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Econmica, Rio de Janeiro, v.7, n.2, p. 233-253, dezembro 2005 Coordenaªo da qualidade em cadeias produtivas de alimentos: O caso dos queijos finos no Brasil Daniel Carvalho de Rezende * John Wilkinson * Cristiane Ferreira Rezende * Resumo A qualidade agroalimentar exerce um papel crescente na evoluªo recente do sistema agroalimentar. ExigŒncias relacionadas com a segurana alimentar, produªo ambientalmente adequada e indicaıes de origem levam a novas estruturas de governana das cadeias produtivas balizadas pelas especificaıes de qualidade. A indœstria de queijos finos no Brasil vivencia esse novo cenÆrio, investindo na qualidade como alternativa de diferenciaªo. Os relacionamentos dessa indœstria com seus principais fornecedores e compradores sªo intensificados atravØs da visªo sistŒmica da qualidade. Nessa perspectiva, as principais mudanas nas estruturas de governana envolvem a aproximaªo com os fornecedores de leite, inovando na coleta da matØria-prima atravØs da granelizaªo, na assistŒncia tØcnica e instituindo critØrios de remuneraªo por qualidade. Nos relacionamentos com os compradores, o investimento em ferramentas de qualidade, como as BPF (Boas PrÆticas de Fabricaªo) e o APPCC (AnÆlise de Perigos e Pontos Crticos de Controle) constituem um diferencial importante no atendimento das novas exigŒncias de segurana alimentar e certificaªo de fornecedores adotadas pelo varejo e pelo mercado industrial. Palavras-chave Qualidade agroalimentar. Coordenaªo. Queijos finos. JEL Q1, D2 * Daniel Carvalho Ø professor do curso de Mestrado Profissionalizante em Administraªo da Faculdade Cenecista de Varginha FACECA (Varginha, Brasil); e-mail: daniel@ serrabella.com.br. John Wilkinson Ø professor do curso de Ps-Graduaªo em Desen- volvimento, Agricultura e Sociedade CPDA/UFRRJ (Rio de Janeiro, Brasil); e-mail: [email protected]. Cristiane Ferreira Rezende Ø Mestre em Administraªo (Univer- sidade Federal de Lavras - UFLA, Lavras, Brasil); e-mail: cristiane@ serrabella.com.br.

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DANIEL DE REZENDE � JOHN WILKINSON � CRISTIANE REZENDE � 233

Coordenação da qualidade em cadeiasprodutivas de alimentos: O caso dosqueijos finos no Brasil

Daniel Carvalho de Rezende *

John Wilkinson *

Cristiane Ferreira Rezende *

Resumo � A qualidade agroalimentar exerce um papel crescente na evoluçãorecente do sistema agroalimentar. Exigências relacionadas com a segurançaalimentar, produção ambientalmente adequada e indicações de origem levam anovas estruturas de governança das cadeias produtivas balizadas pelasespecificações de qualidade. A indústria de queijos finos no Brasil vivencia essenovo cenário, investindo na qualidade como alternativa de diferenciação. Osrelacionamentos dessa indústria com seus principais fornecedores e compradoressão intensificados através da visão �sistêmica� da qualidade. Nessa perspectiva,as principais mudanças nas estruturas de governança envolvem a aproximaçãocom os fornecedores de leite, inovando na coleta da matéria-prima através dagranelização, na assistência técnica e instituindo critérios de remuneração porqualidade. Nos relacionamentos com os compradores, o investimento emferramentas de qualidade, como as BPF (Boas Práticas de Fabricação) e oAPPCC(Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle) constituem um diferencialimportante no atendimento das novas exigências de segurança alimentar ecertificação de fornecedores adotadas pelo varejo e pelo mercado industrial.

Palavras-chave � Qualidade agroalimentar. Coordenação. Queijos finos.

JEL � Q1, D2

*Daniel Carvalho é professor do curso deMestrado Profissionalizante emAdministraçãoda Faculdade Cenecista de Varginha � FACECA (Varginha, Brasil); e-mail: [email protected]. John Wilkinson é professor do curso de Pós-Graduação em Desen-volvimento, Agricultura e Sociedade � CPDA/UFRRJ (Rio de Janeiro, Brasil); e-mail:[email protected]. Cristiane Ferreira Rezende é Mestre em Administração (Univer-sidade Federal de Lavras - UFLA, Lavras, Brasil); e-mail: cristiane@ serrabella.com.br.

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Introdução

Nos dias atuais, a competitividade das empresas passa a incorporarcada vez mais elementos do ambiente, notadamente as relações cominstituições, governos, fornecedores, clientes e distribuidores. O enfoquesistêmico está direcionando cada dia mais os estudos relacionados aosproblemas dos agronegócios. Na perspectiva sistêmica, a competitividadeempresarial exige tanto eficiência interna quanto eficiência interorganiza-cional. Assim, é preciso associar competitividade a uma organizaçãointerna eficiente e aos sistemas de comunicação e coordenação deatividades interfirmas numa cadeia de produção agroindustrial.

Dentro dessa perspectiva sistêmica, a capacidade de se criarrelacionamentos consistentes em um processo de �coordenação� daatividade econômica se destaca como fonte potencial de vantagenscompetitivas. Assim,muitas vezes se pode falar na competitividade de umacadeia como um todo vis-à-vis outras cadeias produtivas, tendo em vistaque o resultado final (competitividade) irá depender de todos oselementos participantes.

A dimensão da regulamentação por parte dos governos tambémexerce umpapel cada vezmais ativo nas relações de produção e consumode alimentos. O aumento das exigências com relação à segurança,padronização e saúde dos alimentos, usualmente impostas por exigênciaslegais e governamentais, e que estão incorporadas no conceito dequalidade agroalimentar, afetam as estratégias ao nível da empresa e dacadeia e impõem a necessidade de novas formas de coordenação entreos atores.

Assim sendo, observa-se que qualidade e coordenação estão naagenda do dia do setor agroalimentar. O consumidor está cada dia maisexigente com relação a aspectos diversos, como segurança dos alimentos,informações nutricionais, procedência, processos de produção ambiental-mente limpos e de mínimo impacto, praticidade etc. Esses atributosdemandamcapacidade de diferenciação e coordenação das cadeias, a fimde garantir as especificações desejadas. Novas técnicas de gestão daqualidade passam a ser utilizadas pelas indústrias, como a Análise dePerigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), as Boas Práticas deFabricação (BPF), além da gestão de qualidade total.

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Acadeia dos queijos finos noBrasil, que se inseredentrodo complexoagroindustrial do leite, vivencia as questões da coordenação edaqualidadecomoelementos-chave para sua sobrevivência e desenvolvimento. As açõesestratégicas das empresas que fazemparte da cadeia visamcrescentementea discussão e a busca de interesses convergentes, através de processos denegociação complexos entre os atores.

A hipótese fundamental deste trabalho é que novas estruturas degovernança estão surgindona cadeia dos queijos finos, especialmente pelanecessidade de se coordenar e monitorar as informações sobre aqualidade. A qualidade passa a ser decisiva para a diferenciação dasempresas frente às crescentes exigências de consumidores, varejistas eórgãos de regulação, e pela necessidade de implantar inovaçõestecnológicas, como a coleta de leite a granel, que afetam a especificidadedos ativos envolvidos e intensificam a necessidade de coordenar asinformações ao longo da cadeia produtiva. Nessa concepção, a coorde-naçãoda cadeia de suprimentos e o estabelecimentode redes de confiançase tornariam requisitos primordiais para o avanço do setor na competiçãocomosprodutos importados, e se tornamumaoportunidadepara as PMEsque consigamalcançar umaou ambas das seguintesmetas: coordenar suasredes de suprimento; fazer parte de redes coordenadas por grandesindústrias ou varejistas.

1. Estruturas de governança em sistemas agroalimentares

A análise das cadeias agroindustriais através de uma visão sistêmicavem sendo bastante explorada e desenvolvida nos últimos anos. Em suamaioria, esses estudos se baseiam em teorias econômicas como a ECT(Economia deCustos deTransação) e aTeoria daOrganização Industrial.Através da organização industrial estuda-se o desempenho da indústriaatravés da identificação de suas estruturas e da conduta dos agentes. AECT ressalta as análises de interdependência considerando a especifici-dade de ativos, freqüência de transações e incerteza associada (SCARE;MARTINELLI, 2000). Outras visões importantes emais contemporâneas sãoo conceito de SistemaAgroalimentar (SAG) e redes de empresas, a teoriadas convenções francesa e a teoria das cadeias de suprimentos (supply chain

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management), que, em geral, não rompem com a tradição de pesquisaanterior, contribuindo com a inclusão de novos instrumentos analíticos.A teoria das convenções talvez seja a visãomais contestadora da noção decustos de transação, pois sujeita as estruturas de governança aos modosde qualificação (mundos) estabelecidos entre os atores.

O conceito de �estrutura de governança� foi elaborado porWILLIAMSON (1975), constituindo um esforço para o acesso à eficácia demodos alternativos de organização, com o objetivo de efetuar um bomordenamento entre os mecanismos de relacionamento entre os atores ereduzir os chamados custos de transação. A estrutura de governança serelaciona com os mecanismos de gestão de cadeias produtivas utilizadospelas empresas, que podem variar da integração vertical (controle pelaempresa do fornecimento de seus insumos e distribuição de seusprodutos) até o uso do mercado �spot�, passando por formas �híbridas�,que envolvem contratos de fornecimento. O problema da coordenaçãode cadeias produtivas foi visualizado por WILLIAMSON (1975) como umelemento-chave para a competitividade das empresas.

Analisando-se a literatura sobre organização industrial, pode-seperceber a existência de um largo espectro de abordagens teóricas. Nessasabordagens, a questão das transações e seu processo de coordenaçãoaparecem sob diferentes visões. Na teoria neoclássica são enfatizados oscustos de produção, buscando comparar custos de fabricaçãoprópria comcustos de aquisiçãonomercado, deixandode incluir outros custos e fatoresocultos relacionados com as transações. Nessa visão, a coordenação éespontânea e decorrente da chamada �mão invisível� de Adam Smith,onde os interesses dos agentes são sempre convergentes para o interesseda sociedade e para o equilíbrio através da estrutura de coordenação eformação de preços �ótima� (CASTRO, 2001).

No entanto, o que se verifica é que a coordenação não é sempreespontânea, demandando ações deliberadas dos agentes para seremobtidas. Nesse sentido, os agentes devem buscar reduzir os custos detransação inerentes à atividade econômica.

Assim, pode-se afirmar que a coordenação não é uma característicaintrínseca das cadeias produtivas,mas sim o resultado de uma construçãodeliberada dos agentes econômicos (SCRAMIM; BATALHA, 2001). As

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implicações dos processos de coordenação para a competitividade sãoenormes. A competitividade depende de um conjunto de estratégiasindividuais das empresas na busca da adequação de seus recursosprodutivos internos aos padrões de concorrência, ouna redefiniçãodessespadrões, criando ou recriando mercados. Tais estratégias têm que estarancoradas em estruturas de governança que permitam a ação sinérgicade uma rede de agentes econômicos com os quais a firma interage paralevar seus produtos ao mercado. Dessa maneira, a ligação entrecompetitividade e coordenação é mediada pela estratégia empresarial(JANK ET AL, 1999).

As estratégias competitivas dependem, portanto, para que possamser bem-sucedidas, de estruturas de governança adequadas. A capacidadede coordenação é que permite às empresas receber, processar, difundir eutilizar informações demodo a definir e viabilizar estratégias competitivase aproveitar oportunidades ou se proteger de ameaças do ambientecompetitivo (JANK ET AL, 1999).

WILLIAMSON (1991) centrou a sua atenção na questão da coordenação,analisandoos impactos dos choques não antecipados sobre a capacidade deadaptaçãodoscontratos,e foicapazdecriaruminstrumentalanalíticosimplesepoderosopara avaliar a capacidadede coordenaçãode cadeias produtivas.Nesse sentido, a funcionalidade e a eficiência capitalista das instituiçõesempresariais pode ser estudada através da teoria de custos de transação.

A ECT (Economia de Custos de Transação), desenvolvida porWilliamson, inova, ao desenvolver uma ferramenta analítica que permiteavaliar o modo como o problema de coordenação é solucionado,expressada na variável �custos de transação�. Os estudos de Williamsonforam amplamente difundidos e se tornaram referência analíticaobrigatória na análise da coordenação de sistemas agroalimentares.

O modelo desenvolvido pela ECT é microanalítico, ou seja, aplica-se a cada transação individualmente. Quando se analisam sistemasagroindustriais concretos, devem ser analisados grupos de transações.

WILLIAMSON (1991) coloca a ECT como sendo completamentecomparativa (formas deorganização são geralmente analisadas emrelaçãoa formas alternativas viáveis), microanalítica (a ação reside nos detalhes),de estrutura discreta (é impossível reproduzir mercados por hierarquias

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ou o inverso) e preocupada com a economia (redução de custo). Destemodo, a natureza e a estrutura das relações interfirmas, estabelecidas aolongo de uma determinada cadeia produtiva, podem ser vistas comoformas de resolver o problema da organização e coordenação dasatividades, dentro da lógica de redução dos custos de transação.

A definição do arranjo organizacional segundo essa teoria vaidepender da combinação de três dimensões: a especificidade de ativos, afreqüência e a incerteza envolvidas nas transações, sendo a especificidadede ativos a dimensão focal mais importante da transação. A tecnologia éinserida como parte da especificidade de ativos.

A especificidade de ativo diz respeito ao graupelo qual umativo podeser redistribuído para usos alternativos e por usuários alternativos semsacrificar o valor da produção. Assim, quanto mais específico fordeterminado ativo, mais difícil (custo) será sua realocação emuma outraatividade.Dessamaneira, os ativos específicos são recursos produtivos paraos quais não existem � ou existem poucos � substitutos próximos ouperfeitos (WILLIAMSON, 1991).

A hipótese básica da ECT pressupõe a análise das dimensões datransação que influenciam as estruturas de governança estabelecidas(mercado, mista e hierárquica), pois estas estruturas possuem diferentescompetências, que as distinguementre si em termos de custo de transação.O problema da governança diz respeito à adequação de meios a fins emorganizações nas quais a cooperação é induzida. A solução de problemasconsiste no desenho dos mecanismos de incentivo e controle que sejammais eficientes vis-à-vis formas alternativas de organização.

2. Qualidade e coordenação de sistemas agroalimentares

Estudos recentes apontam a importância das novas visões daqualidade agroalimentar para a reestruturaçãodos padrões de governançadas cadeias. A busca por novos atributos e ferramentas de qualidade a fimde atender exigências de consumidores, governos e outros elos da cadeiaculmina em novas estruturas de coordenação entre os atores, baseadasnuma concepção �sistêmica� da qualidade, em que se substitui o simples

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controle de cada etapa por uma coordenação através de estruturasproativas e suprafirma.

Dessa maneira, a competitividade e a sobrevivência dos sistemasagroalimentares está ligada à gestão da qualidade. A busca incessante damelhoria da qualidade do produto, seja em segurança ou em satisfaçãodo consumidor, é condicionante para a competitividade. Os principaisagentes do sistema passam a utilizar a busca por maior qualidade comoestratégia de diferenciação com relação aos concorrentes (SCARE;MARTINELLI, 2000).

A qualidade é um conceito subjetivo. Mesmo assim se pode mapearduas linhas principais de pensamento sobre o tema. Aprimeira, de origemanglo-saxônica e de inspiração neoclássica, define a qualidade de formageneralista, aberta e valorizando a finalidade de um produto como umbem econômico, ou como o conjunto de propriedades e característicasde um produto que o levam a satisfazer necessidades implícitas. Acompreensão de uma informação contida numa etiqueta ou embalagemé sua referência e, quandoela nãoocorre, a assimetria de informaçãopodeprovocar uma seleção negativa. A segunda está baseada nos avançosrecentes da chamada �teoria das convenções�, que considera a construçãosocial dos produtos tradicionais e tem como fundamento que a qualidadeé um produto de sucessivas negociações e convenções desde a produçãoaté o consumo, que resulta de um processo interativo de compromissoentre um conjunto de atores com diferentes estratégias. A qualidade édefinida, portanto, por um consenso social, normatizado ou não(SYLVANDER E LASSAUT, 1994).

A certificação, por sua vez, passa pela busca de mecanismos detransferência da confiabilidade, que podemocorrer, por exemplo, atravésda credibilidade da marca, na medida em que ela pode representar aqualidade que o produto oferece. Para fortalecimento das marcas quegarantam ao consumidor a imagem de qualidade, os integrantes dossistemas agroindustriais vêm gradativamente transferindo o foco dagarantia da qualidade do produto final para a garantia da qualidade doprocesso produtivo, enfatizando o controle dos pontos críticos naprodução. Esses pontos críticos foram estendidos para fora das empresas,através da visão da qualidade sistêmica, que tem como objetivo gerar a

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cooperação de todos os envolvidos na cadeia de umproduto agroalimen-tar desde o fornecedor de insumos para agricultura até as redes de super-mercados (SCARE; MARTINELLI, 2000).

O Sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle(APPCC), ou HACCP na sigla em inglês, tem sido um dos sistemas de ges-tãodaqualidademais adotadospor indústrias de alimentos (HAJDENWURCEL,2002). A filosofia do APPCC se baseia no princípio preventivo, no qual osperigos são controlados em toda a cadeiaprodutiva, considerando-sedesdeorecebimentodematéria-primaatéadistribuição finaldoprodutoacabado.

Na definição de procedimentos e técnicas para omonitoramento nosPCCs(PontosCríticosdeControle), o sistemaAPPCCenfatiza anecessidadede adoção de testes ou análise rápidos, confiáveis e de baixo custo. Estasexigências excluem os métodos microbiológicos como primeira opção,focando a escolha em análises visuais, testes físicos e químicos.

A implementação efetiva do sistemaAPPCCnonível industrial consti-tui uma etapa complementar importante na obtenção de certificação ouna adoção de planosmais amplos de controle de qualidade como oTQM(Gestão daQualidade Total). O sistemaAPPCC se destaca ainda pelo fatode que todos seus testes e monitoramentos sejam inter-relacionados einterpretados conjuntamente, como um sistema, ao contrário dos outrossistemas de qualidade, em que as análises tendem a ser isoladas.

3. Padrões de qualidade em sistemas agroalimentares

Aevolução do comércio internacional de alimentos está diretamenterelacionada com o estabelecimento de padrões de processo e produto.Padrões são, em última instância, instituições, ou seja, um conjunto demedidas para ordenaçãode relacionamentos entre as pessoas quedefinemseus direitos, sua exposição aos direitos dos outros, seus privilégios e suasresponsabilidades. Dessamaneira, constituemumcomponente importan-te da estrutura institucional do sistema agroalimentar por afetarem asrelações de confiança e os relacionamentos entre atores a fimde assegurarqualidade, consistência e transparência (GIOVANUCCI; REARDON, 2000).

Amudançados padrões afeta as �regras do jogo�, levando amudançasna definição do bem a ser transacionado, na definição de quemparticipa

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da indústria eno relacionamento entre os atores, o quepode ser de grandeinteresse para certos grupos líderes em uma indústria.

Os padrões são formulados, aplicados,monitorados e reforçados porfirmas individuais, associações de mercado, sindicatos, organizações deconsumidores, governos e organizaçõesmultilaterais.Os padrões de quali-dade não podem mais ser encarados como meros elementos neutros decompetitividademínima, pois exercemagora umpapel de determinantesdas estratégias empresariais nas indústrias alimentares, gerando novascomplexidades e novidades para debate e análise (Reardon et. al., 2001).

Para a análise de padrões, é conveniente se fazer umadistinção entrecategorias de produtos (REARDON ET AL., 2001):

1) �bens de procura�: bens cuja qualidade pode ser avaliada pelo consumi-dor antes de efetuada a compra;

2) �bens de experiência�: bens cuja qualidade só pode ser descoberta de-pois de seu consumo por parte dos consumidores;

3) �bens de crença�: bens cuja qualidade o consumidor não conseguedescobrir (ou só consegue fazê-lo depois demuito tempo).Há necessi-dade de conhecimento proveniente de atores privados oupúblicos quecertifiquem a qualidade do produto. Assim, nesse caso, a utilidadeesperadapelo consumidor (segurança, agricultura sustentável, origem)é altamente dependente de representações coletivas (relatórios quegarantam a segurança de produtos frescos, por exemplo).Os bens de crença são bens que possuematributos desse tipo,mesmo

que possuam também os atributos de procura e experiência (que sãoessenciais para que a compra efetivamente aconteça).

As estruturas de governança dependem do tipo de bem transacio-nado. Como uma primeira aproximação podemos generalizar que parabens de experiência e procura, a governança é realizada pormecanismosde mercado através de relações bilaterais, enquanto que para bens decrença a estrutura de governança contém formashíbridas complexas entreatores privados e/ou públicos.

Transações de bens de crença têm uma importância crescente nosistema agroalimentar.Os padrões ajudamna reduçãodediferenças entreatributos sinalizados e realizados, incrementando a confiança do

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consumidor. Com a função de reduzir custos de transação na formulaçãoe implementaçãode contratos (aumentando, assim, sua eficiência) e redu-zir o risco na presença de uma alta freqüência de bens de crença, a indús-tria pode construir especificações com diferente poder de informação.

Evidencia-se, portanto, uma mudança de estruturas de governançapública para privadas oumistas no sistema agroalimentar. Está ocorrendouma �internalização� ou privatização dos padrões, que visa atender ummercado global, mas diferenciado, que rejeita em parte mecanismos depadronização públicos que não permitam diferenciação e que cria seuspróprios mecanismos intra-industriais de avaliação, muitas vezes bemdistantes das exigências públicas (REARDON ET AL., 2001).Os padrões gerambarreiras à entrada de concorrentes, pois os investimentos demandadossão altos, incluindo treinamento intensivo de funcionários e gerentes,novos equipamentos, sistemas de informação etc.

4. Qualidade e coordenação na cadeia dos queijos finos

Os queijos mais produzidos no Brasil são a mussarela (29%), prato(23%),minas frescal (13%) e parmesão (5%), totalizando 70%da produ-ção nacional. A produção desses queijos é feita tanto por grandes empre-sas, que abastecem os grandes centros, quanto pelas pequenas fábricasdo interior, que trabalham nos mercados locais.

Segundo a ABIQ (Associação Brasileira da Indústria doQueijo), exis-temhojemaisdecinqüenta tiposdequeijo fabricadosnoBrasil, destacando-se que grande parte da produção é informal, sem inspeção de órgãosfederais ou estaduais. O queijo é um dos derivados lácteos que menosdemandam alta tecnologia em seu processo de produção. Nos paíseseuropeus, os métodos tradicionais, baseados no feeling dos queijeiros e nascondições naturais de maturação em cavernas a temperatura ambiente, éque conferem ao queijo um maior charme e valor. Tentativas de se auto-matizar o processo de produção, apesar de serem utilizadas com sucessonas indústrias com produção de larga escala, constituem exceção à regra.

Pela falta de barreiras tecnológicas à produção, a fabricação dequeijos noBrasil se dá demaneira bastante polarizada.O grau de concen-tração domercado de queijos é extremamente baixo, se comparado com

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outros derivados. Entre os representantes do setor queijeiro nacional, éconsenso afirmar que o setor está, pelomenos, quinze anos atrasado comrelação às best practicesmundiais, caracterizando-se por ser fundamental-mente artesanal ou semi-industrial. Emum setor que exige longos prazosde armazenamento, o alto custo do capital no país, aliado à situação finan-ceira difícil damaioria das indústrias, dificulta a especialização, requisitobásico para a modernização dos processos, e a garantia dos tempos dematuração ideais, afetando a qualidade (NOFAL; WILKINSON, 1999).

Alémdisso, exigências dequalidade relacionadas comcoleta a granel,padrões de embalagem e logística fizeram com que pequenas empresase fazendas saíssemdomercadode laticínios doMercosul nos últimos cincoa dez anos, acelerando a concentração industrial. Altos investimentos emequipamentos, plantas produtivas, coordenação e gerenciamento que sãonecessários para se obter novas normas de qualidade para leite e derivadosdificultaram a sobrevivência de PMEs (REARDON; FARINA, 2001).

Um nicho demercado com alto crescimento nos últimos dez anos éo dos chamados �queijos finos�, que constituemuma alternativa estratégi-ca importante para pequenas indústrias. LEANDRO (1987, p.69) dá aseguinte definição para queijos finos ou especiais: �Trata-se da categorianobre dos queijos nacionais. Compreende queijos que necessitam decuidados especiais durante todas as fases dos processos de fabricação, curae distribuição, além de exigirem condições ambientais adequadas�.

Os queijos especiais podem ser classificados como tal por váriascaracterísticas: teor de umidade baixo (gruyere, pecorino), presença deolhaduras (gruyere, emmental), maturação por microorganismos nasuperfície (saint-paulin, port-salut, tilsit),maturação por fungos (gorgonzola,camembert, brie), entre outros. Em comum, possuem a necessidade de umtempo de maturação de médio a longo para atingirem as característicaspróprias para consumo, o que fez com que o setor fosse historicamentedominadopor poucas indústrias fundadas por imigrantes dinamarqueses,como Campo Lindo, Skandia e Luna.

O grau de concentração do setor de queijos finos se intensificou nasdécadas de 1980, com a venda das indústrias pioneiras citadas acima parao grupo francês Bongrain. Na década de 1990, indústrias nacionais depequeno e médio porte investiram no segmento e aumentaram

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consideravelmente suaparticipação.Destacam-se, entre outras, Serrabella,Tirolez, Quatá e São Vicente.

A cadeia dos queijos finos vem se desenvolvendo com rapidez após aestabilização econômica proporcionada pelo Plano Real em 1994, queproporcionou um aumento significativo do consumo per capita dessesprodutos. No entanto, a indústria nacional enfrenta a competição comprodutos importados, principalmentedaEuropa eMercosul, quepossuemmais tradição, qualidade e que, no caso dos produtos europeus, aindacontam com subsídios governamentais.

No entanto, a indústria de queijos finos brasileira ainda se caracterizapela baixa taxa de inovações e pelos baixos volumes de produção econsumo interno envolvidos. O estado de Minas Gerais foi o berço daprodução de queijos finos no Brasil, mas nos últimos anos ocorreu umaexpansão das indústrias para estados como Rio Grande do Sul, SantaCatarina, São Paulo e Goiás. Muitas das empresas atuando no setor sãode porte pequeno oumédio e enfrentam grandes dificuldades na gestãoda cadeia de suprimentos.

O domínio dos grandes supermercados como fonte de escoamentode produção aumentou a demanda por inovações organizacionais nalogística de entrega e promoção, pedidos on-line, garantia de estoque econtratos de fornecimento e padrões de qualidade. Além disso, naaquisição de sua principal matéria-prima, o leite, as indústrias enfrentama necessidade de inovar, adotando o processo de coleta de leite a granelem detrimento da coleta tradicional em latões. O processo de graneliza-ção, detonado pelas grandes multinacionais, demanda grandes investi-mentos em ativos específicos por parte da indústria (tanques paraestocagemdo leite, sistema de resfriamento), transportadores (aquisiçãode tanques isotérmicos de transporte) e produtores de leite (resfriadores),o que se torna um grande desafio para as pequenas e médias indústrias,especialmente nos processos de coordenação da mudança e enfrenta-mento das resistências por parte dos pequenos produtores.

Apesar da forçado componente artesanal, fica evidente a importânciade novas tecnologias e ferramentas de qualidade para atendimento dasexigências governamentais e de outros elos da cadeia. As indústriasbrasileiras de queijos finos passam a adotar novas práticas no relaciona-mento com fornecedores e compradores, na busca de maior qualidade.

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Na relação comos fornecedores, osmaiores avanços são decorrentesda coleta a granel. Como transporte de leite refrigerado, as característicasdo produto são conservadas, permitindouma avaliação de qualidademaisprecisa, o que não ocorria no transporte em latões, emque, por exemplo,o leite coletado dos produtores no início das linhas sofria mais asconseqüências do transporte, tendo em vista o fato de que ficavamexpostos por mais tempo às condições adversas de um transporte àtemperatura ambiente. Com a coleta a granel, as indústrias de queijosfinos passaram a adotar o pagamento da matéria-prima baseado emcritérios dequalidade, incluindoos seguintes parâmetros: teor de gordura,extrato seco, crioscopia, acidez, temperatura, contagem de célulassomáticas, teste de mamite, entre outros.

OQuadro 1, na página seguinrte, resume as principais característicase mudanças nas estruturas de governança da cadeia agroindustrial dequeijos finos.

Nos relacionamentos com os fornecedores de leite, intensificaram-se os esforços na busca deparcerias, comoa formaçãode grupos depeque-nos produtores coordenados pelas indústrias e a instalação de tanquesde resfriamento comunitários em pontos estratégicos, viabilizando apermanência dos pequenos na atividade. A contratação de funcionáriosexclusivamentepara prestaremassistência técnica aos produtores foi outroavanço importante, que se encaixa na filosofia APPCC, namedida emqueo monitoramento e a ação proativa junto aos produtores podem reduzirmuito o risco na matéria-prima, como a presença de microorganismosindesejáveis ou resíduos de medicamentos. As principais indústrias dosetor, como Bongrain, Tirolez, Quatá e Serrabella já iniciaram aimplantação do programa APPCC.

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Fonte:Elaboradopelosautores

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Os relacionamentos das indústrias de queijos finos com seusprincipais compradores também sofreram modificações profundas. Ospioneiros na adoção de exigências rígidas de qualidade e certificação dasindústrias de queijos finos foramas indústrias de alimentos que se utilizamdos queijos como insumos. Nesse segmento, se destacammultinacionaise grandes grupos nacionais, como Sadia, Perdigão, Schreiber e Kerry.

Essas empresas estabeleceramprogramas de certificação e exigênciade padrões quemuitas vezes excedemàs exigências do governo brasileiro,evidenciando a privatização dos sistemas de padronização de alimentos.Os itens avaliados variam desde procedimentos de higiene operacional,implantação dos programas BPF eAPPCC e controle de pragas, passandopela exigência de tratamentode efluentes líquidos e avaliaçãodos sistemasde rastreamento dos produtos.

Asgrandes redesde supermercados tambémcomeçamummovimentode certificação de qualidade dos fornecedores de queijos finos, que se tor-na um elemento importante nas estruturas de governança. A redeBompreço é uma das pioneiras na exigência da implantação dos progra-mas APPCC e BPF em todos seus fornecedores de queijos, através de audi-torias contínuas e assistência para a implantaçãoemparceria comoSebrae.

Outras redes, como o Carrefour, criaram Selos de Garantia deOrigem, que compreendem um programa de certificação de produtosfabricados comnormas rígidas de gestãodaqualidade.No casodos queijosfinos, a primeira empresa certificada foi a indústria gaúchaRandon, únicaempresa a fabricar a variedade italiana Grana Padano no Brasil.

Outros parâmetros de qualidade vêm sendo adotados e especifica-dos nos contratos de fornecimento entre indústrias de queijos finos e redesvarejistas, merecendo destaque:

• acordos de devolução zero, em que as indústrias pagam um valor sobreo faturamento e a responsabilidade comprodutos vencidos ou compro-blemas de qualidade passa a ser das redes de supermercados. Essamedi-da só vem sendoadotada com indústrias quedemonstrarambaixos níveisde devolução de produto em períodos anteriores;

• exigências de qualidade no atendimento, medidas principalmente pelosníveis de �ruptura�, ou porcentagem dos pedidos não entregues pelaindústria por motivos diversos. Os esforços nesse sentido incluem novos

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sistemas de emissão de pedidos, como o EDI, além de relatórios semanaisqueinformamosíndicescorrentesde�ruptura�easmetasaserematingidas.

5. Coordenação seqüencial no relacionamento com clientesindustriais: O relacionamento Serrabella � Kerry do Brasil

A Kerry do Brasil é uma das maiores indústrias de aditivos e ingre-dientes para alimentos do mundo. De origem irlandesa, possui filiais emmais de vinte países, com estratégia voltada para inovação e desenvolvi-mento de novas tecnologias. No Brasil, possui duas unidades industriais,em Campinas (SP) e Três Corações (MG).

Os processos de produção desenvolvidos pela Kerry do Brasil seutilizamde vários derivados lácteos, destacando-se o leite in natura, o sorode leite e os queijos.

A empresa se utiliza de queijos especiais para desenvolvimento devariedades específicas para alguns de seus clientes desde 2002.OLaticíniosSerrabella foi escolhido comoparceiro no fornecimento desses produtos,através de processo de certificação realizado em 2003.

O processo de certificação Kerry-Serrabella teve como objetivoverificar as condições higiênicas, estruturais, operacionais e suas respec-tivas documentações da qualidade, de tal forma a assegurar que os produ-tos fabricados estejam livres de qualquer tipo de contaminação e inserçãode corpos estranhos e habilitar a Serrabella a fornecer seus produtos paraa Kerry do Brasil.

Na primeira auditoria, realizada por dois auditores da própria Kerrydo Brasil, foram especificados os pontos positivos, quemereceram desta-que, como por exemplo o sistema de tratamento de efluentes, o sistemade rastreabilidade, estrutura de laboratório, a boa conservação da fábrica,utensílios e equipamentos.

A auditoria determinou também pontos a serem melhoradosseguindo-se check-list das BPF (Boas Práticas de Fabricação), tais como:ausência de barreiras físicas em alguns locais, funcionários sem equipa-mentos adequados de proteção, excesso de água nos pisos, utilização deutensílios de vidro, dificuldade de limpeza de ralos etc.

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Solicitou-se, ao fim da primeira auditoria, que o Serrabella especifi-casse os planos de ação a serem realizados para adequação e os prazospara execução dosmesmos.Odocumento especificando as ações e prazosfoi aprovado pelos auditores, a empresa foi certificada e foram deter-minados os prazos para a realização das próximas auditorias.

A certificação habilitou o Serrabella a fornecer seus produtos para aKerry do Brasil. O desenvolvimento das duas variedades de queijo a seremcomercializadas levoumais de trêsmeses, comadequaçãodeprocesso pro-dutivo e prazos de maturação, até que se chegasse na definição ideal dascaracterísticas desejadas e fosse iniciadooprocessode compradoproduto.

Não existe nenhumcontrato quedefina, porém, garantia de compra,condições comerciais e financeiras ou obrigatoriedade de atendimentodos pedidos.Oúnico contrato está relacionado coma especificação técni-ca dos queijos, que é feita em todos os lotes do produto entregue. Alémdisso, é obrigatório na remessa dos produtos o envio de laudo de análisemicrobiológica que garanta a inexistência de contaminação. Esse laudodeve ser realizado por laboratório credenciado. No caso do Serrabella, éutilizado o Laboratório do Departamento de Ciência dos Alimentos daUniversidade Federal deLavras. A especificação técnica contémos seguin-tes itens de avaliação, conformeoQuadro 2 (onomedoqueijo e os valoresnuméricos são fictícios):

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1) Análises físico-químicas Faixa

Extrato seco total 45 a 56%

Gordura 28 a 36%

Umidade 35 a 45%

2) Análises sensoriais Características

Aspecto Massa lisa, cremosa, semicozida, casca fina

e tingida de vermelho

3) Avaliação sensorial Característico, conforme padrão

Cor Amarelo palha

4) Análises microbiológicas Conforme laudo

5) Outros parâmetros

Tipo de embalagem Embalagem termoencolhível com 1,8 kg

Declaração de ingredientes

Validade 180 dias

Maturação mínima para entrega 25 dias

Certificado de análise O certificado de análise deve ser enviado

junto comoproduto. A falta do certificado

implicará no não recebimento da

mercadoria

Material geneticamente modificado Não contém

Ingrediente alergênico presente Derivado do leite

Fonte: Kerry do Brasil

Observa-se que no relacionamento das indústrias de queijos finoscom clientes industriais, como aKerry doBrasil, os elementos prioritáriosestabelecidos nos contratos estão relacionados com a qualidade dosprodutos, tanto na dimensão de adequação ao padrão de desempenhono aspecto sensorial, textura, aparência e maturação, quanto naadequação às exigências de segurança alimentar, expressas em padrõesmicrobiológicos, identificação de ingredientes alergênicos etc.

Além disso, o processo de certificação privada de fornecedores dequeijo, acimadescrito, constituiumgrandeavançonorelacionamentoentreos atores, permitindo o desenvolvimento conjunto na busca de objetivoscomuns. É bomdestacar que o aprofundamento do relacionamento entreas empresasmotivounovasparcerias comerciais, na comercializaçãode leitee soro de leite, utilização de laboratório da outra empresa em situações

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emergenciais etc. Alémdisso, são permanentemente discutidas e avaliadasalternativas para redução de custos, que já levaram à alterações deembalagem primária secundária, ingredientes, entre outras.

Evidencia-se que a coordenação seqüencial dos suprimentos feitapelas grandes indústrias de alimentos tem sido extremamente benéficapara o desenvolvimento das indústrias de queijos finos, na medida emque estimulam a adoção de novas práticas de gestão da qualidade.

6. Conclusões

A indústria de queijos finos no Brasil vempassando por umprocessoimportante de reorganizaçãodas suas estruturas de governança, tanto comfornecedores quanto com compradores. A qualidade cumpre um papelfundamental nas novas estruturas de coordenação, pois é um elementopotencial de diferenciação entre as indústrias, representando apossibilidade de estar apto a atender as exigências dos compradores e afazer parte de suas cadeias de suprimento. Com isso, os queijos finosbrasileiros vem sendo encarados crescentemente como �bens de crença�.

Além disso, as indústrias de queijos finos coordenam suas própriasredes de suprimento, aproximando-se de seus fornecedores e colocandoa qualidade do leite como principal elemento na remuneração doproduto, o que torna o leite um ativo cada vez mais específico e passívelde diferenciação. Os esforços na assistência técnica ao produtorconstituemparte essencial da implantaçãodos programasAPPCC, emquea qualidade é encarada por uma ótica sistêmica e proativa.

Evidencia-se que a produção com características artesanais não éincompatível com exigências de qualidade, embora o padrão industriali-zado imposto por supermercados possa constituir uma ameaça. Destaca-se, no entanto, que algumas redes de supermercados começamgradualmente a perceber a necessidade de espaço para produtos comcaracterísticas artesanais, que são cada vez mais valorizados porconsumidores das classes mais altas. Os queijos finos são produtos que seencaixamnessa tendência e os fabricantes devemdesenvolver estratégiasde marketing em parceria com o varejo, para comunicar esse diferencial.

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Quality coordination mechanisms in agro industrial chains:The case of special cheese in Brazil

Abstract � Agrifood quality exerts an increasing role in the recent evolution ofthe agrifood system. Exigencies related to food security, adequate environmen-tal production and indications of origin have led to new governance structuresof the productive chains,markedby quality specifications. Special cheese industryin Brazil is an example, investing in quality as a differentiation strategy. Therelationship of this industry with its main suppliers and buyers is intensified by a�systemic� vision of quality. In this perspective, the main changes in thegovernance structures involve the approximationwithmilk suppliers, innovationin the milk collection, technical assistance and the establishment of theremuneration criteria by quality. In the relationship with buyers, the investmentin tools, as the GMP (Good Manufacturing Practices) and the HACCP (HazardAnalysis of Critical Control Points) constitute a differential source of competitiveadvantage in the process of certification of cheese suppliers adopted by retailersand food industry.

Key words � Quality. Coordination. Special cheese.

JEL � Q1, D2

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Recebido para publicação em janeiro de 2005.Aprovado para publicação em março de 2005.