corpo feminino, corpo sedutor, corpo profano

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    Corpo feminino, corpo sedutor, corpo profano:a construo teolgica do corpo feminino como

    simbologia do mal

    Marli WandermuremMarli Wandermurem. Faculdade Batista Brasileira, Salvador, Bahia. Profa. de Cincias das Religies e Teologia do AntigoTestamento. Coordenadora do Ncleo de Estudo Interdisciplinar Sobre Gnero e Religio (NEIGER) e Centro de EstudosTeolgicos Feminista do Norte/Nordeste (CETEFEN). E-mail: [email protected]

    Resumo

    O corpo feminino foi construdo pela rigidez dos valores morais atravs dos pensamentosculturais religiosos a partir dos mitos primordiais. Nele esto inscritas todas as regras, todas asnormas e todos os valores elaborados pela construo teolgica/filosfica que vm

    perpassando as sociedades ao longo das pocas histricas. No mundo religioso, ele vistocomo uma construo simblica, por isso no se pode compreend-lo pelo biolgico, e sim,

    por sistemas culturais. mediante a construo teolgica que nasce a sua no-percepo. Apreocupao com o corpo passa a ser proibida, e comea-se a delinear a concepo deseparao de corpo e alma, prevalecendo fora da alma sobre o corpo. O corpo comea atornar-se culpado e perverso, necessitando de purificao atravs das tcnicas coercivas sobreo fsico, como forma de controle.

    Palavras-chave: Mal. Corpo feminino. Mitos. Religio.

    The female body---seductive and profane: the theological construction of the

    female body as symbol of evilAbstracts

    The female body was constructed with the rigidity of moral values based on primordial mythsand, subsequently, on religious and cultural thought. On this body are inscribed all the

    norms, all the rules, and all the values elaborated by theological/philosophical construction

    and found in society throughout history. In the religious world, the female body is seen as a

    symbolic construction rather than as something biological and therefore as part of a cultural

    system. It is by means of theological construction that non-perception of the female body

    comes into practice. Preoccupation with the body becomes prohibited, and separation of the

    body from the soul begins to occur, with soul winning out over body. The body becomes

    identified with guilt and perversity, therefore requiring purification through physically

    coercive techniques as a form of control.

    Key words: Evil. Female body. Myths. Religion.

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    INTRODUO

    As contribuies da sociologia e da antropologia para o debate teolgico sobre o mal se

    centralizam no suporte de que o bem e o mal so categorias socialmente construdas ao longoda histria. Mas falar de mal implica uma anlise do simblico-religioso para entender onde,

    como e por que as religies vincularam a figura feminina nesta construo do mal. Implica ir

    alm, necessita-se refletir sobre o espao de identidade feminina, isto : o seu corpo. E,

    conhecer os sentidos construdos no corpo feminino, obrigatoriamente, necessita-se focar a

    Teologia, porm, analisar corpo feminino, hoje, significa apontar a importncia de suas

    diferentes experincias que por muito tempo foram negligenciadas e reprimidas pelos

    discursos teolgicos, criando inmeros dogmas para hostiliz-lo e torn-lo profano.A inteno deste trabalho fazer uma anlise da construo do corpo feminino, inserido

    no significado simblico religioso cristo, como espao do mal. Uma vez que o corpo

    feminino foi construdo ao longo do tempo pela rigidez dos valores morais atravs dos

    pensamentos culturais religiosos, nele esto inscritas todas as regras, todas as normas e todos

    os valores elaborados pela construo teolgica/filosfica que vm perpassando as sociedades

    ao longo das pocas histricas. Na tentativa de olhar momentos significativos na histria

    teolgica do corpo feminino, o mais importante no a delimitao das datas e pocas, mas a

    descrio dos traos que se destacaram em determinados perodos, a fim de apontar alguns

    elementos que ajudem a descobrir os discursos que construiu o corpo feminino, num ngulo

    negativo, e por isso, legitimou o seu afastamento de muitos espaos sociais, sobretudo, do

    espao sagrado.

    Inicialmente, poderemos registrar perguntas a partir do tema proposto, tais como: como

    surgem as categorias religiosas usadas para classificar e separar corpos, pessoas e eventos em

    bem ou mal? De que forma as categorias de classificao entre agentes do mal e do bem so

    socialmente construdas, descritas, explicadas e justificadas nas vrias culturas ou momentos

    histricos? So perguntas que o texto no tem inteno de responder; a proposta provocar

    uma reflexo de estudiosas feministas do fenmeno religioso, a partir das Cincias das

    Religies, tomando por objeto de anlise as formas de percepo do corpo feminino como

    representao social do mal. Tambm, se pretende um debate com todas as pessoas que esto

    preocupadas com as questes relativas origem e significao do mal na vida humana, e a

    todas que esto interessadas em examinar as articulaes entre cincia sociais e religio, nesta

    constituio.

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    Os tericos que partilharam teoria da modernizao progressiva de toda a esfera

    social consideraram a religio como suspeita, destinada a uma inevitvel perda de relevncia

    social. Somente nas ltimas dcadas do sculo vinte, numa sociedade ps-secular, marcada

    pela efervescncia religiosa que se deu conta da unilateralidade da perspectiva da teoria da

    modernizao e, sobretudo, da previso errnea em relao ao espao da religio na sociedade

    moderna.

    Contudo, no mundo teolgico, s vezes, se estranha a abordagem que as cincias

    sociais fazem da religio, considerando-a excessivamente secularizante. Esta estranheza tem

    sua razo de ser, pois as cincias sociais desde as suas origens, na segunda metade do sculo

    XIX, tm proposto explicaes estritamente sociais para o fenmeno religioso, abandonando

    quaisquer apelos ao transcendental, especialmente em suas maneiras de abordar a presena dodivino e de suas formas de negociao na sociedade. O resultado so as acusaes de

    reducionismo ou uma atitude reservada para com as cincias sociais. Durkheim (1989)

    expressa essa dificuldade da seguinte forma:

    O mundo da vida religiosa e moral ainda continua fechado. A grandemaioria dos homens continua a acreditar que existe a uma ordem de coisasnas quais o esprito s pode penetrar por vias muito especiais. Vem da asfortes resistncias encontradas todas as vezes que se procura tratarcientificamente os fenmenos religiosos e morais (...). Eis em que consiste o

    conflito entre a cincia e a religio. (DURKHEIM, 1989, p. 508)

    Porm, no se pode ignorar a importncia das contribuies das Cincias Sociais e da

    Antropologia para um debate sobre o fenmeno religioso, especialmente quando as formas de

    percepo e representao social do mal, porque elas descrevem e explicam as formas como

    os grupos sociais criam, percebem e representam presena do mal no mundo; no entanto,

    no temos que isolar a Teologia no conjunto das cincias da religio.

    O tratamento dado pelo iluminismo e pelos intelectuais posteriores religio, acumulou

    uma viso caricaturada sobre o fenmeno religioso, colocando-o como cobaia da razo emque deveria ser examinado e questionado. Foi entendida como forma opicea de conduta.

    Porm, estudar o fenmeno religioso hoje de extrema relevncia dado o fato de que a

    religio passa a ser vista e entendida como um fator de mutao social e poltica que est

    mudando de forma rpida o rosto da sociedade contempornea. Essa nova relevncia social

    no est apenas nas sociedades em vias de desenvolvimento do que foi classificado de

    Terceiro Mundo, mas tambm nas sociedades modernizadas e secularizadas pela ideologia

    marxista-leninista do leste europeu, onde os valores religiosos se tornaram relevantes para areconstruo das naes assentados no fator religioso que, conexo com a identidade popular,

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    voltou a construir um quadro de identificao e referncia para os grupos que aspiravam a

    renovao social e poltica. A religio est, at mesmo, no corao das sociedades industriais

    avanadas. Nas ltimas dcadas, a religio mostrou uma renovada capacidade de agregao e

    identificao, como mostra o neofundamentalismo evanglico nos Estados Unidos, ao mesmo

    tempo, que nos pases europeus mais industrializados assiste-se a multiplicao e difuso de

    novos movimentos religiosos e de novos interesses por formas de magia e esoterismo.

    A religio no tem uma natureza especfica, porque est sujeita s transformaes

    adaptando a sua tradio, mesmo a milenar, as mudanas ocorridas no tempo e no espao.

    Bourdieu (1999, p. 25), analisando o fenmeno religioso pelo prisma da agncia fomentadora

    de bens simblicos a serem consumidos pela sociedade, diz que a religio como instituio

    social, cria e comercializa produtos capital simblico: econmico, cultural, poltico, cujoobjetivo a legitimao de suas prticas como verdades permanentes.

    Na elaborao das reflexes, a seguir, foi adotado, como pressuposto, a existncia de

    divergncias culturais na forma de perceber e interpretar a presena do mal na figura

    feminina. aquilo que diz Durkheim: As categorias do pensamento humano jamais so

    fixadas de forma definitiva; elas se fazem e se desfazem, se refazem sem cessar, elas mudam

    conforme os lugares e tempos [...]. Tambm, segundo o antroplogo Clifford Geertz (1989),

    No existem de fato homens no-modificados pelos costumes e lugaresparticulares. No existe natureza humana independente da cultura. A culturano foi acrescentada a um animal acabado, foi, outrossim, um ingredienteessencial na sua produo. Os seres humanos so animais incompletos einacabados, que se completam e acabam atravs da cultura. (GEERTZ,1989, p. 56).

    Ao pesquisar a abordagem da religio se lida com dois espaos: de um lado h os

    discursos dos agentes do sagrado como a fundamentao ltima do saber religioso e de ouro,

    h a relao que essas afirmaes e esses enunciados, enfim, esse saber religioso, tem com o

    tipo de sociedade ou de cultura que o explicam. O corpo feminino foi alvo de muitas falas dos

    agentes do sagrado, e, seguindo a histria, podemos perceber que a sociedade em cada

    momento, tempo histrico e cultural, veio explicando essa lgica do corpo feminino, como

    espao do mal.

    Mais que uma discusso terica, atenta-se, neste momento, para um olhar do fenmeno

    religioso, no processo de construo do corpo feminino, como espao do mal, tentado apontar

    fatores culturas que levam a sociedade endossar os discursos teolgicos das instituies

    religiosas acerca do corpo feminino, bem como difundir tais mitos e esteretipos. A

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    buscam incorporar as normas de uma nova esttica corporal, procuram mudar o seu corpo

    para transformar a imagem do seu eu e, assim, sua vida social. O corpo virou um continente

    explorado.

    O corpo humano o suporte de todos os processos vitais que somos, por isso, no se

    pode defini-lo, porque a histria do corpo humano no tanto a sucesso de distintas

    definies e sim a narrao de seus modos de construo. As definies nos remetem a um

    corpo ahistrico; se observarmos este fato vemos que a forma de aproximao a partir das

    Cincias, ou da Filosofia ou, incluindo a Teologia, que a narrao do corpo nos situa ante a

    histria, ante as distintas formas, nas quais o corpo tem sido construdo e vivido.

    A mulher, em seu corpo, foi construda e narrada, atravs dos tempos, pela tradio

    religiosa como um ser que criou transtornos para humanidade. Ela s se supera e torna umafonte do bem nos modelos estabelecidos por Maria ou Sofia. Onde ela assume os papis de

    me, esposa ou piedosa, anulando-se a si mesma em benefcio do outro. Portanto, as

    categorias de dignidade esto voltadas para o varo. por isso que o corpo feminino aparece,

    na histria, atravs do outro, atravessado pelas palavras do outro e configurado a partir dessas

    palavras. Ela entra na reflexo antropolgica no mbito dedicado antropologia social, porm

    no com uma referncia a si mesma, no como anlises do humano enquanto feminino, j que

    o feminino tem sido produto de uma construo.Tem participao na construo do corpo feminino, a linguagem. A linguagem

    religiosa, especialmente a utilizada para a construo das imagens analgica, tanto vem pelo

    conceitual como pela metafrica. As metforas, sntese da linguagem potica, so

    incorporadas maleta de ferramentas metodolgicas de quem se envolve nos estudos da

    religio, em sua busca de mltiplas representaes contidas nos discursos, na imagtica, nos

    signos e smbolos. Darton (1989) diz:

    A linguagem nos d nosso crivo mais bsico. Ao nomear as coisas, ns asinserimos em categorias lingsticas que nos auxiliam a ordenar o mundo.Nomear saber encaixar alguma coisa num sistema taxonmico declassificao. Mas as coisas no vm classificadas e rotuladas naquilo quechamamos natureza [...]. (DARTON, 1989, p. 38).

    O discurso do ser humano enquanto corpo entendido como histria e narrao, nos

    escapa em sua inteno de querer reduzi-lo a processos biolgicos, psicolgicos, sociais ou

    polticos, pois o ser humano enquanto ser-no-mundo, em-relao com, resulta enigmtico e

    misterioso e precisamente isto que fica para explicar. A corporeidade uma sntese decontrrios, sempre problemtica, onde o finito e o infinito parecem que lutam

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    incessantemente, onde a vida e a morte fazem seu ponto de encontro, onde o tempo e o espao

    parecem que se detiveram para dar o passo da eternidade, onde o homem e a mulher

    descobrem que transcendem o mundo, o tempo e sua prpria condio mortal em dilogo com

    o sofrimento e a morte que atravessam de meio a meio sua existncia.

    A corporeidade o espao da vida, da luta e da morte, o tronco da terra no que o ser

    humano tem fincado razes como possibilidade de plenitude e, ao mesmo tempo, como

    frustrao de possibilidades. a pessoa em eterna gestao de si mesma que se debate entre

    os plos que tenciona sua existncia. A pessoa se descobre a si mesma pela exterioridade de

    seu corpo e a interioridade de sua vivncia, entre a objetividade do aparecer e a subjetividade

    do mostrar-se, entre a execuo de seus atos e a intencionalidade de sua vontade e, em

    definitiva, radicalmente entre os dois grandes atos de sua vida, a saber: o nascer e o morrer.O corpo tambm o que nos permite ser-em-relaoe configurar o prprio rosto e a

    prpria identidade atravs dos processos de socializao. Todo ser humano um eu frente a

    um tu e isso por sua prpria corporeidade j que esta a que possibilita sua existncia, o

    reconhecer-se a si mesmo como ser que existe e, portanto, com necessidade de auto-

    interpretar-sena prpria existncia. assim que se nota a importncia de pensar o corpo a

    partir da Teologia. Mas incorporar um discurso teolgico do corpo implica em srios desafios,

    pois, foi atravs do discurso teolgico que o corpo se tornou pecador e subjugado. Agora,cabe, tambm, as teloga/os feminista/s trabalhar no resgate desse corpo.

    Trabalhar no resgate do corpo feminino hoje, necessita-se entender o momento cultural

    religioso e como se processa, ainda hoje, o discurso religioso na sua construo. O corpo da

    mulher constitui um signo chave para a compreenso do ser humano no mundo. Muito do que

    conhecemos da histria veio expressado, na trama corporal da mulher, tal corpo que tomou

    forma de me e amante, monstro e amiga, prostituta e santa. Foi assim que as primeiras

    narrativas apresentaram a mulher, que nos chegou pelos mitos mais significativos de nossacultura, especialmente os do livro sagrado: a Bblia, que a base para a construo da teologia

    crist. So esses mitos que nos oferecem material para construir o corpo feminino, atravs de

    um sistema simblico que a cultura religiosa construiu sistema de valores que veio a definiu o

    corpo feminino.

    Os estudos feministas, e a histria do corpo so campos tericos1 que ajudam a

    subsidiar o estudo do corpo. Possibilitam olhar o corpo de forma a desnaturaliz-lo, ou seja,

    de forma a questionar saberes considerados pela teorizao tradicional como verdadeiros ou,

    por vezes, nica. Esses campos tericos ao enfatizarem a dimenso cultural do corpo no

    negam sua materialidade biolgica, mas no conferem a esta materialidade a centralidade na

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    definio do que seja um corpo nem mesmo tomam a biologia como definidora dos lugares

    atribudos aos diferentes corpos, em diferentes espaos sociais.

    As abordagens feministas ps-estruturalistas comearam a teorizar o corpo como um

    construto scio-cultural e lingstico, produto e efeito de relaes de poder. Neste contexto, o

    conceito de gnero passa a englobar todas as formas de construo social, cultural e

    lingstica, implicada com os processos que produzem o corpo, tanto masculino como

    feminino, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gnero e sexualidade.

    Foucault (1992) tematiza o corpo, afirmando, sobretudo, serem os nossos gestos

    construes culturais historicamente datados. Seu objeto de investigao no est centrado no

    corpo, mas nas prticas sociais, nas experincias e nas relaes que o produzem, num

    determinado tempo/local, de uma forma especfica e no de outra qualquer. Para Foucault, ocontrole da sociedade sobre os indivduos no se opera apenas pela ideologia ou pela

    conscincia, mas tem seu comeo no corpo, com o corpo. Foi no biolgico, no somtico, no

    corporal que antes de tudo investiu a sociedade capitalista. O corpo uma realidade

    biopoltica. (FOUCAULT, 1992, p. 77)

    A teoria feminista tem grande interesse em trabalhar a questo do corpo, colocando-o,

    muitas vezes, no centro da ao poltica e da produo terica, pois, percebe-se que o corpo

    das mulheres importante. Para Beauvoir (1980),

    O corpo da mulher um dos elementos essenciais da situao que ela ocupaneste mundo. Mas no ele tampouco que basta para defini-la. Ele s temrealidade vivida enquanto assumido pela conscincia atravs das aes e noseio de uma sociedade; a biologia no basta para fornecer uma resposta pergunta que nos preocupa: por que a mulher o Outro? Trata-se de sabercomo a natureza foi nela revista atravs da histria; trata-se de saber o que ahumanidade fez da fmea humana. (BEAUVOIR, 1980, p. 57).

    Em muitas teorias feministas, o corpo analisado como um objeto cultural, utilizado de

    formas especficas em culturas diferentes. Existem apenas tipos especficos de corpos,

    marcados pelo sexo, pela raa, pela classe social e, portanto, com fisionomias particulares.

    Os corpos so sempre irredutivelmente sexualmente especficos, necessariamente

    entrelaados a particularidades raciais, culturais e de classe. O corpo deve ser visto como um

    lugar de inscries, produes ou constituies sociais, polticas, culturais e geogrficas.

    (GROSZ, 200, p. 67).

    O corpo ocupa um lugar importncia na organizao social e, por conseqncia, nos

    processos de dominao da mulher. As diferenas presentes nos corpos ajudam o pensamento

    classificatrio a estabelecer distines; atravs de processos culturais que definimos o que

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    ou no natural, que produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, conseqentemente,

    as tornamos histricas (LOURO, 1999). As diferenas que fazem diferena so

    historicamente determinadas. (LAQUER, 2001, p. 95).

    Necessitamos construir uma nova antropologia, sem medos, que cante a maravilha de

    nossos corpos. Necessitamos reconstruir teologicamente um corpo que no carregue mais o

    peso do medo da Igreja, especialmente o medo da sexualidade que tem marcado o corpo da

    mulher como um territrio construdo de passagens inominveis e de zonas obscuras e

    pecaminosas.

    DOM, ENGANO E SEDUO: AS FIGURAS FEMININAS NOS MITOS BBLICOS

    O mito uma experincia de comunicao, um modo de relacionar: ser humano e

    mundo. O mito funda realidades. Admitido, enquanto representao coletiva e assim includo

    no mbito da linguagem, o mito encetaria a transmisso ao longo das geraes de uma

    explicao do mundo. A palavra ganhou, no mito, o poder de circunscrever e fixar os

    acontecimentos, uma forma essencial de orientao, um pensamento que organiza os planos

    diversos da vida.

    Ainda, na perspectiva da linguagem, mas vinculando-o noo de estrutura psquica, o

    mito foi apontando como expresso simblica de arqutipos inconscientes. Dois tipos de

    inconsciente foram descritos: o pessoal, cujos contedos so aquisies da existncia

    individual, e o coletivo, em que os arqutipos formam o contedo. O inconsciente da

    humanidade se expressa por meio de conjunto de smbolos prprios a cada agrupamento

    social.

    Segundo Campbell (1990, p. 26), aquilo que os seres humanos tm em comum se revela

    nos mitos. Eles so histrias da vida, da busca da verdade, da busca do sentido de vida. Mitos

    so pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, daquilo que ele capaz deconhecer e experimentar interiormente. Para Campbell (1990), o tema fundamental nos mitos

    , e sempre ser, a da busca espiritual. O que se nota ao investigar as vidas dos grandes

    mestres espirituais da humanidade (figuras histricas reais), pois, sempre nascem lendas e

    mitos ligados a eles. Relativando vivncias complexas de mundo, o mito passvel de

    mltiplas miradas. Polmico, suscita debates, na busca de definio exclusiva que englobaria

    suas vrias dimenses. Equiparado, a princpio, ora a uma teologia, ora a uma filosofia em

    embrio, o mito foi, ao longo dos tempos, includo em diversas perspectivas.

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    Em busca de outros enfoques, h mais de meio sculo, o Ocidente veio a reconhecer no

    mito a narrativa de uma histria verdadeira, incluindo-o no mbito das tradies sagradas.

    Segundo Eliade (1972, p. 11), o mito estabelece o modo pelo qual algo passou a ser. Sua

    funo maior seria revelar os modelos exemplares dos ritos e demais atividades significativas

    da vida humana. Os mitos de origem que influenciaram a mentalidade ocidental tm

    procedncia dentro de uma rea geogrfica cultural, cujos maiores expoentes foram as cultura

    babilnica e sumriana e a grega. Muito dos mitemas encontrados nos mitos bblicos tm a

    sua origem nas verses mais antigas dos povos da Mesopotmia, porm, depois da crtica

    construda a partir do fim do sculo XVIII, que resta do mitolgico para o Cristianismo?

    Nesta resposta, encontramos na opinio de dois telogos: o alemo Rudolf Bultmann e o

    francs Paul Ricoeur algumas respostas. Eles esto inseridos na tradio filosfica reflexiva eprocuram dialogar com a modernidade se perguntando como possvel pensar

    filosoficamente mitolgico? Bultmann publicou a obra Novo Testamento e Mitologia, opta

    pela eliminao do mito da linguagem religiosa, por meio do processo hermenutico de

    interpretao existencialista, mais conhecido como desmitologizao. Ricoeur percebe que

    o cogito est morimbundo e que possvel salv-lo articulando-o como simblico. Para

    Ricoeur (1987) o pensar simblico se d por meio da hermenutica criadora de sentidos.

    Paul Tillich (1959, p. 54) o telogo da contemporaneidade que mais destaca aimportncia do mito para a linguagem religiosa. Ele nos lembra que nada mais que smbolos e

    mitos podem expressar nossa preocupao suprema. So eles capazes de dar expresso ao

    sentimento do ser humano com o absoluto. Ataca a desmitologizao de Bultmann porque ele

    remove os smbolos e os mitos portadores de sentidos necessrios a vivncia humana. Afirma

    que a clara distino entre signo e smbolo o grande problema dos que em seu tempo

    escreverem sobre mito e smbolo na linguagem religiosa. Ricoeur e Bultmann, devido a suas

    metodologias e no teorizao desta distino tratam a linguagem religiosa como alegrica eno como linguagem simblica, ainda que utilizem o termo smbolo. Bultmann (2005)com

    seu projeto de desmitologizao diz que por detrs da viso mitolgica h verdades

    existenciais que precisam ser desvendadas e trazidas luz.

    No nossa inteno apresentar os mitos do corpo feminino, apenas focar algumas

    construes relevantes para entender a construo mitolgica do corpo feminino como

    representao do mal, e como eles se tornaram discursos dos agentes do sagrado e foram

    difundidos nas sociedades. Delimitaremos nossa reflexo nos mitos bblicos, uma vez que eles

    foram bases teolgicas para a formao da cultura religiosa ocidental.

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    O mito de Eva, Pandora e Lilith so determinantes na deteco da moral imposta pela

    religio crist ocidental. O Cristianismo uma religio derivada do Judasmo, partilhando

    com o mesmo discurso mtico contido no Antigo Testamento ou Bblia Hebraica. O mito de

    Lilith surge nos mundos: babilnicos e hebraicos. Criada por Deus logo aps Ado, nasce do

    p. Ela nasce do p assim como Ado, mas de um p com fezes e imundcies. (SICUTERI,

    1986, p. 28). Desde seu nascimento, est identificada com a impureza. Identificada com a

    noite, fazia parte de um grupo de espritos malignos. Ela fugiu de casa perto do Rio Eufrates e

    se estabelece no deserto. representada na figura de uma mulher e coruja de longos cabelos,

    que perturba os homens.

    Segundo a tradio talmdica, ela a "Rainha do Mal", a Lua negra e a Me dos

    Demnios. No Talmude, ela descrita como a primeira mulher de Ado. Tornou-se rebeldeao reivindicar igualdade em relao a seu marido. Abandonou Ado, insultou a Deus e foi

    embora. Sai no momento em que o Sol se despede e a noite comea a descer, tal como na

    ocasio em que Deus fez vir ao mundo os demnios. Lilith, um demnio feminino, volta-se

    contra todos os homens, surpreende-os durante o sono e os envolve com toda sua fria sexual,

    aprisionando-os em sua lasciva demonaca, causando-lhes orgasmos demolidores.

    Para satisfazer Ado, triste por ter perdido a mulher, Deus manda para o lugar de Lilith,

    Eva, que a mulher submissa, porm usa de "persuaso" para fazer com que Ado coma dofruto proibido, cometendo o "pecado original" e, desta forma, dando origem a todas as nossas

    desgraas. Este mito retrata bem a diferena entre a mulher progressista e a submissa. Esta a

    diferena fundamental entre Lilith e Eva. Mas ambas so portadoras de mal para a

    humanidade.

    No entanto, Eva a mulher feita a partir de um fragmento de Ado. o modelo

    feminino permitido ao ser humano pelo padro tico judaico-cristo: submissa e voltada ao

    lar. Ela repetiria o gesto de rebelio de sua antecessora. Deus tinha permitido ao homemcomer todas as frutas do jardim, com apenas uma exceo. exatamente esta interdio que

    rompida por Eva. A punio por este ato de desobedincia original foi a perda da

    imortalidade, a partir de ento os humanos tornaram-se mortais. O pecado original transforma

    os seres puros, criados por Deus, em seres impuros.

    Um outro texto importante o de I Enoc, contm apenas um fragmento dele canonizado

    em Gnesis nos captulos 2-8. O seu contedo mais amplo compe o apcrifo de Enoc. O

    mito tem grande importncia na simbologia do masculino e feminino, trata-se do mito dos

    anjos violadores que se enamoram das belas mulheres dos homens. O mito expressa um tema

    doloroso e forte da fenomenologia do corpo feminino, interpretando as mulheres como corpo

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    e terra de conquista para os vares [espritos] mais altos e perversos que aparecem como anjos

    cados e no como simples humanos. H, no fundo, uma ambivalncia: as mulheres aparecem

    como provocadoras e vtimas ao mesmo tempo. O relato apcrifo diz que as mulheres eram

    [tobot] boas e formosas para ser tomadas como era tobpara comer-se o fruto do paraso. Os

    corpos das mulheres so desejveis para os vares, que, agora sm filhos de Deus.

    O que os anjos buscam no a beleza, mas os corpos belos e formosos para ser

    possudos. Os corpos so objetos prioritrios de conquista, em atitude sexual de violao.

    Mulheres so tomadas para que possam ter filhos. No mito, o varo [anjo] violador [deseja e

    possui a mulher] e patriarcal [buscam filhos para se realizarem].Erosethatanos. Possesso

    sexual e violncia so elementos polares de uma mesma humanizao masculina. O que

    implica dizer que os primeiros vares do mundo [segundo o mito] esto representados porespritos violentos. A partir da unio dos anjos cados com as mulheres comearam a ensinar-

    lhes oraes e conjuros, bem como a arte da magia. Tambm, elas aprenderam a realizar as

    curas utilizando as razes e plantas; so as portadoras de cultura, mas tornaram-se bruxas.

    Essa unio antinatural produziu uma espcie de ser mal: trata-se de gigantes. Esses

    comearam a atacar os humanos, primeiro, devorando toda a comida destinada aos homens,

    depois, na falta dela, tornaram-se canibalistas e comearam a devorar o prprio homem (1

    Enoc 7, 1-4).Os relatos mitolgicos de Enoc apresentam uma imagem ambivalente da mulher: ela

    uma vtima dos anjos, mas , tambm, a pecadora porque responsvel pelos pecados dos

    anjos. Elas os excitou, despertando neles o desejo, acima de tudo, se permitiram ter filhos com

    eles. Elas so cooperadoras e participantes desse mal praticado pelos anjos, pois os anjos

    cados e que se uniram s mulheres tomaram muitas formas e corromperam a humanidade.

    Elas se permitiram formar, com anjos, um casal antinatural unio de seres divinos com

    mulheres o que torna as mulheres tambm portadoras do mal; de seus corpos que saram osgigantes que, agora, ameaam a humanidade; elas entregaram seus corpos aos demnios o que

    a histria religiosa vem interpretando e a tradio posterior interpretou de vrias maneiras

    [magia, bruxaria, promiscuidades]. Possivelmente, se trata de uma reao de medo: ao situar-

    se ante a mulher, o no poder de compreenso feminina e, as vrias formas que as mulheres

    inventaram para escapar da dominao, ainda que fossem criadas as muitas maneiras para

    mant-la, at mesmo pela fora. So fatores que fizeram com que os vares vm vinculando a

    mulher como uma expresso do diabo e precisam se defender delas.

    Pela mulher, toda a humanidade ficou exposta e ameaada. Ela tem participao na

    ao dos demnios perversos. Nesta perspectiva, o pecado o feminino que est submetido

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    perverso. Elas pecam sendo objeto de pecado, isto , fazendo pecar o varo, por isso, que se

    definiu teologicamente que o corpo da mulher evocao do diabo. Ela o mais pobre e

    perverso ser da terra. Porem, s se sataniza aquilo que muito importante. O que implica ser

    o corpo feminino, corpo que atrai os vares, fonte de existncia para a humanidade. um

    signo poderoso da divindade, por isso resulta ambivalente, ela aparece ao mesmo tempo como

    paraso e diablica, como santidade e expresso de mxima impureza atravs do sangue

    menstrual que d a vida, inclusive para os vares. No entanto, esse corpo no s desejado e

    possudo pelos anjos cados; Jav, o Deus de Israel, tambm quer possu-lo. Nos relatos

    profticos, Israel se torna um corpo de mulher que a esposa de Deus. Ela a prostituta de

    Deus. O signo de prostituta, entendido como chave de relaes sociais, ignora a violncia e

    tende a sancionar a opresso de mulheres convertendo o corpo feminino em signo de pecado. que acontece nas profecias de Ezequiel no captulo 16,31-34. Nesta profecia, pecado a

    seduo feminina. O texto pe em relevncia pessoal [social] da mulher tanto na perspectiva

    religiosa poder de opo ou rejeio por Jav, - como em perspectiva corporal ela pode

    fazer o que quiser com seu corpo. Esta mulher israelita dona de seu corpo. Seu pecado a

    liberdade, pois ela quer e ela elege os seus amantes.

    Nos escritos do Novo Testamento, vale destacar o texto de Efsios 5,21-33 que expe

    o matrimnio luz do ministrio cristolgico em relao com a Igreja. A categoriafundamental do texto cabea e corpo, Cristo kephal= o cabea do novo soma = corpo

    da Igreja formada agora por judeus e gentios. Como chave literria aparece no princpio do

    texto o tema de subordinao mtua [subordinaos, someteos].

    Outro fato a ser observado que, na literatura paulina aparece o fundo mtico cultural

    que responde o mandato de que as mulheres precisam cobrir a cabea por causa dos anjos

    (1Co 11,10), isto , as mulheres devem cobrir-se para no suscitar a lascvia nos guardies

    celestiais conforme o mito de 1 Enoc.O texto judeu escrito no primeiro sculo, da era de Jesus, contm um relato atribudo a

    Rubem, o filho primognito de Jac que perdeu sua posio por causa de uma mulher. O texto

    est dirigido aos bons judeus; o patriarca fala aos seus filhos aconselhando-os e confessando

    seu pecado. Eis a traduo do testemunho de Rubem:

    No concedais importncia ao aspecto exterior da mulher, no permaneasozinho com as casadas e no percais tempo com o assunto de mulheres. Seeu no tivesse visto Bala tomando banho num lugar afastado, no teria cadoem grande impiedade. Desde que minha mente conheceu a nudez feminina

    no me permitiu conciliar o sonho at que cometia abominao. Quandomeu pai Jac estava ausente, eu entrei na nudez de Bala e cometiaimpiedade. [...].No presteis ateno a formosura das mulheres nem os

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    detenhais em pensar em suas coisas. Perversas so as mulheres, filhos meus,como no tem poder ou fora sobre o homem, o enganam com o artifcio desua beleza para arrast-lo at elas, aos que no podem seduzir por suaaparncia o subjugam pelo engano. [...] Sobre elas me falou o anjo doSenhor e me ensinou que as mulheres so vencidas pelo esprito da luxriamais que os homens. Cuide, pois, da formao de seus filhos. E ordena assuas mulheres e filhas que no adornem suas cabeas e rostos porque a todamulher que usa de engano desta ndole est reservado um castigo eterno.Deste modo, sucederam aos vigilantes (anjos) ante do dilvio. Como asestavam vendo to continuamente, se incendiaram em seus desejos por elas econceberam o ato j em sua mente. Se metamorfosearam em homens e seapareceram a elas como estavam seus maridos. As mulheres sentiraminteriormente atrao por tais imagens e conceberam gigantes. [...] Guardai-vos da fornicao e, se desejais manter limpa vossa mente, guardai vossossentidos apartando-se das mulheres. Ordenando a vossas mulheres que nofreqenteis a companhia dos homens para manter tambm a mente pura. Os

    abundantes encontros com eles faz com que cometam impiedades, isso epara mulheres uma enfermidade incurvel e para nos outros uma manchaperptua para Belial. (MACHO, 1987, p. 32-35).

    As mulheres aparecem com signo de perigo e pecado, por isso necessita-se ficar

    distante delas, pois com sua presena, incitam os violadores que, no final, aparecem como

    vtimas da seduo feminina. O texto influenciou poderosamente os mbitos cristo

    posteriores. V-se ento, que do mito de Enoc temos passado a uma moralidade antifeminista

    que veio atrofiando o corpo feminino.

    Em suma, se conclui que em uma cultura fortemente marcada por oposies binrias,

    do tipo bem/mal, luz/ trevas, a principal mensagem do conjunto de mitos produzidos por uma

    sociedade de pastores e guerreiros nmades, fortemente patriarcal e patrilinear como

    demonstram as genealogias do Gnesis, imbuda de uma ideologia machista, refere-se

    exatamente questo da mulher, vista como um ser extremamente perigoso, necessitando

    portanto ser fortemente controlada. Esta forma de perigo fica demonstrada, no mito, pelo

    comportamento das duas primeiras mulheres, as esposas de Ado. Lilith recusou ser

    dominada pelo homem. A sua rebelio a transforma definitivamente em um ser demonaco eperptuo inimigo dos homens. Eva, denominada por Ado "a me de todos os seres viventes"

    e mais fcil de ser subjugada, porque no foi feita como ele, do p, mas de uma parte dele,

    tambm demonstrou a sua capacidade de ser perigosa, condenando toda humanidade a ser

    exilada do den.

    Estruturalmente, Lilith e Eva cometeram o mesmo crime, o da desobedincia ao Senhor

    e foram punidas da mesma forma: todos os dias, por toda a eternidade, Lilith, "a me dos

    demnios" tem que se conformar com a morte de 100 lilim; da mesma forma, Eva a

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    responsvel pela morte de todos os seus descendentes que poderiam ser imortais se

    continuassem a viver no Paraso.

    MEU BEM. MEU MAL: AS FALAS TEOLGICAS DO CORPO FEMININO

    Como vimos nas discusses acima, falar da construo do mal implica em focar a

    cultura religiosa. Quando falamos de religio damos um enfoque especfico ao cristianismo e

    ao judasmo, que foram as religies que praticamente determinaram a moral da humanidade

    ocidental. A contribuio de Durkheim para as discusses teolgicas sobre as representaes

    do mal fica explicitas na seguinte citao:

    [...] a religio apenas pelo seu lado idealista (busca) simplificararbitrariamente as coisas; ela realista sua maneira. No existe feirafsica ou moral, no existem vcios, no h males que tenham sidodivinizados. Existiram deuses do roubo e da astcia, da luxria e da guerra,da doena e da morte. O prprio cristianismo, por mais falta que seja suaidia de divindade que tem, foi obrigada a conceder lugar na sua mitologia,ao esprito do mal. Sat uma pea essencial do sistema cristo; ora, se tratade um ser impuro, no se trata de um ser profano. O antideus um deus,inferior e subordinado, no entanto dotado de vastos poderes, ele atobjeto de ritos, pelo menos negativos. Portanto, a socieade antes de ignorar asociedade real e de abstrai-la, reflete a sua imagem, ela reflete todos os seusaspectos, tambm, os mais vulgares e os mais repelentes [...]. (DURKHEIM,

    1989, p. 45).

    A histria confirma que todas as sociedades produziram suas prprias representaes,

    todas elaboraram seus sistemas de idias-imagens de reapresentao coletiva, mediante o qual

    elas se atribuem uma identidade, estabelecem suas divises, legitimam seu poder e concebem

    modelos para a conduta de seus membros. Seriam, pois as representaes coletivas da

    realidade, e no reflexos da mesma. preciso reconhecer que a anlise dos contedos criados

    socialmente, se por um lado ajudam a compreender parcialmente a realidade, por outro, no

    esgotam as discusses sobre os mistrios que envolvem a sua presena na histria humana.

    Por serem as representaes, criaes humanas, elas esto sujeitas s contingncias histricas,

    o que os fazem lembrar do que disse Rudolf Arnheim (1954, p. 26): [...] o que se v depende

    de quem olha e de quem ensinou a olhar.

    Assim, por trs dos mitos religiosos escondem-se no s caractersticas de

    comportamento, mas tambm arqutipos a serem cumpridos. Estes mitos so criados pela

    prpria cultura, seguindo padres de evoluo do pensamento humano, pode-se entender a

    criao destes mitos religiosos a partir do sentimento dos telogos nos diversos escritos noslivros sagrados e que serviam de base para instruo masculina. Comeando pelo Alcoro,

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    livro sagrado dos muulmanos, escrito por Maom e atribudo pelo profeta ao prprio Deus,

    faz as seguintes referncias condio feminina: "Os homens so superiores s mulheres,

    porque Deus lhes outorgou a primazia sobre elas. Os maridos que sofrerem desobedincias de

    suas esposas podem castig-las: deix-las ss em seus leitos, e at bater nelas." (ALCORO

    apud LOI, 1988, p. 53). Em outro texto se diz que: "No se legou ao homem calamidade

    alguma maior do que a mulher." (ALCORO apud LOI, 1988, p. 17-18).

    As Leis de Manu, livro sagrado da ndia, para instituies civis e religiosas, dizia o

    seguinte: "Est na natureza do sexo feminino tentar corromper os homens na Terra, e por esta

    razo os sbios jamais se abandonam s sedues das mulheres. [...] "Acima de tudo, deve-se

    resguardar as mulheres das ms inclinaes, por pequenas que sejam; se as mulheres no

    fossem vigiadas, fariam a desgraa de duas famlias."(LEIS de Manu, apud LOI, 1988, p. 3-4)".Num outro documento religioso, um cdigo bramanista relata: "No h na Terra outro

    Deus para a mulher do que seu marido. A melhor das boas obras que ela pode fazer agrad-

    lo: esta deve ser sua nica devoo. Quando morrer deve tambm morrer. (LOI, 1988, p. 12-

    13). J o reformador da religio persa, Zaratustra, dizia que a mulher "[...] deve adorar ao

    homem como divindade. Nove vezes pela manh, de p ante o marido, com os braos

    cruzados, deve perguntar-lhe: Que desejais, meu senhor, que eu faa?. (ZARATUSTRA,

    apud LOI, 1988, p. 9). Tambm Buda, o Iluminado, fundador do budismo, dizia que: "Amulher m. Cada vez que se lhe apresente oportunidade, toda mulher pecar."(BUDA apud

    LOI, 1988, p. 9).Segundo uma tradio, o Buda enfrenta trs tentaes: a primeira tentao

    a da luxria, a segunda, a do medo e a terceira a da submisso opinio alheia. na primeira

    tentao que o Senhor da Luxria exibe suas trs belssimas filhas diante de Sidarta. Seus

    nomes so: Desejo, Satisfao e Arrependimento, mas o Buda, que j se havia libertado do

    apego a toda a sensualidade, no se comoveu.

    No mundo cristo, a produo literria foi crucial para o status feminino na sociedadeocidental. Destacando o que disse o escritor cristo Tertuliano (155-220) que expressou o

    seguinte pensamento sobre as mulheres:

    Mulher, deverias andar vestida de luto e farrapos, apresentando-te como umapenitente, mergulhada em lgrimas, redimindo assim a falta de ter perdidoao gnero humano. Mulher, tu s a porta do inferno, foste tu que rompeste osselos da rvore proibida, tu a primeira a violar a lei divina, a corromperaquele a quem o diabo no ousava atacar de frente; tu foste a causa da mortede Jesus Cristo. (TERTULIANO apud LADEIRA; LEITE, 1993, p. 24-26).

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    Baseado nestas falas teolgicas podemos concluir que a imagem que se forma da

    personalidade feminina distorcida, criando uma expectativa sobre o papel da mulher que

    ligada ao mal precisa ser controlada, vigiada e punida. Assim, nota-se que as bases

    ideolgicas [cultural religiosa] que situam a mulher como inferior e submissa vm de muito

    longe, desde os mitos da criao.

    A Igreja Crist sustentou o Mito de Eva e Mito dos Anjos seduzidos. O Mito de Eva

    simboliza a tentao, o pecado da carne, o desejo de sexo, responsvel pela perda do paraso

    terrestre. Mas como sobreviver com uma figura to desejada e to perigosa ao mesmo tempo?

    Vem desta ambivalncia a necessidade que a Igreja Crist teve de construir uma outra

    identidade feminina mtica que possvel na figura da Virgem Maria, que a Me. me

    de Cristo, me da Igreja. Dos arqutipos femininos, talvez os que melhor definam acontradio de comportamento da boa e da m mulher sejam exatamente os mitos religiosos

    de Eva e de Maria. O mito de Lilith o que a religio escondeu; o arqutipo da mulher crtica

    e libertria, com desejos de igualdade.

    O mito de Maria o mais difundido entre religiosos/as. Mas o que prega esse mito? De

    que forma repercute no imaginrio das pessoas? O mito de Maria fecha o ciclo iniciado com o

    pecado original, no qual Eva sugeriu a Ado pecar, passando por todas as submissas mulheres

    bblicas, at chegar me pura, aquela que foi me sem cometer o pecado original [isto :sexuar]; esta seria o exemplo para todas as mulheres. o arqutipo feminino mais cruel de

    todos, uma vez que interfere diretamente na relao de prazer da mulher com o mundo. O

    modelo da Me de Jesus o da mulher que foi me por uma iluminao divina, de forma

    assexuada. Ou seja, no pecou, no sentiu prazer sexual.

    O esteretipo que se tenta passar do mito histrico que a Me de Jesus, por ser

    virginal e assexuada, era destituda de pecados. Assim, as mulheres educadas sob a moral

    judaico-crist encaram sua sexualidade de forma comprometida e distorcida. O modelo desexualidade oferecido no corresponde realidade de sentimento das mulheres. E s

    colocando os mecanismos de defesa em ao para se livrarem dos "pecados da carne", as

    praticantes religiosas crescem reprimindo sua libido, os desejos taxados de "pecaminosos,

    sublimando em outras atividades qualquer possibilidade de prazer.

    Ainda hoje, a fala teolgica da igreja oficial da Amrica Latina, enfatiza que as

    mulheres iro alcanar a salvao ao acatar o ideal de feminilidade de Maria tendo apenas a

    funo de procriar, o lugar da maternidade, o lugar de Me. O lugar mtico da Virgem Maria

    reinsere a mulher na maternidade, construindo o consenso do instinto maternal.

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    CONSIDERAES FINAIS

    Ficamos a refletir que assim que vivemos; somos mediadas por esse dois modelos:

    Eva-Maria, que ao longo do tempo, vm enquadrando a percepo social das mulheres. So

    modelos centrais na tradio crist que possuem caractersticas antagnicas. Santo Irineu, um

    dos pais da Igreja, j se referia da seguinte forma:

    A desobedincia de Eva foi a causa da morte para ela prpria e para toda ahumanidade. Apesar de Maria tambm ter tido um marido escolhido para si,sendo apesar disso virgem, pela sua obedincia ela foi a causa da salvaopara si prpria e para toda a humanidade [...] O n da desobedincia de Evafoi desatado pela obedincia de Maria. (IRINEU apud LOI, 1988, p. 28).

    Maria foi exemplo nico do seu tipo, pois, todas as outras mulheres so consideradasfilhas de Eva, tendo Maria um estatuto singularizado. Inevitavelmente, as mulheres so

    identificadas com Eva, uma vez que a Me de Cristo, devido sua natureza imaculada [dar

    luz uma criana continuando virgem] se afasta da experincia das mulheres, daquilo com que

    podem ser identificadas. Assim, poderemos apontar Eva como aquilo que a Igreja define que

    a mulher , e Maria, como um modelo de virtude que a mulher deveria ser.

    A essncia feminina est ento ligada primeira mulher, aos Mitos da Criao, e do

    pecado original. A histria da Criao aparece ao longo do cristianismo como justificadora da

    submisso da mulher face ao homem.

    Quanto salvao das Evas s possvel sendo me. Assume-se como forma de

    permitir a salvao do sexo feminino e de o redimir do pecado da sua me Eva, desde que o

    comportamento das mulheres permanea dentro de outros parmetros de perfeio como

    podemos ver na Primeira Carta de Timteo: Contudo salvar-se-, tornando-se me, uma vez

    que permanea na f, na caridade e na santidade. (Timteo 2: 15).

    NOTAS

    1Os Estudos Culturais, dcada de 60, na Universidade de Bermingham, Inglaterra. Contemplaa perspectiva ps-estruturalista ancorado na produo de autores como Michel FoucaulteJacques Derrida. Historicizar o corpo se tornou possvel a partir da Nova Histria (Frana,incio do sculo XX). Os Estudos de Gnero utilizados sero o ressignificado pelasfeministas ps-estruturalistas: Scott, Louro, Weedon, Nicholson, e no campo da teologia osestudos de Schussler-Fiorenza-Harvard.

    2

    Eliade resume o mito como descrio variada e algumas vezes dramtica da irrupo dosagrado ou sobrenatural no mundo que o fundamenta, convertendo-o naquilo que ,devendo-se s intervenes dos entes sobrenaturais, o fato de o ser humano ser como hoje:

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    mortal, sexuado e cultural. Para Eliade, considerar o mito uma histria sagrada consider-lo histria verdadeira, pois refere-se realidade existente.

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    Artigo recebido em 24/10/2006 e aceito para publicao em 10/12/2006.