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  • 7/24/2019 1. Dulci - A Biologizao Da Poltica e a Politizao Do Biolgico_ Poder e Vida Na Operao Soberana

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    Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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    A BIOLOGIZAO DA POLTICA E A POLITIZAO DO BIOLGICO:

    PODER E VIDA NA OPERAO SOBERANA

    Pedro Lucas Dulci1

    RESUMO: o presente artigo tem por objetivo, a partir dos recentes acontecimentos envolvendorefugiados e imigrantes para a Europa, problematizar a condio poltica contempornea.Atravs da chave de leitura biopoltica de Michel Foucault e Giorgio Agamben, procuraremosmostrar que o que est no centro das caractersticas distintivas da governamentalidade atual uma biologizao da vida nua, ou seja, o mero preocupar-se com os corpos de indivduosmatveisainda que, ao mesmo tempo, sejam insacrificveis. Para tanto, nos ocuparemos comos paradoxos jurdico-poltico envolvendo a noo de soberania, bem como a aporia envolvendoo poder constituinte e o poder constitudo.

    PALAVRAS-CHAVE: Refugiados. Biopoltica. Soberania. Homo Sacer. Poder constituinte.

    Abstract: from the recent events involving refugees and migrants to Europe, this articlediscusses the contemporary political condition. Through key biopolitics reading MichelFoucault and Giorgio Agamben, will try to show what is at the core of the distinguishingfeatures of the current governmentality is a biologization of bare life. That is, the mere concernitself with the bodies of killable individuals - although at the same time, they are insacrificveis.To this end, we will work with the legal and political paradoxes involving the notion ofsovereignty, but also the aporia involving the constituent power and constituted power.

    Keywords:Refugees. Biopolitics. Sovereignty. Homo Sacer. Constituent power.

    Introduo

    No ltimo ms de setembro, o mundo recebeu a foto do corpo de Aylan Kurdi

    encontrado em uma praia de Bodrum. O menino srio de trs anos faleceu tentando,

    junto com sua famlia, a travessia clandestina entre a Turquia e a Grcia. Ainda que a

    imagem do corpo de uma criana morta em uma praia tenha causado uma consternao

    internacional, Paulo Srgio Pinheiro, o lder da comisso da Organizao das Naes

    Unidas que investiga crimes de guerra na Sria, nos garante que o espetculo de

    cadveres nas praias da Europa era um fenmeno previsvel (BBC, 2015, s/p.), em

    razo da situao catica que o pas atravessa. Talvez a comoo internacional no

    tenha tido lugar em nosso meio antes porque nem todas as imagens de seres humanos

    mortos na praia so to comoventes quanto de uma criana branca como o caso de

    centenas de negros que morrem todas as semanas em botes que naufragam antes de

    chegar praia, como acontece em Lampedusa, na Itlia, todos os anos. Nesse sentido,

    aps o momento de sensibilizao mundial, agora que precisamos pensar a chamada

    1Doutorando em Filosofia (UFG).

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    crise humanitria envolvendo os refugiados e migrantes contemporneos.

    Desassociando de qualquer repetio atravs da comparao de imagens como

    fizeram alguns entusiastas de redes sociais com outras fotografias histricas de crianas

    em condio de abandono morte convm perguntarmos: o que est em questo na

    atual odissia migratria em botes atravs do Mediterrneo?

    Vrios so os fatos que nos chamam ateno nessas notcias, no entanto, o

    filsofo esloveno Slavoj iek parece atingir o centro da questo quando sustenta que

    esse incidente, envolvendo os refugiados e imigrantes, mostra que a noo de

    Agamben do homo sacer, o excludo da ordem civil que pode ser morto impunemente,

    est em plena ao no corao da prpria Europa, que se v como ltimo bastio dos

    direitos humanos e da ajuda humanitria em contraste, por exemplo, com os Estados

    Unidos e os excessos da guerra ao terror (2011, p. 4-50). Em seguida, iek

    desenvolve propriamente o seu argumento descrevendo um paradigma poltico de quase

    dez anos, mas que ainda atual:

    Em julho de 2008, como numa irnica anuncia teoria do estado de exceo deGiorgio Agamben, o governo italiano decretou estado de emergncia em toda aItlia para enfrentar o problema do Prximo em sua forma contemporneaparadigmtica: a entrada ilegal de imigrantes da frica do Norte e da Europaoriental. No incio de agosto, dando um expressivo passo alm nessa direo,foram mobilizados 4 mil soldados armados para controlar pontos sensveis nasgrandes cidades (estaes ferrovirias, centros comerciais...) e, assim, elevar onvel de segurana pblica. Atualmente, tambm h planos de usar as forasarmadas para proteger as mulheres contra estupradores. Aqui, o importante observar que o estado de emergncia foi institudo sem grandes protestos: a vidacontinuou normalmente... No seria esse o estado do qual nos aproximamos nospases desenvolvidos do planeta, onde esta ou aquela forma de estado deemergncia (empregada contra ameaas terroristas, imigrantes etc.) simplesmente aceita como medida necessria para garantir o curso normal dascoisas? (IEK,2011, p. 49).

    A aluso de iek, no pargrafo supracitado, teoria do estado de exceoe do

    homo sacer, ambas oriundas do pensamento de Giorgio Agamben, tem por intenomostrar que o que est em prtica corrente na gesto pblica dos pases mais

    desenvolvidos do mundo uma clara expresso da xenofobia insensata e inaceitvel

    para os padres democrticos, em prol de medidas sensatas de segurana pblica no

    menos xenofbicas e racistas. Nas palavras de iek essa viso de desintoxicao do

    Prximo representa uma passagem clara do barbarismo direito para o barbarismo

    berlusconiano de rosto humano (2011, p. 50). Aqui, a invocao da figura de Silvio

    Berlusconi bastante significativa, pois se trata de um fenmeno poltico caracterstico

    de nossa contemporaneidade pblica, em que tnhamos o poltico mais poderoso da

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    Itlia agindo de forma absurda e totalmente desavergonhada, ora ignorando, ora

    minimizando as investigaes legais sobre suas atividades criminosas que sustentam

    interesses comerciais particulares a partir de suas influncias como chefe de Estado.

    Com esse exemplo, presenciamos um rompimento com a dignidade poltica clssica,

    onde tnhamos a esfera ideal do citoyen separada dos conflitos e interesses egostas

    caractersticos do bourgeois. O procedimento de Silvio Berlusconi mostra, de maneira

    sintomtica, que essa separao foi drasticamente extinguida. O que temos que na

    Itlia contempornea, o poder do Estado exercido diretamente pelo vil bourgeoisque

    explora de maneira clara e impiedosa o poder do Estado para proteger seus interesses

    econmicos e discute seus problemas conjugais diante dos milhes (2011, p. 51) que

    acompanham a transmisso televisiva, no pior estilo de um reality show.

    A grande questo que paira sobre os que identificam esse rompimento com a

    dignidade clssica do fazer poltico : como foi possvel chegar a tal ponto?

    Acreditamos que a resposta sobre tal possibilidade se deu atravs da insero do mero

    indivduo, como simples corpo vivente, nas estratgias de gesto poltica vigentes. Ou

    ainda, para usarmos a terminologia original de Michel Foucault, o acoplamento da vida

    no aparato governamental chamado de virada biopoltica. Por trs de cada um dos

    exemplos especficos envolvendo os refugiados e migrantes mencionados

    anteriormente, existe uma dinmica biopoltica que perpassa as principais prticas da

    gesto pblica como um denominador comum. O propsito do presente artigo

    explorar justamente essa dinmica, bem como os seus mais evidentes resultados a

    figura do homo sacercomo paradigma poltico.

    1. A biologizao da poltica e a politizao do biolgico

    Antes de explorarmos a zona de indiferena que existe hoje em dia entre asprincipais categorias polticas (direita/esquerda; privado/pblico;

    absolutismo/democracia etc.), convm retrocedermos um pouco para quando tal

    indiferena no era to evidente. 2 Para tanto, Agamben recua at a Poltica de

    2 Utilizamos a expresso to evidente como um modo sutil de questionar a preciso total dadiferenciao que apresentaremos a seguir. Fazemos isso, tendo em mente que a recuperao queAgamben faz da filosofia poltica de Aristteles como a porta de entrada privilegiada para os gregosno assim to exclusiva. O brilhante professor argentino Fabin Luduea Romandini nos amplia o

    horizonte quando nos lembra que Agamben acentuou a distino entre zoe bos, tentando demonstraque, para os gregos, somente o bosera algo semelhante a uma vida qualificada e, portanto, o sujeito maisprprio da poltica, enquanto azo representava, por assim dizer, uma vida natural originalmente excluda

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    Aristteles para mostrar que os gregos tinham, pelo menos, dois temos para fala sobre

    aquilo que chamamos de vida. So eles zo que exprimia o simples fato de viver

    comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bos, que indicava a forma

    o maneira de viver prpria de um indivduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2002, p. ).

    Em outras palavras, enquanto a zo sempre dizia respeito simples vida natural dos

    seres vivos, sejam eles quem for, a bosaponta para um estilo de vida qualificado, um

    modo de vida particular. Nesse sentido, a simples vida natural no poderia ser objeto

    dos assuntos dapolisgrega, antes, precisava estar restrita a o mbito do oikos, fazendo

    com que o alvo da comunidade poltica seja radicalmente diferente do mbito privado

    da casa enquanto a primeira visa o bem viver e a vida politicamente qualificada, a

    segunda objetiva a simples vivncia e reproduo da vida. 3

    Exclusiva de Aristteles ou no, tal diferena clara entre esses dois modos de

    vida no permaneceu inalterada. Foi o filsofo francs Michel Foucault que, ao final de

    sua anlise empreendida para compreender as sociedades modernas, identificou a

    modificao do exerccio e da representao do poder soberano e junto dela, o fim da

    clara separao entrezo e bos. Esquematicamente, podemos dizer, a partir de Vigiar e

    Punir e A vontade de saber, que, enquanto por muito tempo as duas marcas

    caractersticas do poder soberano fora o fazer morrer e deixar viver, relacionado figura

    jurdica que confiscava e apropriava-se dos bens, dos corpos e da vida dos indivduos; a

    partir da idade clssica o Ocidente viu a desqualificao da morte, e o desuso dos rituais

    polticos que o acompanhavam, enquanto exerccio do poder soberano. A frmula agora

    fazer viver e deixar morrer, tudo isto atravs da ordenao de normas para a gesto e

    controle desta vida produzida e no mais fundamentalmente pelo direito que, como

    nos mostrar Agamben, muitas vezes precisa ser suspenso para dar lugar s medidas de

    do mundo da cidade. Esta leitura, indubitavelmente parcial, no leva em conta, para comear o corpusplatnico que acabamos de considerar. Somente com a excluso deste ltimo das verdadeiras origens davida poltica que foi possvel concluir que existe algo como uma oposio to ntida entre zoe bos(ROMANDINI, 2012, p. 29). O objetivo de Luduea, como tambm o nosso, em explicitar tal opo deleitura presente em Agamben no , de forma alguma, desmerecer a potencia que sua argumentao tem.Antes, visa ampliar nossa compreenso sobre a operao soberana no ocidente. A hiptese de Luduea que, j bem antes em Plato, era possvel afirmar quer no existe nenhuma soberania que no seconstitua, precisamente, sobre azo, sendo esta o objeto originrio de toda a poltica (2010, p. 2-30).3 Qualquer aluno do primeiro semestre de uma disciplina de filosofia poltica se lembraria da clebredefinio do ser humano como politikon zoon (Poltica, 1253a, 4). Quanto a essa exceo deAristteles, Agamben explica que ( parte o fato de que na prosa tica o verbo bionai no praticamente usado no presente), poltico no e um atributo do vivente como tal, mas uma diferenaespecifica que determina o gnero zoon(logo depois, de resto, a poltica humana distinguida daquelados outros viventes porque fundada, atravs de um suplemento de politizao ligado linguagem, sobreuma comunidade de bem e de mal, de justo e de injusto, e no simplesmente de prazeroso e doloroso) (AGAMBEN, 2002, p. 10).

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    exceo em favor da vida e segurana da populao. Neste sentido, a imagem de poder

    que opera contemporaneamente no mais caracterizada pela morte e pela lei, mas pela

    vida e pela norma. Isto ele faz a partir atravs de duas esferas distintas, mas totalmente

    interligadas: as disciplinas do corpo e as regulaes da populao. 4 Esta grande

    tecnologia de duas fazes aquilo que Agamben chama de teoria unitria do poder em

    Foucaultabre-se assim a era de um bio-poder (FOUCAULT, 188, p. 131-132).

    Os movimentos de tal teoria podem ser melhor compreendidos a partir das seguintes

    palavras do prprio Foucault:

    concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do sculo XVII,em duas formas principais; que no so antitticas e constituem, ao contrrio,dois plos de desenvolvimento interligado por um feixe intermedirio derelaes [os dois plos da relao unitria]. Um dos plos, o primeiro a ser

    formado, ao que parece, centrou-se no corpo como mquina: no seuadestramento, na ampliao de suas aptides, na extenso de duas foras, nocrescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemasde controle eficazes e econmicos tudo isso assegurado por procedimentos depoder que caracterizam as disciplinas: antomo-poltica do corpo humano. Osegundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do sculoXVIII, centrou-se no corpo-espcie, no corpo transpassado pela mecnica do servivo e como suporte dos processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e amortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, com todas ascondies que podem faz-lo variar; tais processos so assumidos mediante todauma srie de interveno e controles reguladores: uma bio-poltica dapopulao. As disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem osdois plos em torno dos quais se desenvolveu a organizao do poder sobre a

    vida. A instalao durante a poca clssica, desta grande tecnologia de duasfazes anatmica e biolgica, individualizante e especificante, voltada para osdesempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um podercuja funo mais elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida de cimapara baixo (FOUCAULT, 1988, p. 131).

    O pargrafo supracitado de importncia singular para a argumentao

    foucaultiana que Agamben recuperar, em primeiro lugar, porque a primeira vez em

    um livro que o filsofo introduz o conceito de biopoltica e, em segundo lugar, porque

    ele o faz relacionando com os dois plos do que temos chamado de teoria unitria do

    4Foucault acrescenta que estas duas esferas distintas daquilo que chamamos de teoria unitria do poder,ainda aparecem nitidamente separadas, no sculo XVIII. Do lado da disciplina as instituies como oExrcito ou a escola; [...] do lado das relaes de populao a demografia, a estimativa da relao entrerecursos e habitantes, a tabulao das riquezas e de sua circulao, das vidas com sua durao provvel[...] a Ideologia como doutrina da aprendizagem, mas tambm do contrato e da formao regulada do corsocial constitui, sem dvida, o discurso abstrato em que se procurou coordenar as duas tcnicas de poderpara elaborar sua teoria geral. De fato, sua articulao no ser feita no final de um discurso especulativo,mas na forma de agenciamentos concretos que constituiro a grande tecnologia do poder no sculo XIX:o dispositivo de sexualidade ser um deles, e dos mais importantes (188, p. 132). Justamente por causadeste fator, pode-se compreender a importncia assumida pelo sexo como foco da disputa poltica. que

    ele e encontra na articulao entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologiapoltica da vida. [...] Insere-se, simultaneamente, nos dois registros, d lugar a vigilncias infinitesimais, acontroles constantes (188, p. 136).

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    poder. Ele mostra que a substituio do universo de privilgios caractersticos do poder

    soberano, que ocorreu a partir do sculo XVII, se desenvolveu em duas esferas distintas,

    mas no antitticas. Na verdade, as duas tiveram seu desenvolvimento relacionado a

    partir de um feixe intermedirio comum de relaes. A primeira faceta deste poder

    sobre a vida centrou-se na ao sobre o corpo entendido com mquina, isto , na

    ampliao das capacidades produtivas e da utilidade dos corpos atravs de seu

    adestramento e vigilncia. O nome deste plo a antomo-poltica do corpo humano: o

    crescimento simultneo da utilidade e da docilidade dos indivduos atravs de sua

    integrao em sistemas de controle. O segundo plo j uma formao mais tardia e,

    em certo sentido, resultado dos procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas

    neste sentido, a nfase prioritria que a biopoltica assumir na pesquisa de Foucault

    no um deslocamento novo de seu raciocnio, mas o reconhecimento de um

    desdobramento necessrio daquilo que j estava sendo investigado em Vigiar e Punir.

    Trata-se dos processos assumidos a partir do sculo XVIII que transpassou o corpo dos

    indivduos enquanto mero ser vivo, o corpo-espcie, regulado por todo um suporte de

    processos biolgicos. A biopoltica da populao trata-se daquela faceta do poder sobre

    a vida que ocupou-se em regular e intervir em toda a esfera propriamente biolgica que

    est envolvida uma sociedadetal como a natalidade, mortalidade, qualidade da sade,

    longevidade, etc. Tudo isto, tambm atravs de sistemas de controle e interveno

    eficazes e, principalmente, econmicosconforme ser explorado nos cursos da dcada

    de 70 no Collge de France.

    Esta bio-histria da sexualidade iniciada no primeiro volume sobre a

    vontade de saber sobre as presses por meio das quais os movimentos da vida e os

    processos da histria interferem entre si, na verdade ser chamada no interior do

    pensamento de Foucault de bio-poltica, para designar o que faz com que a vida e seus

    mecanismos entre no domnio dos clculos explcitos, e faz do poder-saber um agentede transformao da vida humana (FOUCAULT, 188, p. 134). Contudo, no ser no

    primeiro volume da Histria da sexualidade que o filsofo explorar o conceito a

    exausto. Nos anos que seguiram a publicao do livro, de 1975 a 1979, Foucault

    lecionar no Collge de Francetrs cursos de fundamental importncia para o tema:Em

    defesa da sociedade, Segurana, territrio e populaoe oNascimento da biopoltica.

    Cobrir o contedo destes cursos no s desnecessrio, devido aos bons comentrios

    que temos acerca do tema, como tambm invivel para os propsitos que se coloca opresente artigo. No obstante, faz-se necessrio destacar que ser a partir destes cursos

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    que Agamben situar filosoficamente o limiar da modernidade biolgica que, dentre

    outras coisas, significa essencialmente que a passagem do Estado

    territorial ao Estado de populao e o consequente aumento vertiginoso da

    importncia da vida biolgica e da sade da nao como problema do poder soberano,

    que se transformar ento progressivamente em governo dos homens (AGAMBEN,

    2002, p. 11).

    Agamben nos lembra que Hannah Arendt tambm identificou esse mesmo

    processo de transformao nas sociedades modernas. 5No entanto, alm de Arendt e

    Foucault nunca terem dialogado diretamente motivo que impossibilitou relacionar

    biopoltica aos campos de concentrao e de refugiadostambm a morte de Foucault o

    impediu de desenvolver todas as implicaes que o conceito de biopoder carregava

    consigo. Abre-se, portanto, um campo de investigao excepcional para a filosofia

    poltica. O ingresso dazona esfera dapolis, a politizao da mera vida dos indivduos,

    constitui um evento decisivo na modernidade e nenhuma das questes tico-polticas

    que temos diante dos nossos olhos hoje podem ser compreendidas sem levar em

    considerao esse fato. Ou ainda, nas palavras de Agamben, os enigmas que nosso

    sculo props razo histrica e que permanecem atuais (o nazismo s o mais

    inquietante dentre eles) podero ser resolvidos somente no terreno a biopolticaem

    que foram intrincados (AGAMBEN, 2002, p. 12). To somente quando a assinatura

    poder for recolocada nesse contexto de indistino das categorias clssicas da cincia

    poltica, que talvez possamos fazer sair de sua ocultao moderna uma ao humana

    distintamente poltica.

    Uma das orientaes mais basilares que Agamben assume em seu projeto de

    investigar esses enigmas contemporneos e propor alguma soluo, aquela que h

    muito Foucault j nos instruiu o decidido abandono da abordagem tradicional do

    problema do poder, baseada em modelos jurdico-institucionais (a definio dasoberania, a teoria do Estado), para ir em direo de uma anlise sem preconceito dos

    modos concretos com que o poder penetra no prprio corpo de seus sujeitos e em suas

    formas de vida (AGAMBEN, 2002, p. 13). Nesta altura torna-se mais clara e evidente

    o significado de uma teoria unitria do poder. Tal abordagem unitria no significa de

    5Segundo Agamben Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva ohomo laborans e, com este, a vida biolgica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena

    poltica do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sabre a ao poltica que Arendt fazia,alis, remontar a transformao e a decadncia do espao pblico na sociedade moderna (AGAMBEN,2002, p. 11).

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    modo algum o esforo de analisar cada uma das duas direes que a assinatura poder

    assume na poltica modernaisso porque, o trabalho de Foucault foi exatamente esse. 6

    Ao invs disso, a investigao do filsofo italiano se ocupar com o elo em que esses

    dois aspectos do poder convergem e do lugar a um centro unitrio no qual a dupla

    direo poltica encontra sua razo de ser. Em sntese, se Foucault contestou as

    abordagens tradicionais do problema do poder, baseada exclusivamente em modelos

    jurdicos e institucionais, cabe agora perguntar onde est, ento, no corpo do poder, a

    zona de indiferenciao (ou ao menos, o ponto de interseco) em que tcnicas de

    individualizao e procedimentos totalizantes se tocam? (AGAMBEN, 2002, p. 13).

    Essa pergunta ditar o tom da presente genealogia teolgica da assinatura de poder,

    tendo como objeto privilegiado esse ponto oculto de interseco entre o modelo

    jurdico-institucional e o modelo biopoltico de poder.

    No desnecessrio esclarecer esse carter teolgico que a genealogia da

    assinatura de poder assumir nos trabalhos de Agamben. O protagonista eleito por

    Agamben para ilustrar o processo de constituio da operao soberana no Ocidental

    uma figura retirada do mbito religioso mais arcaico do direito romano. Trata-se do

    homo sacer. Tal indivduo uma obscura figura do direito romano que tem seu papel na

    vida pblica justamente quando ele colocado fora dela. Contudo, de maneira mais

    clara, o que um homo sacer? Uma das definies mais precisas desta categoria pode

    ser encontrada no gramtico Festus, quando este nos diz:

    Sacer mons: Chamamos monte sagrado a um monte situado na outra margem doAniene, um pouco alm da terceira pedra militar, posto que o povo no momentode separar-se do senado e logo aps a criao dos tribunos da plebe,estabelecidos para ajud-lo, o consagrou a Jpiter no momento de retirar-se.Porm, d-se o apelido de sacer ao homem que o povo julgou por um delito;no permitido sacrific-lo mas aquele que o mata no condenado comohomicida, posto que a primeira lei tribuncia estabelece esta disposio se

    algum mata aquele que sagrado por plebiscito, no ser consideradohomicida. Da que em linguagem familiar se chame sacer a todo homem mau eimpuro (FESTUS, 1997, p. 422-424, traduo de Luduea).

    A vida nua, a mera vida matvel de um indivduo includa nos tramites do

    ordenamento jurdico tendo como principal caracterstica sua excluso, sua

    matabilidade. Ou seja, o homo sacer aqui definido ao mesmo tempo como

    6Nas palavras de Agamben por um lado, o estudo das tcnicas polticas (como a cincia dopoliciamento) com as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos

    indivduos; por outro, o estudo das tecnologias do eu, atravs das quais se realiza o processo desubjetivao que leva o indivduo a vincular-se prpria identidade e prpria conscincia e,conjuntamente, a um poder de controle externo (2002, p. 13).

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    insacrificvel e como suscetvel de ser executado por qualquer um. Justamente por tudo

    isso um homo sacer, esta que talvez a mais antiga acepo do termo sacer nos

    apresenta o enigma de uma figura do sagrado aqum ou alm do religioso, que constitui

    o primeiro paradigma do espao poltico do Ocidente (AGAMBEN, 2002, p. 16). 7

    De certa forma, portanto, a figura do homo sacer ser um paradigma

    privilegiado para pensarmos a condio de mera vida, de vida nua, dos cidados

    contemporneos nas democracias de direito. Nesse sentido, tanto a argumentao de

    Agamben em Homo Sacer I, bem como a sua reconstruo no presente artigo,

    assumiram a seguinte trajetria: em um primeiro momento (1) exploraremos o paradoxo

    em que est imerso o exerccio do poder soberano no Ocidente, para que ento, em um

    segundo momento, (2) possamos ilustrar tal dinmica com a aporia jurdica do poder

    constituinte e poder constitudo.

    Vale considerar, antes de terminar que em toda a investigao de Agamben, o

    fator decisivo e propriamente inovador no , por um lado, a incluso da zona polis

    pois como Fabin Luduea bem mostrou, uma constatao que data da filosofia

    platnicanem mesmo o simples fato de que vida tenha se tornado o objeto principal

    dos clculos do poder estatal pois todas as concluses de Foucault j o fazem muito

    bem. Aquilo que original e com capacidades para elucidar o contemporneo, na

    filosofia de Agamben , sobretudo,

    O fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceo se torna em todosos lugares a regra, o espao da vida nua, situado originalmente margem doordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espao poltico, eexcluso e a incluso, externo e interno, bos ezo, direito e fato entram em umazona de irredutvel indistino. O estado de exceo, no qual a vida nua era, aomesmo tempo, excluda e capturada pelo ordenamento, constitua, na verdade,em seu apartamento, o funcionamento oculto sabre o qual repousava o inteirosistema poltico; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vidanua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente sujeito e o

    objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos, o ponto comum tanto daorganizao do poder estatal quanto da emancipao dele. [...] Estes processos,sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparncia) em conflito acerbo entreeles, convergem, porm, no fato de que em ambos o que est em questo a vida

    7Conforme esclarece mais uma vez Luduea a figura do homo sacer, ento, se encontra mais alm,tantodo direito penal quanto do sacrifcio religioso, ainda que ao mesmo tempo tenha sua origem em umadupla exceo relacionada com ambas as esferas . A inteno de Agamben consiste ento em identificar aexcluso originria atravs da qual se constituiu a dimenso poltica (AGAMBEN, 2002, p. 1), isto , oespao em que se decidiu sobre a humanidade mesma do homem. Essa esfera no a -histrica, como jse recriminou a Agamben, seno originria, quer dizer, completamente imbuda de historicidade enquantoUr-phnomenon da poltica em seu aspecto soberano. Tampouco se trata, desde logo, de um

    essencialismo, seno de algo assim como a Entstehung da wirkliche Historie de que falava FriedrichNietzsche. O espao poltico do homem ocidental , para Agamben, um espao da excepcionalidadeoriginria (2013, p. 239).

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    nua do cidado, o novo corpo biopoltico da humanidade (AGAMBEN, 2002, p.16-17).

    Com essas palavras, Agamben consegue expor a diferena especfica de sua

    empreitada filosfica. O espao de vazio inoperante que caracterizado nasdemocracias contemporneas coincide com o que ele chama de estado de exceo como

    regra. Um espao em que a mera vida nua dos indivduos colocada margem do

    ordenamento e, progressivamente, vai tornando-se a prpria vida poltica tpica. Tudo

    isso faz com que as fronteiras daquelas categorias clssicas da filosofia poltica se

    indeterminem, fazendo com que o cidado torne-se tambm simultaneamente, sujeito e

    objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos. justamente por isso que, mesmo

    onde h luta, conquistas de direitos e de liberdades existem tambm um corpo sacro

    um homo sacersendo um pouco mais capturado e inscrito no nos ditames do controle

    governamentalrazo essa que levar Agamben a problematizar os modernos direitos

    humanos na seo final deHomo Sacer I.

    No preciso dizer que o reconhecimento dessa aporia fundamental no interior

    da operao soberana no significa desvalorizar ou mesmo abrir mo das conquistas da

    democracia. O que Agamben pretende tentar compreender por que, justamente no

    instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversrios e

    atingido seu apogeu, ela se revelou inescapavelmente incapaz de salvar de uma runa

    sem precedentes aquelazo (AGAMBEN, 2002, p. 17) zoessa que as democracias

    de direto fizeram seus principais objetos de dedicao e esforos. Em outras palavras,

    para o filsofo italiano, a experincia de decadncia continua nas democracias

    ocidentais que foram apontadas j por Alexis de Tocqueville em A democracia na

    Amrica, mas que atingiram seu cume nos estados totalitrios do novecentos talvez

    possa ser explicada por essa aporia constituinte da poltica.

    Precisamente em um perodo histrico em que a tica e a poltica no conhecem

    outro valor do que a vida, se ocupar com as gigantescas contradies que essa postura

    implica pode ser nossa nica possibilidade de fazer com que o fascismo no permanea

    atual. Esses vinte e quatro sculos de teoria poltica desde Aristteles, parece que no

    trouxeram nenhuma soluo, ao menos provisria, para tal aporia que se encontra na

    base da poltica ocidental. O trono se mantm a partir do vazio da operao de captura

    da vida pelo poltico. Ou ainda, nas palavras de Agamben a poltica, na execuo da

    tarefa metafsica que a levou a assumir sempre mais a forma de uma biopoltica, no

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    conseguiu construir a articulao entre zoe bos, entre voz e linguagem, que deveria

    recompor a fratura (2002, p. 18).

    To somente uma poltica totalmente nova, isto , uma poltica que no seja

    fundada sobre a operao de incluir a vida nua atravs de sua excluso, poder nos dar

    condies de escapar deste beco sem sada em que se encontra a ao humana hoje. O

    curso dessa investigao e descoberta de novos horizontes inclui muitos movimentos

    argumentativos basilares, que passam desde uma reviso se reservas das principais

    noes que as cincias humanas, a jurisprudncia e a antropologia acreditavam ter

    definido, como tambm de uma crtica radical ao que est na base de muito do que foi

    produzido na filosofia poltica. Nesse sentido, comearemos por nos perguntar sobre a

    lgica da soberania.

    2. A incluso da vida atravs de seu abandono: a lgica da operao soberana

    Conforme procuramos deixar claro na introduo do presente trabalho, a

    metodologia de crtica que Agamben empreende em toda a saga Homo Sacer bastante

    coerente e segue um caminho bsico. Antes de apontar a necessidade de um poder

    destituinte ou mesmo a urgncia de uma nova poltica, Agamben sempre inicia seus

    raciocnios mostrando a condio paradoxal entre duas categorias clssicas da filosofia

    poltica ou ontologia. Esse o primeiro movimento de toda e qualquer argumentao de

    Agambensempre seguido de um passo que evidncia a zona de indeterminao entre

    essas duas categorias, para depois, ao final, apontar para a inoperosidade destituinte. Ou

    ainda, nas palavras do comentador William Watkin para Agamben, todos os conceitos

    ocidentais de qualquer significncia derivam sua longevidade, consistncia e operao

    do conflito dialtico interno entre elementos em comum e elementos prprios, ouseja,

    cada conceito no Ocidente bifurcado (WATKIN, 2014, p. xii, traduo nossa).A assinatura poder no ficaria de fora dessa dinmica caracterstica da

    filosofia ocidental. Toda a primeira parte do livro Homo Sacer I dedicada ao

    esclarecimento desse paradoxo existente na mais caracterstica operao de poder, qual

    seja, a soberania jurdico-poltica. Antes de prosseguir, entretanto, vale elucidar

    brevemente a razo pela qual tal operao soberana o paradigma privilegiado para

    abordar a assinatura poderuma vez que, se nos lembrarmos do trabalho de Foucault,

    temos em mente algo muito mais capilar e microfsico, ao invs de uma nica operao.Contudo, precisamos situar tal escolha no todo da obra de Agamben, bem como, de sua

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    relao com Foucault. Conforme buscarmos deixar claro nas sees anteriores,

    Agamben identificou dois plos na obra de Foucault em que o poder abordado

    tecnologias polticas e tcnicas do eu , uma vez que a inteno de Agamben

    justamente abordar o poder a partir de um ponto de vista unitrio, a operao soberana

    um excelente paradigma. 8 Nela observamos justamente esses dois plos em ao,

    gerando uma figura igualmente unificadora, qual seja, o sujeito soberano. A partir de

    um nome que mais se parece com uma contradio performtica, a figura do sujeito

    soberano consegue expor melhor do que qualquer outra o paradoxo poltico em que

    estamos inseridos. Conforme as palavras do prprio Agamben, em um texto publicado

    muito anos antes deHomo Sacer I, podemos entender que:

    este paradoxo muito antigo e, se se observa atentamente, est explicito nomesmo oximoro em que se encontra a expresso: o sujeito soberano. O sujeito(isto , aquilo que etimologicamente est sob) soberano (, por isso, aquilo queest sobre). E talvez o termo sujeito (em conformidade ambigidade da raizindo-europeia da qual derivam as duas propores latinas de sentido opostosuper e sub) no tem outro significado que este paradoxo, este ficar l onde esteno est (AGAMBEN, 2005, p. 92).

    Podemos observar que Agamben estava bastante ciente da situao paradoxal

    em que o poder ocidental estava inserido quando escreveu o texto Bataille e o paradoxo

    da soberania (1987). A diferena de sua abordagem para o que ir fazer em Homo

    Sacer I no diz respeito tanto a questo, mas com quem ele estabelecer o dilogo.

    Enquanto no primeiro ele est se referindo diretamente a questo de uma comunidade

    livre do fascismo, a partir da obra de Bataille, Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot, em

    Homo Sacer I, Agamben far uso do pensamento do jurista alemo Carl Schmitt, no

    8

    O termo paradigma que recorrentemente aparece tanto na obra de Agamben, quanto no presenteartigo, tambm tem um significado especfico no interior da filosofia do italiano. Em estreita relao comsua filosofia da indiferena os paradigmas de Agamben so exemplos, ou melhor, quaisquer fenmenosde uma determina condio ou situao que exemplificam, de maneira completa, aquilo do que fazemparte. O paradigma geralmente no o melhor exemplo ou a porta de entrada principal, mas qualquerexemploum caso distintamente indiferente. Nas palavras do prprio Agamben em A comunidade quevem O ser que vem o ser qualquer [qualunque]. Na enumerao escolstica dos transcendentais(quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum, qualquer ente que se queira uno, verdadeiro, bomou perfeito), o termo que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos osoutros o adjetivo quodlibet [qualquer]. A traduo corrente no sentido de no importa qual,indiferentemente certamente correta, mas, quanto forma, diz exatamente o contrrio do latino:quodlibet ens[qualquer ente] no o ser, no importa qual, mas o ser tal que, de todo modo, importaisto , este j contm sempre uma referncia ao desejar (libet), o ser qual-se-queira est em relao

    original com o desejo (2013, p. ). Diante dessas palavras, um paradigma, tal como a operaosoberana, um exemplo qualquer, que consegue carregar consigo o significado de tudo aquilo do qual eleexemplifica.

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    apenas para enunciar o paradoxo, como tambm para torn-lo inoperante. As palavras

    so as seguintes:

    O paradoxo da soberania se enuncia o soberano est, ao mesmo tempo, dentro

    e fora do ordenamento jurdico. Se o soberano , de fato, aquele no qual oordenamento jurdico reconhece o poder de proclamar o estado de exceo e desuspender, deste modo, a validade do ordenamento, ento ele permanece forado ordenamento jurdico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir sea constituio in totopossa ser suspensa (Schmitt, 122, p. 34). A especificaoao mesmo tempo no trivial o soberano, tendo o poder legal de suspender avalidade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo

    pode ser formulado tambm deste modo a lei est fora dela mesma, ou entoeu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que no h um fora da lei(AGAMBEN, 2002, p. 23).

    Ainda que toda a recuperao do contexto do pensamento de Schmitt seja um

    projeto muito grande para o presente artigo, desde j podemos compreender o que est

    em jogo na argumentao de Agamben. Esquematicamente, podemos dizer que o

    paradoxo da soberania reside no fato do sujeito soberano estar, ao mesmo tempo, dentro

    e fora do ordenamento legal. Este mesmo sujeito que tem o poder de suspender a

    validade da lei, coloca-se, de forma totalmente legal, fora da lei. Em sntese, o paradoxo

    o carter excepcional da soberania, dado que o que esta em questo na exceo

    soberana , segundo Schmitt, a prpria condio de possibilidade da validade da norma

    jurdica e, com esta, o prprio sentido da autoridade estatal (AGAMBEN, 2002, p. 24-

    25). Nesse sentido, a exceo uma espcie de excluso, em que o excludo, todavia,

    no est absolutamente fora da relao com a norma. Daqui, portanto, nasce a situao

    paradoxal.

    Agamben, no entanto, sabia que, para alm do prprio Schmitt, outras pessoas j

    haviam observado que o ordenamento jurdico-poltico tem uma estrutura de incluso

    daquilo que , ao mesmo tempo, excludo. Gilles Deleuze j havia verificado em Mille

    plateaux e Maurice Blanchot em Lentretien infini sem esquecer-se do prprio

    Foucault naHistoire de la folie lge classique. No entanto, para o filsofo italiano a

    exceo que define a estrutura da soberania , porm, ainda mais complexa (2002, p.

    26) e por isso, ainda carecia ser melhor explorada. Isso Agamben faz destacando a

    seguinte especificidade:

    Aquilo que est fora vem aqui includo no simplesmente atravs de umainterdio ou um internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento,

    deixando, portanto, que ele se retire da exceo, a abandone. No a exceoque se subtrai regra, mas a regra que, suspendendo-se, d lugar exceo e

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    somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relao comaquela. O particular vigor da lei consiste nessa capacidade de manter-se emrelao com uma exterioridade. Chamemos relao de exceo a esta formaextrema da relao que inclui alguma coisa unicamente atravs de sua excluso(AGAMBEN, 2002, p. 26).

    Existem dois pontos fundamentais nesse trecho. Em primeiro lugar, trata-se da

    apresentao da operao soberana como a deciso sobre a exceo. Isso significa dizer

    que a deciso do soberano no diz respeito a uma questo de direito ou uma questo

    de fato, mas antes, e to somente, a prpria relao entre direito e fato. Soberano,

    portanto, aquele que d conta dessa situao, a situao limite de toda a estrutura do

    poder. Em outras palavras, a operao soberano, enquanto deciso pela exceo, a

    forma originria do direito. Em segundo lugar, as palavras supracitadas de Agamben

    nos mostram que, se a exceo a estrutura da operao soberana, ento a soberania

    no , nem um conceito exclusivamente poltico, nem uma potncia externa ao direito

    (como queria Schmitt) ou interna ao direito (como queria Hans Kelsen). Antes de tudo

    isso, ela o processo de incluso da vida no direito que, seguindo a sugesto de Jean-

    Luc Nancy, Agamben d o nome de bando. Conforme ele disse acima, aquilo que est

    fora vem aqui includo no simplesmente atravs de uma interdio ou um

    internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento, deixando, portanto, que ele

    se retire da exceo, a abandone. Ou seja, aquele que foi banido no simplesmentealgum que foi posto fora da lei, mas abandonado por ela. Ele no est indiferente e

    alheio lei, antes, ocupa um limiar entre vida e direito, entre externo e interno. Do

    sujeito soberano no possvel dizer se est fora ou dentro do ordenamento. Nesse

    sentido, Agamben apresenta-nos uma nova forma de colocar o paradoxo da operao

    soberana no existe um fora da lei. A relao originria da lei com a vida no a

    aplicao, mas o Abandono. A potncia insupervel do nmos, a sua originria fora de

    lei, que ela mantm a vida em seu bando abandonando-a (AGAMBEN, 2002, p. 36).Na sua forma arquetpica, portanto, o estado de exceo o princpio de todo

    ordenamento jurdico, uma vez que ele abre o espao para o prprio estabelecimento de

    determinado ordenamento. Essa sua estrutura fez com que Schmitt tivesse muita

    dificuldade de estabelecer o nexo entre localizao (Ortung) e ordenamento (Ordnung)

    que constitui o nmosda terra (cf. AGAMBEN, 2002, p. 27). Essencialmente ele era

    o ilocalizvel, uma vez que ele o ponta-p de qualquer localizao jurdico-poltica.

    Trata-se de uma verdadeira zona ilocalizvel de indiferena. No entanto, Agamben

    prope uma localizao, ou ainda, para falarmos com Foucault, uma visibilidade para o

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    discurso da exceo. Trata-se do campo de concentrao. Estabelecendo um contraste

    com a visibilidade eleita pelo prprio Foucault para corresponder com a dinmica do

    nmos, Agamben nos diz que no o crcere, mas o campo, na realidade, o espao

    que corresponde a esta estrutura originria do nmos (2002, p. 27). Mais do que uma

    questo de preferncia, o que est em jogo aqui uma opo coerente com o argumento

    que est sendo construdo. Justamente porque a inteno de Agamben no encontrar

    uma visibilidade que apenas corresponda a um dos plos da teoria unitria do poder

    como se presta a visibilidade do crcere foucaultiano em relao aos processos de

    subjetivao sua escolha foi o campo. Enquanto a priso insere-se no espao do

    direito carcerrio do ordenamento normal, o campo um verdadeiro espao de

    abandono e exceo. Ou ainda, a constelao jurdica que orienta o campo , como

    veremos, a lei marcial ou o estado de stio. [...] O campo, como espao absoluto da

    exceo, topologicamente distinto de um simples espao de recluso (AGAMBEN,

    2002, p. 27).

    Nesta altura, sua exemplaridade nos ajuda a compreender o modo como a vida

    includa nos clculos do poder e o paradoxo que tal operao gera. Conforme resume a

    professora da Universidade do Porto, Eugnia Vilela, ou seja, toda a vida se torna

    sagrada e toda a poltica se torna exceo (2010, p. 112). Caso tal dinmica paradoxal

    no seja levada em conta em nossa ao poltica, o fascismo se manter

    desgraadamente atual nas democracias hodiernas.

    3. Poder constituinte e poder constitudo: um exemplo do paradoxo da soberania

    Conforme vem sendo exposto at ento, a pretenso filosfica de Agamben no

    se limita s dimenses polticas. Para que a lgica da operao soberana realmente

    assuma as dimenses que o italiano diz que ela temisto , toda a metafsica ocidental

    , sua hiptese sobre a zona de indiferena precisa tangenciar outras reas do

    conhecimento. Isso fez com que Agamben se esforasse por toda a primeira parte de

    Homo Sacer Iem explorar alguns exemplos em que essa dinmica paradoxal mostra-se

    evidente. Um dos primeiros casos que ele apresenta, para alm do mbito estrito da

    poltica com a linguagem. Sua tese que uma dimenso no-normativa (tal como o

    estado de exceo) tambm acontece na linguagem. Ele nos lembra que igualmente a

    linguagem pressupe o no-lingustico como aquilo com o qual deve manter-se em uma

    relao virtual para poder denot-lo no discurso em ato (2002, p. 28).

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    No obstante, Agamben tambm menciona um exemplo da matemtica, retirado

    da teoria dos conjuntos, para igualmente ilustrar sua hiptese. Da mesma forma que na

    teoria dos conjuntos se distingue pertencimento e incluso, isto , um termo pode

    pertencer a um conjunto sem estar includo nele, ou vice-versa, Agamben sustentar que

    a exceo configure uma forma de pertencimento sem incluso. Nas suas palavras o

    que define o carter da pretenso soberana precisamente que ela se aplica exceo

    desaplicando-se, que ela inclui aquilo que est fora dela (2002, p. 32). A exceo

    soberana, em termo da teoria dos conjuntos, portanto, aquilo que no pode ser em

    nenhum caso includo, mas que vem a ser includo na forma da exceo algo como a

    paradoxal incluso do pertencimento mesmo que o Puzzle de Bertrand Russell h muito

    j enunciava, e que contemporaneamente Alain Badiou recuperou em categorias

    polticas.

    Com a apresentao de cada um desses exemplos, a inteno de Agamben

    defender que, se a exceo a estrutura da soberania, a soberania no pode ser um

    conceito exclusivamente poltico, nem uma categoria exclusivamente jurdica. Antes,

    trata-se da estrutura originria na qual o direito se refere vida e a inclui em si atravs

    da prpria suspenso (2002, p. 35). No entanto, dentre o conjunto de exemplos

    enumerados pelo autor para apresentar o paradoxo da operao soberana, no existe

    nenhum melhor do que o problema do poder constituinte e de sua relao com o poder

    constitudo. A reconstruo de tal problemtica, feita por Agamben no captulo 3 de

    Homo Sacer I, alm de ilustrar perfeitamente a dualidade que o italiano sempre busca

    tornar evidente em suas argumentaes, tambm ser de fundamental importncia para

    suas recentes pesquisas sobre aquilo que ele chamou de poder destituinte. Percorrendo

    tal trajetria, nossa proposta, em estreita harmonia com o fio condutor do presente

    trabalho, mostrar como Agamben expe a condio paradoxal insolvel das principais

    categorias jurdico-polticas, faz emergir uma zona de indistino entre elas, para que,por ltimo, introduza um terceiro elemento na relao que, no refora nem inicia outro

    paradoxo, mas o depe e o inopera. Por tudo isso, convm reconstruir a argumentao

    agambeniana sobre poder constitudo e constituinte.

    Na conceitografia jurdica, o poder constituinte refere-se potncia originria

    fora do jurdico, que cria e fundamenta um novo Estado; enquanto o poder constitudo

    diz respeito prpria ordem constitucional preestabelecida. Ou seja, o primeiro est fora

    do Estado, enquanto o outro se encontra no Estado. Daqui, para Agamben, nasce aimpossibilidade de compor de modo harmnico a relao entre os dois poderes (2002,

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    p. 47). Essa questo no diz respeito apenas compreenso da natureza jurdica da

    ditadura ou do estado de exceo, mas tambm nas recorrentes discusses sobre a

    reviso do texto constitucional. Aqueles que reduzem o poder constituinte ao poder de

    reviso, desconsideram sua potncia pr-jurdica de fazer nascer a constituio. Walter

    Benjamin, por sua vez, colocou a relao entre os dois poderes como aquela entre a

    violncia que pe o direito e a violncia que o conserva. Mesmo que essa oposio

    fundamental de Benjamin no tenha condies de ser reconstruda aqui, j podemos

    apontar para o que Agamben quer deixar evidente ainda que o poder constituinte,

    como violncia que pe o direito, seja certamente mais nobre que a violncia que o

    conserva, ele no possui, porm, em si nenhum titulo que possa legitimar sua

    alteridade (AGAMBEN, 2002, p. 48). Isso faz com que o relacionamento entre os dois

    poderes se mantenha ambguo e irremediavelmente confuso. Justamente nesse

    contexto, surge aquilo que Agamben procura deixar evidente:

    Nesta perspectiva, a clebre tese de Sieys, segundo a qual a constituio supeantes de tudo um poder constituinte, no , como tem sido observado, umsimples trusmo: ela deve ser entendida sobretudo no sentido de que aconstituio se pressupe como poder constituinte e, desta forma, exprime nomodo mais prenhe de sentidos o paradoxo da soberania. Como o poder soberanose pressupe como estado de natureza, que assim mantido em relao de bandocom o estado de direito, assim ele divide em poder constituinte e poder

    constitudo e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seuponto de indiferena (AGAMBEN, 2002, p. 48).

    Em tudo isso, mostra-se insolvel a questo de deixar clara a diferena entre os

    dois poderes. Tal dificuldade fez com que recorrentemente na histria das ideias

    polticas, uma fonte transcendente e infinita de autoridade fosse evocada para que

    pudesse conferir uma soberania igualmente infinita nao tal como o caso do Ser

    Supremo de Robespierre que Hannah Arendt nos lembra em Sobre a Revoluo. A

    grande questo aqui, entretanto, no a de conceber um poder constituinte que nunca seesgote em um poder constitudo. Antes, trata-se de distinguir os dois algo que, dada a

    estrutura jurdica ocidental, para Agamben impossvel, fazendo com que surja uma

    zona de indiferena entre eles que alimenta a operao soberana tal como tem sido

    descrita aqui.

    Quem problematizou essa mesma relao, mas de um ponto de vista totalmente

    diferente, fazendo com que a questo assumisse uma dimenso absolutamente diversa

    do que at ento apresentava, foi Antonio Negri. Em seu livro O Poder Constituinte:ensaio sobre as alternativas da modernidade (1992), Negri busca sustentar a tese da

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    total irredutibilidade do poder constituinte a qualquer forma de ordenamento constitudo

    e, por conseguinte, uma reduo ao princpio da soberania. Ao contrrio, para Negri,

    falar de poder constituinte falar de democracia, apresentando-o como expanso

    revolucionria da capacidade humana de construir a histria, como ato de inovao e,

    portanto, como procedimento absoluto (NEGRI, 2002, p. 40). Em tal aproximao do

    poder constituinte ao prprio processo histrico democrtico, Negri busca deixar

    evidente que o poder constituinte no apenas a fonte onipotente e expansiva que

    produz as normas constitucionais de todos os ordenamentos jurdicos, mas tambm o

    sujeito desta produo (2002, p. 7).

    Para Agamben, no entanto, a grande contribuio que Negri traz discusso da

    relao entre poder constitudo e constituinte encarar esse ltimo como uma potncia.9 Isso faz com que o poder constituinte deixe de ser um conceito poltico para

    transforma-se em uma categoria da ontologia. Conforme coloca Agamben, com essa

    modificao de Negri,

    O problema do poder constituinte se torna ento aquele da constituio dapotncia (Negri, 12, p. 383), e a dialtica irresolvida entre poder constituintee poder constitudo deixa lugar a uma nova articulao da relao entre potnciae ato, o que exige nada menos que repensar as categorias ontolgicas damodalidade em seu conjunto. O problema se desloca, assim, da filosofia poltica

    filosofia primeira (ou, se quisermos, a poltica restituda sua condioontolgica). Somente uma conjugao inteiramente nova de possibilidade erealidade, de contingncia e necessidade e dos outros pthe to ntos, poder, defato, permitir que se fenda o n que une soberania e poder constituinte: esomente se conseguirmos pensar de modo diverso a relao entre potncia e ato,e, alis, alm dela, ser possvel conceber um poder constituinte inteiramentelivro do bando soberano. At que uma nova e coerente ontologia da potncia(mais alm dos passos que nesta direo moveram Spinoza, Schelling, Nietzschee Heidegger) no tenha substitudo a ontologia fundada sobre a primazia do ato esobre sua relao com a potncia, uma teoria poltica subtrada s aporias dassoberanias permanece impensvel (AGAMBEN, 2002, p. 51-52).

    No pargrafo supracitado, mais do que um comentrio ao movimento filosficoque Negri empreendeu em sua investigao, Agamben aponta para o horizonte em que

    sua prpria pesquisa se encaminhar. A afirmao da insolubilidade da aporia em que

    esto envolvidas as principais categorias filosficas ocidentais, produz, pelo menos,

    dois resultados imediatos: em primeiro lugar, ela torna muitos esforos intelectuais

    9Nas palavras do prprio Negri o moderno , assim, a negao de toda possibilidade de que a multidopossa se exprimir como subjetividade. Numa primeira definio, o moderno consiste nisto. Portanto, no estranho, nem pode ser considerado imprevisto, que ao poder constituinte no possa ser concedido

    espao algum. Quando ele emerge, deve ser reduzido extraordinariedade; quando se impe, deve serdefinido como exterioridade; quando triunfa sobre toda interdio, excluso ou represso, deve serneutralizado num termidorqualquer. O Poder constitudo esta negao (2002, p. 448).

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    incuos particularmente aqueles que insistem em proceder no interior da ontologia

    que relaciona potncia e ato a exemplo do que tem sido feito desde Aristteles. Em

    segundo lugar, ela necessariamente exige de Agamben, ou de qualquer outro que

    subscreva suas constataes, no mnimo, o sinalizar de um novo conjunto conceitual

    que trace os contornos de uma alternativa ontolgica da potncia.

    A utilizao de alguns insights da teologia do apstolo Paulo por parte de

    Agamben tem justamente esse propsito. Para Agamben, Paulo enfrentou uma situao

    ontolgica de natureza anloga operao soberana nas democracias contemporneas.

    Isso exigiu do apstolo traar os contornos de um pensamento que tem condies de nos

    sinalizar horizontes muito promissores para o que Agamben chama de a filosofia que

    vem. De forma esquemtica, Agamben argumenta que tal ontologia alternativa se faz

    necessria, uma vez que a condio paradoxal que a relao entre poder constitudo e

    poder constituinte exemplifica, tem nas razes de sua complexidade a relao entre

    potncia (dynamis) e ato (enrgeia) em Aristteles. Da mesma forma que acontece com

    na linguagem, na teoria dos conjuntos e no direito constitucional, no pensamento de

    Aristteles, de fato, por um lado, a potncia precede o ato e o condiciona e, por outro,

    parece permanecer essencialmente subordinada a ele (AGAMBEN, 2002, p. 52).

    Aristteles, no entanto, faz questo de afirmar a existncia autnoma da potncia, para

    evitar o problema de reduzir toda a potncia como existente somente no ato como

    alguns juristas e polticos tentam reduzir todo poder constituinte ao poder constitudo.

    Nesse sentido, o que ele se prope a pensar no livro Theta da Metafsicano , em

    outras palavras, a potncia como mera possibilidade lgica, mas os modos efetivos de

    sua existncia (AGAMBEN, 2002, p. 52). Mais do que isso, necessrio pensar na

    potncia de forma que ela possa at mesmo no passar ao ato, ou seja, que se apresente

    constitutivamente como potncia de no fazer ou no sera impotncia (adynama) de

    Aristteles.Descrevendo dessa forma a natureza da potncia, Agamben acredita que

    Aristteles legou filosofia ocidental o paradigma da soberania. Isso ele sustenta

    porque, estrutura da potncia, que se mantm em relao com o ato precisamente

    atravs de seu poder no ser, corresponde aquela do bando soberano, que aplica-se

    exceo desaplicando-se (2002, p. 54). Nesse sentido, a potncia aristotlica, de certa

    forma, sem funda soberanamente, isto , sem que nada a preceda nem a determina, a

    no ser, o seu prprio poder de no ser (adynama). Conforme podemos ver em outrasdiscusses de Agamben, a partir da teoria de Carl Schmitt, a deciso soberana

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    justamente aquele ato que o soberano realiza retirando a prpria potncia de no ser, ou

    seja, deixando-se ser. Ou ainda, conforme sintetiza Agamben a soberania sempre

    dplice, porque o ser se auto-suspende mantendo-se, como potncia, em relao de

    bando (ou abandono) consigo, para realizar-se ento como ato absoluto (2002, p. 54).

    Consideraes finais

    Podemos concluir, portanto, que a ambiguidade da relao entre poder

    constitudo e poder constituinte, bem como seu paralelo ontolgico da teoria aristotlica

    da potncia/ato, exemplifica de maneira paradigmtica a operao soberana no

    Ocidente. Tal estrutura faz com que a tarefa de pensar uma constituio de uma

    potncia totalmente emancipada desse paradoxo da soberaniatal como quis Negri com

    o poder constituinte, ou como o prprio Agamben intentar com o poder destituinte

    seja to rdua. Isso porque, o que est em jogo no a necessidade que esse poder no

    se esgote jamais em um poder constituinte pois at mesmo o poder soberano pode

    manter-se indefinidamente apenas em potncia, sem passar ao ato e transformar-se em

    uma constituio.

    A grande questo est em pensar em uma potncia que no tenha o sentido

    ltimo de sua relao em nenhum ato. Para Agamben, no entanto, isto implicaria,

    porm, nada menos que pensar a ontologia e a poltica alm de toda figura da relao,

    seja at mesmo daquela relao limite que o bando soberano; mas isto justamente o

    que muitos hoje no esto dispostos a fazer por preo algum (2002, p. 55). A aporia

    ontolgica revela aqui suas dimenses poltica. Mais do que isso, essa altura da em que

    a investigao nos coloca deixar evidente nos ltimos momentos do presente trabalho

    que a proposta de Agamben necessariamente precisaria ser algo da espcie de um

    poder destituinte que no mais transitasse entre a colocao ou manuteno daoperao soberana, mas que a destitua e inopere.

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