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CORPO E CIDADANIA: O SERVIÇO SOCIAL NA PERSPECTIVA DO ACESSO AO PROCESSO TRANSEXUALIZADOR DO SUS Saira Tuany Seither Gasparin (UNIOESTE/FB) i Melissa Barbieri de Oliveira (UNIOESTE/FB) ii [email protected] Resumo “Uma “alma” a conhecer e uma sujeição a manter”, afirma Michel Foucault em Vigiar e Punir iii , revelando o duplo efeito que causa a disciplina tecnicista exercida sobre os corpos. Embora a afirmação do autor não seja direcionada às pessoas que se identificam como trans* iv , neste texto pretende-se problematizar, qualitativamente, a existência de uma superposição de modelos, que vão desde o esquema da família até o judiciário, para a construção dos corpos em um sistema binário e pré- estabelecido, bem como, questionar se nesta ideia de liberdade disciplinada, as instituições deveriam continuar reafirmando e reproduzindo a diferença entre os sexos/gêneros. Entendeu-se que a coerção e o enquadramento das populações interferem na questão da transexualidade e a atuação profissional do Assistente Social, no uso de seu arsenal técnico-operativo, pode auxiliar na tomada de consciência da saúde como um direito e intervir nas expressões da questão social experimentadas pela população trans. Palavras-chave: Corpo; Cidadania; Transexualidade; Trabalho Profissional; Serviço Social. Introdução O sujeito, quando localiza suas dores exclusivamente em sua subjetividade, não consegue perceber os dispositivos sociais que atuam na produção da verdade. O limite entre ser homem/mulher “implica um trabalho de elaboração de sentidos, de encontrar pontos de identificações” (BENTO, 2006, p. 203) e aceitá-los ou negá-los de acordo com a identidade que toma para si.

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Page 1: CORPO E CIDADANIA O SERVIÇO SOCIAL NA PERSPECTIVA DO ... · endocrinologista, psicólogo e assistente social. Para Bento (2006, p.14), “A despatologização da transexualidade

CORPO E CIDADANIA: O SERVIÇO SOCIAL NA PERSPECTIVA DO ACESSO AO PROCESSO TRANSEXUALIZADOR DO SUS

Saira Tuany Seither Gasparin (UNIOESTE/FB)i

Melissa Barbieri de Oliveira (UNIOESTE/FB)ii

[email protected]

Resumo

“Uma “alma” a conhecer e uma sujeição a manter”, afirma Michel Foucault em

Vigiar e Puniriii, revelando o duplo efeito que causa a disciplina tecnicista exercida sobre os corpos. Embora a afirmação do autor não seja direcionada às pessoas que se identificam como trans*iv, neste texto pretende-se problematizar, qualitativamente, a existência de uma superposição de modelos, que vão desde o esquema da família até o judiciário, para a construção dos corpos em um sistema binário e pré-estabelecido, bem como, questionar se nesta ideia de liberdade disciplinada, as instituições deveriam continuar reafirmando e reproduzindo a diferença entre os sexos/gêneros. Entendeu-se que a coerção e o enquadramento das populações interferem na questão da transexualidade e a atuação profissional do Assistente Social, no uso de seu arsenal técnico-operativo, pode auxiliar na tomada de consciência da saúde como um direito e intervir nas expressões da questão social experimentadas pela população trans.

Palavras-chave: Corpo; Cidadania; Transexualidade; Trabalho Profissional; Serviço

Social.

Introdução

O sujeito, quando localiza suas dores exclusivamente em sua subjetividade,

não consegue perceber os dispositivos sociais que atuam na produção da verdade.

O limite entre ser homem/mulher “implica um trabalho de elaboração de sentidos, de

encontrar pontos de identificações” (BENTO, 2006, p. 203) e aceitá-los ou negá-los

de acordo com a identidade que toma para si.

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Nesta ideia de liberdade disciplinada, a coerção e o enquadramento dos

corpos e das populações refletem na transexualidade. Não podemos falar de

identidade transexual sem falar da construção do corpo atrelada aos dispositivos de

poder. Alguns se naturalizam, outros são sistematicamente eliminados. O corpo vira

uma reiteração de atos e a experiência transexual mostra que os sentidos

identitários não estão somente nos corpos.

Com o posicionamento do Ministério da Saúde no sentido de conferir atenção

integral à saúde das pessoas transexuais, escapando de um viés terapêutico

exclusivamente voltado à intervenção cirúrgica e com as dificuldades que as

pessoas transexuais encontram no acesso a algumas transformações clínicas

legais, necessárias à existência do sujeito moral e das próprias noções de pessoa e

personalidade, a atuação profissional do Assistente Social deve buscar entender

essas restrições das liberdades individuais, numa perspectiva que não aborde

neutralidade ou indiferença. O profissional do Serviço Social tem a oportunidade de

participar do Processo Transexualizador do SUS, ouvindo as vozes mais

interessadas na matéria e traduzindo suas realidades nos estudos sociais que são

realizados.

O corpo reflete o sexo e, culturalmente, assim é entendido o gênero, pois não

há corpo livre da cultura. Com a portaria n° 1.707, de 18 de agosto de 2008, e com a

portaria n° 457, de 19 de agosto de 2008, o Ministério da Saúde passou a custear as

cirurgias, definiu diretrizes e aprovou a Regulamentação do Processo

Transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, visando identificar e

estruturar os serviços que prestarão assistência aos indivíduos. Posteriormente, com

a portaria n° 2.803, de 19 de novembro de 2013, considerou-se a necessidade de

redefinir e ampliar o processo de habilitação dos serviços que prestam assistência e

aprimorar a rede de atenção à saúde, estabelecendo padronização nos critérios.

Dentre os procedimentos hormonais, cirúrgicos e terapêuticos há também o

acompanhamento por uma equipe multiprofissional: médico psiquiatra,

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endocrinologista, psicólogo e assistente social. Para Bento (2006, p.14), “A

despatologização da transexualidade significa politizar o debate, compreender como

o poder da medicalização/biologização das condutas sexuais e dos gêneros

ressignifica o pecaminoso no anormal”. Assim, para além do corpo, aspectos sociais

também são trabalhados durante o processo transexualizador.

A reconstrução do corpo social e o acesso à assistência

A estilística corporal na construção dos corpos civilizados traz à tona o fator

excludente da imagem social. Passados 30 anos desde o aumento na procura por

serviços de saúde por pessoas trans*, com a eclosão do vírus da AIDS, o acesso foi

ampliado, consagrando a histórica participação de assistentes sociais na

composição da equipe multiprofissional nos serviços prestados pelo SUS, onde as

possibilidades de trabalho profissional refletem nas inúmeras expressões da questão

social das trajetórias trans*. Desta forma, este profissional se torna essencial no

processo, pois pode traduzir sua realidade no estudo social e colaborar para a

mudança na percepção da vivência transexual – ser quem é e não o que se impõe.

As instituições, desde a família até o judiciário, reproduzem um perverso

processo de exclusão no acesso às políticas sociais. A Resolução do CFESS

(Conselho Federal de Serviço Social) nº 845, de 26 de fevereiro de 2018, dispõe

sobre atuação profissional do/a assistente social no Processo Transexualizador,

considerando que “a livre orientação sexual e livre identidade de gênero constituem

direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, no sentido

de assegurar o pleno exercício da cidadania e a saúde integral da população LGBT”,

reconhecendo a autonomia dos indivíduos sobre seus corpos.

No entanto, a seletividade no Processo Transexualizador, consequência da

ideia do “transexual de verdade”, ou seja, aqueles “que melhor reproduzem no corpo

e nas performances de gênero os estereótipos de masculinidade e feminilidade

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hegemonicamente estabelecidos a partir do binarismo do gênero e da

heterossexualidade compulsória”, como especificou Bento (2006 apud ROCON;

SODRÉ; DUARTE, 2018, p.5459o), restringe o acesso desses serviços àqueles que

se enquadram nos padrões estético/comportamentais.

A Constituição de 88 não condiciona o acesso à saúde, que quando ocorre,

impede o acesso à assistência. O assistente social, integrante da equipe que irá

selecionar os pacientes, pelo exercício da autonomia relativa ao seu projeto ético-

político, pode avançar na luta contra a seletividade. Este posicionamento reforça que

os assistentes sociais deverão contribuir, no âmbito de seu espaço de trabalho, para

a promoção de uma cultura de respeito à diversidade e à identidade de gênero, a

partir de reflexões críticas acerca dos padrões de gênero estabelecidos socialmente.

Considerações finais

Fazendo uso de seu arsenal técnico-operativo, a intervenção profissional do

Assistente Social nas famílias, compreendendo-as como parte nos processos de

transição e ainda reivindicando o papel central do Estado na promoção de políticas

sociais, em defesa da autonomia e da liberdade das pessoas trans* sobre seus

corpos e vidas, está em consonância com a defesa do Código de Ética Profissional,

da Lei de Regulamentação da Profissão e dos Parâmetros de Atuação na Saúde.

A Resolução do CFESS nº 273/93, defende o “Posicionamento em favor da

equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e

serviços relativos aos programas e políticas sociais” e no que tange as ações de

articulação com a saúde “realizar notificação, junto com a equipe multiprofissional,

frente a uma situação constatada e/ou suspeita de violência [...]” (Lei nº 8.662/1993).

Nota-se “a importância do Serviço Social brasileiro de se apropriar teórica, científica

e politicamente das necessidades advindas das expressões da questão social

experimentadas pela população trans” (ROCON; SODRÉ; DUARTE, 2018, p.531).

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Dito isto, o Assistente Social apresenta um lugar privilegiado na tomada de

consciência da saúde como um direito e na construção de redes que integrem as

políticas de saúde com outras políticas sociais.

REFERÊNCIAS

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência

transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. 256 p. (Sexualidade, gênero e

sociedade).

BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.622/93 de regulamentação da

profissão. 10. ed. rev. e atual. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2012.

Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/menu/local/regulamentacao-da-

profissao Acesso em: 20 fev. 2019.

ROCON, Pablo Cardozo; SODRÉ, Francis; DUARTE, Marco José de Oliveira.

Questões para o trabalho profissional do Assistente Social no processo

transexualizador. Revista Katálysis, [s.l.], v. 21, n. 3, p.523-533, dez. 2018.

i Graduanda do Curso de Serviço social – UNIOESTE, campus de Francisco Beltrão. Bolsista do Projeto de Extensão: Diálogos Interdisciplinares para Promoção da Cidadania da População LGBT: Direitos Humanos, Gênero e Sexualidades, vinculado ao Programa Universidade sem Fronteiras/USF/UGF/SETI/PR. ii Doutora em Ciências Humanas/PPGICH/UFSC. Professora lotada no CCSA/UNIOESTE campus de Francisco Beltrão. Coordenadora do Projeto de Extensão: Diálogos Interdisciplinares para Promoção da Cidadania da População LGBT: Direitos Humanos, Gênero e Sexualidades, vinculado ao Programa Universidade sem Fronteiras/USF/UGF/SETI/PR. iii FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 288 p. Tradução de Raquel Ramalhete. iv Como explicam Hailey Kass e Bia Paglarini Bagagli do site “transfeminismo.com”: “O termo trans pode ser a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, como transexual ou transgênero, ou até mesmo travesti. Por isso, para evitar classificações que correm o risco de serem excludentes o asterisco é adicionado ao final da palavra transformando o termo trans em um termo guarda-chuva [umbrella term].