas quebrou o ritmo de trabalho”.

Os sinais da crise de empoderamento feminino não se restrin-gem ao meio político. No seio da sociedade civil, a revista Veja, da família Civita, protagonizou um dos atos mais emblemáticos desta nova onda reacionária. Em matéria publicada em 18 de abril, o periódico apresentou, como arquétipo, a então “quase primeira-dama”, Marcela Temer, sob a manchete “Bela, recatada e ‘do lar’”. Na matéria, Marcela é tida como uma mulher de sorte, por ter um marido apaixonado, e é descrita como educada e discreta. “Marcela é uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele)”, revela a matéria.

O perfil de Marcela, pela ótica da revista Veja, parece querer devolver às mulheres o posto de primeira-dama, com direito a todos os clichés. De certa forma, Marcela é apresentada como um contraponto saudoso e louvável à mulher turrona e protagonista, personificada na figura da então presidenta Dilma. “Ainda que não dê para comparar a trajetória da presidente [Dilma] com a da vice-primeira-dama, acredito que o objetivo foi mostrar essa dife-rença de perfil entre as duas”, declarou a professora de Comuni-cação da pós-graduação da ESPM, Selma Felerico, em depoimento ao portal UOL.

Ainda ao portal UOL, a coordenadora do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, Helena Jacob, esclarece que “O reca-tada e o ‘do lar’ vêm de encontro ao ‘bela’ para formar a imagem de mulher perfeita, que sabe se colocar no lugar dela e é submissa ao marido”. Para a professora de jornalismo, “Essa escolha de palavras foi muito infeliz. Não me espanta a repercussão negativa que o perfil teve, embora no Brasil ainda exista aquela imagem de que uma mulher foi estuprada porque estava de roupa curta”.

181181Nise da Silveira, rebeldia que gera ciência

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Embora sem apoio institucional, e vilipendiada e desprezada pelos colegas, Nise da Silveira estava certa. O movimento antima-nicomial é pungente e tem sido cada vez mais respaldado pela legislação. Na Lei nº 10.216, aprovada em 2001, por exemplo, “a mudança de modelo de atendimento aparece como uma sugestão no item IX do parágrafo único, do art. 2º, expressa como direito da pessoa em ‘ser tratada, preferencialmente, em serviços comu-nitários de saúde mental’”, explica Silvio Yasui, na obra Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira.

Do alto de sua compleição física frágil, a médica alagoana venceu a intolerância política, o machismo avassalador – que se vale, não raro, da ridicularização da outrem – e da desumanidade dos tratamentos propostos pelos seus pares, e protagonizou uma verdadeira ruptura epistemológica na Psiquiatria.

Em tempo: o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em cujo portão a médica reincorporada ao serviço público precisou bater repetidas vezes para ser recebida, hoje atende pelo nome de Hospi-tal Instituto Nise da Silveira.

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Homenagem ao Geraldão

Milton Coelho da Graça

O Movimento em Defesa da Economia Nacional e a Funda-ção Astrojildo Pereira promoveram, no dia 7 de novembro, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de

Janeiro, uma bela homenagem a Geraldo Rodrigues dos Santos, nos dez anos de sua morte. No auditório repleto, ao ato estiveram presentes dirigentes do PPS, da FAP, da ABI, do Modecon, assim como os filhos do homenageado, Wanderly e Wanderley.

Nascido em São José do Rio Pardo (SP), em 1º de julho de 1923, Geraldão, como era fraternalmente chamado pelos familia-res, companheiros e amigos, ainda criança foi viver em Santos e, na juventude, tornou-se trabalhador portuário. Após ingressar nas fileiras do PCB, no início da década de 1940, não apenas se destacou, durante mais de vinte anos, como líder do movimento operário paulista e, rapidamente, tornou-se dirigente local, em seguida estadual e depois nacional da mais antiga organização partidária do país.

De comum acordo com as direções partidárias, paulista e nacio-nal, disputou, em 1962, uma cadeira de deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já que o PCB era ilegal. Apesar de ser o candidato mais votado em São Paulo, com 42 mil votos, foi impedido de tomar posse sob o pretexto de ser comunista.

Em 1964, para fugir da perseguição da ditadura, transferiu-se da capital paulista para o Rio de Janeiro. Por sua capacidade de liderança, em 1970 foi designado pela direção nacional do PCB para dirigir o partido no antigo Estado da Guanabara, cargo em que, durante dez anos, manteve a resistência à ditadura. Em 1980, assumiu as tarefas de dirigente nacional no Comitê Central do partido, na retomada das atividades partidárias semilegais, nos estertores do regime autocrático.

Foi um dos principais organizadores do IX Congresso do PCB, em junho de 1991, ocorrido nas dependências da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ocasião em que foram discutidas a nova realidade do mundo, a plena integração dos ideais socialis-tas com as normas democráticas e a construção no Brasil de uma nova formação política. Geraldão participou do X Congresso do

183183Homenagem ao Geraldão

PCB, em janeiro de 1992, na cidade de São Paulo, encontro que produziu várias reformulações políticas, entre elas a extinção da foice e do martelo como símbolo partidário e a mudança de nome para Partido Popular Socialista (PPS), de cuja direção nacional fazia parte ao falecer.

Por sua atitude sempre coerente e combativa na luta contra a ditadura e em defesa do PCB, Geraldão recebeu várias homena-gens, entre as quais o título de Cidadão Carioca e a Medalha Pedro Ernesto, respectivamente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, assim como o título de Cidadão Fluminense e a Medalha Tiraden-tes. Uma rua, num dos bairros mais conhecidos da Cidade Mara-vilhosa, ganhou o seu nome.

XI. Resenha

Autores

Alfredo Maciel da Silveira MSc. Engenheiro de Produção e Doutor em Economia

Osvaldo EuclidesEconomista e Professor Universitário

Pedro Augusto PinhoAdministrador aposentado

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Capitalismo e população mundial

Alfredo Maciel da Silveira

Diante de uma das questões que mais preocupam os estu-diosos do futuro da humanidade, qual seja o crescimento da população mundial, cujas tendências, somadas aos

padrões de consumo difundidos pelo capitalismo, pressionam os recursos naturais, a produção de alimentos e o equilíbrio ecoló-gico, Sergio A. Moraes no presente ensaio abre a perspectiva do tratamento analítico daquela problemática mediante a tese de K. Marx da subordinação no longo prazo do crescimento populacio-nal às leis de reprodução do capital.

Inicialmente o autor apresenta a evolução histórica da população até os dias atuais em consonância à gênese e evolução do capita-lismo desde seu núcleo inicial europeu e sua fronteira de expansão norte-americana, de modo a constituírem tais regiões, ainda que não exclusivamente, o campo de observação primordial das intera-ções do capitalismo e população até os dias atuais do capitalismo avançado e globalizado. Apoiando-se em minuciosa base de estudos populacionais, o autor faz a critica do caráter exclusivamente quan-titativo dos mesmos no panorama atual das pesquisas.

Então, seguindo o método esboçado por K. Marx em O capital, tomado como referência ao longo de todo o ensaio, é construída passo a passo a conexão da dinâmica populacional com o processo de acumulação do capital até a escala planetária atual desses dois polos da relação. Ou seja, a problemática da tendência popu-lacional, que ameaça a vida humana no planeta, deveria ser pensada nas contradições engendradas pelo desenvolvimento

188188 Alfredo Maciel da Silveira

capitalista, seja pela necessidade da expansão da força de traba-lho e do mercado de consumo para a valorização do capital, seja pelas condições e oportunidades que historicamente o próprio capitalismo tem induzido para a contenção do crescimento da população em benefício da humanidade.

Conforme o autor, a variação da população mundial no capita-lismo apresentaria um fato intrigante: ao mesmo tempo que ela cresce em termos absolutos sua taxa de crescimento, vai decli-nando na medida em que esse modo de produção se intensifica e se amplia. No segundo pós-guerra, em 1963, também em função do fenômeno chamado de baby boom, tal taxa chega a 2,2% ao ano. Depois ela entra em queda, conduzindo a uma taxa anual de 2,04% para a década; daí para diante ela cai continuamente para 1,31% ao ano, entre 1995 e 2000, e atualmente está em 1,15% ao ano. De imediato tal fato levaria a uma contradição: se ao capital interessa o aumento da população, pois numa ponta teria à sua disposição mais braços e mentes para explorar e na outra mais consumidores, como e por que acontece, nos quadros do capita-lismo, a desaceleração do crescimento populacional, apontada primeiro nos países desenvolvidos e, a partir da década de 1970, em todo o mundo?

A questão é tratada pela análise da composição orgânica do capital, baseada na relação entre capital constante e capital variável, em que o primeiro – valor dos prédios, instalações, máquinas, insumos de produção – cresceria mais rápido histori-camente que o segundo, o valor da força de trabalho necessária para movimentar aquele, assim caracterizando a substituição do trabalho vivo, desde a simples força muscular até funções cere-brais de certa complexidade, pelas máquinas, computadores, enfim, pelo capital constante. Em resultado elevar-se-ia a compo-sição orgânica, o que por sua vez implicaria na queda tendencial da taxa de lucro média do sistema, conforme os dados e demons-trações expostos no trabalho.

Uma complexa conjugação de fatores – tais como, entre outros, a concorrência intercapitalista, os ganhos de produtividade e as inovações na produção, as lutas de classe, as técnicas poupado-ras de força de trabalho, a revolução científico-técnica contempo-rânea e, ainda, como destacado no trabalho, o peso crescente do trabalho imaterial, incorporado num primeiro momento ao capi-tal variável através das atividades criativas de engenharia de projetos, design, pesquisa, desenvolvimento – determinaria final-mente aquele quadro tendencial do capitalismo expresso na taxa

189189Capitalismo e população mundial

de lucro decrescente. Daí que, em movimento para contraditar aquela tendência, o capital precisa de um exército de reserva, de milhões fazendo fila às portas das fábricas, dos bancos etc. De nativos ou de emigrantes que arriscam a vida na travessia do Mediterrâneo ou na fuga das guerras. Como assinalava K. Marx:

[...] se a existência de uma superpopulação operária é produto necessário da acumulação ou do incremento da riqueza dentro do regime capitalista, esta superpopulação se converte por sua vez em alavanca da acumulação do capital, mais ainda em uma das condições de vida do regime capitalista de produção (O capi-tal, Havana, Ciencias Sociales,1973, t. I, cap. XXIII, p. 576).

Contemporaneamente tal se aplicaria não apenas a operários em sentido estrito, mas a uma ampla gama de trabalhadores. E quando tal superpopulação escasseia num país o capital vai buscá-la em outros ou, na contramão, leva suas fábricas para os países onde o preço da mão de obra é muito mais barato, como se pode observar no caso do Brasil e, mais recentemente, na China e no Vietnã. É bem expressivo o fato de a queda da taxa de lucro entre 1960 e 2002 (de 7,15% para 1,32%, mostrada no trabalho) corresponder à amostra das 500 maiores corporações, portanto aquelas certamente representativas do grande capital de maior mobilidade mundial.

Com tais medidas o capital tenta compensar a escassez rela-tiva ou o envelhecimento das populações nos países de capita-lismo avançado, visando aumentar sua taxa de lucro ou mesmo frear sua queda. A curto prazo tais metas são realizadas mas aos poucos as dificuldades aumentam. Conforme ilustrado pelo caso francês, segundo o Insee (Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos, da França), a partir da segunda geração os imigrantes tendem a ter um comportamento semelhante aos fran-ceses. Desta ou de maneira semelhante isto se repete em todos os países que precisam da imigração.

O trabalho prossegue mostrando as pressões do avanço do capitalismo e do crescimento populacional sobre o meio natural e a produção de alimentos. O crescimento absoluto da população deverá levar a uma população de 10 bilhões em 2200. Ora, obser-vada a produção de alimentos de hoje, algo excepcional precisaria acontecer até lá para evitar a barbárie. Isto porque as áreas atuais potencialmente produtivas no mundo, regeneráveis, chegam a 13,4 bilhões de gha (giga hectares globais). O trabalho apresenta cálculos dos estudiosos do assunto, apontando em 2007 um

190190 Alfredo Maciel da Silveira

consumo de 2,7 gha por habitante, para uma população de 6,7 bilhões de pessoas. Isto significa já ter sido ultrapassada a capa-cidade de regeneração do planeta. A observar que tais números médios anuais levam em conta os povos dos EUA e da África, estes últimos muitas vezes com um consumo inferior àquele mínimo para sobrevivência.

Em escala planetária, com as fronteiras abertas à integração dos mercados e ao acesso do capital aos imensos reservatórios de trabalhadores de baixo custo de reprodução, não estaria à vista nenhum interesse do capital em fazer valer as conquistas cultu-rais e de conhecimentos das sociedades, engendradas sob este mesmo capitalismo, em prol de uma evolução mais equilibrada da população mundial.

É para onde em sequência caminham a sumarização e as conclusões do trabalho.

Apesar de as guerras, as epidemias ou as catástrofes naturais atuarem incidentalmente e influírem sobre a reprodução da popu-lação, são fatores que não a regulam no longo prazo. O avanço da ciência, da técnica, da consciência e dos meios dos seres huma-nos para decidirem do tamanho de suas famílias também vem ganhando força no sentido de permitir uma reprodução cons-ciente da população. Isto permitiria, nos dias de hoje, um controle consciente e democrático da população mundial. Sob o capita-lismo, isto poderia abrir alguns espaços de oportunidade durante algum tempo, mas estes acabariam, no longo prazo, subordi-nando-se às leis de reprodução do capital, o que vem conduzindo a humanidade a ameaças insuspeitadas, só evitáveis pela ação política de todos os povos.

Num balanço sumário, um dos méritos a destacar neste ensaio está em desbravar fronteira ainda pouco explorada da pesquisa, em meio a estruturas da economia mundial e de relações interna-cionais reconhecidamente em mutação. A destacar também sua contribuição para o método, porquanto busca evidenciar, nas pegadas de K. Marx, o nexo entre as dinâmicas atuais da popula-ção e da acumulação do capital. O autor deixa transparecer a tensão de um pensamento militante que olha o futuro. Neste sentido faz lembrar Antonio, o sardo, para o qual “[...] só quem deseja fortemente é capaz de identificar na realidade os elementos necessários à realização da sua vontade [...]”.

Para finalizar, uma sugestão do que poderia ser um desdobra-mento da pesquisa, portanto avançando além dos propósitos do

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ensaio, mas inspirando-se na visão global e sistêmica ali presente. Seria o caso, por exemplo, de uma possível reinterpretação dos efeitos da expansão dos circuitos mundiais de valorização do capital nos países de desenvolvimento capitalista tardio e depen-dente (PDCTD na denominação dada por Sergio Moraes), como explicação de fenômenos de heterogeneidade estrutural já há muito identificados em clássica literatura sobre regiões periféricas.

Sobre a obra: Capitalismo e população mundial. De Moraes, Sergio Augusto de. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.

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Uma trajetória consistente e coerente

Osvaldo Euclides

A vida de um jornalista que toma partido de forma aberta e transparente e faz uma brilhante carreira em pequenos e quase clandestinos jornais mantidos precariamente pelo

Partido Comunista desperta interesse, sobretudo se essa trajetó-ria se fez de forma consistente e coerente, tendo como cenário o Brasil atrasado e instável da primeira metade do século XX. Rui Facó, entretanto, foi bem mais do que um marcante e singular profissional do jornalismo… é o que livro mostra.

Trata-se de uma longa e detalhada reportagem histórica que, curiosamente, começa com a morte, num acidente aéreo suspeito, do biografado. Logo, o foco se abre para a realidade brasileira que Rui Facó captou como jornalista e escritor. O leitor mergulha na vida pessoal dele, claro, mas também na história do Brasil, já que Rui foi contemporâneo e companheiro de lutas políticas de Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge Amado, entre tantos outros nomes da esquerda, ou de uma geração de jornalistas e escritores que fizeram o jornalismo engajado da primeira metade do século passado. Às muitas viagens que o livro conduz, não falta um pulo a Moscou, onde Rui Facó foi, digamos, treinado nas artes do comunismo, em plena guerra fria.

As pesquisas de Rui Facó, sempre complementadas pelas viagens aos locais de interesse, fizeram dele um respeitado conhe-cedor de importantes pedaços do Brasil profundo, como o Cariri de Padre Cícero, Floro Bartolomeu e Virgulino Lampião, resultando no livro Cangaceiros e Fanáticos, publicado depois de Brasil século XX. O livro também mostra esta face intelectual do biografado.

Rui Facó morreu ainda jovem, num acidente aéreo na Cordi-lheira dos Andes, no ano de 1963, antes, portanto, do golpe de 1964. Cearense da cidade de Beberibe, jornalista, escritor, membro ativo do Partido Comunista, teve uma vida pessoal, profissional e política marcante, mas seria de esperar que fosse completamente esquecido. No Ceará, os jornais praticamente ignoraram sua morte e só deram a notícia por insistência de amigos e admirado-res. Uma biografia dele não era esperada.

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– Rui parecia tranquilo, porém, intimamente, tenso. Essa era uma marca sua, gerenciar a tensão internamente, e demonstrar firmeza, algo meio frio. No entanto, e de fato, era um humanista. Os passageiros se entreolharam. Eram adultos, vividos, experien-tes, mas nunca experimentaram aquela fúria, indefesos dentro de um pequeno avião. O avião Douglas DC-68, voo 915, da Compa-nhia Lloyd Aéreo Boliviano que havia decolado do aeroporto de Arica, espatifou-se contra as rochas em área próxima ao vulcão Tacora, no Peru, matando seus 39 ocupantes.

– Cangaceiros e Fanáticos era o livro de estreia intelectual de Rui, não que Brasil século XX seja um livro menor. Mas, aqui, o autor mostra sua ambição intelectual e sua capacidade de elabo-rar teses a partir de argumentos consistentes e fartamente docu-mentados. Como repórter, Rui não abriu mão de suas fontes primárias e uma delas é mesmo Luiz Carlos Prestes a propósito da Coluna Prestes no Nordeste, e de uma empreitada contratada a Virgulino Lampião e seu bando para combatê-la, o que de fato não aconteceu – o combate, a contratação, sim.

– Luiz Mário Gazzaneo e Rui conviveram, principalmente, no jornal Novos Rumos. Mas participaram também do projeto do jornal diário que durou 40 dias, em 1959, o jornal Hoje, numa estratégia eleitoral… Carlos Marighella e Luíz Carlos Prestes foram os articuladores do jornal. O jornal era favorável ao mare-chal Henrique Teixeira Lott na disputa presidencial contra Jânio da Silva Quadros, este já escorraçado pelo Novos Rumos. Jânio ganhou e o jornal acabou. A espada de Lott é derrotada pela vassoura populista de Jânio.

– Àquela época, Rui estava mais graduado. Já havia feito parte do curso de formação e trabalhava na Rádio Moscou. As aulas eram ministradas em espanhol – os brasileiros tinham que enten-der espanhol para acompanhar o curso, dividido em três partes: Filosofia, Economia Política e História, e durava dois anos, em regime integral, fechado. Tudo isso com o viés de apontar bem o inimigo lá fora, o modelo capitalista, concentrador e excludente. Os cursos davam treinamento militar e condicionamento político-ideológico.

– O comunicado oficial do Partido Comunista foi lido, repeti-das vezes, na Rádio Central de Moscou: “Deixou de pulsar o cora-ção do camarada continuador da vontade de Lênin, o sábio diri-gente mestre do Partido Comunista e do povo soviético, Josef Stalin. Junto com Lênin, o camarada Stalin criou o poderoso

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partido comunista e o desenvolveu. Junto com Lênin, o camarada Stálin era inspirador e dirigente da grande Revolução de Outubro (de 1917), fundador do primeiro Estado socialista do mundo. Ao continuar a imortal causa de Lênin, Stalin conduziu o povo sovié-tico à vitória mundial do socialismo em nossa pátria”. Esta foi a primeira grande cobertura de Rui Facó, na emissora moscovita.

– Depois do XX Congresso, a imprensa do PCUS mudou toda, eram jornais artificiais, tínhamos a imprensa popular no Rio, era perseguida pela polícia, de vez em quando o jornal tinha de trocar o nome porque a polícia suspendia – já tínhamos vários nomes registrados. No outro dia, saíamos com outro nome. Por exemplo, o jornal Tribuna Popular foi suspenso, sai então como Imprensa Popular, aí suspendiam o Imprensa Popular e a gente voltava com o Tribuna Popular, porque o período de suspensão já tinha expi-rado, e assim íamos. A gente ficava nesse jogo, mas, na verdade, o Rui nunca esteve clandestino.

– A Revolução de 1930 foi um duro golpe contra o poder polí-tico dos grandes latifundiários, sobretudo nordestinos, em cujos domínios subsistiam os restos feudais.

– Rui Facó estava viajando por toda a América Latina e seu destino final, supostamente, seria Havana. Fidel Castro, “la revo-lucion”, seria um germe que se espraiaria: o fim da sociedade de classes – a utopia ganha agora um recorte na realidade.

– De uma a duas vezes por semana, Rui embrenhava-se nos sebos do Rio de Janeiro, numa garimpagem interminável, percor-rendo as prateleiras e pilhas de livros com a paciência de um eremita.

– Quais rumos Rui Facó teria tomado numa conjuntura pós-1964, quando o Brasil mergulha num cenário de subtrações de direitos acirrado em 1968 com a edição do AI-5, que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do então presidente Artur da Costa e Silva?

– […] a vida dele foi toda voltada para um engajamento consis-tente, determinado, que nos lembra a expressão de Antonio Gramsci, de intelectual orgânico, aquele alinhamento ortodoxo que faz a parte se fundir no todo e ela, mesma toda, conquanto parte…

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O autor da obra

Luís-Sérgio Santos é cearense, nascido e crescido em Bebe-ribe, a 84 km de Fortaleza. É jornalista e professor da área de Comunicação da Universidade Federal do Ceará. Já no início da carreira profissional ganhou o prêmio máximo do jornalismo brasileiro, o Prêmio Esso, em 1980. Foi correspondente da Folha de S. Paulo em Fortaleza; secretário de redação e editor geral dos dois maiores jornais do Ceará, Diário do Nordeste e O Povo. Como expert em design gráfico, dá consultoria e implantou reestrutura-ção de vários veículos impressos. Lançou três revistas, Fale, Insi-deBrasil e Poder Local, e é diretor geral da Omni Editora.

Sobre a obra: Rui Facó – uma biografia – O homem e sua missão, de Luís-Sérgio Santos, Omni Editora.

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Charles Taylor e o psicossocial na cidadania

Pedro Augusto Pinho

As sociedades neste século XXI têm características que as tornam distintas para aplicação dos padrões que usávamos na análise das sociedades do século XX e anteriores. Não

se trata apenas das mudanças econômicas, pois o capital finan-ceiro também imperou no século XIX, nem das forças detentoras do poder, pois elas continuam, majoritariamente, representando o capital. Há quem a denomine hoje como “sociedade da informa-ção”, ou “quântica” ou “globalizada”.

Afirma Charles Taylor no prefácio de artigos, Argumentos filo-sóficos, reunidos no Brasil pela Edições Loyola (SP, 2000), ao tratar da natureza da linguagem, “o debate passou a contar com mais do que dois lados”. Esta é uma das características da socie-dade em que vivemos e que não comporta a bipolaridade, tão em voga no século anterior.

Taylor é dos filósofos que investiga como e para que vivemos e quais são os desafios desta sociedade contemporânea e como os enfrentamos.

Entre as diversas portas para estas reflexões, escolhi a da cidadania, a qual diz respeito ao ser humano em suas diversas dimensões, ou seja, como na frase de Marx, “a raiz para o homem é o próprio homem”. Sob diferentes focus, filósofos, sociólogos, psicólogos e outros cientistas sociais vêm a cidadania como uma resultante de fatores econômicos, psicossociais e políticos que integram a pessoa humana.

No universo dos temas psicossociais na construção da cidada-nia, a questão ontológica é bastante óbvia. A dimensão da liber-dade, na qual os pensamentos mais extremos parecem entender o ser humano desprendido de sua natureza social, perde relevância e prioridade quando se colocam diante deste mesmo ser as ques-tões de identidade e do reconhecimento. Daí os diversos temas que Charles Taylor levanta na dimensão psicossocial na cidadania.

Um dos pressupostos de Taylor é do juízo de valor, que deno-mina “consequencialismo”, ou seja, leva-se em conta o que é produzido, sem a preocupação da qualidade moral “intrínseca”

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dos atos. Em outras palavras, a condição da ação dispensa a ideia aristotélica de virtude, coragem ou lealdade.

Outro pressuposto é o “utilitário”. Uma decorrência do “conse-quencialismo” que avalia os resultados pela satisfação, pela felici-dade bruta, sem distinção do altruísmo, depravação ou enalteci-mento desta utilidade.

O terceiro é o “atomismo”: todos os bens são bens do indiví-duo. Nas palavras de Taylor, “os relatos dos processos sociais, em termos do individualismo metodológico, têm de ruir porque não podem lidar com esse fato”. Ou seja, atos e fatos têm “um pano de fundo de práticas e compreensões que têm como locus uma socie-dade. Eis o núcleo indecomponível contra o qual o atomismo tem que quebrar os dentes”.

Estes pressupostos contaminam o “individualismo” que Taylor trata, na Ética da Autenticidade (É Realizações Editora, SP, 2011), como um dos males da modernidade: o desencanto com a responsabilidade.

Passemos a outro importante aspecto do psicossocial na cida-dania: a compreensão do outro, as culturas. Tomemos um exemplo de Taylor: “reconheço que os astecas agem de modo bem estranho... inclui coisas como arrancar o coração das pessoas, que só espero de psicopatas. A não ser que deseje considerar essa sociedade inteira como patológica, algo que conflita com outras evidências, cabe-me enfrentar o desafio da compreensão. O discurso sóbrio e racional que tenta compreender outras culturas tem de tomar consciência de si como uma entre muitas possibilidades”.

Ao entender e aceitar esta condição, o cidadão não mais distin-guirá valorativamente, por exemplo, gênero, raça, conhecimento etc. Como nos desconfortos da “razão instrumental” (Ética da Autenticidade), ele não sacralizará o saber formal; o saber da cozinheira é tão relevante para vida quanto do neurocirurgião.

À margem dos textos em análise, mas inserido neste pensa-mento, vemos o eurocentrismo das avaliações do belo, dos gostos, do prazer estético, que todos os colonizados, como nós, incorpo-ram e até se orgulham (!), desconstruindo uma riqueza cidadã, tão bem descrita e defendida por Darcy Ribeiro e outros, infeliz-mente, poucos: a mestiçagem, por exemplo.

Nas questões de gênero, há mulheres que “foram induzidas nas sociedades patriarcais a adotar uma imagem depreciativa de si mesmas. Elas internalizaram um quadro de sua própria infe-

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rioridade, razão porque, ainda quando alguns obstáculos objeti-vos a seu avanço caem por terra, elas podem ser incapazes de aproveitar as novas oportunidades” (Argumentos filosóficos).

Discorrendo em relação a ideias de dignidade e autenticidade, Charles Taylor reporta o salto extraordinário do pensamento em Jean-Jacques Rousseau (Os devaneios do caminhante solitário, UnB, Brasília, 1986, tradução de Fúlvia Maria L. Moretto) quando passa a nos ver, humanos, dotados de profundidades interiores, deslo-cando a ênfase moral e dicotômica de classes.

Transcrevo: “tornamo-nos agentes humanos plenos, capazes de nos compreender a nós mesmos e, por conseguinte, de definir nossa identidade mediante a aquisição de ricas linguagens huma-nas de expressão... linguagens da arte, do gesto, do amor etc.” (Argumentos filosóficos). Os modos de expressão que possibilitam o “intercâmbio com outras pessoas”. E neste sentido, como afirma Taylor, “a gênese do espírito humano não é monológica, algo que cada pessoa realiza por si mesma, mas dialógica”.

A professora Patrícia Mattos (O reconhecimento social e sua refundação filosófica em Charles Taylor, in: Teoria crítica no século XXI, Jessé Souza e Patrícia Mattos, orgs., Annablume Editora, SP, 2007) sintetiza: “A denúncia de Taylor é de que as instituições e as práticas sociais sempre reproduzem uma concepção pré-refle-xiva de boa vida, uma hierarquia moral que está na base de nossas autointerpretações e das interpretações que fazemos da sociedade que vivemos”.

Por fim, e como é óbvio, Charles Taylor aponta alguns proble-mas nesta formação da cidadania. Um deles é a alienação, numa sociedade grande, centralizada, burocrática. Há problemas que perpassam as dimensões da cidadania e que nem sempre são fáceis de categorizar. A alienação tem nítido conteúdo político, mas, simultaneamente, provoca impactos comportamentais e afetivos. Alternativamente, a fragmentação e maior homogenei-dade debilitaria as formas inclusivas, restringindo o componente cultural, o reconhecimento.

O que dizer então da formação de um grupamento bem organi-zado e integrado, com foco em moldar reações positivas ou negati-vas com manifestações que interfiram na própria consciência social? Ou que seja prejudicial ou desabonador da autoestima?

Exemplifiquemos com uma questão de gênero, o aborto. Ele será tratado não em sua especificidade, mas nos vários valores de

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grupos e tipos de cidadãos que, genuinamente, foram chamados a se pronunciar, a participar da decisão, sem que, como as mulhe-res, viessem a sofrer o impacto da decisão.

Outro problema é a parcialidade. A torrente de ações judiciais, sem a capacitação de cidadania consciente, mesmo sem interesse ilegítimo ou fraudulento, incorporará procedimentos, já em si condutores de decisões. E quanta energia social estará sendo gasta em sucessivas e inconsequentes revisões.

Volto ao texto de Patrícia Mattos para concluir. “As fontes do self” (Taylor, Edições Loyola, SP, 1997) pode ser compreendida como uma odisseia da ressignificação dos consensos que nos construíram como nós somos, consensos esses que se tornaram opacos, inacessíveis e imutáveis precisamente quando se conver-teram em práticas sociais e institucionais com aparência de inevi-tabilidade. Ressignificar aqui equivale a mostrar a contingência desta história, e, portanto, dizer que ela poderia ter sido outra, e, mais importante, que ela ainda pode ser refeita”. Ao que adiciono: e, assim, continuadamente num processo dinâmico de formação da cidadania.

Uma informação necessária

O ensaio Da cruz à estrela: a trajetória da Ação Popular Marxista-Leninista, de Esther Kupermann, que publicamos na edição nº 45 da revista Política Democrática, foi extraído da Revista Espaço Acadêmico (REA), n. 25 – jun./2003, da Universidade Estadual de Maringá (PR), que a divulgou originariamente.

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