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Copa do Mundo 2014 - a ameaça de um legado prá lá de indesejável Regina Sugayama 1 , Giliardi Alves 1,2 , Andrea Stancioli 1,2 , Izabella Menezes 1,3 , Juliana Aparecida Dias 2 & Julianna Xavier 4 1 Agropec Consultoria, Rua Joviano Naves, 15, sala 27, Belo Horizonte, MG, E-mail: [email protected] 2 Mestrandos, Defesa Sanitária Vegetal, Universidade Federal de Viçosa 3 Graduanda, Ciências Biológicas, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 4 Graduanda, Ciências Biológicas, Universidade Federal de Viçosa De 1901 a 2013, pelo menos 68 espécies de pragas agrícolas oriundas de outras partes do mundo foram detectadas no Brasil. São insetos, ácaros, fungos, procariontes e plantas invasoras que, hoje, causam perdas diretas e indiretas na nossa agricultura (Figura 1). Algumas delas se adaptaram tão bem às condições brasileiras que já fazem parte da nossa paisagem, como o bicudo-do-algodeiro, a mosca-branca e a traça-das-crucíferas. Elas entraram sorrateiramente e hoje são motivo de preocupação pois, ao aumentarem o custo de produção, aumentam o custo do alimento que chegou à sua mesa hoje, da roupa que você está vestindo, da cervejinha que você bebe enquanto assiste aos jogos de futebol, dos móveis que você tem em casa e até mesmo dos livros que você lê. Portanto, proteger a sanidade vegetal é - ou deveria ser - um assunto de interesse de toda a sociedade. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tem um serviço de vigilância em portos, aeroportos e pontos de fronteira, que inspeciona as cargas e analisa a documentação que para verificar se os tratamentos de prevenção de pragas exigidos pelo Brasil foram realizados. Caso

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Copa do Mundo 2014 - a ameaça de um legado prá lá de indesejável

Regina Sugayama1, Giliardi Alves1,2, Andrea Stancioli1,2, Izabella Menezes1,3, Juliana Aparecida

Dias2 & Julianna Xavier4

1Agropec Consultoria, Rua Joviano Naves, 15, sala 27, Belo Horizonte, MG, E-mail:

[email protected]

2Mestrandos, Defesa Sanitária Vegetal, Universidade Federal de Viçosa

3Graduanda, Ciências Biológicas, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

4Graduanda, Ciências Biológicas, Universidade Federal de Viçosa

De 1901 a 2013, pelo menos 68 espécies de pragas agrícolas oriundas de outras partes do

mundo foram detectadas no Brasil. São insetos, ácaros, fungos, procariontes e plantas

invasoras que, hoje, causam perdas diretas e indiretas na nossa agricultura (Figura 1). Algumas

delas se adaptaram tão bem às condições brasileiras que já fazem parte da nossa paisagem,

como o bicudo-do-algodeiro, a mosca-branca e a traça-das-crucíferas. Elas entraram

sorrateiramente e hoje são motivo de preocupação pois, ao aumentarem o custo de produção,

aumentam o custo do alimento que chegou à sua mesa hoje, da roupa que você está vestindo,

da cervejinha que você bebe enquanto assiste aos jogos de futebol, dos móveis que você tem

em casa e até mesmo dos livros que você lê. Portanto, proteger a sanidade vegetal é - ou

deveria ser - um assunto de interesse de toda a sociedade.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tem um serviço de vigilância em portos,

aeroportos e pontos de fronteira, que inspeciona as cargas e analisa a documentação que para

verificar se os tratamentos de prevenção de pragas exigidos pelo Brasil foram realizados. Caso

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ocorra a detecção de pragas ou algum problema de natureza documental, a carga é impedida

de ser internalizada. Além disso, passageiros chegando de outros países são obrigados a

declarar a posse de materiais de origem agropecuária.

Apesar de todo esse controle, as pragas continuam entrando. De 2003 a 2013, foram pelo

menos 20 novos registros de pragas agrícolas no Brasil e é bastante improvável que isto tenha

acontecido através de mecanismos naturais. O que se observa é que grande número das

espécies é de origem asiática e que têm entrado no Brasil através da fronteira com os estados

da região Norte (Sugayama et al., no prelo). Possivelmente, elas chegaram às Guianas e à

Venezuela com imigrantes asiáticos: mais de 40% da população das Guianas é de descendência

indiana ou chinesa. Ao imigrarem, trouxeram consigo plantas como mangueira, soja, cana-de-

açúcar e outros vegetais que fazem parte da nossa alimentação hoje. Com os vegetais, vieram

as pragas que, sob pressão reduzida de seus inimigos naturais e competidores, encontraram

um ambiente propício e se estabeleceram. Com o incremento de viagens proporcionado por

melhorias de infraestrutura rodoviária e de malha aérea, supõe-se que as mesmas pragas que

vieram de carona da Ásia com os imigrantes estejam sendo transportadas através de materiais

vegetais que entram ilegalmente no Brasil.

Li et al. (2014) demonstraram que a realização de grandes eventos internacionais leva à

disseminação de pragas de plantas cultivadas. Eles fizeram levantamento de pragas que

podem ser disseminadas através de plantas ornamentais na China e observaram que após a

realização da 29ª edição dos Jogos Olímpicos em Pequim e dos 16º Jogos Asiáticos em

Guangzhou, 44 espécies de artrópodos foram detectadas em Pequim e 32 em Guangdong. Os

autores sugerem a adoção de medidas para reduzir a probabilidade de que espécies invasoras

se disseminem devido ao trânsito vegetal observado durante grandes eventos internacionais.

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E o Brasil? Como está se preparando? Quantas e quais pragas podem vir de carona com os

torcedores internacionais? Buscamos a resposta em livros e bases internacionais de

metadados como o da European Plant Protection Organization, do Global Biodiversity

Information Facility e outros. Para cada um dos 31 países, fizemos o levantamento de status

das pragas quarentenárias ausentes para o Brasil, ou seja, espécies de alto potencial de perigo

demonstrado através de avaliação de risco e que nunca foram detectadas no Brasil (Figura 2).

No total, o Brasil reconhece cerca de 600 espécies como pragas quarentenárias ausentes

(Instrução Normativa MAPA 52/2007 e outras que modificam seus anexos). Destas, 379

espécies ocorrem em pelo menos um dos países classificados para a Copa do Mundo. Destas,

55% são artrópodos (ácaros ou insetos), 28% são fitopatógenos (fungos, procariontes, vírus,

viroides ou nematoides) e 17% são plantas infestantes ou parasitas (Figura 3).

Todos os países têm em seus territórios pelo menos nove espécies regulamentadas pelo Brasil

como pragas quarentenárias ausentes. Os países com maior número de espécies

regulamentadas pelo Brasil são: Estados Unidos (225 espécies), Itália (126), França (120), Japão

(112), Austrália (110) e Alemanha (107) (Figura 4).

24% das espécies de pragas quarentenárias levantadas nos países que participarão da Copa do

Mundo 2014, ocorrem em apenas um país entre os classificados. Por outro lado,6,6% das

espécies apresentam ampla distribuição geográfica e foram reportadas em pelo menos 15

países da Copa do Mundo 2014. Além da ampla distribuição, elas têm a característica de serem

polífagas e altamente adaptáveis (Tabela 1). Entre elas, há pragas seríssimas da agricultura

mundial, como Lobesia botrana, um tortricídeo de origem Paleártica e que, desde 2008, vem

sendo detectada na Ásia, América do Norte e América do Sul. Foi detectada na Argentina e no

Chile causando prejuízos significativos em videira, seu hospedeiro preferencial. Sua introdução

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e disseminação pelas regiões vitícolas do Brasil pode causar danos diretos (perda de produção,

custo de controle ) quanto indiretos (perda de mercados de exportação de frutas hospedeiras

in natura).

Está também Agrotis segetum, uma parente próxima de uma velha conhecida do agricultor

brasileiro, a lagarta-rosca (Agrotis ipsilon). Ela é altamente polífaga, o que é uma condição

favorável à colonização de novas áreas. As larvas passam o dia escondidas no solo e, à noite,

mastigam a folhagem e cortam os pecíolos das folhas. São bastante vorazes e podem causar

perdas expressivas em lavouras de milho, aveia, brassicáceas, hortaliças, café, cucurbitáceas,

algodão, soja, arroz e trigo.

As plantas parasitas representam uma ameaça importante. As do gênero Orobanche, por

exemplo, sugam a seiva elaborada de suas plantas hospedeiras. Todo o crescimento vegetativo

ocorre de forma subterrânea e a planta somente emite a parte aérea na época da floração. As

sementes medem menos de 0,1 mm de diâmetro e podem ir de ‘carona’ em veículos, calçados

e roupas. Um gênero com biologia semelhante é Striga, que pode causar perdas severas em

um grande número de plantas cultivadas no Brasil. Um complicador é que não há, até o

momento, tecnologias eficazes no controle de plantas desses dois gêneros. O problema é tão

sério que, em países afetados, é comum ouvir que ‘quando a Striga chega, o homem tem que

sair’.

O que muitas pessoas questionam é quantos indivíduos são necessários para que uma nova

praga se estabeleça em um novo local. Isto depende muito da estratégia de sobrevivência e

reprodução da espécie e também das condições bióticas e abióticas que ela vai encontrar,

incluindo as práticas de manejo de pragas vigentes. É natural que, quanto maior o número de

indivíduos que entrar maior a probabilidade de estabelecimento, pela maior diversidade

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genética e menor número de cruzamentos entre indivíduos aparentados. Teorias à parte, não

é exagero dizer que a globalização da economia vai levar também à globalização de pragas e

que, no longo prazo, elas virão a colonizar todas as regiões onde as condições (disponibilidade

de hospedeiros, clima) forem favoráveis.

Ao governo, cabe trabalhar de maneira preventiva e estratégica, com ações de vigilância e

adoção imediata de planos de combate quando uma nova praga é detectada. Cabe, também,

estabelecer políticas públicas mais efetivas para o desenvolvimento e registro de tecnologias

para controle de pragas, contando com a colaboração de entidades públicas e privadas. É

inadmissível que um país que assistiu à introdução de 2,2 pragas/ ano nos últimos 10 anos

demore quatro anos ou mais para registrar uma nova molécula para controle de pragas.

O Governo Federal espera receber 600 mil turistas estrangeiros durante a Copa do Mundo

2014 e outros tantos deverão vir também para as Olimpíadas em 2016. Show de bola, mas fica

a sensação de estarmos entrando em campo, no campo, para jogar contra um time

extremamente ofensivo de pragas contando com uma defesa desfalcada de tecnologia.

Agradecimentos

Agradecemos aos seguintes colegas por suas sugestões: Aldo Malavasi (Moscamed), Jair

Virgínio (Moscamed), Luís Carlos Ribeiro (ANDEF), Marcelo Lopes da Silva (EMBRAPA), Suely

Xavier de Brito (ADAB).

Referências

Li, S., L. Guo, S. Ren, P. J. Barro, B. L. Qiu. 2014. Hosting major international events leads to

pest redistributions. Biodivers. Conserv. 23: 1229-1247.

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Sugayama, R. L., A. Stancioli & E. Vilela. Ameaças Fitossanitárias para o Brasil - entender o

passado para prever o futuro. In: Vilela, E. & R. A. Zucchi. Pragas Introduzidas no Brasil: insetos

e ácaros. 2a. Edição (no prelo).

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Tabela 1. ‘Escalação’ do time de pragas para a Copa do Mundo 2014. Espécies com presença em pelo menos metade dos países que participarão do campeonato e que podem vir ‘de carona’ com materiais vegetais que entrarem ilegalmente no Brasil, veículos e vestuário. Para consultar a distribuição geográfica dessas pragas, acesse http://www.defesavegetal.net

Grupo Espécie Culturas afetadas

Lepidoptera (borboletas, mariposas, lagartas) Lymantria dispar Espécies florestais como pinheiros, eucalipto, carvalho. Fruteiras perenes

Agrotis segetum Brassicáceas, solanáceas, café, cucurbitáceas, soja, algodão, girassol, tabaco, arroz, ornamentais, etc

Lobesia botrana Videira, frutas de caroço, ornamentais, quivi

Lampides boeticus Soja, feijão, ervilha, fava

Rhyacionia buoliana Pinheiros

Dípteros (moscas, mosquitos, minadores de folhas)

Delia antiqua Alho, cebola

Nematoides (vermes cilíndricos) Globodera rostochiensis Tomate, beringela, batata, jiló

Globodera pallida Tomate, beringela, batata, jiló

Heterodera schachtii Ornamentais, beterraba, brassicáceas,feijão, ervilha, espinafre

Heterodera avenae Aveia, cevada, trigo, centeio, triticale, milho

Ditylenchus destructor Cebola, alho, beterraba, amendoim, pimentão, ornamentais, citros, tomate, beringela, trigo, milho, melão, abóbora, cenoura, morango

Fungos (podridões, bolores, manchas foliares, ferrugens, etc)

Urocystis agropyri Forrageiras, milho, trigo, triticale

Podosphaera fusca Ornamentais, feijão, girassol, melão, alface, abóbora, pepino, melancia

Procariontes (bactérias) Erwinia amylovora Ornamentais, maçã, nêspera, morango, frutas de caroço

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Vírus Plum pox virus Frutas de caroço

Impatiens necrotic spot virus Amendoim, pimentão, ornamentais, pepino, alface, tabaco

Plantas infestantes ou parasitas Setaria pumila Não têm o mesmo grau de especificidade por determinadas culturas como as outras pragas. Causam problemas por competirem com as plantas cultivadas, por abrigarem vírus que também podem atacar as plantas cultivadas, por serem parasitas (sugam a seiva) ou por serem tóxicas para mamíferos (incluindo o homem)

Setaria viridis

Euphorbia helioscopia

Orobanche minor

Descuarinia sophia

Elymus repens

Sonchus arvensis

Ludwigia adscendens

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Sisymbrium orientale

Figura 1. Número cumulativo de espécies de importância agrícola oriundas de outras partes do mundo e detectadas no Brasil de 1901 a 2013 (Sugayama et

al., não publicado).

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Figura 2. Metodologia de levantamento de dados.

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Figura 3. Distribuição de 378 espécies de pragas quarentenárias para o Brasil em grupos de organismos e que foram registradas em pelo menos um dos

países classificados para a Copa 2014.

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Figura 4. Número de espécies de pragas quarentenárias ausentes para o Brasil relatadas nos 31 países que participarão da Copa 2014.