cosmopolitismo e o conceito de nacionalidade: conceitos antagonicos?

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Cosmopolitismo e o instituto da nacionalidade: conceitos antagônicos? Luís Fernando Bravo de Barros Pierre Berton: - Você ainda se considera chinês ou você já tem se considerado norte-americano?” Bruce Lee: - Sabe como eu quero me considerar? Como um ser humano. [...] sob o firmamento, meu amigo, somos uma única família. Ocorre, simplesmente, que as pessoas são diferentes umas das outras.” 1. INTRODUÇÃO O desenvolvimento das ideias e dos conceitos de cosmopolitismo, através do tempo, parece sempre, em maior ou menor medida, situar-se na tensão entre a premência de valores humanos universais e a legitimação de uma identidade social local. Considerando-se essa polaridade, é possível, diante das mais atualizadas propostas de cosmopolitismo, conciliar o ideal de cidadania global com a identidade social nacional e, mais ainda, admitir-se a nacionalidade como critério juridicamente plausível de discrímen em situações de aparente conflito entre normas locais e de Direito Internacional, mais especificamente relacionadas à proteção internacional dos direitos da pessoa humana? 2. NACIONALIDADE NA ESTRUTURAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO O instituto da nacionalidade delimita o elemento pessoal da estrutura jurídica de estado, composta, também, pelo território, elemento material, por um governo independente, elemento político, e por uma finalidade. Este último aspecto não é unanimidade nas doutrinas de Teoria Geral do Estado e de Direito Internacional Público, valendo-se, o presente ensaio, dos ensinamentos de Mazzuoli, considerando-o o elemento social da estrutura estatal, imprescindível para o seu bom andamento (MAZZUOLI, 2010).

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Crítica à conceituação de soberania como elemento imprescindível à segurança internacional.

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Cosmopolitismo e o instituto da nacionalidade: conceitos antagônicos?

Luís Fernando Bravo de Barros

“Pierre Berton: - Você ainda se considera chinês ou você já tem se

considerado norte-americano?”

“Bruce Lee: - Sabe como eu quero me considerar? Como um ser humano. [...]

sob o firmamento, meu amigo, somos uma única família. Ocorre, simplesmente, que

as pessoas são diferentes umas das outras.”

1. INTRODUÇÃO

O desenvolvimento das ideias e dos conceitos de cosmopolitismo, através do

tempo, parece sempre, em maior ou menor medida, situar-se na tensão entre a

premência de valores humanos universais e a legitimação de uma identidade social

local. Considerando-se essa polaridade, é possível, diante das mais atualizadas

propostas de cosmopolitismo, conciliar o ideal de cidadania global com a identidade

social nacional e, mais ainda, admitir-se a nacionalidade como critério juridicamente

plausível de discrímen em situações de aparente conflito entre normas locais e de

Direito Internacional, mais especificamente relacionadas à proteção internacional

dos direitos da pessoa humana?

2. NACIONALIDADE NA ESTRUTURAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO

O instituto da nacionalidade delimita o elemento pessoal da estrutura jurídica

de estado, composta, também, pelo território, elemento material, por um governo

independente, elemento político, e por uma finalidade. Este último aspecto não é

unanimidade nas doutrinas de Teoria Geral do Estado e de Direito Internacional

Público, valendo-se, o presente ensaio, dos ensinamentos de Mazzuoli,

considerando-o o elemento social da estrutura estatal, imprescindível para o seu

bom andamento (MAZZUOLI, 2010).

Por mais desgastada que possa ser, na literatura jurídico-científica, a

concepção de nacionalidade como vínculo jurídico-político entre Estado e indivíduos

que o compõem ainda reflete, com precisão suficiente, a realidade prática funcional

de tal instituto. Allain Pellet fala em “vínculo de fidelidade” entre Estado e particular

(PELLET et al., 2003, Pg. 504).

A partir do estado soberano de Westfalia, dando continuidade ao

fortalecimento da estrutura estatal, qual construção cada vez mais necessária à

instrumentalização dos anseios sociais para o desenrolar da vida em comunidade, o

ideal revolucionário iluminista, historicamente emblematizado pela Revolução

Francesa, ao desenvolver o conceito moderno de estado republicano firmou,

seguramente, a relação de uma identidade nacional à figura do estado, buscando

erigir seu alicerce pessoal de um imaginário pré-concebido de identificação coletiva.

Somada à já bem estabelecida máxima da soberania territorial, tal via de

identificação coletiva, recrutada para se aperfeiçoar a conclamação por soberania

popular, traduziu-se no reconhecimento de nacionalidade como o vínculo individual à

entidade territorialmente constituída. Esse o cerne silogístico do estado-nação

atualmente em voga, desde então. Ferrajoli leciona:

“As idéias de ‘nação’ e de ‘nacionalidade’, não menos do que a noção de ‘Estado’, são também uma invenção ocidental: nascidas da Revolução Francesa, serviram para fornecer, no século XIX, um embasamento ‘natural’ aos Estados europeus e para legitimar sua soberania como ‘nacional e/ou ‘popular’.” (FERRAJOLI, 2007, Pg. 50).

O conceito de nação, originariamente baseado em laços culturais

comunitários de etnia, idioma, espiritualidade, artes, raça, etc..., abrigava tal

coletividade num grupo de fronteiras fluidas, indeterminadas, porém determináveis.

Sua instrumentalização, na constituição do estado-nação, para a conformação

do ente administrativo territorialmente delimitado, em seu aspecto popular, deu azo

ao instituto da nacionalidade, como conceito jurídico, constitucionalmente estipulado,

a firmar os direitos e deveres do indivíduo perante a ordem estatal do qual é

nacional, e, no âmbito do Direito Internacional, a identificar a figura moderna do

estrangeiro perante os ordenamentos dos demais estados. Percebe-se, nesse

momento, a concepção de nacionalidade como título imprescindível para o devido

exercício da cidadania.

Na medida em que se condicionou a titularidade da nacionalidade ao

exercício de soberania do estado-nação, para a construção do elemento pessoal do

estado, sua concessão deixou de atrelar-se, necessariamente, a uma identificação

coletiva cultural e espontânea, tornando-se uma conveniência jurídico-política na

construção, ou manutenção, do elemento pessoal do estado. Juridicamente, assim,

se estabeleceram critérios para a concessão da nacionalidade originária, atualmente

aferida em razão “do local de nascimento (jus soli) ou da nacionalidade dos pais à

época do nascimento (jus sanguinis).” (MAZZUOLI, 2010, Pg. 673).

Passou-se a se atribuir nacionalidade por uma tendência, principalmente, de

gestão de estado, já muito distante da espontaneidade e naturalidade de vínculos

afetivos e solidários pulsantes nas relações comunitárias, explicitando, cada vez

mais, seu caráter potencialmente discriminatório, em desrespeito aos direitos

humanos inclusive, para os quais o vínculo nacional foi, originariamente, chamado

para defender.

Percebe-se, destarte, quanto à questão da nacionalidade, um destacado

ponto de tensão entre, de um lado, seu aspecto político-coletivo, relegado ao alvitre

do ente estatal no exercício do controle de contingente a estabelecer a abrangência

de sua competência pessoal, e, de outro lado, seu aspecto humano-individual

baseado na liberdade particular em se poder escolher a própria nacionalidade, ou

seja a identificação e participação em determinada coletividade. Atualmente, em

virtude do protagonismo do estado-nação, nota-se privilegiado o aspecto político em

detrimento do seu viés individual, principalmente ao vincular o exercício da

prerrogativa da concessão da nacionalidade ao princípio da autodeterminação

estatal, pedra de toque do regime jurídico das Relações Internacionais (PELLET et

al., 2003).

A determinação da nacionalidade está submetida ao desiderato do poder

público, de acordo com a sua conveniência política, dentro das balizas do

ordenamento nacional vigente, geralmente preestabelecidas no Documento

Fundamental. Qual corolário de um tal princípio da atribuição estatal da

nacionalidade, “... segundo o qual cada Estado deve ter competência exclusiva para

legislar sobre sua nacionalidade, da maneira que lhe aprouver.” (MAZZUOLI, 2010,

Pg. 666). Pellet alerta, entretanto, que “... reconhecer a cada Estado uma

competência tão ampla não está isento do risco de contradições ...” (PELLET et al.,

2003, Pg. 505).

De fato, atribuiu-se à conformação da identidade nacional um peculiar

automatismo condicionado à inércia da força de perpetuação, aparentemente eterna,

do estado-nação. Bem ressalta Mazzuoli que “o que realmente informa a

nacionalidade são razões de ordem política, como consequência da organização

estatal.” (MAZZUOLI, 2010, Pg. 666). Consequentemente, o conceito culturalmente

esculpido de identidade coletiva acaba por atrofiar-se a limites territoriais

imaginariamente determinados.

Interessante notar que as pioneiras declarações de direitos humanos, a

reconhecerem o cosmopolitismo de tais direitos, universais e atemporais, e.g., a

Declaração Estadunidense de Independência e a Declaração Francesa dos Direitos

do Homem e do Cidadão, o fizeram não para o estabelecimento imediato de um

movimento de solidariedade mundial, senão para o exercício das liberdades

humanas, em conglomerados específicos, em face da tirania do colonialismo e do

absolutismo despótico por intermédio do fortalecimento da unidade estatal, então, no

século XIX, ineditamente lastreada no poder e no interesse do povo.

Sem, de forma alguma, menoscabar suas inestimáveis importâncias ao

desenvolvimento da humanidade, possível conjecturar que tais movimentos

iluministas deram luz ao ente estatal moderno, de suma relevância para a

emancipação da Era das Trevas, mas cuja missão original de mecanismo meio à

prosperidade social foi distorcida para fim em si mesmo, a ponto de hiperbolizar-se,

achatando seu aspecto intrinsecamente humano, para se ensimesmar numa odiosa

couraça de ufana soberania e ilusória autodeterminação, atualmente desafiada pelo

movimento de globalização, deflagrado, em especial, durante a segunda metade do

século XX.

O poder ao povo em oposição à tirania, na concepção iluminista, se apoiava

em ideais universais além das limitações de especificidades nacionais. O estado

republicano lá arquitetado, ventre da democracia moderna, ergueu-se sobre os

alicerces da solidariedade, da igualdade e da liberdade. Contudo, tributário à

soberania territorial westfaliana, rapidamente inflamou uma identidade patriótica

nacionalista a enclausurar-se nas barreiras invisíveis das fronteiras estatais.

Conforma-se aqui outro nódulo, resultante do atrito entre o reconhecimento interno e

exterior de direitos, paradoxalmente, concebidos como universais. Conforme

exposto por Robert Fine: “A mediação da nação entre ‘o homem’ e seus direitos

gerou uma tensão entre a universalidade do conceito [dos direitos do homem] e sua

particular existência no âmbito nacional.”1 (FINE, 2007, Pg. 28).

A faceta universalista mesma do estado-nação, qual uma delimitação

territorial de almejo coletivo comum, fundamentalmente idealizado para a promoção

do bem-estar social de sua população, pode ser tida como o alimento de uma falsa

premissa, tanto no exercício da soberania interna quanto no da soberania externa,

qual seja a premissa de que a vontade do estado é a concretização perfeita e bem

acabada de toda a sua população. Cabível a admoestação de Robert Fine: “Ao

considerar sua própria vontade como a de todos os indivíduos, ele [o Estado] dá azo

à suas mais perigosas fantasias totalitárias.”2 (FINE, 2007, Pg. 17).

O prestígio da moderna construção jurídica do Estado-Nação a compilar, de

maneira positivada, os direitos do homem em seus textos constitucionais, acabou

por, contraditoriamente, promover uma discriminação diametralmente oposta à

universalidade dos direitos humanos. Colocado o Estado-Nação como única fonte

para o reconhecimento de direitos, passou-se a se admitir uma nacionalização

exclusivista, vinculando o exercício dos direitos fundamentais à nacionalidade. A

asserção de Ferrajoli é elucidativa:

“... os direitos do ‘homem’ acabam de fato por se achatar sobre os direitos do ‘cidadão’. (...) a cidadania, se internamente age como privilégio e como fonte de discriminação contra não-cidadãos. A ‘universalidade’ dos direitos humanos resolve-se, consequentemente, numa universalidade parcial e de parte: corrompida pelo hábito de reconhecer o Estado como única fonte de direito e, portanto, pelos mecanismos de exclusão por este desencadeados para com os não-cidadãos; e, ao mesmo tempo, pela ausência, também para os próprios cidadãos, de garantias supra-estatais de direito internacional contra as violações impunes de tais direitos, cometidas pelos próprios Estados.” (FERRAJOLI, 2007, Pgs. 35 e 36).

A via é de mão dupla, frise-se. A discriminação patrocinada por um estado,

com fulcro na nacionalidade acaba por se tornar uma odiosa fragmentação da

1 “The mediation of the nation between ‘man’ and his rights generated a tension between the universality of

the concept and its particular national existence.” 2 “By treating its own will as the will of every individual, it feeds its most dangerous totalitarian fantasies.”

unicidade dos direitos humanos tanto para o estrangeiro quanto para o nacional:

aquele carente de tutela pela exclusão, este, muitas vezes satisfeito pelo falso

conforto de um manto inclusivo de nacionalidade, alheio ao abrigo do direito

internacional perante possíveis abusos do estado ao qual está vinculado. A

propósito, Guilherme de Almeida: “A cidadania cosmopolita é um dos principais

limites para a atuação do poder soberano, pois dá garantia da proteção internacional

na falta da proteção do Estado Nacional.” (ALMEIDA b, Pg. 14)

Como se disse, o conceito de nacionalidade inicialmente desenvolveu-se

como veículo para o exercício da cidadania, ou seja, para o exercício da soberania

popular, tanto no tocante à expressão de direitos políticos quanto à fruição de

direitos sociais. O marco divisor de águas, do pós Segunda Guerra, para o salto

quântico do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconheceu o caráter global

de cidadania, para além do escaninho da nacionalidade. Contudo, o ranço dessa

tacanhez conceitual, a limitar cidadania à nacionalidade, se faz ainda presente nas

letras de inúmeros textos constitucionais (MAZZUOLI, 2010), não apenas

proporcionando uma perniciosa bagunça terminológica como, especialmente,

justificando, na prática, o cerceamento do exercício de direitos reconhecidos

universalmente pela discriminação entre nacionais e estrangeiros.

Levando em consideração tal cenário, muitas das vezes conveniente ao

discurso demagógico da exclusividade nacional, Luigi Ferrajoli propõe um desafio:

“Levar a sério aqueles valores [...] dos direitos humanos proclamados pelas cartas

constitucionais, significa [...] ter a coragem de desancorá-los da cidadania [...] e

assim dar um fim a esse grande apartheid que exclui do seu aproveitamento a

maioria da humanidade.” (FERRAJOLI, 2007, Pg. 58).

É partindo de tal premissa que robusta corrente da militância ao

cosmopolitismo, ao reconhecer um vínculo universal de solidariedade, prega uma

revisão da importância da nacionalidade como elemento agregador imprescindível

para a vida política da sociedade:

“Enquanto promotores do novo cosmopolitismo reconhecem o fato de ter tido o nacionalismo um determinado valor no passado, nas lutas anti-coloniais ou na construção do moderno estado de bem-estar social, eles se afastam da ideia de que laços de solidariedade devem ser conceitualmente

ligados ao estado-nação e declaram a morte do nacionalismo como um princípio normativo de integração social.”

3 (FINE, 2007, Pg. 03).

3. CIDADANIA E SOBERANIA

Possível identificar a origem do Estado-Nação como reação à tirania

despótica. Concebida para concretizar o ideal de participação popular republicana,

tal unidade administrativa delimitou-se geograficamente:

“[...] a soberania da era moderna, classificada como soberania popular será definida enquanto : ‘poder de decidir em última instância, de acordo com a lei’. Esse novo conceito só pode surgir em uma nova forma de organização política que veio a substituir o Estado Absolutista, vale dizer: o Estado de Direito.” (ALMEIDA b, Pg. 06)

Aí a transmutação do exercício da soberania popular, qual expressão última

do moderno ideal de democracia, ao poder constituído do Estado, conforme

didaticamente delineado por Miguel Reale:

“Desde o instante em que a soberania como força social é delimitada pela opção que o povo faz por esta ou aquela forma de Estado, a soberania passa a ser direito do Estado, ou seja, do povo juridicamente organizado, adquirindo características especificamente jurídicas.” (REALE apud MENEZES, 1998, Pg. 155).

Tem-se, assim, a manifestação da soberania popular como a viga mestra a

legitimar o escopo do Estado como unidade administrativa autônoma e, por afetação

natural, obviamente soberana. Tal expressão de soberania, entretanto, doravante

territorialmente determinada, se estribou no exercício de uma identidade sócio-

política já há muito em voga, qual seja a cidadania. O conceito de nacionalidade,

desenvolvido, como se disse, para o aperfeiçoamento do aspecto pessoal da novel

estrutura estatal é posterior ao de cidadania.

A cidadania, ou seu exercício, é como que um traço inerente à aspiração

sócio-política natural à gregariedade humana. Ela nasce da inter-relação comunitária

e a ela dá sentido. Sempre pressupôs, em seu cerne conceitual, a universalidade da

experiência humana onde quer que ela pudesse vicejar, daí o desatino em diminuí-la

3 “While advocates of the new cosmopolitanism are prepared to acknowledge that nationalism may have had

value in the past, not least in the pursuit of anti-colonial struggles or in the building of modern welfare states, they renounce the idea that solidarity ties must be conceptually linked to the nation-state and pronounce the death of nationalism as a normative principle of social integration.”

a limitação nacional de recorte geográfico. Os estudos de Darren O’Byrne são

extremamente elucidativos nesse diapasão: “Em verdade, a ideia de cidadania não

é, de forma alguma, vinculada à ideia de Estado-Nação. De fato, o Estado-Nação

como o entendemos é um fenômeno relativamente moderno, antecedido, em

considerável medida, pela ideia de cidadania.”4 (O’BYRNE, 2005, Pg. 14).

A soberania estatal amplificada de maneira absoluta no nível das Relações

Internacionais distanciou-se de sua matriz fundamental, como expressão que é –

que deveria ser – da soberania popular. Tal situação reflete um desenvolvimento

histórico político díspar entre o pragmatismo da soberania popular na realidade

intraestatal e a realidade do exercício da soberania do campo das relações entre

estados, na medida em que a constrição jurídica aos possíveis abusos de soberania

no âmbito interno parece muito mais amadurecida e, na prática, efetivada, do que

sua expressão no exercício das relações internacionais (FERRAJOLI, 2007). De um

lado, no âmbito doméstico, tem-se um claro e crescente prestígio do controle

democrático do poder do Estado, de outro lado, todavia, tem-se, no campo da

sociedade internacional, um enaltecimento, há muito engessado, da autoridade

irredutível da soberania como traço inerente à personalidade estatal.

Tal situação tem provocado, especialmente a partir da segunda metade do

século passado, um esdrúxulo paradoxo político jurídico na construção de uma

identidade comunitária global, mais especificamente no tocante ao mínimo ético

imposto pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a ensejar sérias dúvidas

quanto à legitimidade jurídica da soberania estatal internacional, ainda defendida de

maneira paranoica, em face de um desimpedido, universal e amplo exercício dos

Direitos Humanos (MAZZUOLI, 2005).

O conceito de cidadania, ao longo dos últimos três séculos, tem formalmente

se desenvolvido sob os auspícios do Estado-Nação, como um dos elementos para o

exercício da democracia, tornando-se sua titularidade exclusivista, vinculada ao

âmbito isolado da alçada de uma fisiologia estatal. Enfraquecida, senão anulada,

sob o prisma de Ferrajoli, a genuína participação do cidadão como construtor e

titular da soberania, na medida em que o estado de direito transformou “os poderes 4 “In truth, the idea of citizenship is not at all necessarily linked to the idea of the nation-state. Indeed, the

nation-state as we understand it is a relatively modern phenomenon, considerably pre-dated by the idea of citizenship.”

públicos de poderes absolutos em poderes funcionais. [...] o modelo do estado de

direito, [...], equivale à negação da soberania.” (FERRAJOLI, 2007, Pg. 28).

A nova realidade comunitária global vem, de maneira inédita, desafiado essa

conceituação de cidadania engessada pelo nacionalismo estatal. A força da figura

do estado nação, omnipotente na gestão das sociedades até a metade do século

XX, tem sido afrontada pelo poder de atores econômicos, pela sociedade civil

organizada, dentre outros agentes igualmente importantes, a delinearem uma

governança mundial supraestatal. Delanty reconhece que “os direitos de cidadania

não mais refletem com precisão os direitos da nacionalidade, não obstante os

esforços dos estados em criar linhas de exclusão baseadas na nacionalidade.”5

(DELANTY, 2010, Pg. 123).

A sociedade civil parece buscar, de forma cada vez mais presente, seu devido

reconhecimento no almejo do exercício de sua cidadania, diante do inevitável

apequenamento da tradicional soberania praticada pela figura do estado nação.

Nesse espaço de mutação possível entrever a construção de uma comunidade

cosmopolita arrimada, dentre outros aspectos, numa cidadania global. Pertinente a

provocação de O’Byrne acerca de tal proposta: “tal modelo nos auxiliaria, espero eu,

na utilização dos recursos à disposição, reconsiderando nossas relações morais e

políticas para reaver a soberania que de nós foi tirada, nos reempoderando como

cidadãos de uma ‘comunidade de um só mundo’.”6 (O’BYRNE, 2005, Pg. 20).

4. COSMOPOLITISMO E SOLIDARIEDADE

Pertinente reconhecer Immanuel Kant como precursor da doutrina moderna

do cosmopolitismo. Já atento aos abusos perpetrados sob a justificativa de um

conceito westfaliano absolutista de soberania, Kant concebeu a importância, qual

jusfilósofo pioneiro que foi, de uma ordem jurídica supraestatal a reger tanto a

harmonia das relações entre os estados, enjeitada a guerra, na busca de sua Paz

5 “The rights of citizenship no longer perfectly mirror the rights of nationality despite the efforts of states to

create lines of exclusion based on nationality.” 6 “Such a model would, I hope, assist us in using the resources at hand, reconsidering our moral and political

relationships, and reclaiming the sovereignty which has been stolen from us, re-empowering us as citizens of a ‘one-world community’.”

Perpétua, como uma possibilidade juridicamente sustentável, quanto à proteção de

direitos universais do ser humano, independente de nacionalidade, em todo e

qualquer lugar do globo, corolário do sobreprincípio da hospitalidade.

As ideias de Kant, tributárias ao estoicismo grego (NUSSBAUM, 2006), se

demonstram, ainda, atuais, nelas se inspirando os estudiosos do cosmopolitismo

das gerações seguintes, até hoje.

Hodiernamente, tem-se o cosmopolitismo como uma robusta vertente teórica

no universo das ciências sociais, de viés, porém, interdisciplinar, a indicar a

construção de propostas conceituais tendo como pressuposto a universalidade da

natureza humana, para além das barreiras culturais de religião, etnia, e,

especialmente, de nacionalidade. Ainda que honrando antiquíssimos fundamentos

éticos, de origem eminentemente religiosa e filosófica, firmados na convicção de

uma ontológica unidade solidária da humanidade, o moderno cosmopolitismo se

arvora na importância de um cooperativismo social global, inócuas as tradicionais

barreiras culturais abstratas, diante da recente experiência da globalização.

Experiência essa de globalização que, de forma inédita, ao revelar a

incondicional inter-relação e necessária convivencialidade humana, impõe à

comunidade mundial um questionamento crítico sobre o tradicionalismo sectarista de

vinculação ao estado-nação como critério padrão de aferição e reconhecimento de

direitos.

Tal moderna proposta de cosmopolitismo convida a uma mudança

paradigmática expansiva, ajustando-se o foco do centralismo à cultura nacional-

estatal para uma maior abrangência de escopo global, a honrar a universalidade

humana, indiferente a conceitos culturalmente impostos de nação, credo, religião,

etc... Robert Fine assere: “sua função primordial é emancipar as ciências sociais dos

pressupostos vinculados à nação e construir novos conceitos analíticos, adequados

à era da globalização.”7 (FINE, 2007, Pg. 06).

7 “Its critical function is to emancipate social science from its bounded national presuppositions and construct

new analytical concepts appropriate to globalizing times.”

O atual desenvolvimento do cosmopolitismo, encabeçado por figuras, no

exterior, como, a título exemplificativo, Daniele Archibugi, Jürgen Habermas, John

Rawls, Martha Nussbaum, e, no Brasil, por, dentre outros ilustres catedráticos, Flávia

Piovesan, Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida, parece fulcrar-se numa

concepção democrática de cidadania global. Extremamente elucidativa a síntese de

Robert Fine: “o credo do novo cosmopolitismo é o de que o caráter universal da ideia

de direito, antes engolida pela auto-asserção de uma nação contra a outra, melhor

se conforma à identidade de cidadãos mundiais e não ao de cidadãos de um estado

em face aos de outro.”8 (FINE, 2007, Pg. 04).

O moderno movimento de cosmopolitismo não se apega a uma generalização

cultural impositiva, senão ao reconhecimento e à defesa de padrões éticos mínimos,

em respeito às peculiaridades inerentes à realidade local de cada coletividade social.

Um temperado respeito ao multiculturalismo inerente à rica diversidade da

experiência humana. Dialogando com David Holinger, Robert Fine explica:

“O que torna o moderno movimento de cosmopolitismo moderno, entretanto, não é tanto o fato de que ele defende uma comunidade humana universal acima de lealdades locais, mas, sobretudo, o fato de que tal movimento busca reconciliar o ideal de solidariedade humana universal, no nível da espécie, a solidariedades menores e mais específicas que a da espécie humana.”

9 (FINE, 2007, Pg. 15).

Stan van Hooft, inspirado no trabalho do germânico Axel Honneth, propõe

uma acepção de cosmopolitismo baseado num conceito de dignidade humana

composto por três aspectos de reconhecimento do ser humano, transcendendo uma

mera conceituação abstratamente metafísica de dignidade, de fundo ético-religioso,

muitas vezes de difícil transposição ao pragmatismo social. Algo como uma reação a

um conceito tradicional de cosmopolitismo lastreado, exclusivamente, no respeito às

liberdades individuais por intermédio do Direito.

8 “The credo of the new cosmopolitanism is that the universalistic character of the idea of right, once swamped

by the self-assertion of one nation against another, is best suited to the identity of world citizens and not to that of citizens of one state against another.” 9 “What makes modern cosmopolitanism modern, however, is not so much that it stands for a universal human

community over and above local loyalties, but rather that it seeks to reconcile the idea of universal species-wide human solidarity with particular solidarities that are smaller and more specific than the human species.”

A completude da dignidade da pessoa humana deveria, destarte, depender de

um reconhecimento comunitário tripartido: além do reconhecimento das liberdades

individuais, explicitando o aspecto dos direitos da pessoa humana, o

reconhecimento por satisfação psicológica, oriundo do afeto, amoroso ou carinhoso,

expresso pelo mais básico núcleo social (família e amigos), e o reconhecimento por

autoestima, resultante da valorização do indivíduo pela legitimação de seu contexto

social.

Percebe-se assim, um mais harmônico equilíbrio entre o escopo global,

universalista, e o escopo local, multiculturalista, do cosmopolitismo, considerados

aspectos da necessidade humana para além, unicamente, do respeito a uma

igualdade global juridicamente imposta. Disso resulta uma mais sofisticada

conceitualização de justiça, respeitosa ao senso de identidade e inclusão

comunitária, tanto local quanto global. A propósito:

“[…] por consequencia não se possui dignidade apenas na forma de individualidade, como uma qualidade de alguém como pessoa moralmente concebida, mas também na forma de socialidade e solidariedade. A dignidade de uma pessoa não é somente uma função de sua autoconfiança, autorespeito e autoestima, senão uma função do seu reconhecimento de acordo com o seu grupo formador de identidade. […] podemos entender o cosmopolitismo como o ponto de vista sob o qual todas as pessoas no mundo têm uma necessidade legitima e uma expectativa de que serão reconhecidas nos [...] níveis do amor, do direito e das conquistas sociais. Considera-se que os valores do amor, igualdade e sucesso são de uma maior relevância universal do que um discurso centrado puramente em direitos, porquanto eles são pré-requisitos para a solidariedade que marca comunidades ao redor do mundo.”

10 (VAN HOOFT, 2010, Pg. 46).

5. DIREITO INTERNACIONAL: COSMOPOLITISMO E DIREITOS HUMANOS

10

“it follows that dignity is not possessed only in the mode of individuality, as a quality of oneself as a moral person, but also in the mode of sociality and solidarity. An individual’s dignity is not only a function of her self-confidence, self-respect and self-esteem, but also a function of the recognition accorded to her identity-forming group. “[…] we can understand cosmopolitanism as the view that everyone in the world has a legitimate claim and expectation that they will be recognized as […] the levels of love, law and achievement. “It is arguable that the values of love, equality and achievement are of greater universal relevance than a discourse centered purely on rights in that they are the prerequisites for the solidarity that marks communities the world over.”

O Direito Internacional, inicialmente desenvolvido de forma exclusiva em torno

do estado como a figura principal de seu regime jurídico, especialmente desde o

início do Século XX, e mais notoriamente a partir de sua metade, vem se

expressando cada vez mais humanizado: o ser humano conquistando seu devido

reconhecimento como sujeito internacional de direitos, deixando para trás as vestes

de mero coadjuvante (CANÇADO TRINDADE, 2006). A par de uma mui tardia

correção da insuportável contradição pragmático-teórica entre o menoscabado

objetivo humano e o enaltecido objeto Estado, na prática, tal transição paradigmática

no cerne do Direito Internacional, ainda imatura em seu auspicioso curso, foi

provocada por movimentos e almejos sociais certamente despertados pela moderna

realidade globalizada. Jurgen Habermas: “[...] a globalização põe em questão os

pressupostos essenciais do Direito Internacional clássico: a soberania dos Estados e

as nítidas distinções entre política interior e exterior.”11 (HABERMAS apud ALONSO,

2002, Pgs. 181 e 182).

Nesse movimento de inovação, constata-se o clamor ético global pela

proteção internacional da pessoa humana seu principal catalisador. No seio do

Direito Internacional: o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito

Internacional Humanitário e o Direito dos Refugiados.

Premente, assim, uma profunda crítica à estrutura das relações

internacionais, à soberania absoluta reclamada pelo Estado-Nação e ao instituto da

nacionalidade como condição ao exercício da cidadania e como, consequentemente,

artifício discriminatório.

Passa-se a conceber um ordenamento jurídico universal para a proteção de

um núcleo duro de direitos imprescindíveis para a experiência da vida humana,

respeitado o seu mais elementar atributo, a dignidade. Independentemente de

realidades locais, o Direito Internacional como protetor e promotor da dignidade da

pessoa humana: aí o seu viés claramente cosmopolita. Nesse sentido, Robert Fine:

“O cosmopolitismo busca ampliar o alcance das leis internacionais para além das

11

“[...] la globalización pone em cuestión los presupuestos esenciales del Derecho internacional clásico: la soberania de los Estados y las nítidas distinciones entre política interior y exterior.”

questões de soberania de estado. Sua preocupação é com os direitos e

responsabilidades dos cidadãos do mundo.”12 (FINE, 2007, Pg. 02)

Célia Zisman aponta a importância da proteção global da dignidade da

pessoa humana como força motriz de uma legitimidade jurídica internacional

superior às alçadas estatais:

“A violação de qualquer direito essencial para a dignidade da pessoa humana fere toda a Humanidade, independentemente de tempo e espaço.(...) não se pode admitir que a proteção dos direitos humanos dependa do caráter constitucional de cada Estado ...” (ZISMAN, 2011, Pg. 173).

Então, as soberanias que, à partir de 1945, iniciam a compilação de um corpo

jurídico especificamente para a proteção internacional da pessoa humana, passam,

elas próprias, a ensejar a dissolução da recrudecida soberania nacional externa em

prol do coerente funcionamento desse novel ordenamento. Ordenamento fulcrado na

ideal proteção do mínimo humano de todo e qualquer indivíduo, despido dos trajes

de nacionalidade, de religião, de idioma, de etnia. Proteção essa necessária para,

respeitada a dignidade humana, exatamente permitir a devida e harmônica

expressão de tais especificidades sócio-culturais em qualquer que seja o cenário

comunitário.

O surgimento e consolidação do Direito Internacional, ainda que ultimamente

distorcido pelo superdimensionamento da soberania externa, por meio dos princípios

da não intervenção e da autodeterminação, foi irretorquivelmente fundado e

alimentado por uma força aglutinadora da humanidade, vencedora das restrições

culturais ou nacionais, já metajuridicamente embasado na dignidade como o aspecto

comum a qualquer ser humano. Jacob Dolinger assevera que “[...] a ideia e a prática

da dignidade humana sempre estiveram presentes, acompanhando a vida dos povos

dos quais herdamos os valores éticos e jurídicos.” (DOLINGER, 2011, Pg. 455). A

necessidade de se estabelecer, mundialmente, regras e normas na busca por paz e

segurança planetárias deve ser considerada sob esse viés humano, e não,

eminentemente, sob o jugo do exclusivo interesse nacional de estado.

12

“Cosmopolitanism seeks to extend the reach of international law beyond issues of state sovereignty. It concerns itself with the rights and responsibilities of world citizens.”

Ainda que atribuída, mais diretamente, aos almejos atendidos pela Paz de

Westfália, é possível dizer que a estrutura moderna de estado nação é fruto de um

paulatino desenrolar histórico-político-social, especialmente incentivado pela

interação entre comunidades, a ordem mundial tordesilhana, talvez, a primeira de

tais interações geopolíticas em escala mundial. Desenrolar de uma aspiração por

identidade coletiva a culminar, atualmente, num instituto de gestão já tão enraizado

na cultura humana, já tão hiperdimensionado, que não se imagina, em verdade

sequer se admite a possibilidade de, um agregado humano minimamente civilizado e

organizado sem a articulação de um aparato estatal: a ideia de anarquia, diminuída

à noção de desordem e caos, é tida como uma perversão teórica, blasfêmia à

endeusada figura do Estado. Contudo, não obstante seu grau de sofisticação e de

omnipresença, gritantes são as mazelas nas quais se encontra grande parte da

humanidade, mazelas essas, em não pouca monta, promovidas por desmandos da

própria gestão estatal.

Resta claro ter havido uma inversão entre fins e meios: a razão de estado

passou a ditar a ordem do dia. O fato de quase a totalidade do espectro de proteção

aos direitos humanos no Direito Internacional Público estabelecer liberdades

públicas e direitos subjetivos em face do Estado é um sintoma claro de tal disfunção.

Pertinente, quanto ao, ainda olvidado, caráter instrumental do ente estatal, a

assertividade de Aderson de Menezes: “de feito o Estado, como meio ou instrumento

de que se vale o homem para efetivar certos fins, não está nem fica acima dos

valores da pessoa humana.” (MENEZES, 1998, Pg. 62).

Apropriado concluir que a via de proteção da dignidade da pessoa humana é

a garantia do direito de se exercer direitos, conforme pioneiramente colocado por

Hanna Arendt. Direito de se fazer reconhecido em um corpo comunitário, ou seja, de

se manifestar e usufruir de uma identidade no contexto da coletividade humana e de,

concorrentemente, ser julgado pelos seus atos e opiniões, e não excluído por

qualquer rótulo culturalmente imposto (BENHABIB, 2004). A partir daí, a

estruturação de um ambiente seguro, respeitoso e aberto à variedade das

expressões sociais, para o genuíno exercício da cidadania, ainda que no contexto de

um estado-nação, mas sem, entretanto, exclusivismos étnicos nacionais: “igualdade

cívica não é a mesma coisa que homogeneidade, senão o respeito pela diferença.”13

(BENHABIB, 2004, Pg. 62).

Essa a grandiosa missão empreendida pelo Direito Internacional, em suas

três vertentes de proteção à pessoa humana, a saber, o Direito Internacional dos

Direitos Humanos, o Direito Internacional Humanitário e o Direito dos Refugiados, na

busca por uma cidadania cosmopolita (CANÇADO TRINDADE et al., 1996).

Idealmente, um papel amainante da exasperação absolutista das soberanias

nacionais, a propor um reconhecimento do estado como uma expressão da

manifestação comunitária e, consequentemente, da nacionalidade como um traço

cultural a legitimar a necessidade por identidade sem, porém, condicionar ou, de

alguma forma, vulnerar a fluência do exercício universal de cidadania. Este o

corolário do sobreprincípio da hospitalidade a, dentre outros, nortear tal corpo

jurídico internacional.

Seyla Benhabib assere, nesse particular, a modernidade do Direito

Internacional como protetor de uma dignidade cosmopolita: “O direito a ter direitos,

hoje em dia, significa o reconhecimento do status universal da personalidade

individual de todo e cada ser humano, independentemente da nacionalidade de sua

cidadania.”14 (BENHABIB, 2004, Pg. 68).

Castanheira e Giannella também sublinham essa desnacionalização no

reconhecimento desse espectro jurídico supranacional:

“Direitos assegurados à pessoa humana independem da nacionalidade dos indivíduos e se baseiam, exclusivamente, na sua posição de seres humanos. Os indivíduos, em relação a tais documentos e às instituições, órgãos ou entidades encarregadas de protegê-los, não aparecem através de seu Estado, mas sim ‘desnacionalizados’.” (CASTANHEIRA; GIANNELLA, 2000, Pg. 170).

6. CONCLUSÃO

A ecumenicidade sempre foi um traço marcante da, e naturalmente intrínseco

à, comunidade humana, e os históricos disparates de sectarismo, a culminarem em

13

“Civic equality is not sameness, but entails respect for difference.” 14

“The right to have rights today means the recognition of the universal status of personhood of each and every human being independently of their national citizenship.”

notórios episódios de barbárie, nada mais que confirmam a regra: a história do

caminho trilhado pelas três vertentes da proteção internacional dos direitos da

pessoa humana é constantemente marcada pela erupção normativa internacional

como um alvorecer na escuridão da selvageria, qual reação de um sentimento

universal e solidário de identidade em face do vilipêndio à dignidade humana.

Nos âmbitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, do Direito

Internacional Humanitário, do Direito Internacional dos Refugiados, os exemplos de

reação normativa à incivilidade se amontoam, servindo, frequentemente, como

divisores de águas em diversos aspectos da experiência social (e.g.): Declaração

Universal dos Direitos Humanos, o Direito de Genebra (na esfera do DIH), o Estatuto

de Roma, Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados.

Em que pese a extrema importância do acervo de Direito Internacional para a

proteção dos Direitos Humanos, especialmente após seu acentuado exalçamento no

decorrer do século XX, tem-se como importante reconhecer que subjacente a tal

produção normativa há todo um liame axiológico nutrido por culturas e lições ético-

filosóficas de séculos e milênios atrás, de inspiração claramente cosmopolita, não

esteadas na universalidade e irredutibilidade da dignidade do ser humano, como

valor norteador, mas tributárias ao valor da manifestação político-social de

identidade comunitária por intermédio da cidadania. Oportuno destacar que

“Os antecedentes desta concepção podem-se encontrar no mundo antigo,

onde diversos princípios fundamentavam sistemas de valores humanos,

expressos pelo humanismo judaico-cristão, greco-romano, as tradições

hindus, chinesas e islâmicas, que tiveram uma visão metafísica de mundo.

(VARELA, 2009, Pg. 44).

A principal questão aqui levantada é a de que o instituto da nacionalidade se

desenvolveu como um subproduto da soberania estatal concebida, a partir da Paz

de Westfalia, de forma distorcida e hiperbólica, qual um paradoxo, nos dois últimos

séculos, à meta original da figura do Estado-Nação de funcionar a serviço do povo e

não como causa promotora de iniqüidades. Em suma, a disseminação da identidade

nacional, veio a estiolar o senso de identidade de cidadania, aquela impondo-se e

limitando o exercício deste.

Tal distorção tem ensejado na prática, em situações inúmeras, a frustração de

diversos direitos universalmente consagrados, sendo a nacionalidade o critério

discriminatório.

Considerando, hipoteticamente, o fim da era de absolutismo do “estado-

nação” como inevitável ao paulatino desenvolver da história social humana, qual

resultado se prever de tal metamorfose? Por um lado, há quem aposte na

prevalência de uma ordem de dominação norteada pelo poderio do capital ou do

aparato bélico. Por outro lado, uma realidade mundial cosmopolita pode ser algo

viável. Evitando-se exercícios de clarividência, tem-se possível, entretanto, conciliar

o movimento de cosmopolitismo a um novo conceito de nacionalidade, não afeito a

uma submissão cega ao tradicional, e cada vez mais anacrônico, absolutismo da

soberania de estado nas relações internacionais, senão consoante o exercício pleno

de uma cidadania compatível à humanidade e tributária à dignidade da pessoa

humana e à hospitalidade, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, quiçá,

como um de seus estandartes.

O exercício de uma cidadania ativa, construída por um reconhecimento

comunitário global, numa identidade social mundial, não, necessariamente,

desconsiderando o laço cultural da nacionalidade como um de seus possíveis

componentes, mas, para tanto, sem depender do entremeio do Estado-Nação para a

sua legitimação e reconhecimento. O’Byrne leciona que

“[…] uma identificação como cidadão mundial não precisa, como nunca precisou, ser colocada em oposição à identificação nacional. [...] Diversos discursos nos demonstram, por exemplo, como a ‘cidadania mundial’ qual uma identidade por ser construída primariamente por intermédio da linguagem do estado-nação, e como a identidade cultural pode se desenvolver como uma estratégia para ação política.”

15 (O’BYRNE,

2005, Pg. 18).

Na prevalência de uma identidade política comunitária ativa, não sujeita à

escravizante passividade aos desígnios do ente administrativo estatal, alimentada,

15

“[…] an identification as a world citizen need not, as has ever been the case, be set in opposition to a national identification. […] Reading the discourse of individuals shows us, for example, how ‘world citizenship’ as an identity can itself be constructed primarily through the language of the nation-state, how national citizenship as an identity can be constructed through the language of the local, and how cultural identity can be developed as a strategy for political action.”

muitas vezes, pelo odioso comodismo estribado num falso senso de suficiência

participativa por intermédio do voto, as conexões humanas, por intermédio do

genuíno exercício de cidadania, se perfazem autênticas e diretas. Com isso torna-se

possível e corrente reconhecer a humanidade do próximo, não a menosprezando

sob rótulos institucionalizados de raça, credo, religião, língua ou nacionalidade,

senão acolhendo-os como diferenças intrínsecas à riqueza cultural, para, assim,

construir em grupo ao invés de discriminar e destruir.

Desinflando a empáfia agregada ao longo de séculos de uma suposta defesa

absoluta da soberania internacional, ao custo de guerras e morticínio, o papel do

Estado-Nação, consoante o cosmopolitismo da cidadania globalizada, seria, em

síntese, o de constituir-se como verdadeiro veículo ao exercício da soberania

popular, de baixo para cima, para dialogar com J. Brecher, J. B. Childs, e J. Cutler,

privilegiando o ser humano no contexto da comunidade global. Ex vi, o apregoado

no art. 21, §3º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: “A vontade

do povo será a base da autoridade do governo; [...]”.

Darren O’Byrne:

“Logo, pelo intermédio de entidades supra-nacionais, restaria patente que os estados-nação, se pragmaticamente submetidos a tais condições de globalização, necessitariam deixar de ser os sempre velhos defensores de limitados interesses nacionais, para buscarem, ao invés disso, ser representantes dos seus cidadãos numa arena política global.”

16 (O’BYRNE,

2005, Pg. 21).

16

“Thus, through super-national bodies, it would appear that nation-states, if they are to act at all pragmatically under such globalized conditions, need to move beyond being the tired old defenders of limited national interests, and look instead to being representatives of their citizens in a global political arena.”

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