corpos precários, desrespeito e autoestima: o caso de moradores de rua de paris

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Estudo etnográfico a respeito de moradores de rua

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  • 757Psicologia USP, So Paulo, 2012, 23(4), 757-775.

    CORPOS PRECRIOS, DESRESPEITO E AUTOESTIMA:

    O CASO DE MORADORES DE RUA DE PARIS-FR1

    Lucas Graeff

    Resumo: O presente artigo discute quando e sob quais condies determinados signos corporais podem ser considerados ou no como enunciadores da relao ntima entre o corpo de um morador de rua parisiense e o universo no qual ele se encontra. So esses fatores que fazem do cuidado do corpo e de si uma experincia difcil de administrar pelos sujeitos pesquisados. Com efeito, marcado pela relao ntima estabelecida com as condies precrias de existncia, a hexis corporal das pessoas estudadas passa a ser tanto objeto de desrespeito social quanto fonte negativa de autoestima. Ao final, so delineados caminhos possveis da retirada da rua do corpo isto , do trabalho rduo de reabilitao fsica e moral das pessoas estudadas.

    Palavras-chave: Moradores de rua. Corpo. Desrespeito social. Reconhecimento social.

    Introduo

    Mediador do mundo, segundo a expresso utilizada por Arlette Farge (2007), o corpo o apoio de todas as relaes sociais. Mltiplo e complexo, o corpo deve ser apreendido em suas diferentes dimenses: corpo-aparncia, sem o qual o homem no existiria (Le Breton, 1998); corpo trgico, incorporando o mundo pela tomada de cons-cincia de sua finitude e precaridade (Bernard, 1995, p. 8); corpo doloroso, memorizan-do na carne as ameaas que pesam sobre a sua condio humana (Le Breton, 1995, p. 1 Este artigo foi escrito a partir de uma pesquisa de doutorado (Graeff, 2010) financiada pela Coordenao de Aperfeioamento de

    Pessoal de Nvel Superior CAPES.

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    15); corpo perigoso, locus do contgio e da proliferao de rumores e humo-res (Paillard, 1998, p. 9); corpo poltico, resistindo aos efeitos de dominao social e aos abusos de poder (Foucault, 2001, p. 1539); corpo agente, que reinventa o seu cotidiano ao mesmo tempo em que se submete s dinmi-cas histricas (Farge, 2007, p. 15); corpo capital, receptculo de signos e de valores, cuja rentabilidade responde aos sistemas de classificao e s equi-valncias entre o fsico e o moral (Perrot 1984, p. 10); corpo produto cultural, ponto de partida para a anlise da cultura e do self (Csordas, 1990, p. 39).

    Em razo de sua importncia social, o corpo se imps como um elemento incontornvel da pesquisa etnogrfica que realizei junto a homens e mulheres em situao de rua em Paris2. Entre junho de 2006 e abril de 2008, acompanhei o cotidiano de cinquenta e uma pessoas que, sem condies de dispor de uma moradia, viviam em grupo ou in-dividualmente nas ruas da capital francesa. Durante dois anos, procurei observar como tais pessoas vivem seu cotidiano e se relacionam corpo-ralmente umas com as outras, com a cidade e com os demais cidados: o que faziam elas para cuidar de seu corpo, de sua sade e de sua apa-rncia? Como se alimentavam, descansavam, tomavam banho, lavavam suas mos, se curavam de doenas, fraturas e feridas? Como reagiam aos efeitos do clima, falta de intimidade e exposio poluio do solo, do ar e sonora?

    A partir dessas questes pontuais, procurei identificar sob quais condies possvel afirmar que homens e mulheres em situao de rua incorporam as condies de existncia nas quais eles se encontram a partir de aspectos pr-objetivos e prticos (Csordas, 1992). Mais pre-cisamente, quis saber quais signos corporais podem ser considerados ou no como enunciadores de um habitus (Bourdieu, 1980, 2000, 2001): um sistema de disposies incorporadas capaz de revelar no apenas a po-sio ocupada por um dado agente no espao social, mas as relaes n-timas entre sua hexis corporal (Bourdieu, 1980, 2000, 2001) e o universo social no qual ele se encontra3.

    Neste artigo, meu objetivo apresentar e discutir algumas das dis-posies corporais de moradores de rua parisienses a partir de seus pr-prios pontos de vista. Para tanto, apresentarei brevemente as condies

    2 Na tradio de trabalhos etnogrficos como o de Cludia Turra Magni (2006) e Patrice Schuch (2007), irei denominar o conjunto de meus informantes como pessoas em situao de rua. Essa noo pode ser considerada mais precisa e adequada s condies sociais nas quais tais pessoas se encontravam exatamente porque ela sublinha carter situacional das mesmas e, por extenso, contribui a combater a sua estigmatizao (Magni, 2006; Schuch, 2007).

    3 Por hexis corporal entendo o aspecto postural do habitus, ou seja, o aspecto mais notrio da incorporao durvel de injunes sociais (Bourdieu, 2003, p. 61). Se o habitus fornece aos agentes um senso prtico que orienta aes e inclinaes, a hexis corporal fala imediatamente motricidade, enquanto esquema postural simultaneamente singular e sistemtico, posto que solidria de todo um sistema de tcnicas do corpo e de ferramentas e carregada de uma gama de significaes e valores sociais. (Bourdieu, 2000, pp. 285-286, traduo nossa).

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    de produo do trabalho de campo que sustenta os achados etnogrfi-cos apresentados aqui. Em seguida, discutirei os fatores elementares que definem o carter precrio do universo estudado. So esses fatores que fazem do cuidado do corpo e de si uma experincia difcil de administrar pelos sujeitos pesquisados e, por extenso, contribuem no processo de incorporao das disposies corporais. Num terceiro tempo, argumen-tarei que, marcada pela relao ntima estabelecida com as condies precrias de existncia, a hexis corporal passa a ser tanto objeto de des-respeito social (Honneth, 2006) quanto fonte negativa de autoestima. Finalmente, a partir da apresentao de um relato de campo, indicarei os difceis, porm possveis, caminhos da retirada da rua do corpo4 isto , do trabalho rduo de reabilitao fsica e moral das pessoas estudadas.

    1. Uma etnografia no universo da rua em Paris: aspectos metodolgico-conceituais

    Seja para estudar a populao de idosos num asilo ou um grupo de moradores de rua passando seu cotidiano numa estao de metr, realizar uma pesquisa qualitativa de longa durao junto a membros de uma comunidade lingustica estranha no caso, francfona no pode ser considerada como uma atividade banal. As primeiras experincias so pautadas por quiprocs relacionados ao uso inadequado de expresses e inflexes vocais, qui por tolices como inverter o gnero de uma palavra ou artigo. Descobertas singelas como os melhores caminhos a seguir ou as maneiras apropriadas de se apresentar frente a uma pessoa estranha so dados elementares de uma pesquisa cujo primeiro objetivo esta-belecer relaes de reciprocidade com lugares e pessoas desconhecidas.

    Por mais singulares que possam parecer aos olhos daquele que as vive, tais experincias de estranhamento (Da Matta, 1974) so objeto de uma longa tradio de discusses metodolgicas e epistemolgicas que vm ocupando, ontem e hoje, diversos antroplogos e historiadores da Antropologia5. O trabalho antropolgico de se inscrever numa comuni-dade estranha, procurando estabelecer laos de reciprocidade com as pessoas que a constituem, no deve ser pensado como uma aventura so-

    4 Essa noo de retirada da rua do corpo do morador de rua uma parfrase do ttulo do artigo fcil tirar a criana da rua, o difcil tirar a rua da criana, de Santana, Doninelli, Frosi e Koller (2005), onde as autoras discorrem a respeito da percepo dos coordenadores de quatro instituies de atendimento a crianas em situao de rua que apontam o carter atraente da rua em relao instituio. No caso do presente artigo, essa noo se inscreve, sobretudo, na percepo dos sujeitos de pesquisa segundo a qual o tempo de experincia na rua est diretamente relacionado quantidade de trabalho necessrio para se desvencilhar dos hbitos adquiridos naquele universo quando se trata de se inscrever num processo durvel de reinsero social.

    5 Cita-se, entre outros, James Clifford (2002) e Clifford Geertz (1989, 2002).

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    litria ou autorreflexiva. Como sublinha Cludia Fonseca (2000), a prtica etnogrfica deve ser assumida como um processo onde as experincias pessoais no tm sentido para alm da formao epistemolgica e das ferramentas conceituais que as motivam e acompanham.

    Entre as ferramentas que me serviram de base durante a pesquisa realizada em Paris, destaco a observao participante e o dirio de cam-po6. Por observao participante entendo uma forma de observao em que a presena e a subjetividade do pesquisador se implicam no uni-verso observando, condicionando-o (Da Matta, 1974; Cardoso de Oliveira, 2000). Nessa maneira de ver as pessoas e as coisas o pesquisador se co-loca numa relao de reciprocidade com o pesquisado ou, nas palavras de Bronislaw Malinowski (1976), passa a viver entre os nativos. Para que a reciprocidade entre pesquisador e pesquisados se imponha, muitas ve-zes preciso um longo processo de negociao de regras relacionais e entre formas simblicas particulares.

    Eis como, ao longo do trabalho etnogrfico, a apreenso e a descri-o das construes sociais de um grupo so documentadas e interpre-tadas pelo etngrafo. No a partir de um espontanesmo compreensivo ou de um estudo de caso fechado em si mesmo, mas atravs de estru-turas de antecipao (Lvi-Strauss, 1958), isto , de mapas conceituais e hipteses de trabalho que filtram o que visto e/ou registrado em seu di-rio de campo. Em outras palavras, atravs daquilo que Olivier Schwartz (1993) denomina empirismo irredutvel que as observaes e anotaes sucessivas terminam seja por produzir novas hipteses e remapear con-ceitos, seja por desconstru-los e refut-los.

    No caso dos moradores de rua de Paris, foram necessrias inmeras produes de hipteses de pesquisa e remapeamento de conceitos. Em relao populao, por exemplo: antes de chegar capital francesa, tive acesso a um trabalho estatstico realizado pelo principal organismo de geografia, populao e estatstica da Frana o Instituto Nacional de Estudos Demogrficos, INED , onde era apresentado o nmero oficial de pessoas sem moradia fixa na Frana (Marpsat, 2002). Segundo os autores do trabalho, esse nmero seria de 86.000 pessoas (dentre as quais 16.000 crianas). Tratava-se, porm, de uma extrapolao estatstica realizada a partir de 4.000 questionrios aplicados em 80 cidades francesas. Mais im-portante ainda: uma vez que a pesquisa havia sido realizada durante um

    6 As transformaes e cristalizaes das relaes e das formas simblicas que do o tom e os contornos do campo semntico comum a partir do qual possvel compreender o Outro so, por excelncia, o objeto do dirio de campo. Essa segunda ferramenta de pesquisa utilizada em Paris responsvel pela acumulao dos dados de pesquisa que serviro de base para a escrita etnogrfica e, por extenso, pela sntese compreensiva das situaes observadas. no dirio de campo que so registrados os materiais para analisar as prticas, os discursos e as posies dos entrevistados, e tambm para colocar em dia as relaes que foram nutridas entre o etngrafo e os pesquisados. a partir desses dados que perspectivas e estratgias so adotadas ou abandonadas, quiprocs e tolices so analisados e revisitados e obstculos epistemolgicos so ultrapassados (Bachelard, 2001).

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    dia de inverno, noite, em locais de distribuio gratuita de alimentos, os 4.000 questionrios no atingiam grupos de indivduos que no tm o hbito ou no frequentaram tal local de distribuio no dia da entrevista. Ora, essa informao pode parecer sem importncia foi o que pensei num primeiro momento , mas na medida em que fui encontrando esses grupos, comecei a me dar conta de que muitos dos moradores de rua parisienses fazem de tudo para evitar contato com centros caritativos.

    A partir da surpresa que tive em relao a essa atitude de esquiva, passei a me interessar pelos motivos que levam moradores de rua a se es-quivar no apenas de centros caritativos, mas de qualquer outro cidado. Com o tempo, percebi que mesmo vizinhos de bairro, moradores de rua ou no, ou ainda figuras como jornalistas e pesquisadores, poderiam ser objeto de esquiva. A relao com um pesquisador pode ser considerada arriscada, por exemplo, em virtude de ocorrncias como mortes na rua, imigrao ilegal, trfico de drogas e violncia urbana. Em outras palavras, um grupo de moradores de rua pode se fraturar a partir da suposio de que tal ou tal membro cooperou com a polcia e colocou um determi-nado colega sob suspeio. Essa uma das razes pelas quais algumas pessoas que encontrei nas ruas de Paris demoraram muito tempo a me aceitar como um observador participante de seu cotidiano.

    Mas a suspeio mtua e o risco de se ver numa situao descon-fortvel com a lei no devem ser tomados como temas estruturantes das atitudes de esquiva dos moradores de rua que encontrei em Paris. Na ver-dade, uma preocupao mais geral com a autoimagem e a autoestima que est em jogo quando se trata de evitar ou reduzir as relaes com centros caritativos e outros membros da sociedade. Como escreve Pierre Mayol, sair na rua correr o risco de ser reconhecido, de aderir a um sis-tema de valores e classificatrio no qual o corpo serve de suporte para todas as mensagens gestuais que articulam essa conformidade: ele um quadro negro onde se inscreve e portanto se torna visvel o respeito dos cdigos e a distanciao em relao ao sistema de comportamentos (Mayol, 1994, p. 27, traduo nossa).

    Com efeito, dormir na calada ou embaixo de uma ponte, urinar sobre a via pblica, atravessar a cidade em roupas usadas ou mesmo se alimentar em centros de distribuio so prticas que podem depreciar moralmente o indivduo e colocar em risco as expectativas ligadas dignidade, honra e a integridade prprias (Honneth, 2006, p.192). Portanto, o universo da rua no se restringe a uma luta pela sobrevivncia e contra as dificuldades de ordem material. Do ponto de vista das pessoas pesquisadas, viver na rua em Paris sobretudo uma luta contra essa precariedade que se l na aparncia das pessoas, como diz Gisle Dambuyant-Wargny (2006, p.19). Assim, o universo da rua se reveste de uma outra forma de luta; uma luta no mais pela sobrevivncia, mas contra o desrespeito social (Honneth,

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    2006) a que se sobrepe uma hexis corporal cujas disposies incorpora-das tm pouco ou nenhum valor social.

    Mas como caracterizar tais lutas contra o desrespeito social? Na obra de Axel Honneth (2006, 2009), o desrespeito social aparece como a contrapartida negativa daquilo que o autor denomina reconhecimento social. Segundo o autor, o indivduo aprende a se apreender a si mesmo como possuindo um valor prprio e como sendo um membro especfi-co da comunidade social na medida em que ele se assegura progressi-vamente de capacidades e necessidades especficas que o constituem enquanto pessoa, e isso graas s reaes positivas que ele encontra na relao com os seus parceiros de interao. Se cada sujeito humano dependente de um contexto de relaes sociais organizado a partir dos princpios normativos do reconhecimento recproco, o desaparecimento das relaes de reconhecimento resulta em experincias de desprezo e humilhao que no passam sem consequncias para a formao identi-tria do indivduo. (Honneth, 2006, p. 134).

    Os limites e possibilidades de meu trabalho etnogrfico junto a moradores de rua em Paris foram definidos a partir dessas situaes pr-ticas relacionadas s redes de relaes intra e extragrupais tal como elas se apresentavam sucessivamente durante os dois anos de pesquisa de campo. A partir da, questes de investigao mais precisa se impuseram. No que tange s prticas de higiene e de moradia das pessoas pesqui-sadas, por exemplo: sempre melhor se manter discreto, procurando apagar as marcas corporais da misria (Dambuyant-Wargny, 2006), a fim passar despercebido frente aos poderes pblicos e aos demais cidados? Como e em quais circunstncias vale a pena abandonar a invisibilidade e o anonimato garantidos por tais prticas de higiene e moradia? Mar-cadas materialmente e simbolicamente por suas lutas cotidianas pela sobrevivncia, as pessoas que acompanhei durante minha pesquisa de campo em Paris carregam nas costas isto , em suas hexis corporais o peso de sua condio social. Tudo se passa como se elas no dispusessem de nenhuma forma de reconhecimento social positivo pautada em seus gestos ou suas formas de se vestir e falar.

    2. Notas sobre a hexis corporal dos moradores de rua parisienses a partir da precariedade suas condies de existncia

    Falar de hexis corporal a partir dos trabalhos de Pierre Bourdieu (1980, 2000, 2011) indicar como e por que difcil ignorar o peso do cor-po, de sua aparncia e de suas maneiras de se apresentar num encontro face a face. Se a hexis corporal compe as maneiras durveis de se portar,

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    falar, caminhar, comer e rir e, desde ento, de sentir e pensar (Bourdieu, 1980, p. 117, traduo nossa), como faz-la desaparecer do campo das trocas? Uma vez em relao, o corpo est l. Presente. Se fazendo sentir.

    No universo da rua, a visibilidade do corpo coloca ainda mais pro-blemas. Encontrar um local seguro para dormir ou um pouco de intimi-dade para a higiene pessoal so gestos que, para alm de dificuldades de ordem prtica, carregam-se de sentido. Em se tratando de compreender como o corpo marcado pela precariedade, no basta se intereressar ou tentar imaginar o carter rebaixante de aliviar-se em espaos pblicos e o medo de dormir ao lu num parque qualquer. Para alm disso, pre-ciso constatar como e por que o corpo do morador de rua participa um jogo de espelhos (Le Breton, 1998) onde as experincias somticas se constituem a partir de relaes de identificaes e diferenciaes suces-sivas.

    Nesse sentido e como eu pretendo mostrar a partir de uma situa-o de campo , a partir dessas situaes relacionais que a conscincia imediata e ntima do corpo como objeto de apreciaes morais e norma-tivas organiza tanto as condies de visibilidade e invisibilidade do cor-po precrio quanto as sensibilidades desse mesmo corpo em relao a si mesmo e ao universo social no qual ele se insere. Em termos mais simples, como possvel depreender da sequncia etnogrfica abaixo7, a hexis corporal incorporada a partir de situaes sociais cujas repercusses simblicas se fazem sentir e ressentir por si mesmo e pelos outros:

    Sequncia etnogrfica 1:

    31 de outubro de 2007. Estao de metr Place dItalie. Eu me pre-paro para voltar para casa quando vejo um homem desmoronar minha frente. Idoso, munido de duas muletas, sua queda interrompe o fluxo ur-bano. Alguns pessoas que passam por ali lhe do apoio. Quatro ao total, duas de cada lado. Perguntam-lhe se tudo est bem. Ele faz sinal de posi-tivo com a cabea. Os pessoas lhe abandonam, seguem seus caminhos. O homem retoma sua caminhada. Dois passos vacilantes, seguidos de uma nova queda. Dessa vez, um jovem lhe serve de apoio. Nesse momento, eu me encontro prximo aos dois e decido oferecer minha ajuda. Uma terceira pessoa, uma jovem, junta-se a ns.

    Apoiado nos trs, o homem tenta nos indicar para onde ir. Ele polons e fala algumas palavras em francs e em ingls. Pelo que com-preendemos, ele quer ir para um dos cais do metr. Need to sleep, diz. Alm da perna direita machucada o que explica as muletas , o homem cambaleia. Est bbado.

    7 A primeira formulao dessas sequncias etnogrficas me foi proposta pelo meu orientador de doutorado na Frana. O formato utilizado pareceu-me pertinente para a organizao do presente artigo, pois ele permite uma articulao fluida entre a argumentao e a apresentao dos dados da pesquisa.

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    Enquanto nos deslocamos, a jovem no cessa de se perguntar o que fazer com o homem. Ligar para a segurana do metr? Para os servios de recolhimento de moradores de rua? Quem tem os nmeros? Quem pode ligar? Eu me proponho a ligar. Para quem quer que seja. Esse o sinal para que a jovem se mostre satisfeita e decida partir. Quanto ao jovem, ele fica mais um pouco.

    Paramos numa escadaria. A caminhada parece ter sido um calv-rio para o homem, que desaba sobre os degraus. Eu fico ao seu lado e lhe ofereo um chocolate. Se ele bebeu muito, vai precisar de glicose, eu penso. Ele aceita. Sorri e diz merci beaucoup. O jovem que nos acom-panha parece ansioso. Mexe-se. Consulta seu relgio de pulso. Olha em todas as direes. Pergunta-me se j fiz as ligaes. Digo que sim, que consegui contatar o servio de segurana do metr.

    Uma dezena de minutos se passam antes que os seguranas do metr venham. Ao se aproximar de ns, indagam: Por que vocs o trouxe-ram para c? Vocs deveriam ter o ajudado a subir... Seu lugar no aqui. Ele deve ficar l fora enquanto o acolhimento de moradores de rua no chega. Ele est machucado? Eu digo que ele est cambaleante, talvez machuca-do em uma de suas pernas. Aqui no hospital, diz o segurana. Se ele estiver machucado, preciso chamar os bombeiros.

    O jovem conversa um pouco com um dos seguranas. Em seguida, todos decidem partir. Voc continua a chamar ajuda? Eu j vou indo, pro-pe o jovem. Eu aceno positivamente com a cabea e ele se vai.

    Logo, eu e o homem estamos sozinhos. Ele, dormindo; eu, sem saber o que fazer. Ficamos assim por mais vinte minutos.

    Finalmente, o homem recobra a conscincia. Ele deseja continuar sua caminhada at o cais. Ns caminhamos no meio da multido. No cais, o velho morador de rua se coloca sobre uma cadeira. Senta-se, primeiro; depois, deixando o corpo deslizar vagarosamente, deita-se. Eu pergunto se est tudo ok, se posso partir. Ele sorri. Diz oui. Eu sorrio de volta. Decido partir tambm. Olhando ao redor, a presena do homem no parece mais importunar os passantes. Talvez tenha se integrado paisagem do metr, eu penso, enquanto subo as escadas e retomo meu caminho para casa.

    No dia em que vivi a experincia relatada acima, escrevi no meu di-rio de campo: o corpo dos outros um pouco como o meu: s o percebe-mos quando ele causa mal-estar. Reside a, talvez, o fato original. As reper-cusses sociais de um corpo precarizado, transformado negativamente pelas condies sociais nas quais ele se inscreve, so as de um corpo que causa mal-estar ou, como diria Georges Canguilhem (2006, p. 68), que faz obstculo capacidade de ultrapassar a norma. Trata-se de uma resso- resso-nncia, simultaneamente pessoal e social, de leses inscritas na carne e na psique. Em outras palavras, parafraseando David Le Breton (2007, p. 323), o

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    mal-estar no exclusivamente um rastro na conscincia de uma ruptura orgnica, mas uma experincia que confunde corpo e sentidos.

    Pensando nesses termos, passei a catalogar as diferentes situaes de mal-estar vividas pelas pessoas que participaram da minha pesquisa de campo em Paris. Testemunhei a fome, a exausto fsica, as dores no corpo, as crises de ansiedade, os enjoos, as desmoralizaes, as doenas agudas e crnicas, etc. Em certos casos, o mal-estar era vivido como um entrave para o exerccio de atividades cotidianas. Em outros, era mais do que isso: um p fraturado, um dedo gangrenado ou mesmo o simples fato de permanecer sob a chuva apesar do frio poderia ser apresentado como um signo de resistncia frente aos obstculos e dureza da vida na rua. Nesse caso, meus interlocutores se diziam tre habitus isto , acostumados s dores, fome, ao frio ou ao calor excessivos.

    Os ferimentos e as dores resultantes dos efeitos do universo da rua sobre o corpo esto l para lembrar as pessoas do peso das condies de existncia nas quais elas se encontram. Trata-se, portanto, de uma refle-xo trgica sobre o corpo, no sentido de uma tomada de conscincia de sua temporalidade, fragilidade, usura e precariedade (Bernard, 1995, p. 8). Em outras palavras, a hexis corporal se transforma na rua e, com ela, as maneiras pelas quais as pessoas se observam e se relacionam com o mundo.

    Como sublinha David Le Breton, mesmo tocando apenas um frag-mento do corpo, que fosse um dente cariado, a dor no se contenta de alterar a relao do homem com seu corpo. Ela vai alm, antecipa gestos, atravessa reflexes, contamina a totalidade das relaes com o mundo (Le Breton, 1995, p.26). A queda do homem no metr demonstra isso. O seu mal-estar rompe a monotonia, provoca a sensibilidade dos passantes. Face a um sofrimento que transborda os limites da intimidade, cada qual procura dar conta da situao: uns seguem seu caminho; outros ofere-cem um suporte temporrio; alguns resistem ao mal-estar, rejeitam-no.

    Ao longo de minha pesquisa etnogrfica em Paris, foram essas ten-tativas relacionais de dar conta de mal-estares que conformaram minha compreenso a respeito das relaes entre o universo (precrio) da rua e os corpos (precarizados) de meus interlocutores. Tais tentativas con-formam, ao mesmo tempo, um jogo de espelhos sistematicamente atua-lizado em situaes de interao social, um exerccio relacional pelo qual se estabelecem identificaes e diferenciaes e um choque de sensibili-dades, cujos sentidos repercutem na conscincia ntima de que o corpo pode ser tanto veculo como objeto de inquietude, desprezo e solicitude. Como procurarei argumentar a seguir, a partir dessas mltiplas dimen-ses que se inscrevem as situaes de desrespeito social que costuma-vam acompanhar meus interlocutores em suas vidas cotidianas.

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    3. As relaes ntimas entre o corpo precrio e as situaes de desrespeito social

    As relaes entre o universo da rua e a precarizao dos corpos que a ele se sujeitam no so transparentes. As tentativas de dar conta do corpo precrio e de seus mal-estares indicam isso. Inscrito e marca-do pelo frio, pelo cansao, pela fome, pelas dores e pelas fraturas es-tejam elas expostas ou silenciosamente presentes , o corpo responde inscrevendo e marcando com fora a esfera das relaes sociais. Para as pessoas que pesquisei em Paris, isso significa duas coisas: por um lado, lutar constantemente contra os efeitos do universo da rua que teimam em pautar o corpo e suas relaes; por outro, enfrentar ocasionalmente situaes de desrespeito social. Como se do as relaes ntimas entre hexis corporais precarizadas e situaes de desrespeito social? A fim de comear a delinear algumas respostas a essa questo, apresento uma se-gunda sequncia etnogrfica:

    Sequncia etnogrfica 2:

    26 de novembro de 2006, sbado. A noite comea no Quartier Latin, regio chique de Paris. Acompanho Zigfried e Philippe8. O primeiro vive numa tenda localizada h alguns metros dali; o segundo ocupa irregular-mente um apartamento abandonado na periferia de Paris. A diferena de condies de habitao se reflete na aparncia: enquanto Philippe est na moda (usa uma camisa colorida bem passada, de mangas longas e colada ao peito, acompanhada de calas justas e escuras e de um sapato recentemente engraxado e polido), Zigfried veste um casaco cinza, usado e rasgado na altura do cotovelo direito, bluso de l creme e manchado, calas de brim e tnis brancos e furados nos dois ps.

    Apesar do contraste das aparncias, Philippe insistiu para que Zi-gfried o acompanhasse em sua noitada. Como eu estava junto, o convite se estendeu a mim tambm. Quando Philippe avista um grupo de meni-nas, ele sugere que ns o acompanhemos. Antes, porm, saca um casaco de uma mochila que ele havia escondido atrs de uma lixeira momentos antes. Coloca a, meu chapa, diz ele a Zigfried. Hoje, eu vou te fazer passar por um cara normal.

    Vestidos como caras normais, Philippe e Zigfried vo em direo a trs mulheres. Eu fico onde estou e observo a interao. Philippe ini-cia a conversa, Zigfried acrescenta algum comentrio. O grupo ri. Mais falas de Zigfried e Philippe. Mais risos. O ambiente parece favorvel, mas a conversa no dura muito. Dez ou quinze minutos. Logo, uma das trs mulheres olha o relgio, uma outra diz alguma coisa e o grupo se desfaz. 8 Os nomes citados nesta sequncia etnogrfica so fictcios.

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    Zigfried e Philippe retornam. Riem. Parecem satisfeitos. A gente quase pegou elas, cara!, diz o primeiro. O que foi que eu te disse?, pergunta Phili-ppe, retoricamente. Bah, mas uma coisa certa: da prxima vez, melhor eu tomar um banho, finaliza Zigfried, com seriedade.

    No universo da rua, as noites maldormidas, as dores e os odores de-sempenham um papel importante na incorporao de disposies corpo-rais que configuram aquilo que podemos chamar de abandono do corpo. O cansao que, num primeiro momento, parece momentneo ou suport-vel, se instala duravelmente. O corpo, antes silencioso, passa a ser ritmado pelas dores e pelo desconforto. Progressivamente ainda que nem sempre de forma irreversvel , o abatimento se inscreve nos gestos e na postura.

    Ora, justamente esse corpo abandonado s condies precrias de vida que se tornar o repositrio de experincias de desrespeito social. Se lutar contra o abandono do corpo no implica necessariamente em lu-tar por formas de reconhecimento social positivas afinal de contas, pode se tratar simplesmente de uma tentativa de melhorar a sensao de con-forto e de bem-estar , nenhum reconhecimento social positivo possvel aqum de uma hexis corporal que disponha de algum valor no campo so-cial. Sob esse ponto de vista, autoestima e estima social caminham juntas e no cessam de se reforar ou rebaixar mutuamente no universo da rua.

    Entendido como corpo-signo das condies de vida na rua, o corpo precrio pode e deve ser pensado tambm como um estigma, no senti-do sociolgico do termo: marca individual que desqualifica e impede o indivduo de ser plenamente aceito pela sociedade (Goffman, 2000, p. 7). A situao vivida por Zigfried em sua noitada comigo e com Philippe uma demonstrao disso: toda tentativa de passar uma noite bem-sucedi-da no Quartier Latin, bairro chic de Paris, depende da capacidade de apa-gar as marcas corporais consideradas negativas. Falta disso, parafraseando Ruwen Ogien (1983), Zigfried tacha o ambiente onde ele se encontra.

    Tudo parece conduzir o corpo precrio para seu destino de des-prezo social e estigmatizao. Marcas, cicatrizes, cheiros, roupas, maneiras de falar e de agir: so inmeras as disposies corporais distintivas que contribuem para denunciar a condio social das pessoas que pesquisei em Paris. Afinal de contas, possvel lutar contra os efeitos da rua so-bre o corpo e, por extenso, procurar formas de reconhecimento social positivas? Dito de outra maneira: possvel tirar a rua do corpo, para-fraseando a expresso utilizada por Santana et al. (2005)? Qual o custo dessa possibilidade? Trata-se de uma escolha? Sob quais condies um morador de rua como Zigfried escolhe entre aceitar ou rejeitar o carter inexorvel dos efeitos da rua?

    Sobre essa questo, parece-me fundamental esclarecer alguns con-dicionantes microssociolgicos que tornam toda tentativa de tirar a rua do corpo uma verdadeira luta cotidiana. Em primeiro lugar, os obstculos

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    organizao pessoal: como e onde estocar alimentos, roupas e objetos pessoais num universo onde o espao privado se confunde com o pbli-co? Segundo ponto, relativo higiene: em Paris, a prefeitura coloca du-chas pblicas disposio da populao. Dentre as pessoas que encontrei e entrevistei, pelo menos um tero afirmou frequent-las uma ou duas vezes por semana, geralmente aos sbados ou domingos. Porm, mesmo com a possibilidade de acesso a esse tipo de servio, meus interlocutores sempre destacaram as dificuldades de se desodorizar. As atividades no universo da rua so pautadas por emisses de poluio de diversas or-dens sonoras e de gs carbnico, em especial. Os sons e a sujeira, quan-do considerados repugnantes, implicam em deslocamentos sucessivos. Desloca-se, ainda, em virtude da necessidade de urinar e defecar. Desses deslocamentos e atividades, resultam suor e sujeira nas roupas.

    Um outro ponto microssociolgico relevante diz respeito ao aban-dono das disposies incorporadas no universo da rua, as quais se apre-sentam como uma resposta relativamente adequada s condies de existncia. Como prope Sophie Rouay-Lambert (2004) a respeito das etapas de reinsero social, os hbitos e prticas que garantem a sobrevi-vncia do indivduo na rua so muitas vezes os mesmos que os impedem de viver no mundo dos logs, isto , dos que vivem em casas e aparta-mentos. Uma vez que a escolha por tal ou tal repertrio de prticas no possvel sem o abandono gradual e definitivo de disposies incorpo-radas ou, em outras palavras, de uma trasladao efetiva da trajetria social no campo dos possveis , no deve causar surpresa a constatao de que preciso tirar a rua do corpo de um morador de rua quando se trata de reinseri-lo socialmente.

    Terceiro ponto microssociolgico relevante: pelo que pude perce-ber a partir do trabalho de campo em Paris, as mesmas inconsistncias entre disposies incorporadas que precisam ser superadas no curso de processos de reinsero social se encontram na origem das situaes de desrespeito social vividas pelos moradores de rua. Assim, quando algum como Zigfried faz de tudo para parecer normal, isso implica no apenas trocar de roupa ou tomar banho, mas retirar do campo de visibilidade todo e qualquer signo que enuncie sua condio de morador de rua a uma pessoa que no moradora de rua. Mudar de roupa e disfarar os odores corporais , por um lado, uma deciso pragmtica, consciente e informada por situaes de desrespeito que se do nas trs esferas suge-ridas por Axel Honneth (2006, 2009): maus-tratos e ataque integridade fsica em virtude das condies precrias de existncia; privao de di-reitos individuais, polticos e sociais (direitos segurana, propriedade privada, moradia, sade, etc.); e degradao moral, pautada pela im-possibilidade de qualificar positivamente a posio social ocupada. Por outro lado, tal deciso reveste-se de uma transformao subjetiva, onde a

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    relao com o prprio corpo (e sua aparncia) pauta-se por sentimentos de impotncia e sofrimento frente s situaes de desrespeito social.

    interessante notar, nesse sentido, que Zifgried pde agir apenas sobre a esfera da estima social. Nenhum banho e nenhuma roupa nova capaz de desfazer as experincias de maus-tratos e violncia ou de re-cuperar os direitos individuais e sociais perdidos com a passagem para o universo da rua. Bem entendido, nessas duas esferas de reconhecimen-to social que as polticas de reinsero social procuram agir. Porm, isso no minimiza a sensao de impotncia frente s demandas ou tentati-vas de tirar a rua do corpo que muitos daqueles que entrevistei em Paris manifestaram.

    Sob o efeito de situaes de desrespeito social sucessivas, preciso cultivar fortes doses de f no valor-indivduo e em sua capacidade de escolher seu destino social para acreditar, de maneira sociologicamente simples e ingnua, na remoo voluntarista de verdadeiras montanhas de disposies corporais incorporadas ao longo de ataques sistemticos integridade fsica, jurdica e social de uma pessoa. Ou seja: para os mora-dores de rua que acompanhei ao longo de dois anos de pesquisa, o pro-cesso de reinsero no (e no pode ser) uma questo de escolha. Tudo que elas podem fazer lutar contra o peso do sofrimento subjetivo face s situaes de desrespeito e, conforme o caso, manipular seu estigma, como diria Erving Goffman (2000)9.

    Concluso

    O objetivo deste artigo era o de discutir sob quais condies possvel afirmar que homens e mulheres que vivem em situao de rua incorporam as condies de existncia nas quais eles se encontram. No caso das pessoas que acompanhei ao longo de dois anos de pesquisa de campo em Paris, desenvolvi a hiptese de que esse processo de incor-porao pode ser afirmado no apenas pela relao ntima estabelecida

    9 A esse respeito, interessante notar que as pessoas em situao de rua podem vir a se desrespeitar mutuamente, bem como manipular seus estigmas uns em relao aos outros. Assim, no incomum encontrar categorias de classificao nativas isto , estabelecidas nos ou entre diferentes grupos de pessoas em situao de rua. Enquanto formas de classificao, tais categorias so hierrquicas e diferenciais. No caso das pessoas pesquisadas em Paris, uma maneira corriqueira de se classificar atravs da oposio SDF/Clochard. O SDF seria uma pessoa em situao de rua que capaz de se apresentar de maneira digna, ou seja, asseada, responsiva e dcil. J o Clochard o oposto dessa dignidade reivindicada pelo SDF: tratar-se-ia de uma pessoa suja, abandonada a si mesma e passiva ou agressiva. Para alm da adequao dessas categorias a casos concretos, o que importa ressaltar como elas colaboram para a construo do estigma. Uma vez que no se trata de classificaes exgenas, mas compartilhadas ou reapropriadas por grupos de pessoas em situao de rua, tais categorias so incorporadas e repercutidas nas lgicas de reconhecimento e desprezo social.

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    com as condies precrias de existncia, mas, sobretudo, atravs de situ-aes de desrespeito social que atingem as esferas fsica, sociojurdicas e morais dos sujeitos pesquisados. Em outras palavras, a contribuio deste artigo para pesquisas sobre pessoas em situao de rua no Brasil passa no pela originalidade do que foi descoberto chega a ser banal afirmar que tais pessoas sofrem fisicamente e psiquicamente em virtude de suas condies precrias de existncia , mas pela correlao estabelecida en-tre condies precrias de existncia, desrespeito social, sofrimento ps-quico e reabilitao fsica e moral.

    Com efeito, possvel sugerir que tal hiptese se apresenta no apenas atravs da observao direta e sistemtica de pessoas em situa-o de rua, mas nas relaes intersubjetivas entre essas mesmas pesso-as e aquelas que trabalham em entidades e instituies sociais voltadas para a superao das condies de misria em contexto urbano. Nesse sentido, as situaes de desrespeito social vividas no universo da rua de-vem ser pensadas como variveis decisivas para a conformao de um habitus (Bourdieu, 1980, 2000, 2001) cujos princpios geradores no ces-sam de obstaculizar toda pretenso de uma pessoa em situao de rua seguir espontaneamente um caminho de reinsero social. Os efeitos do desconforto, dos mal-estares e das dificuldades de higiene repercu-tem imediata e sistematicamente na hexis corporal que, por sua vez, se revela cada vez mais suscetvel a experincias de humilhao e de estig-matizao social. Uma vez incorporadas, essas experincias de privao de direitos e de degradao moral se impem contra toda tentativa de reabilitao fsica e psquica. Aos que sobrevivem e seguem lutando, fica a impresso do desenvolvimento de uma suposta resistncia, possvel a partir de um curioso repertrio de prticas incorporadas que permite a determinados sujeitos a elaborao de aes de resistncia frente s adversidades. Aos que cedem s experincias sistemticas de sofrimento fsico e psquico, ao contrrio, a vida de teimoso continua (Escorel, 2000), pautada por expresses da subjetividade que desafiam os limites do hu-mano. nesse quadro delicado e de difcil superao que se inscrevem as prticas de pesquisadores, assistentes sociais e voluntrios solidrios com tentativas individuais e coletivas de superao da misria e da pre-cariedade no universo da rua; um quadro onde tirar a rua do corpo nun-ca se encerra numa deciso pragmtica ou instantnea, mas requer rela-es processuais capazes de transformar duravelmente as dimenses da autoconfiana, do autorrespeito e da autoestima.

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    Slum bodies, contempt and self-esteem: Case study on homeless people in Paris/FR

    Abstract: This article discusses when and why certain body signs may be considered as a statement of the intimate relation between the body of a homeless person living in Paris and the universe in which he lives. For this purpose, it shows why embodiment and self-awareness are difficult to manage from the point of view of the research subjects. Indeed, marked by the close relationship with the precarious conditions of existence, the corporal hexis of the studied people becomes the very source of both social contempt and negative self-esteem. Finally, this paper outlines some possible ways of resilience and social integration on the case of the studied homeless people.

    Keywords: Poverty. Homeless people. Embodiment. Social contempt. Social recognition.

    Corps prcaires, mpris et autoestime: Le cas des sans-logis Paris/FR

    Rsum: Cet article discute quand et sous quelles circonstances certains signes corporels peuvent tre considrs ou pas en tant quenonciateurs de la relation intime entre le corps dun sans-logis parisien et lunivers social dans lequel il se trouve. Ce sont ces facteurs qui font du souci du corps et du soi une exprience difficile de grer par les sujets enquts. En effet, marque par la relation intime tablie entre les conditions prcaires dexistence, lhexis corporelle des personnes tudies devient la fois objet de mpris social et source ngative dauto-estime. la fin de larticle, les chemins possibles de la resilience sont prsents, aussi bien que du retrait de la rue du corps autrement dit, du difficile travail de rhabilitation physique et morale des personnes tudies.

    Mots-cls: Pauvret. Sans-logis. Corps. Mpris social. Reconnaissance sociale.

    Cuerpos precarios, desprecio y autoestima: el caso de las personas sin techo en Pars/FR

    Resumen: El presente artculo debate cuando y bajo cuales condiciones algunos aspectos corporales pueden o no ser considerados declaradores de la relacin ntima entre el cuerpo de un sin techo y el universo donde se encuentra. Son estos factores los que hacen el cuidado del cuerpo y de s mismo un experimento difcil de manejar por los individuos encuestados. En realidad, marcado por la estrecha relacin establecida con las condiciones precarias de existencia, la hexis corporal de las personas encuestadas se convierte tanto objeto de desprecio social como creador

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    negativo de autoestima. Al final, se describen caminos posibles de resiliencia y de la remocin de la calle del cuerpo o sea, el trabajo duro por la rehabilitacin fsica y moral de las personas estudiadas.

    Palabras-clave: Pobreza. Sin techo. Cuerpo. Resiliencia. Reconocimiento social.

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    Lucas Graeff, professor do curso de mestrado profissional em Memria Social e Bens Culturais do Centro Universitrio Unilasalle (Canoas/RS). Psiclogo. Mestre em An-tropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em Antrop-ologia pela Universidade de Paris 5 Sorbonne. Endereo eletrnico: [email protected]

    Recebido: 22/12/2011 Aceito: 14/07/2012