liberdade em disputa: a politização da legislação ... · novembro, de 1831, que proibia o...

15
Liberdade em disputa: a politização da legislação emancipacionista no processo da abolição da escravidão em Sergipe (1880-1888). Camila Barreto Santos Avelino 1 Resumo: este trabalho faz reflexões sobre como o uso do discurso público sobre a Lei de 1871 (mais conhecida como Lei do Ventre Livre e a Lei Saraiva Cotegipe, de 1885, ou Lei dos sexagenários) acentuou expectativas e ansiedades acerca da extinção da escravidão no Brasil. O objetivo é evidenciar a relevância do movimento abolicionista, na década de 80, para a politização das lutas sociais em prol da abolição da escravidão. Assim, pretendemos estabelecer um diálogo entre a história social da escravidão e as recentes tendências dos estudos sobre abolição no Brasil. Para isso, discutiremos parte da historiografia sobre esses temas, buscando pontos de comunicação entre eles, contudo, utilizando fontes primárias para tentar dar suporte aos argumentos. Aqui, privilegiaremos uma categoria específica de escravizados: africanos e afro-brasileiros que moveram petições de liberdade entre os anos de 1882 a 1886, na capital da província sergipana - Aracaju. Essa escolha foi feita por diversos motivos: primeiro, por ser uma categoria profundamente marcada pelas tensões e conflitos que antecederam os anos finais da escravidão e/ou por apresentarem em suas narrativas argumentos embasados nas ambiguidades da legislação emancipacionistas no Brasil. Palavras-chave: escravidão, liberdade, política e abolição. Em 1881, a escrava africana Rufina procurou a delegacia de polícia da Vila de Porto da Folha, em Sergipe, para requerer sua liberdade, alegando ter sido importada depois da lei proibitiva do tráfico Africano”. 2 A ação de liberdade movida contra Manoel Xavier S. Andrade colocava em questionamento a legalidade das transações que envolvia sua escravização e venda, pois, como ela afirmava, havia sido realizada depois da Lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil. 3 A escravização ilegal da africana Rufina não foi um caso isolado. Como a historiografia aponta, no período entre 1831 a 1850, desembarcaram mais de um milhão de africanos escravizados no Brasil 4 . O historiador Dale Tomich, ao analisar a instituição escravista nos Estados Unidos, na colônia espanhola de Cuba e no Brasil, ressalta que esse momento histórico tem íntima 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Drª. Hebe Maria de Castro Gomes de Mattos. E-mail: [email protected] 2 APES, Sp9, pacotilha 18. Solicitação de mandato de busca e apreensão da escrava africana Rufina, 1882. 3 A referida lei que embasa os argumentos apresentados no caso da africana Rufina é a Lei de 7 de novembro, de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil, este caso faz menção ao Art. 1º, que declara que todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. Coleções de Leis e Decretos do Brasil. 4 Segundo estimativas para o período, de 1826 a 1850, desembarcaram cerca de 1.299.969 escravos africanos no Brasil. Em: www.slavevoyages.org

Upload: nguyenxuyen

Post on 21-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Liberdade em disputa: a politização da legislação emancipacionista no processo da

abolição da escravidão em Sergipe (1880-1888).

Camila Barreto Santos Avelino1

Resumo: este trabalho faz reflexões sobre como o uso do discurso público sobre a Lei

de 1871 (mais conhecida como Lei do Ventre Livre e a Lei Saraiva – Cotegipe, de 1885,

ou Lei dos sexagenários) acentuou expectativas e ansiedades acerca da extinção da

escravidão no Brasil. O objetivo é evidenciar a relevância do movimento abolicionista, na

década de 80, para a politização das lutas sociais em prol da abolição da escravidão.

Assim, pretendemos estabelecer um diálogo entre a história social da escravidão e as

recentes tendências dos estudos sobre abolição no Brasil. Para isso, discutiremos parte

da historiografia sobre esses temas, buscando pontos de comunicação entre eles,

contudo, utilizando fontes primárias para tentar dar suporte aos argumentos. Aqui,

privilegiaremos uma categoria específica de escravizados: africanos e afro-brasileiros

que moveram petições de liberdade entre os anos de 1882 a 1886, na capital da

província sergipana - Aracaju. Essa escolha foi feita por diversos motivos: primeiro, por

ser uma categoria profundamente marcada pelas tensões e conflitos que antecederam os

anos finais da escravidão e/ou por apresentarem em suas narrativas argumentos

embasados nas ambiguidades da legislação emancipacionistas no Brasil.

Palavras-chave: escravidão, liberdade, política e abolição.

Em 1881, a escrava africana Rufina procurou a delegacia de polícia da Vila de

Porto da Folha, em Sergipe, para requerer sua liberdade, alegando “ter sido importada

depois da lei proibitiva do tráfico Africano”. 2 A ação de liberdade movida contra

Manoel Xavier S. Andrade colocava em questionamento a legalidade das transações que

envolvia sua escravização e venda, pois, como ela afirmava, havia sido realizada depois

da Lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil. 3 A escravização ilegal da

africana Rufina não foi um caso isolado. Como a historiografia aponta, no período entre

1831 a 1850, desembarcaram mais de um milhão de africanos escravizados no Brasil4.

O historiador Dale Tomich, ao analisar a instituição escravista nos Estados Unidos, na

colônia espanhola de Cuba e no Brasil, ressalta que esse momento histórico tem íntima

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Drª. Hebe

Maria de Castro Gomes de Mattos. E-mail: [email protected]

2 APES, Sp9, pacotilha 18. Solicitação de mandato de busca e apreensão da escrava africana Rufina,

1882.

3 A referida lei que embasa os argumentos apresentados no caso da africana Rufina é a Lei de 7 de

novembro, de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil, este caso faz menção ao Art. 1º, que

declara que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.

Coleções de Leis e Decretos do Brasil.

4 Segundo estimativas para o período, de 1826 a 1850, desembarcaram cerca de 1.299.969 escravos

africanos no Brasil. Em: www.slavevoyages.org

conexão com o dinamismo do mercado mundial capitalista, sendo essa segunda

escravidão sustentada pelo tráfico internacional revigorado. 5

Proposta a ação de liberdade, Rufina passou ao depósito de Francisco de Paula

Torres, a quem o proprietário de Rufina também concedeu “plenos poderes de requerer

e capturar a escrava, caso ela viesse a fugir”. Não tardou muito e a mesma fugiu para a

capital da província, Aracaju. No dia 26 de junho, de 1882, o depositário procurou a

Secretaria de Polícia da capital para relatar que a escrava havia fugido do seu domínio

pela segunda vez, “motivada por questões ilusórias”. 6

Do relato do depositário emergem informações importantes sobre as suas

interpretações do caso citado. Para Francisco de Paula Torres, a alegação da escrava

Rufina, que teria sido escravizada depois da lei proibitiva, era uma “falácia” criada para

fugir do cativeiro. Em sua petição, ele ainda denúncia o abolicionista sergipano

Francisco José Alves pelo acoitamento da escrava em sua residência. 7 Em suas

palavras,

Agora, porém, de novo desapareceu [Rufina] do depósito, iludida pelo

celebre Francisco José Alves emancipador dos escravos [.] residente nessa

capital, que a conserva em seus serviços e em sua companhia, e como é o

caso de proceder-se a busca e apreensão, o suplicante sabe com certeza que a

mesma iludida escrava está em casa do [citado], requer da V. S que se digne

de expedir em seu favor o competente mandato, depois de ouvir o

testemunho de Severino8

Não sabemos ao certo como a escrava africana se encontrou com Francisco

José Alves e com quais meios ela conseguiu viajar do interior para a capital. Mas,

sabemos que ela não foi a única escravizada a buscar ajuda do abolicionista como seu

peticionário em sua ação de liberdade. Alguns anos antes, o órfão escravizado, Olegário

da Vila de Japaratuba, fez um percurso semelhante, como veremos mais adiante.

Francisco José Alves era um abolicionista bastante conhecido, tanto na capital quanto

no interior da província. O seu empenho em defender a causa abolicionista circulava tanto

nas esferas jurídicas, por sua atuação como “emancipador” dos escravizados, como

nas páginas dos jornais O Descrido e o Libertador - principais periódicos abolicionistas

em Sergipe, circulava em toda província9.

5 Tomich, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Boulder, Rowman &

Littlefield, 2004.

6 APES, Sp9, pacotilha 18. Solicitação de mandato de busca e apreensão da escrava africana Rufina 1882.

7 Ibidem.

8 Ibidem.

9 Esses jornais foram criados por Francisco José Alves como veículo de propagação de ideias

abolicionistas - O Descrido (1881) e O Libertador (1884). O Descrido, assim como o nome já descreve,

foi assim chamado por Alves ao considerar que suas ideias emancipacionistas não surtiam efeito

pragmático para a sociedade sergipana, que o levava a desacreditar em mudanças profundas. Criados com

Alves foi responsável por diversas petições de liberdade de homens e mulheres

escravizados, que vinham de todos os lugares do interior da província para a capital em

busca de sua ajuda e a procura da Sociedade Libertadora Cabana do Pai Thomaz. Ele

relata com entusiasmo que, desde a Lei do Ventre Livre, já havia conseguido na Justiça

a libertação de 82 escravos10. Embora o abolicionista Francisco José Alves afirme não

ser um “sedutor de escravos”, que apenas lutava em favor da liberdade, através de

outros casos, podemos verificar que a acusação do depositário Francisco de Paula Tores

era pertinente.

Em 1881, a polícia se dirigiu a Rua do Rio Real, em Aracaju, batendo na porta

da residência do abolicionista de posse de um mandato de busca e apreensão de outra

escravizada acobertada pelo abolicionista “Rosalina, africana, maior de cinquenta anos e

que se acha matriculada na Vila de Capela, sendo seu dono legítimo Manoel dos Santos

Lira, que tem em posse o seu título de domínio e relação de matrícula juntos”. A escrava

foi encontrada em um quarto dos fundos da residência, tendo sido conduzida à prisão da

delegacia de Aracaju e, logo em seguida, entregue a seu proprietário11.

Os casos de acoitamento das africanas Rufina e Rosalina não foram os únicos.

Nas páginas do jornal O Descrido, encontramos o caso do escravizado Olegário no qual

o abolicionista também estava envolvido. Olegário havia nascido de Ventre Livre, sua

mãe Cecília era uma africana liberta quando o teve em 1868, na Vila de Japaratuba.

Porém, Isaias Ferreira de Oliveira, tutor de órfãos em uma prática imoral, reduziu a

escravidão uma pessoa livre. Após a morte da mãe do pequeno Olegário, em 1873,

Isaias matriculou o órfão em Maruim como seu escravo, vivendo nessa condição desde

então. Nas palavras de Francisco José Alves,

Nos que nunca perdemos de vista questões de liberdade, esperamos por

ocasião [asada] em que pudéssemos resgatar a liberdade do infeliz Olegário,

que nascendo de ventre livre e recebendo águas lustrais do batismo como

livre ainda se acha mantido nos grilhões do cativeiro. [...] Felizmente essa

ocasião chegou e Olegário escapando da vigilância de Isaias, deu voltas as

gambias e pôs-se ao fresco, e depois de grandes voltas e rodeios,

sustentando-se de caldo de cana chegou enfim a esta capital, onde

pudemos fazer uma entrevista com ele, na qual lhe prometemos que ele gozaria

de sua liberdade ou nós deixaremos de existir12. [Grifos nossos]

uma pequena diferença de anos, essa mudança ocorre em função das transformações que o abolicionista

observa como significativas para a abolição da escravidão, ele rompe com o partido conservador, embora

ele continue defendendo a emancipação gradual, as notícias nos jornais passam a questionar com mais

veemência os descumprimentos da legislação abolicionista, bem como a afrontar diretamente aqueles que

ele considerava escravagistas.

10 O Descrido, 28/06/1882.

11 APES, Sp9, pac 18. Petição de Manoel dos Santos Lira de busca e apreensão da escrava africana

Rosalina. 20/08/1881.

12 O Descrido, 1/02/1882.

Sete meses depois, após uma longa viagem de retorno da capital do Império,

Alves conseguiu comprovar que Olegário era de fato livre. Ele apresentou o registro de

batismo de Olegário, realizado em 1868, dois meses após seu nascimento, tendo como

padrinho o Tenente Manoel Dias de Almeida, que ainda era vivo e residia na mesma

freguesia. Ainda cita que publicará a carta de alforria da africana Cecília, extinguindo de

vez as dúvidas sobre a liberdade do pobre Olegário13.

Os casos de Olegário e Rufina são semelhantes e apresentam estrutura

narrativa emancipacionista embasada no descumprimento dos direitos que a lei lhes

assegurava e que a política emancipacionista trouxe à tona com a promulgação da Lei

de 28 de setembro, de 1871. Os argumentos apresentados na petição de liberdade da

africana Rufina e do órfão escravizado Olegário não se diferenciam em muitos aspectos

das demais petições de liberdade que encontramos para o período em análise, que se apoia

na violação do direito à liberdade afiançado na Lei do Ventre Livre. Ainda não foi possível

realizarmos uma quantificação dos argumentos utilizados para a consecução da liberdade

de todos petições coletadas, em uma amostra preliminar encontramos a recorrência dos

seguintes argumentos: africanos escravizados importados depois da Lei proibitiva do

tráfico de escravos (Lei de 1831), casos referentes a ausência das matrículas dos

escravos, que conforme o Artigo 8 (inciso 2º) da Lei de 1871, tornava livre os escravos

não matriculados por culpa ou omissão dos seus senhores e fraude na classificação de

escravos que deveriam ser libertados pelo fundo de emancipação14. Justificamos a escolha

desses casos para abrirmos nosso trabalho, porque eles servem de fio condutor para

problematizarmos várias questões sobre o processo abolicionista em Sergipe, região

predominantemente rural em que a escravidão vigorou até seus últimos

dias.

Por meio dessa legislação, o Estado passou, por um lado, a desempenhar um

papel maior na estruturação dos caminhos para a liberdade, sobrepujando a vontade

senhorial em relação às alforrias e emancipando os filhos do ventre escravo e, por outro

lado, acabou por consolidar as reivindicações dos senhores de escravos sobre os africanos

importados após o período proibitivo do tráfico negreiro de 1831. Como bem argumenta

Beatriz Mamigonian, “a lei de 1871, por meio da matrícula especial de 1872, deu ao

governo a autoridade de emitir registros de propriedade sobre todos os que eram

13 IBIDEM.

14 Nos arquivos público e judiciário do Estado encontramos 68 petições de liberdade que foram

propostas em Aracaju, 6 em Laranjeiras e 6 em Rosário, entre 1880 e 1888.

mantidos em escravidão ilegal, e sobre seus filhos e netos” (Mamigonian, 2011, p. 36).

Como veremos mais adiante, o Estado não só legalizou, como também documentou a

posse dos africanos em violação da Lei de 1831. E essas questões não passaram

despercebidas e vieram à tona no contexto das lutas abolicionistas.

Ao analisar as províncias na véspera do abolicionismo, o autor Conrad infere

que, para as províncias do Nordeste, a emancipação já vinha se processando, visto que a

população cativa já havia diminuído drasticamente, no período de 1874 a 1884, por

conta do tráfico interprovincial, como foi o caso do Ceará, que, de modo geral, os

fazendeiros já haviam feito os ajustes psicológicos e práticos necessários para que lhes

permitissem aceitar a abolição da escravidão com paciência. Discordamos dos

argumentos do autor com relação a tese de que a escravidão já não era tão importante para

as províncias do Nordeste brasileiro por causa da diminuição do número de escravos15.

As províncias do Nordeste açucareiro apresentam dados contrários aos apontados

pelo autor. E os dados das matrículas de escravos, de 1873 e 1887, permitem- nos um

melhor esclarecimento dessa questão. Sergipe, assim como Bahia, Alagoas e

Pernambuco, tiveram uma redução escrava menor que o restante do Nordeste. Enquanto

a redução da população escrava, nesse período, no Nordeste, foi de 68, 52%, no

Nordeste açucareiro foi de 54,97%. E Sergipe se destaca como o que teve menor

redução da população escrava, no período citado, com um índice de 48, 82%, menor que

a média brasileira, que foi de 53,54%. Reforçando a nossa tese central que, nessa

localidade, houve uma forte reação pró-escravidão. 16

Por isso, inferimos que houve uma intensificação dos debates abolicionistas em

Sergipe pela circularidade das notícias nos jornais e pelos burburinhos abolicionistas

que se intensificaram nessa década, mesmo nas regiões mais remotas. O que levou a

escrava africana Rufina a procurar o abolicionista. Apesar de ser uma figura controversa

no cenário abolicionista sergipano, Francisco Alves, ao criar a sociedade

emancipacionista mais importante da província A Sociedade Libertadora Cabana do

Pai Thomaz, atraiu muitos escravizados que o procuravam a fim de tê-lo como

curador17. Não iremos nos ater, nesse texto, a uma trajetória detalhada de Francisco José

Alves, um dos articuladores das lutas sociais em Sergipe no processo de abolição da

15Conrad atribui a Sergipe uma perda líquida de 2.342 escravos, através do comércio interprovincial no período de 1874-1884, o que contrasta com os dados apontados na matrícula de 1873, no qual pode ser computada uma perda líquida de 893 escravos, ou seja, 2,71%. Ver Conrad... Ob cit, p. 150.

16 PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto dos. Reordenamento do Trabalho: trabalho escravo e trabalho

livre no nordeste açucareiro, Sergipe 1850/1930. Aracaju, Funcaju, 2000. P. 105.

escravidão, mas recorreremos aos seus posicionamentos para compreendermos melhor o

Vale do Cotinguiba sergipano nesse contexto.

Voltemos à história de Rufina. No mesmo dia em que o depositário Francisco

de Paula Torres procurou a delegacia da capital, ele também apresentou uma testemunha

que viria comprovar a sua acusação referente ao acoitamento de Rufina na casa de

Francisco José Alves. Ao depor sobre o caso, o praça Severino José de Sant’Anna

afirma que viu a dita escrava, pois ela costumava lavar roupas da casa de Alves na lagoa

da matança, local onde a mãe do depoente costuma ir para lavar roupas, afirma encontrar-

se com sua mãe nessa região, motivo pelo qual sabe do paradeiro da escrava18. Diante do

testemunho de Severino, o juiz Mathias Espinola Jabuticaba expediu o mandato de busca

e apreensão que foi realizado na casa de Francisco José Alves, encontrando a escrava

Rufina escondida em um quarto, tendo sido presa e conduzida à delegacia, sendo em

seguida entregue ao seu proprietário19.

Embora a história de Rufina tivesse conexões com a de Olegário, em relação ao

abolicionista Francisco José Alves, não possuímos muitos detalhes acerca dos fatos que

compõem a trajetória da escravização da africana. No momento da prisão de Rufina,

não foi realizado nenhum registro policial que fornecesse maiores detalhes do seu caso,

um auto de perguntas, por exemplo, procedimento bastante comum nas delegacias de

polícia. Até o momento também não encontramos a ação de liberdade que ela moveu

contra seu senhor na Vila de Porto da Folha, além disso, não achamos para esse período,

nenhuma petição de liberdade em favor da escrava Rufina movida por Francisco José

Alves20. Mas, esse caso apresenta situações controversas que possuem conexões com o

modo em que se estruturou o movimento abolicionista sergipano, como mostraremos a

seguir.

Construindo narrativas em torno da emancipação

Ao analisar o processo da abolição no Brasil, o historiador Ricardo Salles ressalta

a importância de tangenciarmos as experiências emancipacionistas no mundo

17 Sobre a biografia de Francisco José Alves ver SANTOS, Maria Nely. A sociedade libertadora:

“Cabana do Pai Thomaz”, Francisco José Alves, uma historia de vida e outras histórias. Aracaju:

Gráfica J. Andrade, 1997.

18 APES, Sp9, PAC 18. Auto de Perguntas feita a Severino José de Santa’ Anna. 26/06/1882.

19 APES, Sp9, PAC 18. Mandato de busca e apreensão da escrava Rufina. 26/06/1882.

20 Sharise Amaral ao estudar o padrão de alforrias, petições e ações de liberdade em Sergipe, entre 1871

e 1888 da região do Vale do Cotinguiba, a autora infere que não encontrou nenhum caso em que seja

usada como argumento a Lei de Proibição do Tráfico de Africanos, de 1831, como justificativa para sua

libertação. AMARAL, Sharyse Piroupo do. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba

(1860-1888). Tese de doutorado, UFBA, Ano de Obtenção: 2007.

atlântico; apesar da abolição nesses países ocorrer em tempos distintos, com um século

de diferença, isso não se deve ao atraso da adaptação do Brasil aos tempos modernos.

Ao contrário, esse autor entende que a segunda escravidão no Brasil, em Cuba e nos

Estados Unidos, no século XIX, foi parte do processo de desenvolvimento capitalista

industrial que reavultou a instituição escravista nessas regiões21. Para Salles, “nessas

áreas, o novo impulso escravista conviveu permanentemente com uma tensão

antiescravista, tanto do ponto de vista interno quanto do ponto de vista internacional”

(Salles, 2011, p. 8).

Para a historiadora Hebe Mattos, a expansão comercial europeia da época

moderna se assentou sobre a escravidão no Novo Mundo, ao mesmo tempo em que

conviveu com as novas noções de liberdade econômica e cidadania política, que

começavam a ser engendradas no bojo das revoluções atlânticas a partir de meados do

século XVIII, paralelos aos desafios – econômicos, mas também políticos e culturais –

colocados pela problemática da emancipação.22 No caso brasileiro, o encaminhamento

da questão abolicionista principiou após a supressão do tráfico ilegal de escravizados

em 1850, mediante forte pressão internacional da Inglaterra, porém, a opinião pública

sobre o abolicionismo só começou a tomar corpo nas décadas seguintes, principalmente

após a Lei de 1871, que aboliu a escravidão do ventre23.

Angela Alonso, em seu enfoque sobre as formas de organização do

abolicionismo brasileiro, expõe que o Brasil ficou em uma situação constrangedora

como última sociedade escravista do Ocidente, em fins do século XIX. Assim, a

circulação de experiências políticas em escala internacional levou tanto o Estado quanto

os abolicionistas brasileiros a se inspirarem nas formas de organizações do

abolicionismo internacional, mas com ajustes na transposição do repertório

antiescravista estrangeiro. No início da década de 1860, fase considerada pela autora como

a gênese desse movimento, as iniciativas para acabar com a escravidão se processou

apenas no interior das instituições24.

21 34 SALLES, Ricardo. Abolição no Brasil: resistência escrava, intelectuais e política (1870-1888) .

Revista de Índias, vol. LXXI, n. 251, 2011, p. 259-284. P. 259 P. 259

22 COOPER, F., HOLT, Thomas & SCOTT, Rebecca. Além da escravidão: investigações sobre raça,

trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Trad. Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira. P. 15,

23 SALLES... Ob cit, p. 261.

24 ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social. Revista Novos Estudos: Novembro de

2014. PP 115 a 137. P. 125

Após disputas entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos - que acabou por abolir

a escravidão nesse país, “sem indenização dos proprietários”, colocando o país ante uma

sangrenta da Guerra Civil, em 1868 - as repercussões desses acontecimentos lançaram

sobre os dois últimos Estados escravistas das Américas (Brasil e Cuba) um acalorado

debate sobre o fim da escravidão. O Brasil diante de uma forte crise política doméstica,

entre 1868 e 1871, surge então às condições para o primeiro ciclo de mobilizações

antiescravistas no espaço público. Terreno fértil para o surgimento de diversas

associações abolicionistas pelo país. 25

Nos anos seguintes a Lei do Ventre Livre, os debates abolicionistas giraram em

torno da ambivalência da lei, emergindo críticas de diversas regiões do país. Como

previa a lei, a classificação dos cativos, dentro de critérios estabelecidos pelo governo,

ficou sob a responsabilidade de uma junta de Classificação, a qual deveria reunir-se no

período que estivesse próximo à distribuição das Quotas. Entretanto, algumas dificuldades

surgiram devido à morosidade do trabalho.

Constava nos relatórios dos presidentes das províncias de todo o Estado várias

polêmicas relacionadas aos processos de matrículas das mulheres e dos homens

escravizados e aos fracassos dos fundos de emancipação. Conrad comprova que a Lei de

28 de setembro, de 1871 (previa, no Artigo 3, o estabelecimento de um fundo de

emancipação e ordenava, no Artigo 8, um registro nacional de todos os escravos e

ingênuos) teve diversas dificuldades de ser executada e, em algumas províncias, como

foi o caso de Sergipe, nos primeiros anos, ela não saiu do papel, pois o governo central

não dispunha de poder suficiente para impor o seu cumprimento.

Em carta enviada ao governo do Estado, o presidente da província de Sergipe

expõe os principais motivos do atraso das Juntas de Classificação nessa região. Conta que

as razões de não ter enviado as listas de classificação de escravos no prazo determinado

pela lei foram: a falta de livros de registros, ausência de um promotor, recusa de tabelião

e dos secretários em trabalhar por falta de salários e dificuldades em estabelecer um valor

para os escravos classificados. Alguns dos municípios sergipanos apresentaram seus

relatórios em 1875, mas outros continuaram encontrando pretexto no ano seguinte. 26

Outros problemas também foram apresentados em Sergipe relativos à Lei do

Rio Branco. No Artigo 8 (inciso 4º), tornava obrigatório a matrícula dos filhos de suas

25 ALONSO... ob, cit p. 126.

26 CONRAD... ob, cit, p. 135.

escravas que, por lei, ficariam livres, prevendo punição em consequência de

negligências em relação à aplicabilidade da lei, como consta: “incorrerão os senhores

omissos, por negligência, na multa 100$000 a 200$000; repetida tantas vezes quanto

forem os indivíduos omitidos, e por fraude nas penas da Lei”27. Em todos os três casos

que encontramos infração dessa lei, os senhores e senhoras de escravos acabaram sendo

multados por não efetuarem as matrículas de ingênuos. Prática bastante usual entre os

proprietários de escravos a fim de tornar cativos os filhos de suas escravizadas que haviam

nascidos livres.

Na Vila de Simão Dias, José de Mattos Freire de Carvalho, em 1883, “foi

multado em duzentos mil reis por não matricular as ingênuas Josefa, filha de sua

escrava Martinha e Maria, filha de [ilegível] ambas nascidas em Maio de 1872”.28 No

mesmo ano, o coletor dessa vila também multou “Pedro José de Andrade, no valor de

cem mil reis, por não realizar a matrícula de José, filho de sua escrava Maria, nascido

em Junho de 1882”29. Talvez, pela prática corriqueira entre os senhores de escravos de

tentar burlar a lei, o coletor de Laranjeiras aplicou multa à Rita Ferreira do Nascimento

por não matricular o ingênuo Militão e fez questão de enfatizar que a mesma não cumpriu

a lei “mesmo depois de dezesseis meses do nascimento do ingênuo”30.

E, não foram somente motivos administrativos, apresentados pelo presidente da

província de Sergipe, que notamos em relação ao descumprimento da legislação

emancipacionista. Como referimos antes, o caso da africana Rufina e de Olegário, embora

por motivos distintos, foram cerceados de sua liberdade e escravizados em consequência

da matrícula de escravos de 1872. Não possuímos dados mais completos sobre o caso da

africana Rufina e alguns questionamentos sobre sua trajetória servem para alargar nossa

pesquisa: qual teria sido o percurso realizado pelos escravizados africanos entre a África

e o Brasil? Como essas mulheres e homens escravizados entraram em Sergipe? Porque

Rufina e outros africanos escravizados não procuraram a justiça antes?

Nos anos seguintes à Lei de 1871, tanto escravizados quanto senhores

reconheceram que mudanças expressivas estavam ao alcance de todos; a possibilidade

27 Coleção de Leis e Decretos do Brasil. Lei de 28 de Setembro de 1871.

28 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor da Vila de Simão Dias a José de Mattos

Freire de Carvalho.

29 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor da Vila de Simão Dias a Pedro José de

Andrade.

30 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor de Laranjeiras a Rita Ferreira do

Nascimento.

de transformação significativa dependia do modo de lidar com o recém-criado mecanismo

legal. Ao estudar o impacto da Lei do Ventre livre em Pernambuco, o historiador Celso

Castilho observa que diferentes interpretações relacionadas a essa lei estimularam os

debates públicos sobre a emancipação nessa província e a frequência dessas críticas feitas

em nome do “povo” e/ou da “nação” transformou a lei em um problema. 31 O fato é que

uma década depois da implementação da Lei do Ventre Livre encontramos no contexto

do movimento abolicionista sergipano vários motivos relacionados a essa lei sendo

utilizados por escravocratas, abolicionistas e escravizados nas ações de escravidão e de

liberdade impetradas em Sergipe. Vejamos os principais que foram citados nesse

contexto.

Em um artigo, do jornal O descrido de 1882, dirigido ao presidente de Sergipe,

o articulista faz uma denúncia sobre os abusos na classificação de escravos para serem

libertados pelo fundo de emancipação, na Vila de Itaporanga, alegando que o coletor havia

recebido dinheiro de alguns escravizados a fim de adiantar a sua libertação, descumprindo

a lei que previa a organização do fundo de emancipação por categoria de prioridade. E,

senhores de escravos além de não classificarem alguns dos seus escravizados, escolhiam

os que deviam ser emancipados, nesse caso, os preteridos eram sempre os mais velhos

e doentes. Como consta “no ano passado libertou-se ali indivíduos que estão na

quinta classe, deixando de ser classificado um casal de escravos do Barão de Laranjeiras

e de outros que ficaram preteridos de gozar sua liberdade na forma da lei”. 32

Em outra notícia, Francisco José Alves critica o governo brasileiro com relação

à condução da ”questão servil”, pois para os abolicionistas, o governo favorecia os

trabalhadores estrangeiros em detrimento da mão de obra nacional, concedendo-lhes

terras e outros incentivos, enfatizou ainda que a escravidão era o atraso da agricultura e

do Brasil. 33

Alves segue narrando que a Lei de 28 de setembro de 1871 não foi benéfica

para os que estavam se libertando, pois, uma vez que saiam das casas de seus senhores,

sem terras e sem trabalhos ficavam a mercê de sua própria sorte. Os libertos mais velhos

perambulavam pelas ruas desamparados e, como previa a lei, os ingênuos deveriam ser

31 CASTILHO, Celso. In: DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio (Orgs.). Experiências da

emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890 – 1980 ). São Paulo:

Selo Negro, 2011, pp. 77-147. P. 28

32 O Descrido, 10/01/1882.

33 O Descrido, 6/12/1881.

34 IBIDEM.

criados e educados para serem úteis ao país. Porém, na prática não era o que acontecia.

Em suas palavras, “e não foi esse mesmo governo que abandonou a milhares de

ingênuos que atingiram essa idade, deixando-os entregue aos senhores de suas mães,

para serem criados brutalmente como dantes, levando chicote sem aprender a ler e

escrever”. 34

As reclamações do abolicionista Alves eram pertinentes, pois se a lei acertou

ao tirar do senhor o privilégio de decidir quem poderia ser alforriado, mesmo com todas

as ambivalências das negociações de liberdade, essa legislação manteve-se relutante em

relação à situação do filho das mulheres escravizadas. Ao dar a opção de escolha aos

senhores de escravos entre ser indenizados ou usufruir dos “serviços dos ingênuos” até a

idade de 21 anos, na maioria dos casos optou-se pela segunda alternativa. Ao mesmo

tempo em que a Lei de 1871 buscou nortear-se pelas premissas em relação à liberdade dos

escravizados, manteve a ambiguidade do costume, das relações costumeiras, no tocante

ao ingênuo, ou seja, os senhores de escravos continuaram mantendo “poder” em relação

à descendência da senzala.

Ao analisar as discussões preliminares sobre essa legislação, a historiadora Joseli

Mendonça narra que, na proposta inicial, a partir do quarto mês de vida, o ingênuo

seria entregue a uma pessoa idônea ou instituição, caso a mãe escravizada concordasse e

o marido (caso tivesse) também anuísse. Ela descreve:

(...) nas discussões posteriores, alguns conselheiros mostram-se contrários a

esse encaminhamento legal, apesar do Conselho de Estado ter-se posicionado

favorável a libertação do ventre. Segundo tais conselheiros, tal adendo

poderia tirar totalmente o poder moral dos senhores, ao conceder à escrava o

direito de opinar sobre o futuro do seu filho (...) (Mendonça, 1999, p. 99).

As estratégias dos escravizados para adquirir a liberdade também eram bastante

diversificadas; muitos também faziam uso das brechas da legislação para forçar a sua

liberdade. Ao estudar as alforrias no agreste sertão sergipano, a historiadora Joceneide

Cunha relata o caso do escravizado João Marçal, por exemplo, que às vésperas da

abolição, em 1888, para negociar e forçar sua alforria, encontrou um coiteiro. Antônio

dos Santos Menezes, escrivão de órfãos que, provavelmente, tinha interesse em seus

serviços, o auxiliou. O escrivão era um conhecedor das leis e, por isso, podia auxiliá-lo

numa possível luta na justiça. Posteriormente, o escravo passou bastante tempo

“subtraindo-se do serviço” e foi acoitado por dois anos. O escopo do escravo era alegar

abandono de herança num possível conflito judicial. Temendo a disputa na justiça e,

37 IBIDEM.

consequentemente, a perda do escravo, Miguel Archanjo do Nascimento, o proprietário,

alforriou a parte que possuía de João Marçal e pontuou que entraria com uma ação civil

reivindicando o pagamento das jornadas de trabalho que o escravo prestara ao

escrivão35.

A fim de alertar o público para não perder investimentos, Francisco Militão,

Luiza e Edwirges colocaram nota no jornal O democrata, em 1881, “que pessoa alguma

os compre de Francisco Manoel de Souza Pinto, porque são livres tais indivíduos”, pois

os mesmos haviam recebido cartas de liberdade de Maria Rosa de Aguiar Lemos e Luiz

Barbosa Madureira Maynart - se achavam arquivadas no termo de Divina Pastora. Da

posse de liberdade, os três libertos foram por acaso presos em Maruim, o delegado dessa

vila alegando que eles eram escravos fugidos mandou que os mesmos recorressem à

autoridade judiciária para fazer valer seu direto de liberdade. Da prisão, eles passaram

ao depósito do capitão Francisco das Chagas Lima, repassou os três escravizados aos

cuidados de Souza Pinto e Faro. Tempo depois, o curador nomeado do caso requereu o

levantamento do paradeiro dos seus curatelados, sendo informado que os mesmos não

estavam em poder do capitão Francisco das Chagas Lima, pois tinham sido vendidos

por Souza Pinto e Faro. Pois, o mesmo senhor Souza Pinto e Faro apresentou uma

procuração legal em nome de Maria Rosa, sua sogra e antiga dona dos escravizados36.

Esse caso apresenta articulação entre os senhores de escravos para burlar a lei e

manter os escravizados em seu poder. De certo, com o falecimento da sogra, os seus

antigos escravizados buscaram abrigo em outro município, pois essa prática era comum

entre os libertos. Cientes da perda de parte da herança, Souza Pinto e Faro contou com a

ajuda de dois amigos, o delegado de Maruim e do capitão Francisco das Chagas, que havia

sido nomeado depositário legal de Francisco Militão, Luiza e Edwirges. Então de posse

de antiga procuração de sua sogra, Souza Pinto e Faro não tardou em colocá-los a venda

“esta questão já foi levantada no conhecimento do ex. senhor Ministro da Justiça, pelo

abaixo firmado, o qual examinando o translado da procuração, com a qual Faro fez venda

desses três infelizes, a Francisco Manoel de Sousa Pinto, por um conto e cem mil reis”. 37

35 Carta de Alforria, João Marçal, p. 19 e 19v, Livro de Notas nº2 Cartório de Lagarto primeiro ofício,

caixa 01-1094. Apud SANTOS, Joceneide Cunha, “Entre Farinhadas, Procissões e Famílias: a vida de

homens e mulheres escravos em Lagarto, 1850-1888”, Dissertação de Mestrado em História, UFBA,

2004. p. 126.

36 O Democrata 15/07/1881.

O escravizado João Benvindo também passou por um longo conflito com os

trâmites de sua liberdade e, por isso, mandou publicar nota em jornal O descrido, em

1881, visando levar ao conhecimento do público sua condição judicial, a fim de coibir

os possíveis interessados em sua compra. Em acordo com sua senhora, Joana Narcisa

Fontes da Silva, firmou o preço de sua liberdade em setecentos mil reis, dando ele de

entrada trezentos mil reis, o qual possuía recibo, e o restante pagaria em parcelas de 12

mil reis mensais até que completasse o valor total; daria ao final de três anos e três

meses. Mas, passados alguns meses, a sua senhora lhe escreveu pedindo o restante da

quantia por estar precisando por conta de imprevistos. José Benvindo lhe respondeu que

“estava próximo de moer cinco tarefas de cana para completar com o produto delas a outra

metade de seu valor contratado”, pode ele no momento enviar a dita senhora somente

mais cinquenta mil reis, o qual também pedia recibo38.

Alguns dias depois, a caminho do engenho São Francisco, José Benvindo

encontrou com o tenente Paulinho José do Bomfim, “que lhe disse que já o havia

comprado, e que dava somente oito dias de prazo para o abaixo firmado ir para seu

cativeiro sob pena de mandá-lo prender onde o achasse”39. Tendo sua liberdade

ameaçada o escravo procurou a justiça da capital a fim de resolver o seu “direito de

liberdade”. Problemas como o de José Benvindo não foi um caso excepcional. A

historiografia demonstra que ambiguidades nos processos escravidão e de liberdade

eram semelhantes em todo o Brasil. 40 Entretanto, após a Lei do Ventre Livre, a justiça

passou a ser uma instância intermediária bastante procurada por escravizados e por

proprietários de escravos sergipanos.

Notamos, nas petições de liberdade que coletamos no arquivo público e judiciário

do Estado de Sergipe e nas diversas notas de jornais, que os últimos anos da escravidão

foram marcados pela recorrência das idas à justiça de escravizados e seus respectivos

senhores.41 Em abril de 1888, o jornal A Reforma, órgão do partido Liberal, em artigo

intitulado “Hegira dos escravos” relatou que a capital da província estava sendo invadida

pela classe servil que via no “chefe de polícia o garantidor dos seus direitos, o funcionário

incumbido de homologar as suas cartas de liberdade, o protetor nato de suas novas

fraquezas e regalias”. Segue dizendo que a cada momento o

38 O Descrido 28/11/1881.

39 IBIDEM.

40 GRINBERG... ob, cit., p. 28.

41 Encontramos 68 petições de liberdade que foram propostas em Aracaju, 6 em Laranjeiras e 6 em

Rosário, entre 1880 e 1888.

magistrado em Sergipe tem de ouvir as representações de dezenas de emigrantes das

propriedades rurais que reclamam da manutenção do seu estado de liberdade.

Convertendo, dessa forma, o magistrado em um “general do exército da liberdade”42.

As palavras do articulista, do jornal A Reforma, contribuem com a nossa visão

sobre o aumento das petições de liberdade nos anos finais da escravidão em Sergipe. De

forma alguma, neste trabalho, tivemos a pretensão de esgotar as muitas questões

pontuadas ao longo da pesquisa. A africana Rufina teria sido importada depois da

proibição do tráfico negreiro? Não encontramos nenhum documento comprobatório de

registro da escravizada em nome de Manoel Xavier S. Andrade para a Vila de Porto da

Folha nas matrículas de escravos de 1873 43. Nas pesquisas realizadas também não

achamos entre as petições de liberdade arroladas no período de 1880 a 1888, nenhuma

que se refere a africana. A autora Sharyse Amaral também analisou as ações de

liberdade do Vale do Cotinguiba entre os anos de 1860 a 1888, e afirma que não encontrou

nenhum processo que utilizasse a Lei de 1831 como argumento. 44 Teria a africana Rufina

se aproveitado da situação em que o movimento abolicionista entrara em sua fase de

maior adesão pública para forjar sua verdadeira identidade? Para o período pesquisado

encontramos além de alguns casos que foram citados, diversas notas nos jornais

sergipanos em repúdio a escravidão.

Em outro jornal sergipano, simpático as ideias abolicionistas, um mês antes da

abolição, o seu articulista tecia comentários sobre a Luz do Século. No artigo intitulado

“Festival Abolicionista” comenta que a festa da abolição havia invadido a província. No

Salão Lyceu na noite anterior, o Club Zé Pereira, famoso na província por seus desfiles

carnavalescos, havia promovido um belo baile abolicionista, apesar do tom elogioso a

iniciativa e aos seus representantes, ele traz a notícia em tom pessimista “apressamo-nos

em dizer algumas palavras, embora impotentes para prover o instinto abolicionista nos

nossos leitores e amigos”45.

Sidney Chalhoub afirma que pesquisas de História Social têm nos motivado a

pensar o paternalismo como uma relação de subordinação que “não significa

necessariamente passividade”, mas numerosas fórmulas das classes subalternas de se

42 A Reforma, 15/04/1888.

43 APES, AG¹. 03/ª DOC 4. Município de Ilha do Ouro (Nome agência que realizou a matrícula de

escravos da Vila de Porto da Folha). Classificação dos escravos para serem alforriados pelo fundo de

emancipação. P. 157. Analisamos as matrículas realizadas no ano de 1873 e não encontramos nenhum

registro da escrava africana Rufina entre os 157 escravizados classificados entre 1873 e 1875 nesse

município.

44 AMARAL... ob, cit., p. 208.

45 A Luz do Século, 8/04/1888.

apropriarem, à sua maneira, de crenças e valores da cultura dominante; de encontrar

brechas para alcançar objetivos e vantagens frente às autoridades; de manipular os limites

do clientelismo e do mandonismo, abrir brechas para o fortalecimento de seus

instrumentos de solidariedade horizontal, isto é, sociedades, filarmônicas, escolas, etc.46

Para o partido Liberal, em sua folha noticiosa, a resistência a escravidão podia

ser observada por toda a província,

Não há, porém, argumentos possíveis neste mundo para dissuadir os pobres

fujões. Eles dizem que Cotegipe caiu que foi chamado João Alfredo, e destes

dois fatos políticos, de que estão admiravelmente inconformados, formam duas

premissas de onde concluem que lá na sua lógica incontentável que são livres,

cidadãos e vadios. 47

As histórias apresentadas nesse trabalho compõem um experimento que pode

ser caracterizado como de micro-história posta em movimento. Pois, acreditamos que o

Vale do Cotinguiba sergipano, assim como os demais municípios da província, os

sergipanos não ficaram indiferentes a movimentação social durante esse momento

histórico. Assim, temos convicção de que o estudo de um local ou evento

cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmica que não são

visíveis através das lentes mais familiares de região e nação. Nesse caso, seguimos uma

cadeia interconectada de eventos que circundaram a abolição no Brasil, cientes de que a

seleção de estratégias de mobilização também foi situacional, conforme a balança de

poder em cada circunstância. Entretanto, como bem assinala a historiadora Rebecca

Scott “a análise mais profunda pode surgir da intensa atenção ao particular”. 48

Portanto, nesse artigo, buscamos refletir e problematizar alguns aspectos

iniciais de uma pesquisa que se encontra em andamento sobre os diferentes meios

usados pelos escravizados para a conquista de sua liberdade. Pois, só poderemos desenhar

um quadro mais próximo do processo da abolição no Brasil com o desenvolvimento de

novas investigações e pesquisas que abranjam as diversas experiências em localidades

que ainda não foram contempladas pela história da abolição e dos legados da pós-

emancipação no Brasil.

46 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Sidney

Chalhoub, citando Thompson, Genovese e Scott, analisa o paternalismo a partir de uma relação de

subordinação em que os subalternos agem no limite da política de dominação, manipulando em seu favor

os símbolos, os valores e as práticas que constituem a ideologia senhorial. Portanto, nessa interpretação,

trabalhadores, escravos e subordinados são entendidos como agentes ativos, que escolhem dentro do

repertório de possibilidades do paternalismo, as opções possíveis para a defesa de seus interesses e

desígnios, p. 46-49.

47 A Reforma, 15/04/1888.

48 SCOTT, Rebecca & HÉBRARD, Jean M., Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da

emancipação. Campinas, Editora Unicamp, 2014. P. 19