corte no brasil e abolição do tráfico negreiro
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CORTE NO BRASIL E ABOLIÇÃO DO TRÁFICO NEGREIRO
Mariana Armond Dias PaesGraduanda em Direito pela UFMG.
Resumo
Por meio de revisão bibliográfica, pretende-se identificar as relações existentes entre a
transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e os primeiros passos em direção a uma
abolição gradual do tráfico. As negociações entre Portugal e Inglaterra, que precederam a vinda da
corte joanina para o Brasil, desembocaram na assinatura de uma convenção secreta em 1807 e no
Tratado de Amizade e Aliança de 1810. Contudo, os referidos documentos não produziram efeitos
diretos na sociedade brasileira, o que sinaliza para o fato de que a inserção da norma internacional
no ordenamento jurídico pátrio se defrontou com agentes sociais complicadores que devem ser
levados em consideração a fim de se compreender as mudanças ocorridas no estatuto jurídico do
tráfico negreiro.
Palavras-chave: Napoleão, Inglaterra, Corte Portuguesa, norma internacional, tráfico negreiro.
Abstract
By a literature review, the present work intends to identify relations between the transfer of
the Portuguese royal family to Rio de Janeiro and the first measures taken to achieve a gradual
abolition of the slave trade. The negotiations between Portugal and England, which preceded the
travel of the Portuguese royal family to Brazil, led to the signature of a secret convention in 1807
and of a Friendship and Alliance Treat in 1810. However, these documents did not produced direct
effects on the Brazilian society, what demonstrates that the insertion of the international law on the
national legal system faced complicating social agents which must be taken in consideration in
order to understand the changes occurred at the slave trade regulation.
Keywords: Napoleon, England, Portugal, international law, slave trade.
Paradoxalmente, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão
africana colonial, e não ao contrário.
(NOVAIS, 1986: 105).
Sumário:
1. Introdução; 2. A transferência da corte portuguesa para o Brasil; 3. Os tratados de 1810; 3.1. A
situação de dependência econômica de Portugal em relação à Grã-Bretanha; 3.2. O Tratado de
Amizade e Aliança de 1810; 4. Eficácia social dos compromissos firmados entre Brasil e Inglaterra;
4.1. Os agentes sociais e a inserção da norma internacional no ordenamento jurídico; 4.2.
Desenrolar da questão da abolição do tráfico de africanos para o Brasil; 5. Considerações Finais; 6.
Referências bibliográficas; 6.1. Fontes primárias publicadas; 6.2. Fontes secundárias.
1. Introdução
Este trabalho insere-se no âmbito do projeto de Iniciação Científica “Da
transferência à transformação: o direito brasileiro entre cientificidade, positividade e realidade no
período da corte portuguesa no Brasil (1808-1821)“, financiado pela FAPEMIG e sob orientação da
Prof. Dra. Mônica Sette Lopes.
2. A Transferência da Corte portuguesa para o Brasil 1
Após derrotar as marinhas espanhola e francesa na batalha de Trafalgar, Napoleão
Bonaparte visava acabar com o poderio inglês. A fim de enfraquecer economicamente a Grã-
Bretanha, assinou, em 1806, o Decreto de Berlim, que implementava o Bloqueio Continental: as
nações européias foram proibidas de efetuar qualquer transação econômica ou comercial com a
Inglaterra.
1 Os relatos sobre a conjuntura européia e a transferência da corte portuguesa para o Brasil foram baseados em
MANCHESTER, A. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro; WILCKEN, P. Império à deriva; e
SCHULTZ, K. Versalhes tropical.
Portugal, até então neutro, começou a ser pressionado por ambos os lados que lutavam para
obter o controle dos portos. Lisboa, um porto estratégico, era visto por Napoleão como a única
brecha do Sistema Continental. Com a assinatura do Tratado de Tilsit, que previa o fim da dinastia
Bragança, Portugal se viu fortemente pressionado pelos franceses para aderir ao bloqueio. Um
ultimato foi dado ao príncipe regente Dom João, que deveria se decidir até 1º de setembro.
O Conselho de Estado se reuniu diversas vezes e decidiu que a melhor medida a se tomar
era a transladação da corte portuguesa para o Brasil.2 Os preparativos começaram a ser feitos.
Contudo, tal solução era vista por Dom João como ultima ratio: a fuga só se daria em caso de
iminente invasão pelos franceses.
Entrementes, o representante britânico do Ministério das Relações Exteriores em Portugal,
Lord Strangford, se dirigiu a Mafra a fim de convencer o regente a embarcar para o Brasil com o
auxílio britânico. A Inglaterra via a transferência da corte como uma oportunidade de recuperar, na
América, os mercados consumidores que havia perdido na Europa. Dom João não deu uma posição
definitiva ao emissário, pois tinha consciência que uma fuga com o auxílio britânico colocaria a
coroa portuguesa em situação de dependência em relação aos ingleses.
A pressão aumentou a passos largos: os embaixadores franceses e espanhóis romperam
relações diplomáticas com Portugal e a esquadra britânica promoveu um bloqueio naval a Lisboa.
Pelo Tratado de Fontainebleu, Espanha e França acordaram uma invasão e divisão do
território português. A despeito das tentativas portuguesas de aplacar o ânimo de Napoleão, as
tropas do General Junot invadiram o país e rumaram em direção à capital.
2 De acordo com MANCHESTER, A. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a despeito dos
acontecimentos turbulentos de 24 a 29 de novembro de 1807, a transferência da corte não foi uma decisão precipitada e
sem qualquer planejamento. Foi uma solução inevitável ante a invasão das tropas napoleônicas. Os pareceres do
Conselho de Estado demonstram que foi uma decisão previamente discutida conscientemente tomada. No mesmo
sentido, ver GRAHAM, R. “Comentário” e SCHULTZ, K. Versalhes tropical.
Em vista do avanço do exército francês, a corte portuguesa decidiu embarcar. Antes de
zarpar, Dom João se reuniu com Strangford a bordo da nau Príncipe Real com o intuito de obter a
confirmação do auxílio britânico para a fuga.
Na manhã de 29 de novembro de 1808, as embarcações que transportavam a família real,
os burocratas lisboetas e parte do aparato estatal português rumaram à colônia deixando para trás
uma metrópole desolada e prestes a ser ocupada pelas tropas napoleônicas.
3. Os tratados de 1810
4. A situação de dependência econômica de Portugal em relação à Grã-Bretanha
Em razão dos seus precoces processos de unificação nacional e centralização
administrativa, Portugal e Espanha se consolidaram como potências hegemônicas durante os
séculos XI e meados do século XII. Tal situação possibilitou a conquista de impérios no ultramar.
Contudo, a partir da segunda metade do século XII, esta preponderância entrou em declínio e novas
potências emergiram no continente europeu: França, Inglaterra e, em menor medida, os Países
Baixos. A rivalidade entre as novas potências hegemônicas possibilitou um sistema de alianças que
ajudou na preservação dos países ibéricos e suas colônias.3
Nesse contexto, Portugal procurou, sempre que possível, manter uma posição de
neutralidade ante as disputas de poder européias. Dentro do sistema de alianças, consolidou relações
de apoio com a Inglaterra, com vistas a preservar suas possessões coloniais. Em prol do auxílio
político-militar britânico, várias concessões comerciais foram feitas, dentre as quais se destacam os
Tratados de Methuen, firmados em 1703.4
Tais tratados colocaram os lusitanos em relação de semi-dependência com os britânicos, o
que, aliado à conjuntura da Guerra Peninsular, permitiu que a Inglaterra obtivesse uma concessão
3 NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 17-56.
4 NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 17-56.
sobre a abolição. Em outubro de 1807, foi assinada uma convenção secreta, estabelecendo que, em
caso de transferência da corte portuguesa para o Brasil, a proteção britânica seria recompensada.
5. O Tratado de Amizade e Aliança de 1810
Conforme previamente acordado, a Inglaterra prestou auxílio à coroa portuguesa na
ocasião de sua vinda para o Brasil e, no dia 19 de fevereiro de 1810, foi assinado, no Rio de Janeiro,
um Tratado de Amizade e Aliança entre os dois países.
O artigo X do referido tratado enunciava:
Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal, estando plenamente convencido da Injustiça, e
má Política do Commercio de Escravos, e da grande desvantagem que nasce da necessidade de
introduzir, e continuamente renovar huma Estranha, e Facticia população para entreter o Trabalho
e Industria nos Seus Domínios do Sul da América, tem resolvido de cooperar com Sua Magestade
Britannica na Causa da Humanidade e Justiça, adoptando os mais efficazes meios para conseguir
em toda a extensão dos Seus Domínios huma gradual abolição do Commercio de Escravos. E
movido por este Principio Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal Se obriga a que aos
Seus Vassallos não será permittido continuar o Commercio de Escravos em outra alguma parte da
Costa da África, que não pertença actualmente aos Domínios de Sua Alteza Real, nos quaes este
Commercio foi já discontinuado e abandonado pela Potencias e Estados da Europa, que
antigamente ali commerceavão; reservando comtudo para os Seus Proprios Vassallos o Direito de
comprar e negocear em Escravos nos Domínios Africanos da Corôa de Portugal. Deve porém ficar
distinctamente entendido, que as Estipulações do presente Artigo não serão consideradas como
invalidando, ou affectando de modo algum os Direito da Corôa de Portugal aos Territorios de
Cabinda e Molembo, os quaes Direitos forão em outro tempo disputados pelo Governo de França,
nem como limitando ou restringindo o Commercio de Ajuda, e outros Portos da África (situados
sobre a Costa commummente chamada na Lingua Portugueza a Costa de Mina), e que pertencem,
ou a que tem pertenções a Corôa de Portugal. Estando Sua Alteza Real o Príncipe Regente de
Portugal resolvido a não resignar, nem deixar perder as Suas justas, e legitimas Pertenções aos
mesmos, nem os direitos de Seus Vassallos de negocear com estes Lugares, exactamente pela
mesma maneira que elles até aqui o praticavão.5
5 Texto extraído de PEREIRA PINTO, A. Apontamentos para o direito internacional ou collecção completa dos
tratados celebrados pelo Brasil com differentes nações estrangeiras: acompanhada de uma noticia histórica, e
documentada sobre as convenções mais importantes, p. 41-42.
Apesar do compromisso assumido no sentido de promover uma abolição gradual do tráfico
negreiro, medidas pouco efetivas foram implementadas nesse sentido.6
As pressões britânicas em prol da abolição efetiva do comércio de escravos continuaram.
Durante o Congresso de Viena de 1815, Portugal assinou uma Convenção que extinguiu o tráfico
negreiro ao norte do Equador mediante indenização financeira.7 Em 28 de julho de 1817, foi
assinada entre Portugal e Grã-Bretanha uma Convenção Adicional ao acordo de 1815, que precisava
os locais em que o tráfico estaria legalizado.8
6. Eficácia social dos compromissos firmados entre Brasil e Inglaterra
7. Agentes sociais e inserção da norma internacional no ordenamento jurídico
A despeito da forte pressão diplomática inglesa, a legislação criada para regulamentar os
tratados assinados refletia a relutância do governo em limitar o tráfico e, muitas vezes, era mais
benéfica aos traficantes do que a legislação anterior.9 As normas internacionais não tinham qualquer
eficácia devido às fortes pressões sociais.10 A grande maioria da população brasileira se beneficiava
com o tráfico de africanos e não via com bons olhos a sua abolição. Dos grandes proprietários aos
professores que ensinavam português aos cativos, muitos apoiavam o comércio ilegal e estavam
direta ou indiretamente envolvidos com ele.
6 BETHELL, L. A abolição do comércio brasileiro de escravos, p. 28-30.
7 PEREIRA PINTO, A. Apontamentos para o direito internacional ou collecção completa dos tratados celebrados pelo
Brasil com differentes nações estrangeiras: acompanhada de uma noticia histórica, e documentada sobre as
convenções mais importantes, p. 128-136.
8 PEREIRA PINTO, A. Apontamentos para o direito internacional ou collecção completa dos tratados celebrados pelo
Brasil com differentes nações estrangeiras: acompanhada de uma noticia histórica, e documentada sobre as
convenções mais importantes, p. 155-193.
9 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 66-89.
10 NELSON, um intelectual britânico que residia no Brasil, afirmou que os tratados internacionais firmados com a
Inglaterra eram uma ficção diplomática. NELSON, T. “Remarks on the slavery and slave trade of the Brazils” apud
CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 118.
Não é de surpreender, então, que o tráfico negreiro ilegal em larga escala tenha começado tão
rapidamente quanto a secagem da tinta nas leis e tratados que planejavam limitá-lo. Logo após a
ratificação do tratado de 1810, os ingleses já estavam acusando os portugueses de uso ilegal de
navios construídos em países estrangeiros e de carregar escravos na Costa do Ouro, região fora do
controle português e assim legalmente fora dos limites para seus traficantes. Além disso, após os
acordos de 1815 e 1817 os traficantes portugueses e brasileiros continuaram a carregar africanos
em ambos os lados do Equador, suas atividades sendo totalmente sancionadas ao sul daquela linha
por um governo protecionista no Rio de Janeiro, e mais que toleradas ao norte por esse mesmo
governo, apesar de sua ilegalidade.11
Diversas eram as razões para a baixa eficácia social da norma internacional. Ressaltemos
as mais significativas.
Durante a expansão ultramarina, a Europa vivia um intenso processo de acumulação
primitiva de capital. Todo o processo colonizador foi estruturado sobre a base de um capitalismo
mercantil. Nesse contexto, o tráfico negreiro era mais um setor do comércio colonial que
possibilitava a acumulação capitalista metropolitana.12
Mas na “preferência” pelo africano revela-se, cremos, mais uma vez, a engrenagem do sistema
mercantilista de colonização; esta se processa, repitamo-lo tantas vezes quantas necessário, num
sistema de relações tendentes a promover a acumulação primitiva na metrópole; ora, o tráfico
negreiro, isto é, o abastecimento das colônias com escravos, abria um novo e importante setor do
comércio colonial, enquanto o apresamento dos indígenas era um negócio interno da colônia.
Assim, os ganhos comerciais resultantes da preação dos aborígenes mantinham-se na colônia, com
os colonos empenhados nesse “gênero de vida”; a acumulação gerada no comércio de africanos,
entretanto, fluía para a metrópole, realizavam-se os mercadores metropolitanos, engajados no
abastecimento dessa “mercadoria”.13
No Brasil, a população escrava já existente estava presente em todos os ramos da
economia. Entretanto, sua constante manutenção pelo tráfico era essencial devido às altas taxas de
mortalidade e baixos índices de reprodução. O baixo crescimento da população escrava se deu em
razão de vários fatores: maior número de homens do que de mulheres; o mau tratamento dispensado
às crianças, devido ao seu baixo valor de mercado; condições de vida insalubres, que provocavam
11 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 73.
12 NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 92-106.
13 NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 105.
um elevado número de mortes; fugas; formas violentas de resistência que levavam à morte um
grande número de cativos.14
Além da função mantenedora, o tráfico desempenhava importante papel em períodos de
expansão econômica e aumento da demanda por mão-de-obra, o que ocorreu no primeiro quartel do
século XIX. Nesse período, as exportações brasileiras ganhavam novo fôlego em razão do declínio
da produção ocorrido nas ilhas caribenhas e da modernização na zona cafeeira resultante da
transferência da corte para o Brasil.15
BETHELL afirma, ainda, que as relações raciais, em especial a concepção dos negros
como seres inferiores e que alcançariam a salvação pela escravidão, tiveram papel fundamental na
preservação do tráfico.16
Outra razão apontada por Conrad para a continuação e o aumento do comércio negreiro
após dos acordos internacionais firmados foi o medo de um fim eminente do tráfico. A ilegalidade
contribuiu para a piora das condições de vida nos tumbeiros17. Com medo de serem descobertos, os
traficantes escondiam os cativos e aumentavam a carga dos navios para além de sua capacidade.18
O medo da extinção do tráfico também levou a um aumento das importações. Apesar da
alta dos preços decorrente da ilegalidade, houve um incremento na demanda: os altos preços do café
permitiram que os fazendeiros pudessem arcar com os custos mais altos da importação de
escravos.19
14 BETHELL, L. A abolição do comércio brasileiro de escravos, p. 24-25 e CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 15-33.
15 BETHELL, L. A abolição do comércio brasileiro de escravos, p. 25 e CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 66-89.
16 BETHELL, L. A abolição do comércio brasileiro de escravos, p. 26-27.
17 Tumbeiro, nome derivado de tumba (sepultura), era a embarcação construída para transportar escravos da África para
o Brasil. Este nome foi dado em razão do grande número de mortes que ocorria nestes navios. Ver MOURA, C.
Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 404.
18 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 66-89.
19 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 66-89.
É importante frisar que a ajuda das autoridades foi essencial para a continuidade do tráfico
negreiro. Os altos funcionários públicos estavam, muitas vezes, envolvidos diretamente no
comércio de escravos. Os que tentavam impedir as práticas ilegais eram, na maioria das vezes,
destituídos de seus cargos.20
Os traficantes de escravos gozavam de grande prestígio social. Eram vistos pela sociedade
como prestadores de um serviço essencial ao Brasil e à sua economia agrícola.21
COSTA afirma que a dificuldade em abolir o comércio de escravos se deu, principalmente,
em razão do ideal presente na população brasileira de que a única alternativa para o problema da
mão-de-obra era a escravidão. As pressões internacionais suscitaram uma enorme oposição social.
Eram vistas como uma atitude de má-fé do governo inglês: a Inglaterra, que também se beneficiava
com o tráfico, queria a sua abolição com o intuito de impedir o desenvolvimento das economias
americanas.22
Ingleses e americanos também estavam envolvidos no tráfico ilegal de africanos e
possuíam fortes interesses contra sua abolição. Antes de 1807, ano em que a Inglaterra lançou sua
cruzada contra o tráfico de escravos, o comércio triangular se dava da seguinte maneira: os produtos
manufaturados ingleses (coast goods) eram trocados por escravos na costa da África; os cativos
eram levados até as colônias caribenhas, onde eram trocados por produtos tropicais que abasteciam
a Grã-Bretanha. No caso do Brasil, o comércio ocorria de maneira diferente, pois os produtos
tropicais aqui produzidos eram trocados por escravos no continente africano. Após 1807, os
comerciantes ingleses se viram impedidos de negociar diretamente com a costa africana. Os coast
good eram enviados, então, para o Brasil e daqui eram levados, em embarcações norte-americanas,
à África, onde eram adquiridos escravos.23
20 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 119-138.
21 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 119-138 e RODRIGUES, J. O infame comércio, p. 127-142.
22 COSTA, E. V. da. A abolição, p. 23-31.
23 CONRAD, R. E. Tumbeiros, p. 139-170.
8. Desenrolar da questão da abolição do tráfico de africanos para o Brasil
GRADEN afirma que foram as pressões internas, e não as externas, que tiveram papel
decisivo na abolição do tráfico negrereiro.24
A partir da primeira metade do século XIX, especialmente após a Revolta dos Malês de
183525, a segurança pública passou a ser ameaçada por rebeliões escravas. A resistência negra
ameaçava a coesão social tão prezada pela elite branca.26
Além das revoltas escravas, a população livre passou a temer as epidemias devastadoras
que assolaram a colônia neste período. A ocorrência de surtos de doenças em diversas cidades se
deu em razão das más condições de higiene dos tumbeiros e dos armazéns onde os escravos eram
guardados.27
A resistência negra e a proliferação de doenças contagiosas são algumas das causas
internas que levaram à extinção do tráfico negreiro.28
9. Considerações finais
Sem dúvida, o tratado de 1810 não produziu efeitos diretos na sociedade brasileira, o que
sinaliza para o fato de que a inserção da norma internacional no ordenamento jurídico pátrio se
24 GRADEN, D. T. “Uma lei… até de segurança pública”. Nesse sentido, RODRIGUES, J. O infame comércio.
25 Sobre a Revolta dos Malês, ver REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835 . A
Revolta dos Malês ocorreu na Bahia em 1835. Nessa época, a região era profundamente marcada por desigualdades
étnico-raciais e passava por uma crise econômica e política. Reis afirma que, nesse contexto, o levante tinha um caráter
eminentemente político, uma vez que objetivava provocar mudanças sociais favoráveis aos africanos. O movimento foi
caracterizado por forte identidade étnica entre os participantes: sendo a grande maioria da nação nagô e professante da
religião islâmica. Contudo, a revolta fracassou, devido a denúncias e à união dos brancos em torno do interesse na
manutenção da ordem escravocrata. Após a represália dos rebeldes, houve um aumento no controle dos escravos e o
objetivo de intimidar rebeldes em potencial foi atingido.
26 GRADEN, D. T. “Uma lei… até de segurança pública”.
27 GRADEN, D. T. “Uma lei… até de segurança pública”.
28 GRADEN, D. T. “Uma lei… até de segurança pública”.
defrontou com agentes sociais complicadores que devem ser levados em consideração a fim de
compreender as mudanças ocorridas no estatuto jurídico do tráfico negreiro. A norma internacional
passou a ter eficácia social somente após intensas mudanças internas.
Tal fato demonstra a baixa coercibilidade da norma internacional, o que se evidencia,
inclusive, atualmente. O tráfico só é abolido quando mudanças no âmbito interno ocorrem. A norma
internacional passa a ter eficácia e aplicabilidade quando a conjuntura interna lhe é favorável. Ela
por si só não é capaz de promover mudanças sociais profundas.
Verifica-se, ainda assim, que a transferência da Corte, com auxílio britânico, desencadeou
a assinatura de um tratado que, a despeito de sua eficácia restrita, seria o primeiro compromisso
português de abolir o tráfico negreiro. Vários outros documentos foram firmados durante a estadia
de D. João VI no Brasil e a questão da abolição estendeu-se ao período imperial. No entanto, as
alterações jurídicas realizadas no período joanino e especialmente o tratado de 1810, foram de
extrema importância, pois marcaram as posturas político-jurídicas que Portugal e Inglaterra
assumiriam ao longo das décadas vindouras no que concernia ao tráfico de escravos.
10.Referências bibliográficas
11. Fontes primárias publicadas
PEREIRA PINTO, Antônio. Apontamentos para o direito internacional ou collecção completa dos
tratados celebrados pelo Brasil com differentes nações estrangeiras: acompanhada de uma
noticia histórica, e documentada sobre as convenções mais importantes. Rio de Janeiro: F.
L. Pinto & C.a – Livreiros Editores, 1864. 511p. Tomo I.
12. Fontes secundárias
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questão do comércio de escravos, 1807-1869. Tradução de Luís A. P. Souto Maior.
Brasília: Senado Federal, 2002. 478p. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira).
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GRADEN, Dale T. “Uma lei… até de segurança pública: resistência escrava, tensões sociais e o fim
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Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Tradução: José Laurênio de Melo. Rio de
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MANCHESTER, Alan K. “A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro”. In: KEITH,
Henry H. e EDWARDS, S. F. (organizadores). Conflito e continuidade na sociedade
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