corrigindo corpos (in)perfeitos a escola como cartografia da dor e da punição

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UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punição. Mneme – Revista de Humanidades [ Dossiê Histórias da Saúde e da Doença, org. André Mota e Iranilson Buriti ]. Caicó (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponível em http://www.seol.com.br/mneme . 167 CORRIGINDO CORPOS (IM)PERFEITOS: A ESCOLA COMO CARTOGRAFIA DA DOR E DA PUNIÇÃO Denise Uchoa Pedagoga – UEPB e-mail: [email protected] Resumo O presente trabalho visa analisar as marcas psicológicas sutis e violentas oriundas da relação professor/aluno e vivenciadas por estudantes em seu cotidiano escolar nas diferentes instituições de ensino público de Campina Grande-PB. Tomando como referencial teórico Michel de Certeau e Michel Foucault, procuramos entender como foi sendo construído o espaço escolar, marcado por disciplinas, interdições e silenciamentos, de modo que o aluno tivesse seu cotidiano escolar esquadrinhado, vigiado e punido. Analisaremos como o corpo do educando foi sendo utilizado como espaço para intervenções “cirúrgico-pedagógicas”, propiciadoras de dores, de marcas psicológicas e de traumas. Palavras-chave Violência, infância, intervenção cirúrgico-pedagógica. 1. Introdução Soure (Ilha do Marajó - PA), 1979. Escola Estadual Gasparino de Souza, 2 a série do ensino fundamental. Eu fazia parte de uma sala composta por 35 alunos uniformizados (meninas - saia plissada [azul escuro], blusa branca [no bolso, o emblema da escola], meias brancas e sapatos pretos). Os meninos portavam-se com short azul escuro, blusa e meias brancas, sapatos pretos. Na sala de aula, as carteiras

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Correção e corpos, escola,

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  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    CORRIGINDO CORPOS (IM)PERFEITOS:

    A ESCOLA COMO CARTOGRAFIA DA DOR E DA PUNIO

    Denise Uchoa Pedagoga UEPB

    e-mail: [email protected]

    Resumo

    O presente trabalho visa analisar as marcas psicolgicas sutis e violentas oriundas da

    relao professor/aluno e vivenciadas por estudantes em seu cotidiano escolar nas

    diferentes instituies de ensino pblico de Campina Grande-PB. Tomando como

    referencial terico Michel de Certeau e Michel Foucault, procuramos entender como

    foi sendo construdo o espao escolar, marcado por disciplinas, interdies e

    silenciamentos, de modo que o aluno tivesse seu cotidiano escolar esquadrinhado,

    vigiado e punido. Analisaremos como o corpo do educando foi sendo utilizado como

    espao para intervenes cirrgico-pedaggicas, propiciadoras de dores, de

    marcas psicolgicas e de traumas.

    Palavras-chave

    Violncia, infncia, interveno cirrgico-pedaggica.

    1. Introduo

    Soure (Ilha do Maraj - PA), 1979. Escola Estadual Gasparino de Souza, 2a srie

    do ensino fundamental. Eu fazia parte de uma sala composta por 35 alunos

    uniformizados (meninas - saia plissada [azul escuro], blusa branca [no bolso, o

    emblema da escola], meias brancas e sapatos pretos). Os meninos portavam-se com

    short azul escuro, blusa e meias brancas, sapatos pretos. Na sala de aula, as carteiras

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    arrumadas umas atrs das outras, enfileiradas ao gosto militar, de modo que ramos

    vistos e vigiados pelo olhar atento e disciplinador da professora, uma jovem senhora

    de aproximadamente 35 anos, olhar rspido, atento aos gestos dos alunos. ramos

    esquadrinhados pela professora o tempo inteiro.

    Na sala de aula, um outro componente estava presente: o quadro negro, to

    negro quanto o corao da professora que no permitia que ningum falasse horas e

    horas durante a aula. Alguns burlavam a regra e se atreviam a conversar com o

    vizinho, mas nunca escapavam do caro/repreenso da professora. Outros, como era

    o nosso caso, acomodavam-se em seus casulos com medo de virar borboletas e sair

    voando no mundo do conhecimento e da interao com os outros.

    No sei porqu, mas parece que os momentos indesejados da escola so os que

    mais ficam gravados em nossa memria. Nunca esqueci o nome desta professora

    (que aqui a chamaremos de Angelita), at sua fisionomia bem visvel (alta, magra,

    olhos negros, cabelos castanhos escuros). O medo que eu sentia dela era to grande

    que parece que me paralisava. Ela era famosa na escola pela sua crueldade, antipatia

    e frieza. Ningum queria ser seu aluno (a), mas infelizmente foi l que cursei a 2a

    srie. O problema que no era s fama. Fiquei apavorada um dia quando ela bateu

    a cabea de um aluno na parede, fazendo sangrar a alma daquele sujeito, um corpo a

    mais na sala de aula, castigado pela educadora, penalizado porque alou a sua voz

    quando a professora exigia silncio. Tal como em um hospital, a escola em que

    estudei a 2a srie era o lugar da dor, do silncio; ramos pacientes sendo

    constantemente diagnosticados, avaliados pelos critrios que desconhecamos,

    rotulados de doentes (atrasados, burros, asnos, reprovados) ou de curados

    (aprovados, adiantados, inteligentes, desasnados), patologizados de incapazes ou de

    capazes para irmos para a 3a srie, para passar de ano. semelhana de um

    quartel, ramos postos dia-a-dia na fila para entrarmos no ambiente escolar,

    cantvamos o hino nacional semanalmente, sentvamos em carteiras enfileiradas,

    aprendamos a ser soldados da ptria, num contexto marcado pelo Regime Militar

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    (1964-1984) disciplinando a populao brasileira. A professora era uma generala que

    usava as armas do autoritarismo para nos esquadrinhar o tempo inteiro, corrigir

    nosso corpo imperfeito, nossos gestos. O nosso corpo era educado para a

    submisso, para o silenciamento, para a negao da voz. Nosso corpo era

    seqestrado no cotidiano escolar. O espao que deveria ser de fala, tornava-se o lugar

    do silncio. ramos corpos infantis seqestrados pelas armas da professora-militar.

    Aquela escola era, para mim, um lugar de produo1 de interdies, da no-fala.

    Silncio! Era esta a palavra de ordem dessa instituio disciplinar, desse

    educandrio to conceituado pelo discurso da educao disciplinadora da Ilha do

    Maraj. Quem ousaria burlar esses cdigos? Quem se atreveria a ferir as normas

    institucionalizadas e j reconhecidas pela populao que morava na cidade de Soure

    e nos seus arredores? Os educandos tinham seus corpos fabricados para obedecer,

    para calar, para engolir a seco o choro provocado pelas palavras rspidas da

    professora ngela, pelos bolos, pelos castigos que punham os rebeldes em

    ambientes de correo, ficando em p na frente da turma. Sem rostos, sem corpos,

    sem vozes... Os educandos passavam o seu cotidiano escolar entre a cruz que ensina

    e o castigo que corrige. O silncio dominava o corpo estudantil da Escola Estadual

    Gasparino de Souza, tornando o indivduo isolado do grupo muitas vezes. O silncio

    e a submisso eram requisitos indispensveis para essa classe ser admitida e

    continuar na escola. O educando transformado numa figura passiva, sem expresso

    nem contorno pessoal, marcado pelo no-lugar. O meu corpo, assim como o corpo

    daqueles meus colegas de 2a srie, transformou-se num pergaminho onde a pena da

    professora ngela autenticou o seu autoritarismo e indelicadeza; os castigos

    gravaram a fora da lei (o mestre) sobre seus sditos (o educando), tatuando-os para

    torn-los uma demonstrao da regra, uma impresso que torne a norma legvel2. A

    1 Lugar de produo a instncia verbal de produo do discurso: o contexto histrico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do outro e do referente. Cf. BRANDO, H. Introduo anlise de discurso. Campinas: Edunicamp, 1995., p. 89. 2 Confira CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano 1. Artes de fazer. 2a ed., Petrpolis: Vozes, 1996.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    professora ngela era a lei caricaturada, era a norma vestida de mulher. Nela

    estavam inscritas as marcas de um deus educador ou de um demnio opressor,

    variando segundo o ponto de vista dos vrios olhares lanados sobre ela. As provas

    bimestrais e semestrais significavam para mim um dispositivo disciplinar3 que me

    fazia temer professora e obedecer aos cdigos de correo e de disciplinarizao,

    sendo o objetivo dessa disciplinarizao a auto-regulao dos sujeitos-alunos, a sua

    sujeio ao processo pedaggico utilizado naquele perodo. Tal como as fbricas,

    hospitais, hospcios, prises, instituies fundamentais ao funcionamento da

    sociedade industrial capitalista, a escola se estruturou e adotou como lgica de

    desenvolvimento as tcnicas e tticas oriundas deste processo de disciplinarizao.

    Mas o pior dos momentos vividos naquele cotidiano escolar era quando

    tnhamos que fazer a famosa aplicao de flor nos dentes. Todos os alunos recebiam

    um copinho descartvel com o lquido dentro. A professora observava a hora, e

    quando ela desse o comando, todos tinham que colocar o flor na boca, da ento ela

    contava os minutos que deveramos ficar com aquele lquido, sem poder engolir e

    nem to pouco jogar fora, e ai daquele que no agentasse o tempo que a professora

    determinou! Esse era um sofrimento, um verdadeiro dia de terror que sempre nos

    pegava de surpresa para que ningum escapasse.

    Mesmo que a tia ngela no fizesse nada, a presena dela, seu olhar, a

    forma como andava entre as fileiras de carteiras, me intimidava. A sensao de

    inferioridade, de incapacidade, a insegurana e o silncio imposto por ela me

    afetaram tanto, que por muito tempo me calei, no s na escola, mas em vrias reas

    de minha vida. O medo de jogar fora o flor vivenciado muitas vezes, passou a ser o

    medo de jogar fora os sentimentos que me faziam mal. A exigncia do silncio na

    escola me fez conversar muito, mas s em meus pensamentos, nunca conseguia dizer

    3 Segundo FOUCAULT, dispositivo disciplinar ou dispositivo de poder um conjunto decididamente heterogneo que engloba discursos, instituies, organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas. Em suma, o dito e o no dito so os elementos do dispositivo. Cf. FOUCAULT, M. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 244.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    para as pessoas as coisas que eu sentia. Lembro-me, agora, do que disse Rubem

    Alves: No me espanto, portanto, que tenha aprendido to pouco na escola. O que

    aprendi foi fora dela e contra ela (ALVES, 2001, p.17). Aquela escola me fabricava

    para ser uma caixa de armazenar conhecimento. Eu e aquela turma de alunos

    tivemos castrados a voz, o dilogo com a professora, o raciocinar e expressar nossas

    idias em sala de aula. Todas essas prticas normativas constituam um conjunto de

    critrios que permitiam aos alunos julgarem seus comportamentos, examinarem suas

    atitudes e, dependendo do caso, se auto-culparem. A professora e o material didtico

    eram os veculos da verdade, os dispositivos de poder4 que nos conduziam e

    subjugavam.

    Uma srie de investimentos ditos poltico-pedaggicos era realizada sobre os

    corpos dos estudantes e, mediante esses vrios dispositivos de poder-saber, ia-se

    fabricando um jeito de educar, uma forma de disciplinar, de corrigir, de aprender, de

    normatizar (LOURO, 1997, p. 461). Ia-se criando novas tecnologias para controlar a

    populao estudantil, cercando-a de salvaguardas, lanando mo de mltiplos

    recursos e dispositivos no espao da escola, controlando-a por meio de uma srie de

    rituais e smbolos religiosos, de doutrinas catequticas e normas que produziam o

    corpo do aluno na Ilha do Maraj PA nas dcadas de 70 e 80. A escola era, segundo

    Carlota Boto (1997, p.10), um veculo privilegiado para formar tradies.

    A histria das prticas disciplinares pedaggicas nessa instituio paraense

    celebra um confinamento do aluno e uma circunscrio da infncia. Vivamos

    constantemente em castigos, tiranizados, humilhados diante dos demais colegas de

    turma, punidos pelo simples remexer nas carteiras ou conversas paralelas. A

    pedagogia da humilhao era, tambm, a pedagogia da amputao, do seqestro da

    voz, do seqestro de corpos. Quando me lancei rpida tarefa de historiar o

    cotidiano escolar daquela instituio escolar, uma das primeiras cenas que me

    deparei foi com a construo da noo de uma responsabilidade individualizada, em

    4 Alhures.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    que os conceitos de erro e de culpabilidade eram introjetados desde o primeiro dia

    que cheguei escola. Estava ali porque era burra, porque no dava para nada. Era

    exposta a turma pela professora porque merecia, porque no sabia a lio.

    Hoje, 26 anos depois dessas experincias vividas na escola, encontro

    professores com semelhantes posturas e me interrogo: como conciliar o saber e o

    medo ao mesmo tempo? Como compreender um processo educacional cujo cotidiano

    escolar marcado pela humilhao frente aos colegas e pelo temor de no saber as

    lies? O que dizer da diferenciao registrada no cotidiano escolar entre o sabido e o

    burro, o inteligente e o atrasado? Entendendo a escola de forma geral como uma

    priso, podemos dizer que, independente da questo do castigo, ela est ligada,

    desde o incio, a um projeto de transformao dos indivduos. Assim como o

    trabalhador na fbrica, o doente no hospital, o soldado no quartel, a criana na escola

    est presa a uma teia de discursos cujas tcnicas minuciosas e nfimas (distribuio

    espacial, controle do tempo, aprendizagem progressiva, maximizao das

    habilidades) inauguram um certo modo de investimento poltico e detalhado do

    corpo. (PINHO, apud. BRANCO, 1999, p. 186).

    comum ouvir os gritos de professores estressados que exigem que as

    crianas fiquem em silncio, bem como perguntas feitas por estes em sala de aula (a

    seus alunos), onde quem sabe no pode responder. Os professores preferem ouvir as

    respostas erradas para que eles (donos do saber e do poder) respondam

    corretamente. Com isso impedem que as crianas aprendam umas com as outras.

    Silenciam-se as respostas certas e com elas a percepo, a liberdade de

    expresso, a auto-estima, a criatividade e a curiosidade que um caminho agradvel

    para o conhecimento. Isso acontece porque alguns professores no conseguem

    inovar, no avaliam sua prtica pedaggica e continuam com as mesmas aes de 26

    anos atrs, no se do ao luxo de passar a limpo as receitas, e continuam com elas

    registradas nas pginas amareladas pelo tempo. Muitas pessoas de tanto repetir as

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    receitas metamorfosearam-se de guias para tartarugas. E no so poucas as

    tartarugas que possuem diplomas universitrios (ALVES, 2001, p.81).

    A hostilidade da escola, os momentos de sofrimentos e depresso sofridos

    pelos alunos roubam o prazer de aprender e tornam o aprendizado um momento

    angustiante, desafiador. A cartografia sentimental de cada aluno alimentada pelo

    temor dor fsica e moral. A educao acaba tendo por funo disciplinar, corrigir,

    hierarquizar. Conforme Gadotti (1994, p. 74), essa pedagogia forma para a

    obedincia e o respeito autoridade, alm de desenvolver o individualismo atravs

    da concorrncia, onde o xito ou fracasso tem grande peso. como se a escola em

    seu cotidiano, para se sustentar, tivesse que instaurar sistemas de hierarquia,

    sistemas de escala de valor e de disciplinarizao em que os diferentes sujeitos tero

    que se situar. Assim, a escola mata o prazer, a tradio corri o xtase, as normas

    assassinam o desejo, os cdigos adulteram a infncia do educando. O desejo, a

    vontade de amar e de criar so supliciados pelo domnio da angstia. H uma

    tentativa de eliminao do processo de singularizao do indivduo e o espao

    escolar passa a ser visto como a geografia que despoja os valores, as vontades, que

    castra as fantasias e codifica os desejos.

    Os professores tambm silenciam, principalmente quando um aluno fala com

    eles na hora do intervalo, quando estes esto ocupados com o lanche ou colocando as

    conversas em dia com outros professores. Silenciam na hora de elogiar um aluno que

    deu o seu melhor num cartaz que ningum deu importncia. Na hora de abraar um

    aluno que vive experincias terrveis em casa e chega na escola precisando de afeto e

    de uma palavra de nimo.

    Parece que o silncio contagia e atinge tambm o diretor. Que no se posiciona

    quando ver um professor agindo com irresponsabilidade para com seus alunos e a

    escola. E nessa corrente tambm esto os (as) zeladores (a), merendeiras, faxineiros,

    que, para no perderem o emprego pra fila que espera l fora (pessoas

    desempregadas), calam-se diante das atrocidades vividas dentro das escolas.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    Em meio ao silncio inoportuno daqueles que formam a escola, ouve-se o grito dos

    alunos por favor, me ajudem a ser feliz (ALVES, 2001, p.19), claro que essa

    felicidade no depende somente da escola, mas esta pode contribuir para dar um

    pouco de prazer ou quem sabe ensinar o caminho para que cada aluno descubra

    onde encontr-lo.

    Chalita (2001) aponta o afeto como a soluo para a educao, mostra que h

    muitas maneiras e formas de se educar, mas a educao s ser completa se for

    mergulhada no amor, talvez por isso que a maioria das escolas ainda no conseguiu

    atingir seus objetivos, se que o objetivo mesmo educar, e que no esto apenas de

    olho no salrio.

    2. Dilogo com a Teoria

    O sofrimento humano (...) se deve a situaes causadas pelos efeitos desastrosos de um certo tipo de educao, pelas condies sociais, econmicas e culturais sobre o aspecto biopsquico de cada indivduo desde a vida intra-uterina. (W. Reich).

    J comprovado cientificamente que o processo de desenvolvimento de uma

    pessoa comea ainda no ventre de sua me, isto , as dimenses biolgica e

    psicolgica, a inteligncia e os sentimentos so ativos na vida intra-uterina e

    continuam por toda a vida. Desde a sua concepo, a criana j se torna sensvel a

    muitas coisas que acontecem do lado de fora da barriga da me, claro que no so

    sentimentos amadurecidos (como os de um adulto), mas reais e que devem ser

    levados em considerao. Tudo o que a criana absorve nesse tempo poder

    influenciar posteriormente em sua vida (rejeio dos pais quanto ao beb [gravidez

    indesejada], opo sexual dos pais em relao a ele [o beb], tenso, tristeza, dio,

    alegria, insegurana...). O contato com o beb ainda no ventre, tais como a forma de

    carinho com que as pessoas se relacionam com ele, as conversas, o ambiente calmo e

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    a ansiedade pela sua chegada so de suma importncia para o desenvolvimento

    afetivo e cognitivo do beb. Com isso:

    [...] no se pretende afirmar que o beb guarda o significado do que foi dito, mas por certo guardar o som da voz que o acolhe e, distante do silncio existente no ventre, ao ouvi-las perceber a inesquecvel acolhida de estar cercado de quem o estima e lhe confere segurana. (ANTUNES, 2004, p.107).

    No nascimento acontece o primeiro impacto fora do lugar aconchegante e

    quentinho (tero materno) em que o beb foi gerado, e a forma como a famlia ir

    receber esse novo ser vai tambm influenciar em seu desenvolvimento. Se a criana

    nasce em um lar acolhedor, cercada de amor e cuidados, geralmente ter mais

    chances de ter comportamentos equilibrados (toda regra tem sua exceo), mas se o

    ambiente que a acolhe for desajustado, violento, desestruturado, ela poder

    apresentar em seu carter traos de rebeldia, agressividade, rejeio...Enfim, a criana

    uma construo dos mltiplos discursos veiculados no espao em que ela est

    inserida. Vygotsky compreende que h uma estreita relao do indivduo e do meio

    social. Para este, nessa interao que se constrem as funes psicolgicas, o

    pensamento, a percepo, a linguagem. O mesmo afirma tambm que h uma ntima

    ligao dos fatores sociais e o indivduo e que sem aqueles o homem fraco e

    insuficiente.

    Vygotsky e Wallon apontam que o biolgico s predomina sobre o social

    apenas no inicio da vida da criana, mas que, posteriormente, a influncia social

    passa a governar o comportamento e o desenvolvimento do pensamento. Sendo

    assim, Vygotsky coloca que o desenvolvimento acaba em duas vertentes, uma se

    origina no biolgico e a outra de cunho scio-cultural.

    Esses autores comungam da idia de que contexto favorece toda a

    aprendizagem. Dessa forma, a criana recepciona os discursos que so emitidos na

    famlia, na escola, na rua, nas confrarias religiosas, nos espaos pblico e privado em

    que circula.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    Conforme Vygotsky (apud Rego, 1995 p.60), o desenvolvimento do sujeito

    humano se d a partir de constantes interaes com o meio social em que vive.

    Sendo assim, podemos dizer que a primeira escola (a famlia), ser essencial para a

    auto-afirmao, a autonomia, motivao e independncia da criana.

    Quando chega o tempo de freqentar uma instituio escolar, ocorre o

    segundo impacto, ou seja, a criana, muitas vezes, bruscamente tirada do contexto

    familiar onde tudo para ela reconhecvel (os mveis da casa, a voz das pessoas,

    seus brinquedos, suas roupas...), para um ambiente estranho, onde ela ter que

    conviver com outros tipos de mveis, vestir uma roupa diferente (farda) que

    identificar as cores e logomarca de uma instituio5, alm de ter que se ajustar aos

    limites e interesses de outras crianas e tambm dos professores, diretores,

    corretores. Corrigan (apud. Louro, 1999, p. 17), narra seu primeiro dia de aula

    numa tradicional escola inglesa como um momento de horror, que marcaria para

    sempre seu corpo e sua mente. Segundo Corrigan, o primeiro dia de aula ficou

    impresso com horror para o resto de sua vida, pelo grau de violncia consentida.

    Todos os investimentos eram feitos no corpo e sobre o corpo, mas tiveram

    implicaes em seu sistema nervoso. Conforme o autor, no ambiente escolar os

    corpos so ensinados, disciplinados, medidos, avaliados, examinados, aprovados

    (ou no), categorizados, magoados, coagidos, consentidos... (1999, p. 17-18).

    Quando se trata de crianas que vm de um contexto de miserabilidades

    (como o da maioria das crianas brasileiras que chegam as escolas ou creches

    pblicas), onde o lar desestruturado, a fome uma realidade (muitas vo para a

    escola, no porque os pais so conscientes de que precisam ir, mas porque

    recebero uma Bolsa Escola), h falta de higiene, o impacto ainda maior na vida

    dessas crianas, pois, muitas vezes, a receptividade no a que se esperava, a 5 Conforme a educadora Guacira Lopes Louro, quando a criana ou adulto est usando o fardamento escolar, ele deixa de ser um corpo-sujeito-individual para ser a escola. O aluno veste-se com os emblemas e cores da escola, o que implica em manter, constantemente, um comportamento adequado, respeitoso e apropriado em qualquer lugar, em qualquer momento. Cf. LOURO, G. Lopes. O corpo educado. Belo Horizonte: Autntica, 1999.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    violncia vista e at vivenciada em casa, em muitos casos tem continuidade na escola,

    no da mesma forma e na mesma intensidade, mas de maneira sutil ou simblica.

    S quem ainda no viu de perto (ou quem no quer ver) os banhos

    pedaggicos realizados em algumas creches no se choca com a realidade das filas

    (para o banho), cujas crianas so ensaboadas (com o mesmo sabonete) e colocadas

    em baixo dos chuveiros como se fossem pratos nas pias.

    No contexto escolar hoje, observamos que a escola convive com uma violncia

    que se desenvolve no silncio e, portanto, no noticiada: a violncia psicolgica

    exercida por muitos profissionais sobre as crianas. Muitas vezes, a falta de

    afetividade entre o professor e o aluno contribui para este tipo de violncia,

    tornando-se cada vez mais presente nas escolas, embora no ganhe as manchetes dos

    jornais dirios. Estes evidenciam os crimes cometidos por alunos contra colegas ou

    professores; alertam para o perigo da presena de armas em mochilas de alunos e no

    cotidiano escolar; pregam o policiamento na porta das escolas, no entanto, no

    enfatizam esse tipo de violncia presente nas salas de aula, nas represses das

    diretorias, nos olhares reprovadores do corpo docente, nos gestos intimidadores da

    instituio escolar.

    H muito tempo, dispositivos de castigos corporais desapareceram

    definitivamente do cenrio escolar, tais como a palmatria, o quarto-escuro, os gros

    sob os joelhos. Mas a violncia psicolgica parece persistir nesse cenrio. O quadro

    negro deu lugar ao quadro branco em muitas salas de aula, mas o pincel parece

    insistir em escrever que por trs da brancura do quadro h um outro quadro no

    perceptvel muitas vezes, que fere no o corpo, mas a alma das crianas. Das muitas

    situaes humilhantes a que os educandos esto suscetveis, as mais cruis e difceis

    de serem anuladas e apagadas so as implcitas, ou seja, aquelas que ningum

    verbaliza, mas que so impostas de maneira gradativa a cada estgio de

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    desenvolvimento6. O isolamento, o desleixo, a indiferena, as negligncias, o deixar

    de lado, o demarcar lugares para os bons e para os maus, o instituir espaos, o

    no prestar a devida ateno na pergunta, na resposta ou no comentrio do

    educando, a estereotipia negativa, o bulling, dentre outras, so armas fatais

    utilizadas pelo professor sob o rtulo de disciplinar a sala de aula, mas que, ao

    disparadas, ferem com fortes estilhaos a alma do aluno. Ferido, marcado,

    humilhado, sem fala e sem gesto, o aluno punido, criminalizado. Essa humilhao,

    sutil, mas presente, justificada pelo docente para poder controlar os seus alunos, ou

    seja:

    Aquele malfadado costume de dar prmios ao melhores alunos e apontar os piores alunos para que sirvam de modelo, respectivamente a ser seguido e a ser evitado, no tem absolutamente nada de educativo. O conceito de melhor ou pior no combina com a viso holstica que se propaga para a educao e a vida. (CHALITA, 2001 p.138).

    No podemos esquecer que ningum obrigado a ser professor e se algum

    escolhe esta profisso deve ser ciente de que sua misso buscar o xito e no o

    fracasso, e a qualidade de sua relao com os alunos pode ser determinante para

    conseguir o seu objetivo profissional (Morales, 2003, p.13). Para tanto, a interao

    que se estabelece entre professor e aluno deve ter sempre um carter de

    reciprocidade, predominncia de apoio afetivo, tcnico ou cognitivo, enfim, de uma

    relao solidria, prazerosa ou desafiadora.

    Cabe agora algumas questes: como o professor deve reagir diante dos

    conflitos internos de convivncia da prpria sala de aula? Que imagem ele tem de

    seus alunos e de si mesmo? Da parte dos alunos: quem ainda no se deparou com 6 Wallon trabalha o desenvolvimento da criana a partir de cinco estgios, estes no so estanques, o que significa dizer que pode existir sempre uma dependncia do estgio anterior que, conseqentemente, ser reformulado, e isso se do atravs da interao com o meio cultural (linguagem e conhecimento). Esse processo de desenvolvimento se estabelece dentro de uma dinmica complexa e conflituosa de natureza exterior e interior, bem como direciona o desenvolvimento como uma construo progressiva, o que significa dizer que os estgios se intercalam com o cognitivo e o afetivo. (WALLON, apud. 1995).

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    professores omissos, que viola princpios humanos, que trata seus alunos com base

    em critrios injustos e injustificveis, tais como: raa, sexo, opo religiosa?

    A sala de aula constitui-se em um espao onde todos os que passaram por ele

    nunca esquecem, sejam momentos bons ou no; onde se compartilham

    conhecimentos ou se posicionam passivamente esperando que algum lhes diga

    tudo, ou at mesmo aquele onde algum nunca mais quer voltar na condio de

    aluno.

    Por isso, em vez de resgatar (em muitos casos), a escola tem expulsado seus

    alunos e isso muito mais visvel na Escola Pblica, pois ela j nasceu com o grande

    defeito que tem at hoje: da grande massa de alunos que ingressam na 1a srie do 1o

    grau [hoje ensino fundamental], apenas uma pequena porcentagem chega ao final da

    escola elementar. (GUAZZELLI, 1997, p.39).

    Muitos alunos no encontram na escola nada que os faam crer que aquele

    lugar lhes pertence, a comear do espao que na sua maioria no preparado

    pensando na criana, mas para dar uma boa impresso aos pais, depois vem as

    grades, as cadeiras duras, os armrios nos cadeados, os brinquedos suspensos (o

    mais possvel), para que a criana no tenha acesso. E como se no bastasse ainda

    existem professores que insistem em permanecer na profisso errada (no

    conseguiram entrar em outro curso), e mais, quem fiscaliza a escola? Quem seria

    louco de denunciar as atrocidades que acontecem dentro das salas de aula? Quem

    acreditaria no depoimento de uma criana que afirma que a professora tem duas

    caras, uma na frente dos pais e outra quando fecha a porta da sala de aula?

    Podemos ensinar algumas tantas coisas com as nossas explicaes, e outras

    diferentes com o que somos, com a nossa maneira de nos relacionar com os alunos

    (Morales, op.cit, p.17).

    a falta de preparo, a insensibilidade e insegurana quanto s questes

    psquicas e emocionais dos alunos, que dificulta e, muitas vazes, at paralisa o

    professor levando-o a agir asperamente, quando na verdade, deveria ser levada em

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    considerao a condio emocional inerente pessoa (aluno), prpria do

    desenvolvimento da personalidade. Chalita mostra que muito cmoda a posio

    do professor que se defende do fracasso de sua relao com a sala culpando os

    alunos. (op.cit, p.140). Isto , por trs de uma atitude ou fracasso do aluno podem

    estar embutidas caractersticas ou necessidades pessoais que devem ser buscadas e

    analisadas individualmente em relao ao aluno. No esquecendo de que tudo

    relao e comunicao; at mesmo o modo de olhar os alunos diz algo para eles.

    (MORALES, op.cit, p. 17).

    A busca pelo aprimoramento, o buscar recursos e a humildade de pedir ajuda

    para os mais experientes leva o professor a detectar problemas cruciais na vida e no

    desenvolvimento das crianas, dispondo de inmeras oportunidades de intervir

    diante de situaes psquicas significativas, que podem ser tanto benficas quanto

    conscientes ou inconscientes, agravando ou no as condies emocionais

    problemticas dos alunos. Os professores devem levar em considerao as condies

    emocionais intrnsecas que os alunos podem trazer para a escola, entendendo que

    alguns problemas partem da prpria constituio emocional (ou personalidade), e/ou

    extrnsecas que so aquelas que apresentam conseqncias emocionais de suas

    vivncias sociais e familiares.

    Na escola, o professor responsvel para conduzir a orientao escolar e

    formativa do sujeito, a fim de torn-lo um cidado crtico, tico, criativo, inovador, o

    que muitas vezes no acontece. Para conseguir xito (e so bem poucos os que

    conseguem), as crianas e os jovens devem submeter-se rgida disciplina e a serem

    dceis, renunciando a criatividade, ao esprito crtico e ao amor pela liberdade.

    (GUAZZELLI, op.cit, p. 38).

    3. A Escola: uma rede tecida por muitos fios

    Um dos fios que tece a escola o fio da humilhao, da violncia sutil, da

    descaracterizao do corpo da criana que vem de um outro ambiente social a

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    famlia ou outra entidade responsvel. Dia-a-dia, a escola vai pedagogizando o corpo

    e a mente da criana a partir de outros referenciais, de outros valores, de outros

    hbitos. Aqueles que no se adequam vo sendo classificados de diferentes, de

    anormais, de patolgicos, de menos inteligentes. Essa violncia sutil se d atravs de

    ameaas subtendidas resultantes das relaes de poder que se exercem na escola,

    pois que, como diz Michel Foucault (1987, p.20), toda relao de violncia uma

    relao de poder. Foucault assinala que existem redes sociais nas quais o poder

    circula e no qual o exerccio do poder se foi modificando ao longo da histria. Na

    Idade Mdia, por exemplo, o poder era exercido sobre a totalidade da sociedade.

    Com a Modernidade, as complexas redes de relaes apresentaram elementos que

    escapavam do controle. Fez-se necessrio, portanto, um novo mecanismo de

    disciplinamento das coisas e das pessoas, dos detalhes, de modo que o poder se

    exerce sobre o indivduo e sobre o corpo social em sua totalidade. Esta tcnica de

    individualizao se v aplicada em instituies totais, como o exrcito e a escola.

    A partir de Foucault possvel construir um novo domnio terico, ou seja,

    uma nova abordagem da violncia nas micro-relaes da sociedade e nas relaes de

    poder nas diferentes redes e lugares (relao pais e filhos escola trabalho).

    Enquanto uma instituio corretiva, no dizer foucaultiano, a escola no

    dialoga com outros espaos de saber, como a famlia. Esta quase sempre deixada

    parte quando da construo do currculo escolar. As escolas reclamam que muitas

    normas e cdigos disciplinares vm de cima para baixo; que a Lei de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional impe limites e posturas, mas a escola reproduz essa

    prtica ano a ano, dia a dia, impondo o seu saber, legitimando o que ensinar, sem

    conclamar a famlia e os seus muitos saberes para participar da construo de um

    currculo que seja mais atraente, mais prximo do cotidiano dos filhos, mais flexvel e

    menos serial. Alis, a famlia constantemente negada pela escola, violentada em

    seus muitos aspectos, pois s ganha visibilidade em situaes extremas, geralmente

    para corrigir atos indisciplinados dos seus filhos-alunos. Essa prtica contribui para

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    que os pais tenham uma relao hostil para com os seus alunos-filhos, aplicando-lhe

    correes e castigos porque os mesmos feriram as normas institucionais da escola. O

    pai normatizado a enxergar o filho como aluno, o que refora o papel apenas

    correcional do ambiente escolar. Alm de corrigir erros de portugus, matemtica,

    cincias, estudos sociais, a escola tambm tem o poder de acionar os pais para

    corrigirem outras posturas, outros erros. Se a famlia fosse vista pela escola quando

    da construo do currculo, o dilogo seria maior, os erros menores e a violncia

    psicolgica sobre a mente do aluno tenderiam a diminuir. Na situao em que se

    encontra, a escola e, principalmente, a figura do professor, contribui para que o aluno

    subjetive a si prprio como um grande erro, ou dito de outra maneira, a

    inteligncia por vez se encolhe diante dos desafios intelectuais e os alunos em muitos

    casos se consideram burros, quando na verdade sua inteligncia foi intimidada

    pelos professores e, por isso, ficou paralisada. (ALVES, 2001, p. 18).

    A criana o outro dos nossos saberes, das nossas pesquisas e, tambm, do

    nosso (des)afeto. No mostraremos uma proximidade afetiva que no est em ns,

    mas podemos tratar a todos com respeito o tempo todo. (MORALES, 2003 p.37).

    Tanto os professores como os alunos chegam escola trazendo consigo uma

    bagagem de violncia e descaso pela qual vive hoje a sociedade brasileira, e isso se d

    em todas as camadas sociais. Tal violncia pode ser definida como o uso de uma

    fora aberta ou oculta com a finalidade de obter de um sujeito ou grupo o que eles

    no querem fazer livremente. Sabemos, no entanto, que esta no um fenmeno

    antigo e nem homogneo (violncias), assume muitas formas e prticas sociais: fsica,

    moral, ideolgica, sexual, econmica, ecolgica, entre outras.

    Em contrapartida, a escola deve oferecer um ambiente propcio para se fazer

    diferena em meio a uma sociedade violenta e em busca de solues para os seus

    conflitos. Para tanto, vale ressaltar que: o to pesquisado professor ideal, no existe

    (...), mas tambm se conclui que h muitas maneiras de ser um bom professor, de

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    manter um bom relacionamento com os alunos e de influenci-los de maneira muito

    positiva. (MORALES, 2002 p. 30).

    Dependendo da viso que o professor tenha de sua sala de aula, ele pode ir

    bem mais alm que os contedos e transform-la num espao de respeito ao

    prximo, de amizade e compreenso. Para tanto, no podemos esquecer o conjunto

    das diferentes aes e reflexes daqueles que participam desse funcionamento

    escolar e que vo propiciar novas relaes, que produziro o sucesso ou o fracasso no

    processo ensino-aprendizagem. Isso se d atravs de uma relao constante entre os

    indivduos na sala de aula. nesse contexto da vida diria escolar que os afetos se

    entrelaam na complexa rede de relaes institucionais, isto , no dia-a-dia do

    funcionamento da escola se confrontam diferentes indivduos com suas histrias de

    vida, com suas concepes de mundo, cada qual com seus objetivos e intenes.

    Contudo, o estudo da violncia, que to de perto assola as salas de aula, se

    coloca num territrio (um espao vivido e um sistema perceptvel em constante

    alteraes) e numa disputa que no pertence a uma cincia em particular. Da a

    necessidade de um olhar mais apurado quanto ao que acontece dentro de nossas

    salas de aula.

    A figura do professor ainda exerce um poder extraordinrio sobre o aluno, seja ele de que idade for. Um olhar de desprezo, a indiferena e o descaso doem mais do que qualquer castigo! O aluno encontra-se em uma situao de tal dependncia do professor que um julgamento negativo do mesmo pode cortar para sempre a autoconfiana e o gosto pelo estudo. (GUAZZELLI, 1997, p. 40).

    Mas o que pode levar um professor a agredir psicologicamente seus alunos?

    Suponhamos que a falta de identidade profissional seja um desses motivos. Sendo

    assim, podemos dizer que o trabalho docente a busca de uma identidade para o

    sujeito-professor. Entende-se que o profissional docente um ser social

    historicamente construdo, assim, sua identidade mutvel, est presa ao tempo e ao

    espao. Para a construo da identidade social da profisso, a reviso dos

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    significados sociais e prticos destas de grande relevncia. Mobilizar os saberes de

    experincias para a construo da identidade profissional docente um dos

    primeiros passos, pois insere na formao profissional do professor os resultados de

    sua prpria formao escolar e sua produo quanto docente. Tambm para o saber-

    fazer docente, o conhecimento como o trabalho de classificar, contextualizar e

    analisar as informaes, e a inteligncia como a arte de vincular o conhecimento de

    maneira til, pertinente, tecendo conhecimento junto com os alunos, torna-se mais

    um componente no tecido de formao da identidade docente.

    A falta de identidade e a m formao profissional docente limitam o

    professor a uma postura pessoal muitas vezes radical e injusta frente s necessidades,

    desafios e dificuldades imprevisveis da sala de aula, ou seja, no levar em conta o

    desenvolvimento intelectual e emocional de cada criana, pode levar o docente a

    posies insustentveis (MORAIS, 2002 p.15), e o discente a danos irreparveis.

    Sem querer crucificar o professor e levando em considerao que nosso

    objeto de estudo so as marcas psicolgicas na relao professor/aluno, no as

    relaes equilibradas que garantem o sucesso recproco, mas aquelas que deixam a

    desejar quanto a sua eficcia. Observamos que, alm da falta de identidade

    profissional (j citada), importante que o professor usufrua uma boa higiene

    mental. Na realidade, quando consideramos a influncia que o ajustamento do

    professor pode ter no ajustamento e na realizao de tantos alunos, ela passa a ter

    maior importncia que o ajustamento de qualquer outra pessoa na sala de aula.

    (MOULY, 1999, p.139).

    Estar de bem com a vida, ler um bom livro, desfrutar de um lazer, aproveitar

    as frias, no se sobrecarregar com as atividades, trabalhar a auto-estima (como se

    arrumar), pode levar o professor a enfrentar as salas de aula com mais tranqilidade,

    equilbrio e pacincia. claro que essa no a realidade da maioria dos professores.

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    [...] cada experincia particular s pode ser entendida junto ao conjunto de circunstncias que a torna possvel, o que envolve a histria de vida dos sujeitos em interao, sua formao e a realidade local especfica, com as experincias e saberes pregressos de todos, entre outros elementos da vida cotidiana (OLIVEIRA, 2002 p.42).

    verdade que estamos sempre ouvindo reclamaes dos professores

    (principalmente os da rede pblica) a respeito do salrio, da quantidade de crianas

    nas salas, das inmeras atividades extra classe, do tempo e da quantidade de

    trabalho que a escola requer. Isso tudo tem provocado o desajustamento de alguns

    professores que como qualquer outro ser humano, precisa obter determinadas

    satisfaes com seu trabalho, a fim de que possa manter-se como indivduo integrado

    e feliz. (MOULY, op.cit, p.141).

    Como essa satisfao no chega, a maioria desses professores se torna

    mandes, mal humorados, indispostos, implicantes, aborrecidos e prontos a

    contrariar as crianas (mesmo sem inteno), que passam a sentir medo, devido s

    repreenses constantes e a incapacidade para conviver com outras pessoas e, em

    alguns casos, at sofrem os maus tratos por parte dos professores. O que torna a

    escola um lugar de frustraes. Por isso, [...] enquanto a sociedade brasileira no for

    capaz de reduzir suas desigualdades e suas profundas injustias, provavelmente a

    violncia, e no o direito, continuar a ser um elemento estruturador de nossas

    perversas relaes sociais. (VIEIRA, 1997, p.29).

    Em muitos casos, a sala de aula um reflexo dessa desigualdade social, onde

    alguns acabam sendo privilegiados ou preferidos pelo professor por vestir uma

    roupa mais limpa, calar um tnis de marca ou saber decorar e repetir as informaes

    passadas. Professores menos avisados erram, expondo algumas crianas ao ridculo,

    pois consideram que todas devem sentir e reagir da mesma maneira aos estmulos e

    as situaes ou, o que pior, acreditam que submetendo indistintamente todos os

    alunos s mais diversas situaes, quaisquer dificuldades poderiam ser superadas.

    Na realidade, pode piorar e muito o sentimento de inferioridade, a ponto da criana

    no mais querer freqentar aquela classe ou, em casos mais graves, no querer mais

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    ir escola. Basta contemplar os olhos amedrontados das crianas e os seus rostos

    cheios de ansiedade para compreender que a escola lhe traz sofrimento (ALVES,

    2001, p.16). claro que essa no a regra de todas as escolas, mas porque no nos

    incomodarmos com as excees que prejudicam? Com as ameaas ou as

    ridicularizaes que, quanto mais retrada e introvertida for a criana, to mais

    contundente e desastroso ser o dano.

    O conhecimento, a sensibilidade e a maneira carinhosa dos professores podem

    se tornar um blsamo para coraes e mentes, pois algumas crianas consideram a

    escola um refgio, mesmo assim, nem sempre esses alunos encontraro na escola

    (professor) aceitao, conversa e respeito diante de suas dificuldades o que pode

    provocar mais alteraes em seu desempenho e comportamento que denunciaro a

    existncia de problemas emocionais. Isso porque, assim como o aluno, o professor

    traz do seu meio social, algumas mazelas embutidas que, por no serem resolvidas

    adequadamente, podem ser descarregadas nos alunos. Tais professores jamais sero

    lembrados como algum a ser seguido. Como todo e qualquer docente, sou tambm

    um agente social e minha maneira imediata de intervir no real construindo o

    pedaggico concreto da sala de aula em que atuo (MORALES, 2003, p.93).

    Sendo assim, podemos dizer que a sala de aula um lugar de troca de

    conhecimentos (ou de passividade), de vencer obstculos (ou ser paralisado neles),

    de mudana de concepes (ou de reforo ideolgico), de vencer os traumas sociais

    (ou de se aprofundar neles), enfim, cada sala tem sua histria, cada aluno e professor

    suas experincias que precisam ser contadas e analisadas. Posturas que devem ser

    levadas em considerao visto que se trata da vida e do futuro da sociedade, e esta

    tem a cara da educao que lhe passada, se isso realmente for real, o que estamos

    fazendo dentro das salas de aula? Os conhecimentos sero esquecidos, mas ficaro

    outras coisas que, por sua vez, condicionaro atitudes e condutas futuras.

    (MORALES, 2003 p.24).

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    4. Caminhos de Anlise

    Estamos diante de uma nova gerao de crianas que, desde o seu nascimento,

    j mostra sintomas de que as coisas j no so mais iguais s dos nossos pais. uma

    gerao ativa, curiosa, dinmica. As crianas ainda na infncia j querem ser

    adultas (embora sem maturidade para tal), demonstram com muito mais preciso

    do que crianas de pocas passadas (meados do sculo XX), tm opinio prpria,

    pensam diferente, decidem e sabem fazer escolhas.

    Observamos que outras coisas no contexto social tambm avanam, como a

    tecnologia, por exemplo, os meios de comunicao levam as crianas cada vez mais a

    sonharem, desejarem e algumas a viverem no mundo da imaginao. Estamos na

    era da informao cada vez mais rpida, propiciada pela internet, telefone celular e

    outros sistemas de comunicao; de novas descobertas na eletrnica e na robtica,

    contudo, uma minoria desfruta desses avanos, enquanto uma maioria ainda no

    tem nem o videocassete (que as lojas no querem mais vender, pois j foi substitudo

    pelos aparelhos de DVD e VCD). Em meio a essa disparidade de diferena social est

    a Escola (ou as Escolas). A rede particular, cada dia mais procura atualizar-se, caso

    contrrio, perder sua clientela, sendo assim, investe tanto em seus professores

    quanto no espao fsico da escola.

    Quando o corpo docente realmente se interessa, tem muito que ensinar, e o

    lugar mais vivel o prprio local de trabalho. Se o docente tem uma viso de

    aprendiz e no de detentor do saber, conseguir aprender em toda e qualquer

    circunstncia, fazendo e vendo outros fazerem, ajudando outros a aprender, e sendo

    tambm ajudado. As prprias instituies particulares exigem que seus mestres

    sejam espertos em tudo, mas que sejam sensveis s necessidades de

    aprendizagens dos alunos. Surge a preocupao e valorizao da prtica pedaggica

    e a chamada sociedade do conhecimento na qual s sobrevive quem capaz de

    selecionar, interpretar e utilizar informaes. Para formar um aluno preparado para

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    os tempos de hoje, os mtodos no podem ser os de antigamente. (CHALITA, 2001,

    p. 148).

    No tocante Escola Pblica, esta fica, quase sempre, merc do descaso

    poltico e econmico ancorada em algum lugar no espao e no tempo, que

    ningum sabe aonde. A morte da escola pblica cada dia mais anunciada e

    denunciada pelos meios de comunicao, corroborada pelos governos federal,

    estadual e municipal, que pouco fazem para ressuscitar e trazer novamente o flego

    de vida dessa instituio. O quadro negro, verde ou branco da escola pblica precisa

    urgentemente ser pintado com outras cores, com novas tonalidades.

    Tanto dentro das salas de aula, como dentro da maioria dos professores, o

    mais longe que se foi em matria de recursos foi o giz colorido ou o quadro branco, a

    TV Escola. Embora essa seja uma realidade em meio ao caos, encontramos

    professores que se dedicam ao trabalho, e isso lana fora muitos obstculos. So

    aqueles que conseguem romper com o tradicionalismo cego, que no se limitam as

    suas prprias experincias, mas buscam no outro (alunos/professores) recursos

    inesgotveis para o fazer pedaggico. Sabemos que isso d trabalho, gasta tempo, s

    vezes desgasta, mas, acima de tudo, d prazer, realizao e gratificante para quem

    realmente entende seu papel na educao, que luta pelos seus direitos (salrios

    melhores, melhor condio de trabalho) e faz diferena aproveitando as

    oportunidades para mostrar que vale a pena investir no professor, diferentemente

    daqueles professores que fazem das capacitaes um lugar de reclamaes,

    indiferena, insatisfao, que vo apenas para colocar as conversas em dia, pensando

    que j sabem tudo. Esse tipo de postura por parte do professor leva ao descaso

    quanto ao docente (na platia de vrios eventos educacionais, so milhares de

    professores que agem assim), o que faz da sala de aula um lugar atrasado, rotineiro,

    mais ainda, como se estivssemos diante de um campo minado. Minado de

    violncia por todos os lados, quando esta deveria ser um freio violncia que assola

    a sociedade.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    A educao que a escola enfatiza est longe de ser aquela que ela vive em seu

    cotidiano, a comear da equipe que forma a comisso de frente (diretores,

    professores, auxiliares, supervisores, serventes...). Se as crianas soubessem o quanto

    este pessoal desunido, o quanto fala mal uns dos outros e como a maioria deles

    indiferente aos problemas alheios. Muitos docentes so invejosos, desconfiados,

    inseguros, insatisfeitos. E, para muitos, ler algo semelhante ao que estamos expondo

    neste trabalho acadmico um insulto, pois no conseguem admitir que essa uma

    realidade e que precisa ser questionada e mudada. Se as crianas tivessem olhos de

    raios-x que penetrassem a alma (mundo dos sentimentos e emoes) de certos

    professores, ficariam atnitos com tanta promiscuidade na educao. Na verdade,

    as crianas percebem (no todas), porm no sabem dizer, ou tm medo,

    principalmente quando os pais no sabem ouvir. Isso porque tanto a famlia quanto a

    escola, por vezes, inibem as crianas: criana no tem voz, criana no entende.

    Como diz Ruben Alves, acho que a educao freqentemente cria antas: pessoas

    que no se atrevem a sair das trilhas aprendidas, por medo da ona. De suas trilhas

    sabem tudo, os mnimos detalhes, especialistas. Mas o resto da floresta permanece

    desconhecido (ALVES, 2001, p.31).

    No estamos brincando de fazer pesquisa e nem fazendo afirmativas

    infundadas. Este um assunto srio e quando nos deparamos com o cotidiano

    escolar, diante do relato das crianas e de alguns adultos que colaboraram com a

    pesquisa ficamos ainda mais chocados.

    5. Entrando em uma Creche

    Em uma de nossas visitas a uma creche de Campina Grande (Paraba), numa

    conversa com uma professora do Maternal II descobrimos que esta tinha uma filha

    de quatro anos e que pagava uma pessoa (bab) para ficar com a filha o dia todo

    enquanto ela trabalhava na creche. Por que ser que essa professora no levava sua

    filha para creche com ela, j que era a mesma faixa-etria? Que lugar esse que no

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    bom para os filhos dos prprios professores? Que tipo de atendimento as crianas

    tem nesse lugar?

    Durante alguns dias observando o comportamento das crianas e dos

    professores, as respostas foram sendo dadas, construdas, elaboradas. No d para

    descrever minuciosamente tudo que vimos, mas resumindo, a histria comea na

    chegada, quando as crianas so deixadas por algum responsvel no porto da

    creche. Dali para frente, s quem faz parte do contexto da creche quem sabe. O

    nvel de agressividade entre as crianas intenso, parece que s termina quando

    elas saem da creche. Mas a que se deve isso? Percebemos que aqueles que deveriam

    ser um porto seguro (professores e auxiliares), nem se quer param para ouvir a

    queixa da criana que agredida verbal e fisicamente da outra. So tantas as que

    choram que se entre elas uma estiver com alguma dor ou algum problema srio, s

    vezes, no percebido, o pior que para muitas dessas crianas, esse ainda o

    melhor lugar.

    Se tivssemos cmeras escondidas em todas as creches e escolas pblicas, se a

    mdia fosse uma fonte de informao confivel, o mundo se abalaria com o que

    estamos fazendo com nossas crianas. um crime achar que ba-be-bi-bo-bu

    suficiente para quem desconhece afetividade. H violncia maior que se esquivar de

    um abrao a uma criana que ainda no sabe nem falar direito? Pode haver

    barbaridade maior que obrigar uma criana a fazer uma tarefa que ela ainda no tem

    condio psicomotora, e, por no conseguir realiz-la, exposta diante de toda a

    turma? (a questo no a dificuldade, esta deve existir para que se avance, mas a

    exposio do aluno ao ridculo). Como disse Gabriel Chalita (2001, p. 151), a relao

    de afeto entre alunos e professor deve se estabelecer no momento da aprendizagem.

    Mas isso tudo apenas o comeo, as crianas crescem, e a realidade do

    contexto escolar no muda muito. As escolas pblicas, do lado de fora, parecem

    comuns, mas do lado de dentro, quando os portes se fecham, as prticas so bem

    diferentes dos discursos.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    6. Conversando com uma Psicloga

    Numa entrevista com uma psicloga da rede pblica, que a chamaremos de

    Hadassa, foi nos relatado o caso de Mardoqueu, uma criana que j chegou na escola

    com um problema srio (possivelmente de abuso sexual em outra escola). A

    psicloga Hadassa foi chamada pela direo da escola para tentar resolver o

    problema da criana que incomodava toda a instituio escolar. Durante algum

    tempo lidando com ela no contexto escolar, chegou a concluso de que o problema

    no era a criana, mas as pessoas que no conseguiam lidar com ela e a rejeitavam.

    Aos poucos foi sendo criado um rtulo de aluno problema, e ningum o desejava

    em sua sala de aula. Conforme Hadassa, Mardoqueu vivia seu cotidiano escolar

    como se fosse um peso institucional, um caso difcil de soluo! A relao social

    dessa pessoa comeou a ser prejudicada e ela ficou excluda do grupo.

    Esse apenas mais um caso entre tantos, onde a escola no est preparada

    para lidar com as marcas psicolgicas que as crianas trazem do contexto familiar, de

    outras escolas ou da prpria sociedade. E, ao invs de dar alvio, marca ainda mais,

    torna-se apenas uma continuidade, uma cadeia de discriminao e no de resoluo

    de problemas. Assim se expressou Cury (1985, p. 97): Por trs de cada aluno arredio,

    de cada jovem agressivo, h uma criana que precisa de afeto.

    incrvel observar a chegada de novos alunos no incio do ano letivo, como

    se fosse mais um membro da famlia (escola); sua chegada deveria ser uma festa. O

    caso que assim como o quinto ou o nono filho de uma famlia desajustada, que

    chega num lar onde no h harmonia e nem respeito, onde muitas crianas so

    tocadas em sua intimidade (a nica coisa que realmente sua), ou seja, muitos so

    estuprados dentro de casa, pelo pai, irmos, tios, padrastos. Em muitas salas de aula,

    o estupro se d no no fsico, mas na mente, nas emoes, na individualidade de

    expresso e psquica.

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    A desculpa de muitos professores de que a escola no lhes d condies

    (referem-se ao salrio, materiais didticos), para fazer um bom trabalho, mas a

    parafernlia, juntamente com o conforto, no mais importante (embora, tambm

    tenha seu valor) que um elogio, que uma palavra branda (sem gritaria), um ato de

    carinho.

    7. Entrando em uma Escola

    Numa visita a uma escola, ao entrarmos em uma sala de aula da 2a srie, a

    professora Dalila batia com o apagador no quadro, aos gritos exigindo silncio. Logo

    aps fez um brilhante comentrio: Esse grupo daqui (apontando para um lado da

    sala) so timos, mas aqueles l de trs no querem nada, eu no agento mais,

    ainda bem que j estou para me aposentar, daqui a 2 anos j estou fora.

    Passamos algum tempo na sala desta professora. No quadro havia uma

    atividade que as crianas (algumas) copiavam, enquanto a professora gritava o nome

    de outras, a fim de que respondessem como se escreviam as palavras: casa, copo,

    bola...(todas j escritas no quadro). O que nos fez entender o porqu do descaso dos

    alunos (de trs) acerca da aula e tambm o estresse da professora que no conseguia

    prender a ateno destes alunos. O corpo no suporta carregar o peso de um

    conhecimento que ele no consegue integrar com a vida (ALVES, 2001 p. 24). Da

    ento, os alunos procuram passar o tempo (escolar) fazendo outra coisa (exatamente

    o que os professores no querem que faam) e os interesses na sala passam a ser

    antagnicos, o que leva certos professores a agirem com rigidez e ameaas, fazendo

    com que os relacionamentos, em alguns casos, sejam de medo, traumas,

    desconfianas e retraes e, em outros, de rebelio, vingana e raiva. O que pode

    esperar um professor que tem a conscincia de que odiado pelos alunos e persiste

    nas mesmas prticas, confiando em que um dia os alunos reconheam que ele tinha

    l seu valor? (CHALITA, 2001, p. 151). A impresso que algumas crianas no

    vem a hora de crescer, s para no serem obrigadas a ficar na escola trancafiadas,

    merc de professores esgotados, frustrados e carrancudos.

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    Os resultados de uma educao descomprometida com o humano, com o

    sentimento das pessoas, como algum que abre um travesseiro de penas e as solta

    no ar as quais voam livres no vento e se espalham para os lugares mais longnquos,

    nunca mais aquele que as espalhou poder recolh-las e coloc-las todas novamente

    no seu lugar de origem.

    8. Ouvindo os Alunos

    Tito (36 anos), aos 35 anos comeou a 7a srie, mas tambm desistiu, conta-nos

    que nas sries iniciais sempre foi visto pelos professores (que declaravam

    publicamente) como algum que no daria para nada. Tito relata que seus pais s

    eram chamados escola quando ele desobedecia, e a o resultado era surra e puxo

    de orelha. Tito aos poucos foi sendo amarrado a uma teia de discursos e preso

    psicolgica e emocionalmente s feridas que a escola lhe causava. Para ele, viver fora

    da escola significa viver longe dos traumas que a prpria instituio lhe provocou.

    Sabemos que alguns escapam dos controles exagerados, das ameaas e das palavras

    dos professores, outros, porm, ficam presos nelas a vida toda. Educao isto: o

    processo pelo qual os nossos corpos vo ficando iguais s palavras que nos ensinam.

    Eu no sou eu: eu sou as palavras que os outros plantaram em mim (ALVES, 2001 p.

    35).

    Nosso entrevistado Josu um menino de 11 anos que faz a 5a srie. Ele tem

    um problema de conjuntivite alrgica (permanente), por causa disto, seus olhos ficam

    sempre vermelhos. Em seu depoimento:

    A professora me exps diante de toda a turma declarando que eu tinha pulga de cachorro nos olhos. Senti-me muito mal, muito magoado e depois disso os colegas passaram a me colocar apelidos. Minha me procurou a direo da escola, que na ocasio disse no poder fazer nada. Como surgiram outros casos, felizmente a professora foi colocada para fora da escola.

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    Infelizmente, nem todos os pais procuram seus direitos e nem todas as

    crianas contam os constrangimentos que alguns professores lhes fazem passar. A

    violncia sutil faz parte do contexto escolar, alunos so estereotipados e marcados

    pelos professores (marcas psicolgicas). Alm de os rotularmos como se eles fossem

    mercadorias, ainda nos achamos no direito de homogeneizar o ensino, no levamos

    em considerao as diferenas, e com isso causamos erros gravssimos.

    Muitas vezes, o professor, assim como o pai ou a me, no precisa falar, seu

    olhar investido de ameaas e terror, e, as vezes, pode assumir a ao de juiz, o

    problema que assim como no Direito, muitas injustias so cometidas. O

    entrevistado Gideo (10 anos, 4a srie) conta-nos que se h um dia na escola que ele

    gostaria que fosse apagado (no tivesse existido) foi um, onde disseram que ele

    machucou um aluno, mas ele sabia que no era verdade. O aluno machucado

    tambm mentiu, mas todos acreditaram nele. A histria parou por a e em Gideo s

    ficou a marca da injustia dos outros ao seu respeito. Isso leva-nos a mais uma

    indagao, por que a escola quase nunca ou nunca trabalha a questo dos

    relacionamentos? Esse seria um momento propcio para tal, no s os alunos que

    estavam envolvidos com a questo, mas toda a turma poderia ser beneficiada, se o(a)

    professor(a), aproveitasse o acontecimento para introduzir na sala as questes do

    bom relacionamento e do convvio com outro. Para tanto, o professor deve ser

    algum em quem os alunos confiam. O professor s conseguir atingir seus

    objetivos se for amigo dos alunos (CHALITA, 2001 p.151).

    Embora seja difcil admitir, a causa da indisciplina na sala de aula pode ser

    o professor, a forma como ministra sua aula, a maneira arrogante de tratar os alunos,

    as chantagens, as manipulaes, e o pior que nesse tipo de relacionamento alunos e

    professores se chocam e sutilmente se agridem. Todos querem educar jovens dceis,

    mas so os que nos frustram que testam nossa qualidade de educadores (CURY,

    2002, p.97).

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    H professores que acompanham o aluno um bom tempo durante sua vida

    escolar (s vezes o aluno cursa todas as sries na mesma escola), com isso passam a

    ter certa liberdade com estes. comum observar nesse tipo de relacionamento

    algumas brincadeiras discriminatrias, bem como, a existncia de apelidos

    pejorativos.

    Eu era muito gordo e o professor sempre me chamava de baleia, pamonha, bolo fofo. Dizia como se fosse uma brincadeira, mas eu sentia muito porque dizia na frente de todo mundo, e se o professor diz, os outros alunos se acham no direito de dizer tambm. Acho que ele devia respeitar, ele no o professor? (Pedro, 17 anos 5a srie)

    Muitos professores acabam agindo como se os alunos no tivessem

    sentimentos, como se a amizade lhes desse o direito de feri-los. Por mais ntimos

    que sejamos de uma pessoa, ningum quer ser ridicularizado por ela, pelo contrrio,

    o que se espera de um amigo respeito, compreenso, afetividade.

    A questo que tais professores se limitam transmisso de contedos

    enquanto que os valores (sentimentais, emocionais) no so levados em

    considerao, no acreditam que fazem parte da construo da personalidade de

    seus alunos, no sabem que: tudo o que pensamos ou sentimos ser registrado e

    far parte do tecido da nossa histria, quer queiramos ou no (CURY, 2003, p.110).

    Sem requerer perfeio, mas entendendo que o professor o profissional mais

    importante, uma vez que participa ativamente da formao escolar dos alunos,

    buscamos encontrar nele algum que valoriza seu trabalho e se orgulha em ver o

    resultado dele. Sua importncia na sociedade inigualvel, sua presena nas salas de

    aula so insubstituveis, desde que realmente estejam cumprindo a tarefa de educar.

    Fui chegando na sala dos professores e percebi que um professor (Jairo) que no era meu professor comentava algo a meu respeito, eu chamei o professor na frente dos outros professores e disse para ele, que ele no deveria agir assim, se ele tivesse alguma coisa contra mim que falasse comigo. No outro ano ele passou a ser meu professor, ele me marcou e quase me reprovava, s no conseguiu porque eu realmente me sa bem. (Joo, 20 anos 3o ano Ensino Mdio).

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    Na entrevista com este aluno, perguntamos porque que ele no procurava a

    direo da escola para dizer que se sentia ameaado pelo professor. A resposta foi a

    seguinte: tenho medo de ficar marcado e ele me reprovar, ou perder pontos na

    prova. A prova, os pontos, so recursos de punio usados pelos professores para

    intimidar o aluno diante das situaes problema. So estratgias que o corpo docente

    usa no cotidiano escolar para silenciar, intimidar, calar os alunos. So dispositivos de

    poder que disciplinam a vivncia dos alunos em seu dia-a-dia. Muitos professores

    utilizam tais mecanismos de poder como recursos para intimidar os alunos. A escola,

    um espao de saber, se torna tambm um espao de relaes de poder que

    discrimina, caricatura, classifica os alunos entre bons e ruins, entre inteligentes

    e burros, entre aplicados e relapsos. Tais efeitos de poder podem marcar

    negativamente um educando para o resto de sua vida!

    A escola aos poucos vai se constituindo um espao de perdas e frustraes,

    pois muitos professores transmitem para os alunos um futuro sombrio. Cerca de 60%

    das pessoas entrevistadas relatam que seus professores declararam que eles (os

    alunos) no dariam para nada, que no se formariam em um curso de nvel superior,

    que desistiriam dos estudos, com isso, os alunos vo ficando presos pela armadilha

    da impossibilidade, incapacidade e incompetncia.

    Infelizmente, essa ainda a realidade da maioria de nossas escolas pblicas,

    precisamos de mais afetividade e respeito. Embora estejamos na era das mquinas,

    nossos alunos so de carne e osso. Seus sentimentos so agredidos e violentados.

    Em muitos casos, a famlia comunga com a escola dando-lhe o direito de agir

    como bem lhe parecer:

    Minha me me obrigou a no faltar a aula, mas eu estava com uma forte dor de barriga. Na escola, senti vontade de ir ao banheiro, mas o professor no deixou, eu no suportei e fiz minhas necessidades na sala de aula. O professor me exps diante de toda a turma. Nunca esqueci aquele dia! (Silas, 13 anos 4a srie).

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    O professor tenta controlar at as necessidades fisiolgicas de seus alunos,

    bem como mascara-se a agressividade, levando o aluno a pensar que ele que o

    culpado. Este o caso de Ester, 20 anos, 6a Srie: A professora mandou a turma

    preparar uma manchete de jornal, eu no entendi e achei que era para fazer uma

    reportagem. Eu fiz, quando ela viu disse: voc est vendo alguma manchete aqui,

    voc s pode ser burra mesmo.

    Desse modo, a professora anulou a criatividade e a espontaneidade e

    alimentou em Ester o desejo pela desistncia do ambiente escolar. Esta mesma aluna

    comenta que no quis mais fazer os trabalhos que a professora mandava. Os alunos

    se rebelam como se estivessem punindo o professor, mas, na verdade, eles (os

    alunos) so os que ficam prejudicados, com isso, se estabelece nas escolas uma

    guerra sutil, para ambos (professores e alunos) o ambiente torna-se insuportvel.

    Professores e alunos vo perdendo suas identidades, o professor (fulano do tal) passa

    a ser o carrasco, o carrego; e o aluno (cicrano) passa a ser o problema, o desafio, o

    capetinha. Professores assumem modelos repressivos, militarizados, policiadores

    de gestos, de falas, de posturas. Vem a sala de aula como um quartel e os alunos

    como recrutas; tornam-se indiferentes (forma encoberta de agresso) s necessidades

    de seus alunos.Quanto mais desprezado o aluno, mais agravados sero os

    problemas (CHALITA, 2001, p. 153).

    No h como negar a urgncia de se rever conceitos e valores no meio

    docente, no temos como fechar os olhos para a violncia sutil. 90% dos alunos

    entrevistados reclamam do estresse dos professores, 80 % j enfrentaram situaes de

    medo ou vergonha na sala provocada pelo professor. Todos os entrevistados citaram

    um dia de aula que gostariam que fosse apagado por ter sofrido algum

    constrangimento. 50% desejou desistir de estudar. Fora outras questes que os alunos

    aproveitam para desabafar (a importncia que o professor d a uns e a outros no, a

    vingana dos professores na hora de dar a nota, os comentrios dos professores com

    os futuros professores (do prximo ano letivo) o que faz com que os alunos sejam

  • UCHOA, Denise. Corrigindo corpos (im)perfeitos: a escola como cartografia da dor e da punio. Mneme Revista de Humanidades [ Dossi Histrias da Sade e da Doena, org. Andr Mota e Iranilson Buriti ]. Caic (RN), v. 7. n. 17, ago./set. 2005. p. 167-200. Bimestral. ISSN 1518-3394. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme.

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    estereotipados, as ameaas subtendidas...). Assim se expressou Augusto Cury (2003

    p.145):

    Se eu pudesse, iria de escola em escola em vrias partes do mundo treinando os professores para compreenderem o funcionamento da mente e entenderem que no pequeno espao escolar so desencadeados grandes traumas emocionais. Em vez dos elogios, existem crticas agressivas.

    Se a escola falasse, teria muitas histrias para contar, se os alunos contassem

    no caberia em livro algum. Dentro de uma escola, acontecem as mais diferentes

    experincias e dentro dos alunos as mais profundas marcas, muitas delas sem cura.

    Quem no tiver uma para contar que atire a primeira pedra.

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