cooper david - a decadencia da familia (port)

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A DECADÊNCIA DA FAMíLIA David Cooper COLECÇÃO PSICOLOGIA E PEDAGOGIA is A DECADÊNCIA DA FAMíLIA Título original: THE DEATH OF THE FAMILY Capa de: Estúdios C. P. . David Cooper, 1971 Direitos reservados para a Língua Portuguesa David Cooper A DECADÊNCIA DA FAMILIA Tradução de Luísa Maria Ramos PORTUGÁLIA EDITORA INTRODUÇÃO Nesta crítica da família, a maioria das minhas referências paradigmáticas dirão respeito, sobretudo, à unidade familiar nuclear da sociedade capitalista nesta fase do corrente século. Contudo, a referência mais vasta e a maioria das minhas afirmações gerais abrangerão o funcionamento social da família como dispositivo condicionador de ideias (a linguagem não-humana é deliberada e necessária) em qualquer sociedade de exploração - sociedade de escravatura, sociedade feudal, sociedade capitalista desde a sua fase mais primitiva no século passado até às sociedades neo-colonizadoras no primeiro mundo de hoje. Também se aplica à classe trabalhadora do primeiro mundo, sociedades do segundo mundo e países do terceiro mundo, na medida em que estes foram doutrinados em direcção a uma consciência espúria que, como teremos ocasião de ver, é definitiva do pacto secreto de suicídio dirigido pela unidade familiar burguesa, a unidade

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A DECADÊNCIA DA FAMíLIADavid Cooper

COLECÇÃO PSICOLOGIA E PEDAGOGIA

is

A DECADÊNCIA DA FAMíLIA Título original: THE DEATH OF THE FAMILY

Capa de: Estúdios C. P. . David Cooper, 1971 Direitos reservados para a Língua Portuguesa David Cooper

A DECADÊNCIA DA FAMILIA

Tradução de Luísa Maria Ramos

PORTUGÁLIA EDITORA

INTRODUÇÃO

Nesta crítica da família, a maioria das minhas referências paradigmáticas dirão respeito, sobretudo, à unidade familiar nuclear da sociedade capitalista nesta fase do corrente século. Contudo, a referência mais vasta e a maioria das minhas afirmações gerais abrangerão o funcionamento social da família como dispositivo condicionador de ideias (a linguagem não-humana é deliberada e necessária) em qualquer sociedade de exploração - sociedade de escravatura, sociedade feudal, sociedade capitalista desde a sua fase mais primitiva no século passado até às sociedades neo-colonizadoras no primeiro mundo de hoje. Também se aplica à classe trabalhadora do primeiro mundo, sociedades do segundo mundo e países do terceiro mundo, na medida em que estes foram doutrinados em direcção a uma consciência espúria que, como teremos ocasião de ver, é definitiva do pacto secreto de suicídio dirigido pela unidade familiar burguesa, a unidade que se designa com o nome de «família feliz»; a família que ora em comum e permanece unida através da doença e saúde até que a morte nos separe ou nos lance para a sóbria tristeza dos epitáfios nas pedras da nossa tumba cristã, erguidas, por falta de outro género de construçÃo, por aqueles que porão luto após a nossa morte à curiosa maneira de terem sempre no pensamento que devem levar muito tempo a esquecer-nos. Este falso luto é justo e poético, na medida em que não é possível um luto autentico, quando as pessoas que põem luto umas pelas outras nunca se encontraram. A unidade familiar nuclear burguesa (utilizando algo parecido com a linguagem dos seus agentes - sociólogos académicos e cientistas políticos) tornou-se, no presente século, a forma finalmente aperfeiçoada do não-encontro e, por conseguinte, a negação definitiva do luto, morte, nascimento e do reino experimental que precede o nascimento e a concepção.

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Porque é que não caímos na armadilha benvinda, armadilha para ursos forrada a pele, da própria hipostasiação da família como «A Família» e a seguir examinar-nos as várias formas em que a intra-estrutura da família bloqueia o encontro entre um indivíduo e outro e exige urra oferta sacrificial por parte de cada um de nós, que não aplaca ninguém nem nada senão esta abstracção grandemente activa? Por falta de deuses, tivemos de inventar abstracções potentes, nenhuma das quais é mais poderosamente destrutiva do que a família.

O poder da família reside na sua função social de medianeira. Ela reforça o poder efectivo da classe governante em qualquer sociedade de exploração, fornecendo a todas as instituições sociais uma forma paradigmática altamente manejável. Assim encontramos a forma da família reproduzida pelas estruturas sociais da fábrica, ramos de união, escola (primária e secundária), universidade, corporações comerciais, igreja, partidos políticos, corpo governamental, forças armadas, hospitais gerais e para doentes mentais, etc. Há sempre «mães» e «pais» bons ou maus, amados ou odiados, «irmãos» e «irmãs» mais velhos e mais novos, «avós» defuntos ou a comandar secretamente. Cada um de nós, em termos da descoberta de Freud, transfere um pouco da sua experiência familiar original na «família de origem» para cada um dos membros da sua «família de procriação» (a «própria» esposa e filhos) e para cada um dos outros, seja qual for a situação em que trabalhemos. Por consequência, com base nesta não-realidade provinda de uma não-realidade anterior, falamos em «pessoas que conhecemos», como se tivéssemos a oportunidade mais remota de conhecer a pessoa que conhece as pessoas que essa pessoa supõe conhecer. A família, por outras palavras, como está socialmente metamorfoseada, anonimiza os indivíduos que trabalham ou vivem juntos em qualquer estrutura institucional; há um agrupamento eficaz disposto em série, uma bicha de autocarro, disfarçado de amistoso, em que cada «indivíduo real» trabalha cooperativamente com o outro «indivíduo real». Esta exclusão da realidade do indivíduo através de ficção interiorizada proveniente do passado da família e também muito bem demonstrada pelo problema mais básico da psicoterapia - o problema do despovoamento progressivo do quarto. No início da terapêutica, o quarto pode conter centenas de pessoas, principalmente toda a família do indivíduo, ultrapassando várias gerações, mas também outras pessoas importantes. Uma parte da população inclui, inevitavelmente, outros doentes interiorizados do terapeuta - mas a garantia de uma boa terapêutica depende do facto de que o terapeuta esteja suficientemente ao corrente dos problemas internos familiares e se encontre apto a dominá-los. Em terapêutica, começa-se pouco a pouco a identificar os membros desta vasta família e suas extensões e pede-se-lhes, muito delicadamente, para «sair do quarto», até que ficamos só com dois indivíduos que têm a liberdade de ir ao encontro do outro ou abandoná-lo. O objectivo ideal da terapêutica é, pois, a dissolução definitiva da dualidade: terapeuta e «terapeutizado» - um estado ilusório de não-relação, pelo qual a terapêutica tem necessariamente de começar e o qual deriva do sistema binário da família: educador e educando. Quando se permitirão os pais ser educados pelos filhos? É fátuo falar da morte de Deus ou da morte do homem - imitando burlescamente a séria intenção de alguns teólogos e filósofos estruturalistas contemporâneos - antes de podermos encarar completamente a decadência da família - o sistema que, segundo a sua obrigação social, filtra obscuramente a maior parte da nossa experiência, destituindo, assim, os nossos actos de qualquer espontaneidade genuína e generosa.

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Antes de qualquer questionário cósmico acerca da natureza de Deus ou do homem, levantam-se, historicamente, em cada um de nós, outras questões de tipo mais concreto e altamente pessoal. «Donde vim?», «Aonde me foram buscar?», De quem sou?» (fazemos estas perguntas antes de pensarmos em perguntar «Quem sou eu?»). Em seguida, outras questões menos frequentemente formuladas mas vagamente suspeitadas tais como «0 que estava a acontecer entre os meus pais antes e durante o meu nascimento?» (isto é «Será que resultei dum impulso orgásmico ou o que é que eles pensavam que estavam a fazer um com o outro?»); «Onde estava eu antes de um dos espermatozóides dele romper um dos óvulos dela?»; «Onde estava eu antes de ser eu? ; «Onde estava eu antes de poder fazer a pergunta: onde estava eu antes de ser este eu?».

Com um pouco de sorte, todos somos «excepcionais» (e há mais gente excepcional do que pensamos, se nos lembrarmos de uma ou duas experiências críticas que demonstram a nossa excepcionalidade). Por exemplo, houve quem me dissesse que a parteira, que assistira ao seu nascimento, dissera à mãe: «Este já aqui esteve». Mais vulgarmente, diz-se a algumas pessoas que, afinal, pertenciam a outros pais: «Houve um erro na clínica e puseram-lhe a etiqueta errada». Em termos de afirmações verdadeiras em relatórios, isto pode dar acesso a implicações de que uma determinada criança provém de outra espécie, que é manifestamente não-humana ou até extra-terrestre ou monstruosa. Contudo do, podemos estar tão completamente desprovidos de qualquer curiosidade, que podemos interiorizar uma série de perguntas sem resposta como mistificação embutida acerca da nossa identidade elementar - sobre quem somos e quando e onde estamos. A família é perita na inculcação auto-aterradora e auto-aterrorizadora da não-necessidade de albergar dúvidas sobre qualquer destes pontos. A família, uma vez que não pode suportar nenhuma dúvida sobre si própria e a sua capacidade de gerar «saúde mental» e «atitudes correctas», destrói a dúvida como possibilidade em cada um dos seus membros.

Cada um de nós é cada um dos seus membros. Cada um de nós terá de redescobrir a possibilidade de duvidar das nossas origens - apesar de e embora sejamos bem educados.

Eu ainda me sinto um tanto incrédulo quando encontro indivíduos que foram adoptados ou de quem um dos pais saiu de casa e nunca mais foi visto, e que se privam, duma tal maneira, de dúvida e curiosidade, que nem tentam encontrar o pai ou pais que lhes falta - não necessariamente para ter uma relação com eles, mas simplesmente para testemunhar o facto e qualidade da sua existência. Igualmente perturbador, de facto, é a raridade de fantasias totalmente desenvolvidas sobre uma «família de romance» e o tipo de família ideal e estranha, donde imaginamos ser oriundos - uma família que não projecta em nós a sua problemática, mas que se torna o veículo imaginário da nossa própria existência apagada.

Em suma, temos de assumir a posição de reunir todo o passado da nossa família; conseguir um resumo

de tudo isso, para nos libertarmos dele de um modo que seja mais pessoalmente eficaz do que uma simples ruptura agressiva ou actos rudes de separação geográfica. Se o

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efectuarmos da primeira maneira - que é sempre através de relações, não necessariamente relações terapêuticas formais - podemos atingir o raro estado de gostar realmente ou ser, de livre vontade, muito amigos dos pais, em vez de estarmos engolfados num amor prisioneiro e ambíguo - do qual são vítimas, como é óbvio, tanto os pais como os filhos.

Se já não duvidamos, tornamo-nos duvidosos aos nossos próprios olhos, e então só podemos optar por perder a nossa visão e vermo-nos com os olhos dos outros - e os olhos dos outros (uns e outros atormentados pela mesma problemática irreconhecível) ver-nos-ão como devidamente seguros e protectores dos outros. Na verdade, tornamo-nos vítimas de um excesso de segurança que ilude a dúvida e, consequentemente, destrói a vida em qua@quer sentido em que nos possamos sentir vivos. Simultaneamente, a dúvida gela e ferve a medula dos ossos, agita os ossos como dados que nunca são lançados, faz soar uma música de órgão se-

creta e violenta pelas diferentes calibrações das nossas artérias, ribomba ominosa e afectuosamente pelos nossos canais bronquiais, vesícula e intestinos. Existe e é a contradição de cada contracção espermática e é o convite e a rejeição de cada flutuação muscular vaginal. Por outras palavras, a dúvida é real, se podemos encontrar o caminho de regresso a este género de realidade. Mas, se é para procedermos assim, temos de eliminar falsos caminhos de atletismo e yoga ritual - estes rituais só confirmam a intriga familiar tendente a exteriorizar a experiência corporal em algo que pode ser efectuado fora da relação real e de acordo com um horário que nos lembra um dos treinos sanitários a que fomos obrigados a submeter-nos aos dois anos de idade ou até logo nos primeiros meses, quando nos «esticávamos», e nos faz esquecer o equilíbrio exacto entre a possibilidade de evacuar ou reter uma determinada porção de excrementos que sentíamos.

Esta sensação de destruição-da-dúvida e da experiência de viver o próprio corpo tem a sua origem na

necessidade de agrupamento humano, que se desenvolve primeiramente na família. Uma da@ primeiras lições que aprendemos no decorrer do nosso condicionamento familiar é que não valemos o suficiente para existirmos no mundo por nós próprios. Ensinam-nos, muito pormenorizada mente, a renegar o próprio eu e a viver aglutinados, para que, assim, grudemos em nós pedaços de outras pessoas e, a seguir, passemos a ignorar a diferença entre o não-eu do nosso eu e a auto-identidade do nosso eu. Este facto é alienação, no sentido de uma submissão passiva à invasão dos outros, sendo estes originariamente da família. Mas esta passividade é ilusória, na medida em que oculta a escolha da submissão a uma invasão desta espécie. Todas as metáforas de «paranóia» são um protesto poético contra esta invasão. A poesia, que, evidentemente, varia em qualidade, é, contudo, pouco apreciada pela sociedade e, se começa a ser demasiadamente exprimida em voz alta, requer ser tratada pela psiquiatria - que é, após as instituições educacionais, o terceiro grau de defesa familiar contra a autonomia por parte dos seus membros - isto é, juntamente com escolas e prisões especiais e uma multiplicidade de outras situações de rejeição mais discretas. Parece-me que, na nossa época e, pelo menos, no primeiro mundo, a paranóia é uma tentativa necessária para a procura da liberdade e totalidade; o único problema consiste em se ser suficientemente discreto para impedir um assassínio social ou a indução gradual mais suave e mais

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civilizada de respostas socialmente aceitáveis através da longa psicanálise das nossas «ansiedades perseguidoras». O problema não está em «resolver» as ansiedades perseguidoras mas em utilizá«-Ias lucidamente, para destruir uma situação perseguidora real e objectiva em que estamos capturados mesmo antes do começo da nossa existência.

Ao trabalhar com as pessoas o terapeuta pode, muito mais frequentemente, ter de confirmar a realidade dos receios paranóicos, do que negá-los ou tentar modificá-los de qualquer modo. Isto seria, sem dúvida, uma projecção da própria paranóia do terapeuta, se não fosse possível elaborar, com tanta frequência, estratégias de escape ou atacar decididamente o sector particular do mundo, com toda a sua realidade perseguidora, em que o indivíduo está imerso e donde tem de ascender,

De facto, penso que o que temos a fazer é reavaliar completamente determinados estados empíricos e de comportamento que são considerados mórbidos e, em seguida, através de uma declinicalização radical da nossa estrutura conceptual, vê-los como estratégias mais ou menos prematuras ou bem sucedidas com vista a alcançar autonomia e consistência. Numa obra anterior*, mostrei, em termos da verdade de uma vida, a oposição polar entre normalidade (que é o triste destino da maior parte de nós) e saúde mental e loucura, que vão encontrar-se no pólo oposto.

Aqui, o ponto vital é o papel da família em originar a base do conformismo - a normalidade através da socialização primária da criança. «Eclucar» uma criança, na

prática, é mais como humilhar um indivíduo. De igual modo, educação é conduzir um indivíduo para fora e

para longe de si próprio.

Jogando com a etimologia grega, podemos dar maior amplitude a esta ideia.

‘Psiquiatria e Antipsiquiatria, Publicações Tavistock, Londres,1967.

14 Anóia Antinóia

Nóia (En-nóia)

.A2

Paranóia

Al

Ecnóia @L = rnetanóia

O estado ecnóico, à esquerda do diagrama, é o estado normal do cidadão bem condicionado e infinitamente obediente. Este é um estado de existência, em que cada

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indivíduo está tão alheio a todos os aspectos da sua própria experiência, a todos os impulsos espontâneos para agir, a um mínimo de consciência pelo seu corpo destinado a si próprio, mais do que o seu corpo como objecto no mundo destinado à inspecção dos outros, a todas as possibilidades cuidadosamente recusadas de suscitar mudanças, que podemos considerar este indivíduo normal, verdadeiramente e sem prestidigitação metafórica, como estando fora da razão. A maioria dos indivíduos do primeiro mundo submete-se a este assassínio crónico do eu, apenas com uma dissidência

15 mal murmurada e quase esquecida. A consequência de perder a memória, neste sentido, é certamente considerável: o indivíduo pode tornar-se afluente e, pelo menos, confortável; pode chefiar uma grande corporação ou um grande estado ou pode até revelar-se, no interesse de valores normais, na devastação ecológica das maiores áreas da superfície terrestre. De facto, pensando melhor, não há nada de tão bom como estar fora da razão. Nem nada como a perda consequente. Através de metanóias em série, o indivíduo pode sair da posição ecnóica. Metanóia significa mudança a

partir das profundidades do eu para as superfícies da aparência social de cada um. Inclui muito do sentido paulistano de conversão e arrependimento e, especialmente ao segundo nível de metanóia (lt2), dá origem aos

«sinais» de depressão e luto, Através da primeira meta-nóia, o indivíduo entra numa região de «paranóia», passando a estar junto de si mesmo. Se a ecnóia significa estar fora da razão, ria paranóia, pelo menos, o indivíduo está próximo da razão. A paranóia é como que uma vizinhança do eu, que se lhe pode tornar afeiçoada. Se a ecnóia é um estado de existência, um aglomerado de essências que são, finalmente, o produto massivo do condicionamento social iniciado na família, a paranóia é o começo de existência activa com a possibilidade de vida para novos planos. Há certamente confusão entre as fantasias perseguidoras e as realidades perseguidoras. Com a primeira, cada indivíduo explora projectivamente a realidade social através do desconhecido, mas, mais tarde, do meio-conhecido, da super-imposição das estruturas experienciais do passado sobre o presente. Se esta exploração é suficientemente radical no contexto das relações mais significativas de cada indivíduo, ele começa a desenvolver um sentido objectivo de realidade perseguidora, que é transpessoal e está para além das nossas s uper-i m posições, embora, para nó s, fosse indirectamente mediada pela experiência familiar primária na idade de um ano, idade em que se condicio-

16 nam as fantasias perseguidoras. A segunda metanóia representa o trabalho no nosso eu, no sentido de trabalho total (incluindo a noção psicanalítica de «trabalho de penetração»), que nos leva a

uma auto-consciência, que se encontra nos nossos próprios espíritos, separada, assim como um indivíduo de outro indivíduo, numa solidão não isolada, aberta ao mundo. Nesta altura, encorajamos o nosso eu, pomos-lhe um coração novo, mais por invenção do que por transplantação, e fazemos uma aposta para tentar alguma nova experiência no auto-domínio das nossas auto-relações, para que tenhamos a liberdade de permitir uma saída generosa do eu para o mundo (o movimento nóico).

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Neste momento, estamos preparados para abandonar o sentido do «eu», a restrição a um «ego» finito. A última metanóia é o movimento fluente entre o eu activamente autónomo e o eu e o mundo - transcendência (anóia) - deslocando-se através da neutralização da auto-preformação num momento de anti-nóia. Não há, então, finalmente, mais nenhuma questão acerca de «estados de existência» e da segurança ilusória representada por tais «estados».

Há, com certeza, muito lugar para confusões de localização entre estes períodos, sendo uma das mais desastrosas a tentativa de deslocação da ecnóia e paranóia para anóia, sem os requeridos predicados pessoais de autonomia do auto-domínio. Tais tentativas são o uso de drogas psicadélicas e abortivos sem qualquer orientação, formas alarmantes do que parecem ser «colapsos psicóticos». Quando isto acontece, as pessoas ainda estão muito dentro da rede da família interna (e, muitas vezes, da família externa também) e, compulsivamente, procuram sistemas bem menos restritos de réplicas de famílias.

A família não só é uma abstracção, isto é, uma falsa existência, uma essência, mas existe também como uma intimação a ir além de todo o condicionamento, a

17 que nela fomos submetidos. A maneira como efectuamos este «ir além» parece, contudo, estar sempre bloqueada. Há numerosos tabus no sistema familiar, que superam largamente o tabu de incesto e tabus contra a cobiça e porcaria. Um desses tabus é a proibição implícita de experimentar a nossa solidão no mundo. Parece que há, deveras, muito poucas mães que sabem permanecer o tempo necessário afastadas do filho, para permitir-lhe o desenvolvimento da capacidade de estar só. Há sempre uma necessidade de tentar prender o desespero lamentoso do outro - por amor nosso, se não por amor dos outros. Isto conduz a uma violação da temporalização do outro, quer dizer, o fazer-tempo pessoal distinto de arranjar-tempo, para que a necessidade da mãe- sistema de tempo (mediador mais ou menos passivo do sistema de tempo necessário da sociedade mais vasta) passe a impor-se na da criança. A criança pode precisar do tempo da mãe ou do seu para experimentar frustração, desespero e finalmente uma experiência completa de depressão em todos os sentidos. Tendo como base a minha experiência, é deveras muito raro qualquer respeito pelo tempo do outro ou pelo tempo de que o outro necessita na sua relação com o primeiro. Uma das principais contribuições, e talvez a mais importante, da técnica psicanalítica freudiana foi o desenvolvimento sistemático e disciplinado da análise deste género de respeito pelo desdobramento natural do efeito recíproco das temporalizações - sem interferência, mas com toda a atenção. Neste sentido, a situação psicanalítica pode tornar-se idealmente, uma espécie de anti-família - uma família, em que podemos entrar ou sair por escolha, quando tivermos feito o que nela temos a fazer.

A situação analítica não é uma situação de transferência familiar, em que cada um, num certo simplismo desconhecido, converte o outro em pedaços da sua totalidade de impressões sobre a experiência familiar passada. Isto é, apenas «durante a viagem», embora seja

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uma Via Láctea que temos de atravessar. Não vale a pena tentar remediar o que já não tem remédio. Por isso, passamos por tudo isto com um impulso proléptico, que penetra no nosso eu com intimações passadas do eu, pelas quais esse eu iria penetrar-se.

O que nela temos a fazer é descobrir uma dialéctica fluente, que se desloque sempre na antítese móvel entre estar-só e estar-com-o-outro. É esta antítese que devemos examinar mais profundamente, se quisermos descobrir a maneira como um indivíduo, privado do sangue vital da sua solidão no primeiro ano de vida, mais tarde, num momento de grande angústia, inventa o seu afastamento no mundo.

Um rapaz chamado Filipe, de seis anos, vivia com os

pais num hotel pertencente a familiares. Tinha sido sempre tratado assiduamente por eles. Nunca o tinham deixado por um só momento. Mas, um dia, brincando nos jardins, ele pousou as mãos num bebedouro de pássaros caiado e olhou para a água musgosa, que reflectia o céu. Chocado, levantou os olhos para o céu, vendo-o pela primeira vez, como que iniciado numa consciência da sua realidade através do seu reflexo. Depois, num momento de sufocação, que era também um momento de liberação, compreendeu a sua completa contingência

solidão no mundo. Soube que, daquele momento em diante, não podia chamar ninguém nem ninguém o podia chamar, de uma maneira que pudesse desviar a trajectória do seu plano de vida, que sabia, agora, já ter escolhido - embora, como é natural, fosse preciso ter em conta os pormenores. A mãe anunciou-lhe que o jantar estava pronto. Ele foi para dentro comer, mas, pela primeira vez, apercebeu-se de que já não era o filho da sua mãe, mas, na realidade, a sua própria pessoa. O problema é que Filipe não podia dizer a ninguém da família uma palavra sobre a sua experiência que não fosse deformada nos seus termos ou sob a forma de alguma piada sobre o seu filho.

Se não descobrirmos a nossa autonomia no primei-

19 ro ano de vida e se não a descobrirmos por meio deste momento angustiado nos fins da infância, ou nos tornamos loucos no fim da adolescência, ou expiramos e tornamo-nos cidadãos normais, ou lutamos por uma liberdade na realização de relações subsequentes, quer estas sejam relações analíticas originadas espontaneamente ou planeadas. De qualquer modo, um d';a teremos de sair de casa. E quanto mais cedo, melhor.

Tudo isto se refere à comunicação e à falta de recepção de comunicação, que caracteriza o sistema familiar. Imaginemos uma situação muito vulgar entre pai e filho.O pai descia a avenida, trazendo o filho pela mão. A um dado momento, dá-se uma quebra necessária de reciprocidade - o pai segura a mão do filho, mas o filho já não segura a mão do pai. Por meio duma subtil alteração cinésica na pressão da mão, a criança, de três ou quatro anos, indica ao pai que quer continuar sozinha pela estrada abaixo, na sua própria altura. O pai, ou aperta-lhe a mão, ou faz o que a experiência lhe ensinou, como sendo um risco temeroso- permite que a criança o abandone, não na sua altura nem na altura prescrita pela sociedade, mas na altura da criança.

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Como aprenderemos a meter-nos na nossa própria vida - como fez o poeta japonês Basho de Haiku? No seu jornal, A estreita estrada para o norte profundo, Basho descreve como, pouco depois da partida viu no outro lado do rio uma criança abandonada, pequena, desolada e a chorar. Ele poderia ter voltado atrás para ir ter com a criança e arranjar-lhe alguma casa na aldeia mais próxima, mas preferiu continuar o seu caminho solitário, eleito. A compaixão de Basho foi inteiramente ex-

pressa em poesia, mas a sua viagem estava em primeiro lugar - ele sabia que nada poderia fazer pela criança, antes de saber o que tinha de fazer por si.

Se quisermos libertar-nos da família, não só no sentido externo (a família «lá fora»), mas também no sentido interno (a família «na nossa cabeça»), a principal tarefa que temos a executar é vermos através dela. Para

20 tornar este facto f enomenologica mente real, podemos mediar nesta visualização - a visualização de uma série familiar. Imaginemos olhar através de uma série de véus - o primeiro véu apresentará uma imagem da nossa mãe numa determinada disposição, de que espontaneamente nos lembramos; o segundo véu apresentará a impressão do nosso pai numa disposição igualmente característica; em seguida, olhamos através de véus sucessivos, incluindo irmãos, avós e outras pessoas significativas na nossa vida, até que, no final da série, vemos um véu coma nossa própria imagem. Então, após termos visto através da família, tudo o que temos a fazer é ver através de nós próprios um nada que nos restitui a nós mesmos, na medida em que este nada é o nada específico da nossa existência. Após uma observação suficiente através deste nada, o terror consequente toca apenas com uma nota acidental.

Por outras palavras, o super-ego (a imagem interna dos nossos pais, pedaços e partes primitivamente amadas e odiadas dos seus corpos, fragmentos de expressões cominatórias e injunções confusas de vida-ou-morte, que soam aos nossos ouvidos mentais do primeiro ao último ano de vida) tem de ser transformado de uma abstracção teórica, que mal podemos compreender, numa realidade fenomenal. O super-ego não é nada (a abstracção teórica) senão uma série de imposições sensoriais, imagens que, na nossa consciência, devemos ver, ouvir, cheirar, provar e tocar. Por razões que, mais tarde, explicarei, vou condensar todas estas modalidades sensoriais em visão, em ver e ver através de. Penso que o objectiVo deve ser concretizar o superego em componentes fhnónienais reais, para que antes, o possamos utilizar como uma espécie de escudo social, alarme contra ladrões espingàrda submecânica- do que sermos utilizados e, possivelmente, destruídos por ele. São múltiplas as técnicas que podemos encontrar ou inventar para o fazer.

Além das interpretações, podemos relembrar, em

21 terapêutica, histórias e mitos e, mais especialmente, evocar a nossa própria mitologia pessoal. Muitos de nós, por exemplo, falam sobre o mito de Golem. Lembremo-nos da história Cabalística original. Famílias judaicas ergueram uma efígie de argila e, nas suas

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sobrancelhas, escreveram a palavra Emeth, que significa «Verdade». Este monstro podia ser utilizado como ser-

vo, podendo fazer todos os géneros de trabalhos domésticos, até que se tornasse incompetente ou desobediente ou, apenas, demasiado grande. Nessa altura, o chefe de família tinha de elevar-se até à sobrancelha do Golem e apagar o primeiro «E» de Emeth -ficando a palavra Meth, que significava «morrer». O monstro, então, morria e acabavam com ele. Todavia, um chefe de família deixou o Golem crescer tanto, que já não podia chegar à sobrancelha da rebelde criatura; por isso, reflectiu um pouco e depois, sabendo que todos os Golems ou Super-egos são, essencialmente, obedientes, ordenou à criatura que se baixasse e juntasse algum lixo. Assim que o Golem lhe obedeceu, ele apagou o «E» de Emeth - mas, esquecendo-se do tamanho da criatura, foi sufocado pela massa de lama original que lhe caiu em cima. É como morrer prematuramente com uma trombose das coronárias ou com um cancro ou ser fuzilado pela polícia de choque. Portanto, é este o modo como protegemos os nossos Golems - o que, de qualquer maneira, é tudo o que «eles» provavelmente desejam.

Mais uma história, pois, para ilustrar o poder da família interna, a família de que nos podemos separar por mais de milhares de milhas e, contudo, permanecer ainda nas suas garras e ser estrangulado por essas garras. Um indivíduo que conheci, estava a tentar libertar-se desesperadamente de uma situação familiar complexa, qkÁt@ parecia invadir qualquer movimento que ele fazia em relação do seu trabalho e à sua relação com a esposa e filho. Então, um dia, a mãe contou-lhe uma famosa história judaica. Era sobre um rapaz que se apai-

22 xonou por uma linda princesa da cidade vizinha, a várias milhas de distância. Queria casar com ela, mas esta pôs a condição de que ele deveria tirar o coração da mãe e trazer-lho. Foi para casa e, enquanto a mãe dormia, tirou-lhe o coração. Satisfeito (mas, intimamente, só com

certa satisfação) regressou a correr pelos campos ao encontro da princesa, mas, a uma dada altura, tropeçou e caiu. O coração saltou-lhe da algibeira. Enquanto assim jazia, o coração falou e perguntou-lhe: «Magoaste-te, meu querido filho?» Por ser demasiado obediente à mãe interna, projectada de uma certa forma na princesa, ele tornou-se completamente escravo dessa mãe interna, a cujo amor omnipresente e imortal, nunca mais poderia escapar-se.

Recentemente, trouxeram-me uma criança que tinha sido diagnosticada de esquizofrénica em «retiro autístico». Este belo rapaz de oito anos entrou na minha sala com o pai e a mãe e usava um distintivo que dizia: «Não podemos comer pessoas». Fazia caretas e gesticulava e não podia (ou talvez, mais pertinentemente, não queria) sentar-se num lugar e tomar parte na discussão. Sua mãe, obviamente ocupada numa espécie de festim com excesso de comida, consumia a criança em termos de uma orientação de todo o seu «espírito» e «corpo», tendo em vista o seu «bem-estar» - protegendo-a de amigos grosseiros na escola, de um reitor excessivamente severo que, logo à primeira vista, se descobria ser «um malvado», mas ela fazia isto, porque o seu marido, que leccionava numa universidade a Oeste de Londres, fazia-a passar fome em termos para além do sexual. Ele fazia-a passar fome, porque a burocracia académica

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fazia-o passar fome quanto a qualquer espécie de relações reais com os outros. Esta interpôs-lhe a

primeira situação mundial de fome, que parece ser dificilmente reconhecida pelos directores universitários, mas contra a qual estão a levantar-se cada vez mais protestos por parte de estudantes radicais -,com efeito em

número crescente. Após algumas sessões de terapêuti-

23 ca, em que ela recebeu uma boa alimentação (discutindo tal como sorvia), tendeu a «comer» o filho cada vez menos. Este voltou para a escola e formou as primeiras amizades com outros rapazes. Um mês depois, vi-o novamente e, desta vez, não carregava nenhum dos estigmas psiquiátricos - desta vez, usava um distintivo, dizendo: «Come-me, sou delicioso». O «problema clinico» estava resolvido. Para além dele, só há política.

Um monge tibetano, encontrando-se em longo retiro solitário e meditativo, começou a alucinar uma aranha. Todos os dias a aranha aparecia, crescendo cada vez mais, até que, finalmente, atingiu o tamanho do próprio homem e exibia um aspecto muito ameaçador. Nesta altura, o monge pediu conselho ao seu guru e obteve a seguinte resposta: «Da próxima vez que a aranha aparecer, traça-lhe uma cruz na barriga e, em seguida, com a devida reflexão, pega numa faca e introdu-la no meio da cruz». No dia seguinte, o monge viu a aranha, traçou a cruz e, depois, reflectiu. Mesmo quando estava quase a introduzir a faca na barriga da aranha, olhou para baixo e, espantado, viu a marca desenhada no seu próprio umbigo. É evidente que, para distinguir entre o adversário interior e exterior, trata-se, literalmente, duma questão de vida ou morte.

Nas famílias há a questão do interior e exterior. Nas famílias há a questão de vida ou morte ou de voo ignominioso.

Uma manifestação muito óbvia da operação de estruturas familiares interiorizadas invisíveis ou insuficientemente visíveis encontra-se nas manifestações políticas, em que o grupo organizador carece de visão sobre esta espécie de realidade nelas próprias. Assim, encontramos manifestantes sendo feridos desnecessariamente, porque i inconscientemente projectam à política bocados de seus pais, no seu aspecto negativo, punitivo e poderoso. isto dá origem a u..-i ataque «da retaguarda», na medida em que eles não estão, apenas, a defender-se contra o ataque da polícia «lá fora», mas

24 também contra o ataque interno do polícia familiar nas suas cabeças. As pessoas mais vulneráveis a este duplo ataque são significativamente descobertas pela polícia e

magistrados, e é significativo que os manifestantes, que, respeitosamente, são punidos mais severamente, também, no tribunal, recebem as penas mais pesadas.O objectivo revolucionário é, inútil será dizer, esquecido.

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Considerando a paranóia como um estado mórbido de existência em qualquer sentido, acho que o único lugar onde encontramos este facto como problema social é nos espíritos de polícias, administradores da lei e

nos políticos de consenso dos países imperialistas. Estes infortunados indivíduos encarnam os super-egos projectados do resto de nós, até ao ponto em que as

suas interiorizações de pedaços auto-punitivos dos nos-

sos espíritos os despojam de qualquer espécie de existência humana pertencente a eles próprios. Todavia, qualquer compaixão que nós adquiramos em relação a

eles, não necessita estultificar a força eficaz da nossa ira contra a perseguição real inconscientemente incorporada por eles - não só contra o terceiro mundo, que está distribuído pela África, Ásia e América Latina, mas também o terceiro mundo desconhecido e auto-irreconhecível, que reside no coração do primeiro mundo. Mais tarde, definirei este terceiro mundo - por agora, basta dizer que é negro (qualquer que seja a cor literal de cada um de nós), «hippy», orientado para uma confiscação de poder local em fábricas, universidades, escolas. Está privado não de educação mas pela educação, infringe as leis e, até mais frequentemente, acaba com elas, sabe incendiar carros e fabricar bombas que, por vezes, dão resultado. Torna-se dominado, visto sofrer, por exemplo, de «omnipotência infantil», como um colega psiquiátrico sugeriu em relação aos Guardas Vermelhos que fizeram a Revolução Cultural.

No entanto, a questão emergente é se esta categoria dita «psicopatológica» pode agora iludir os diagnósticos

25 amadores da família e alguns dos seus colegas psiquiátricos, estando todos tão imbuídos da arqueo-ideologia assustada do cão de guarda burguês que, no terror, costuma fugir à realidade como um cãozinho de salão. Tendo iludido esta possibilidade invalidatória, os indivíduos assim estigmatizados podem encontrar uma utilização social revolucionária para as «aberrações», em vez de deixá-las afundar-se numa neurose particular, que confirma sempre «o Sistema» e com ele se entretém em jogos intermináveis e tristes.

Através de considerações desta espécie, começamos a sentir afirmar-se uma possibilidade ribombante e de som grave, talvez com um intento terrível, mas certamente aterrador: a possibilidade de uma des-estruturação da família com base numa realização completa da destrutividade dessa instituição. Uma des-estruturação que será tão radical, precisamente por causa da lucidez que, afinal de contas, indica o caminho até ela, que exige uma revolução em toda a sociedade. Por agora, temos de estabelecer a diferença entre formas e possibilidades pré-revolucionárias e post-revolucionárias. Em termos concretos, tudo o que podemos fazer, num contexto revolucionário, é deitar abaixo determinados prototipos isolados, que, num contexto post-revolucionário, podem ser desenvolvidos por uma escala social em massa.

Reunamos alguns dos factores que actuam dentro da família com consequências, muitas vezes, letais, mas sempre humanamente estultificantes. Mais tarde, debruçar-nos-emos sobre a possibilidade de invertê-las.

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Em primeiro lugar, temos de verificar a colagem de indivíduos baseados no sentido da sua própria imperfeição. Exemplificando este assunto com uma forma clássica, consideremos a mãe que se sente incompleta como pessoa (devido a uma complexidade de razões que, normalmente, inclui, em especial, a relação com a sua mãe e a repressão geral da eficiência social extra-familiar das mulheres). Portanto, em todo o sistema co-

26 lóide da família, ela cola, por assim dizer, o seu filho a si, para que ele se torne aquele pedacinho do seu eu, que ela sente que lhe falta (o pedacinho que a mãe «ensinou» que lhe faltava) e o pedacinho que, na realidade, falta (o factor da repressão social objectiva). O filho, mesmo que «consiga» sair de casa e casar-sr, nunca pode tornar-se, pessoalmente, mais completo do que ela, porque, durante os anos mais críticos da sua « formação», sentiu-se como um apêndice ao corpo da mãe (o seu pénis) e ao seu espírito, o seu pénis-espírito ou eficiência socialmente estabelecida. Na forma mais extrema desta simbiose, a sua única saída seria por uma série de actos, que o levariam a ser considerado esquizofrénico (cerca de um por cento da população é hospitalizada com esta designação numa dada altura da vida) e transferido para a réplica da família em que o hospital para doentes mentais está organizado. Provavelmente, a única maneira como se podem descolar as pessoas, coladas umas às outras na família e nas réplicas da família de instituições sociais, é utilizando o calor do amor. Aqui, a ironia é que o amor só se torna suficientemente quente para levar a cabo esta descolagem, se atravessar uma região - normalmente conhecida como ártica - a região de respeito total pela nossa própria autonomia e a de cada pessoa que conhecemos.

Em segundo lugar, a família é especialista mais em criar papéis para os seus membros do que em deitar abaixo as condições para cada um assumir livremente a sua identidade. Não me refiro à identidade no congelado sentido essencialista, mas sim a um sentido livremente mutável, surpreendente e altamente activo sobre quem somos. Caracteristicamente numa família, uma

criança é doutrinada com o desejo desejado de tornar-se num determinado tipo de filho ou filha (depois, marido, mulher, pai, mãe) com uma «liberdade» totalmente imposta e minuciosamente estabelecida de movimentar-se dentro dos estreitos interstícios de uma rígida grade de relações. Em vez da temida possibilidade de

27 agir a partir do centro de nós próprios, escolhido e auto-inventado, s@--nco auto-centrados num bom sentido, ensinam-nos a submeter-n@)s ou até a viver no mundo num modo excêntrico de existência. «Excêntrico» significa, aqui, estar normal ou localizado no caminho nor-

mal do centro de nós próprios, centro este que se torna uma região esquecida, da qual só as vozes dos sonhos se nos dirigem numa linguagem que igualmente esquecemos.

A maior parte da nossa utilização consciente da linguagem é equivalente a pouco mais do que um pálido fac-símile agudo das estranhas línguas graves e ressonantes dos nossos sonhos e modos pré-reflectivos de consciêi@cia «<Inconsciente»).

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Ser um indivíduo normal, excêntrico e bem-educado significa vivermos sempre, relativamente, para os outros, e e assim, que, na doutrinação familiar, se origina o sistema falsamente fendível, de maneira a actuarmos sempre, na vida futura, em gr,inos sociais, fazendo parte de um lado ou outro de uma dualidade. Isto é, essencialmente, conluio na recusa/ aceitação paramétrica da nossa liberdade. Recusamos determinadas possibilidades de nós próprios e depositamos estas possibilidades recusadas noutra pessoa que, por sua vez, deposita em nós as suas possibilidades de género oposto. Na família, existe a antítese embutida do educador (pais) e educando (filhos). Relegam-se todas as possibilidades dos filhos « educarei-n» os pais. O «dever» socialmente imposto dos pais suprime, definitivamente, qualquer alegria que possa destruir a divisão de papéis. Esta estrutura de obrigação é levada, em seguida, para qualquer outro sistema institucional em que, subsequentemente, penetra o indivíduo educado na família (como é evidente, incluo famílias adoptivas e orfanatos, que sequem o mesmo padrão). Uma das cenas mais tristes, que conheço, é quando uma criança, de seis ou sete anos, brinca à escola com secretárias e lições combinadas, sob o olhar dos pais e, precisamente, da mes-

28 ma maneira como acontece na escola primária. Como poderemos nós inverter esta abdicação e deixar de proibir que a criança ensine a sua pró pria sabedoria secreta, de que a fazemos esquecer, porque nos esquecemos, que já a esquecemos?

Em terceiro lugar, a família, na sua função de socializadora primária da criança, instila controles sociais no@@ filhos, que, obviamente, são mais do que a criança necessita para conseguir vencer a corrida de obstáculos estabelecida pelos agentes extra-familiares do estado burguês, quer estes sejam a polícia, directores universitários, psiquiatras, trabalhadores sociais ou a sua «própria» família, que, passivamente, recria o padrão familiar de seus pais - embora, hoje em. dia, os programas de televisão sejam um tanto diferentes, é certo. De facto, primeiramente, ensina-se à criança não como sobreviver em sociedade, mas como submeter-se-lhe. Rituais superficiais tais como a etiqueta, jogos organizados, operações de aprendizagem mecânicas na escola, substituem experiências profundas de criatividade espontânea, brincadeiras inventivas, fantasias e sonhos com liberdade de desenvolvimento. Estas formas de vida têm de ser sistematicamente recalcadas e esquecidas e substituídas pelos rituais superficiais. Na melhor das hipóteses, pode caber à terapêutica reavaliar a nossa experiência até ao ponto suficiente para registar devidamente os nossos sonhos e desenvolvê-los, subsequentemente, para além do ponto de estagnação do sonho, o qual, na maioria das pessoas, se atinge antes dos dez anos. Se isto acontecer numa escala bastante vasta, a terapêutica torna-se perigosa para o estado burguês e altamente subversiva, porque se indicam, radicalmente, novas formas de vida social.

Por agora, basta dizer que, todavia, qualquer criança, antes da doutrinação familiar passar um certo ponto e antes do início da doutrinação na escola primária, é, pelo menos germinalmente, um artista, um visionário e um revolucionário. Como poderemos recuperar este

29

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potencial perdido, como começaremos a recuar na marcha inexorável, desde os jogos verdadeiramente Iúdicos e alegres, que criam a sua disciplina autónoma, até ao Iúdicro comportamento social - que é normal e brincalhão?

Em quarto lugar - e sobre isto falaremos em capítulos subsequentes - existe um *sistema elaborado de tabus que a família instila em todas as crianças. Tal como o ensino de controles sociais mais em geral, isto atinge-se com a implantação da dúvida - a espada de Democles que cairá sobre a cabeça de todo aquele que preferir as suas próprias escolhas e as suas próprias experiências àquelas que lhe foram impostas pela família e a sociedade em geral. Se perdermos a cabeça o bastante para desobedecer abertamente a estes sistemas injunctivos, estamos, muito poeticamente, decapitados! O «complexo de castração», longe de ser mórbido, é uma necessidade social para a sociedade burguesa, e é quando estão em perigo de perdê-lo, que muitos indivíduos procuram, com perplexidade, a terapêutica --- ou uma nova forma de revolução.

O sistema de tabus, que a família ensina, estende-se bem para além dos óbvios tabus de incesto. Há uma restrição das modalidades sensoriais de comunicação entre os indivíduos ao audio-visual, com tabus muito marcantes contra os indivíduos que, na família, se tocam, cheiram ou provam uns aos outros. As crianças podem brincar com os pais, mas, à volta das zonas erógenas de ambos os lados, traçam-se linhas de demarcação muito firmes. Tem de haver uma obliquidade e formalismo cuidadosamente medidos, na maneira como, por assim dizer, os filhos em desenvolvimento têm de beijar as mães. Nos espíritos dos membros da família, abraços e apertos transsexuais precipitam-se rapidamente numa zona de sexualidade «perigosa». Há, sobretudo, o tabu da ternura, a que lan Suttie (em Origens do Amor e ódio) se referiu tão bem. Nas famílias pode, com certeza, sentir-se ternura, mas não expressá-la, a menos que

30 seja formalizada quase fora da existência. Isto faz-nos lembrar o rapaz, citado por Grace Stuart *, que, ao ver o seu pai no caixão, inclinou-se sobre ele e beijou-lhe as sobrancelhas, dizendo: «Torna, pai, eu nunca ousaria fazer isto, enquanto fosses vivo!» Talvez se nos apercebêssemos de quão mortos estão os vivos, pudéssemos estar preparados, levados pelo desespero, para arriscarmo-nos.

Ao longo deste capítulo, utilizei necessariamente uma linguagem, que acho arcaica, essencialmente reaccionária e certamente discrepante com a minha maneira de pensar. «Palavras de família» tais como mãe, pai, filho (no sentido de «seu» filho), super-ego. A conotação de «mãe» envolve um número de funções biológicas, funções de protector primário, um papel socialmente super-definido, e uma determinada «realidade» legal. De facto, a função maternal pode ser difundida por outras pessoas além da mãe - o pai, irmãos e, principalmente, outras pessoas exteriores à família biologicamente agrupada.

Já não precisamos de mãe nem de pai. Apenas necessitamos de cuidados maternais e paternais.

Parece-me que não tem sentido reduzir relações sociais complexas, mas inteligíveis, a factos biológicos puramente contingentes e circunstanciais, que são apenas factos, factos que precedem actos, que iniciam uma verdadeira sociabilidade. Faz-me lembrar uma sessão conjunta com mãe e filha. A certa altura, a mãe disse, com grande tristeza e

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sem um pouco de coragem, que tinha começado a sentir uma sensação tremenda e decisiva de perda e inveja, ao verificar que o terapeuta era, agora, a mãe da sua filha muito mais do que ela. Nunca pode ser e creio que nunca deveria ser tão claro o limite de relação de «transferência» e relação «real». É uma questão de viver uma ambiguidade necessária com um

* Grace Stijart, Narciso, um estudo psicológico sobre o amor próprio, George Alien & Unwin; Londres, 1956.

31 sentido indispensável de diferença entre a imagem projectada (alterável) e a percepção inalterável do outro.

De qualquer modo, com esta resmungadela contra a linguagem que ternos de utilizar, não quero sugerir, agora, uma nova linguagem, mas, simplesmente, sublinhar a fatuidade e perigo do feitiço da consanguinidade.

O sangue é mais espesso que a água, só no sentido de ser a corrente vitalizadora de urna determinada estupidez social.

A família, por falta de uma capacidade de criar idiotas santos, torna-se morónica.

32 A TOPOGRAFIA DO AMOR

Ao falar sobre a família e o casamento, penso que temos de utilizar artifícios de linguagem, até que acabemos por originar, em nós, uma certa vertigem, através da qual as palavras, que falsamente se supõe transmitirem conhecimentos, percam o seu significado aparente, até tornar possível um discurso mais real - implicando, por fim, a invenção de uma nova linguagem, uma linguagem que não tenha, apenas, de ser falada e escrita. * Creio que, no futuro, nunca mais se voltarão a escrever livros, tar-se-ão livros, literalizando, assim, a metáfora existente de que escrever é um acto.

Toda a linguagem verbal é imposição de um modo que a comunicação não-verbal não é. O peso do signifi-

Consideremos a diferença, no efeito histórico, do Torah escrito e oral. O primeiro tornou-se um ensino humanamente restrito, mas socialmente coerente; o segundo, transmitido por situações de confronto face-a-face, em que o mais pequeno gesto e entoação faziam parte de uma mensagem, tornou-se uma perigosa fonte de alegria e liberação, que tinha de ser sempre reduzida à cápsula verbal inicial.

33 cado suposto das palavras é considerável mente maior do que no caso de, digamos, modos de expressão paralinguísticos e cinésicos, em que o ritual se situa, apenas, à altura de superfície e a suposição é dupla: em primeiro lugar, proveniente da conotação

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anteriormente acumulada de cada palavra e, em segundo lugar, proveniente do presente desdobramento sintático de cada palavra efectuado pelo escritor ou orador.

Portanto, enganamos as palavras, porque, se não o fizermos, seremos enganados por elas. Como é o caso dos sistemas institucionalizados, temos de contra-jogar o jogo do sistema; primeiro, iludi-lo em termos pessoais, segundo, ultrapassá-lo em termos históricos. Agora, no que diz respeito a falar sobre a topografia do amor - o que quer dizer, onde se encontra, hoje, o amor, se em alguma parte - tomarei, como caso paradigmático, a palavra «casamento».

Além dos óbvios sentidos legais e socio-contratuais da palavra, casamento pode significar qualquer espécie de conjunção mais ou menos durável e socialmente objectivada entre entidades pessoais. Se reconhecermos que cada um de nós está impregnado de um mundo dos outros, que não são bem eles nem, ao mesmo tempo, bem nós, poderemos encarar a possibilidade de alguma combinação marital dentro de uma pessoa. Se voltarmos atrás à tradição de investigação fenomenológica da experiência humana, devemos relembrar a definição de intencionalidade dada no decorrer da obra de Husserl e Sartre, em especial. Qualquer dado primário de experiência, surgindo como um movimento de pensamento, de sensação ou de esforço, é de alguma coisa, em direcção a algum objecto, que não só constitui, como também é constituído pelo movimento inicial na consciência como entidade unitária e auto-unida no mundo.

Neste ponto, temos de desviar-nos, porque não podemos falar de casamento, sem falar de amor e não

34 podemos falar de amor, sem falar de instinto. Provavelmente, em literatura psicanalítica, a entidade verbal mais duvidosa e obscura é o «instinto» ou, pior ainda, a «condução pelo instinto». Até agora, a utilização deste termo tem sido pouco mais do que um auxílio ilusório para a escrita teórica, algo que, infelizmente, tornou possível a escrita, quando um acto histórico de espera e silêncio poderia ter sido mais apropriado. Em todo o campo da sua utilização, ele é a inrupção violenta de pura abstracção em quase toda a experiência concreta de necessidade e desejo. Eu sugeriria que a palavra «instinto» pudesse desaparecer numa unidade que tem sido falsamente dividida, embora, da maneira como ternos de falar dela agora, só passamos considerar, como é evidente, a divisão.

Se falamos de um impulso instintivo para ter uma boa alimentação, estamos a falar de algo que vem do nada. Pode vir algo do nada, se o nada é um nada particular. Neste caso, a particularidade do nada é a linha da sua circunscrição pelo mundo como uma ausência, uma falta, o que não está lá. O mundo inclui, aqui, determinados objectos comestíveis; a distância e obstáculos entre nós e os objectos, e o nosso corpo como objecto do mundo, que pode ser observado por outros indivíduos;

-,” contracções de fome no estômago; as alterações neuroquímicas do estado de fome, que se podem registar; e assim por diante. É um pouco como fazer escorregar o dedo numa mesa e, depois, deixá-lo cair no nada na extremidade. A extremidade não é nem a mesa nem é o «nada», em que o dedo tomba, mas tanto a mesa, que é algo, como o

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nada, que não é, definem a extremidade como não-existente a não ser como não-existência específica. Se pudermos alargar a nossa imaginação metafísica, até ao ponto de des-substancializar o dedo, para que ele se torne um não-dedo, ficamos mais próximos daquilo que «& um instinto.

Mas, em seguida, temos de ir mais além e, penso que, ir além nesta direcção: não há, sustentaria eu, ne-

35 nhuma distinção logicamente justificável e, em experiência, com certeza nenhuma real (até que ciecemos a ser analíticos e fragmentários em relação à nossa experiência) entre o «impulso instintivo» e o seu objectivo. É claro que, como já disse, a linguagem que temos de utilizar para este fim trai a realização; mas digamos só isto: o impulso instintivo que nos transporta na direcção de uma boa alimentação não é nada menos do que a boa alimentação em si no seu pleno significado. Como teremos ocasião de ver, isto é verdade, contudo, em termos de uma falsa antítese, «não s<5-..) do jantar «externo» no nosso prato, «mas também,) do bom peito «interno» (que, certamente, é uma maneira conderisada de exprimir uma miríade de imagens internas, realizando-se apetitosamente). A expressão «satisfação do instinto» significa, apenas, a consciência coalescente do objecto interior e exterior e isto, por sua vez, significa uma dissolução decisiva do limite de experiência do eu.

O instinto insatisfeito é a experiência de estar em equilíbrio no limite do eu, com receio do carácter precário desta posição, mas, ainda mais, incapazes de renunciar à segurança duma consciência egóica, que bem sentíamos.

Falando de instinto, escolhi deliberadamente uma situação oral, primeiro porque uma situação de instinto sexual genital podia, ilusoriamente, parecer demasiado simples. É banal, agora, falar da experiência mortal de orgasmo e perda de auto-limites naquele «estado». Penso que a ameaça da insatisfação do instinto é mais impressionante no caso oral. Esta ameaça assume as proporções que alcança, pois é, evidentemente, um princípio fundamental ontológico, A satisfação do instinto significa, em todos os casos, a anulação dos auto-limites e torna-se, assim, equivalente à loucura, se não loucura «mesmo». Se, depois, desejarmos encontrar o nível mais básico da compreensão da repressão em sociedade, temos de considerá-la como um pânico, reforçado colectivamente e formalizado institucional mente,

36 perante ficarmos loucos, perante a invasão do exterior pelo interior e do interior pelo exterior, perante a perda da ilusão do eu.

O Direito é o Terror posto em palavras. Devido ao terror, tem-se de destituir as palavras de qualquer referência pessoal.

Devido ao terror, alguém que não é ninguém julga ninguém que podia ser alguém.

Devido à natureza abstracta do julgamento, o crime torna-se abstracto. Para que os tribunais e prisões e todas as nossas instituições possam continuar. Assim, tudo o que

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fica é sofrimento - em ninguém, por nada. A deslocatabilização do sofrimento é aquilo de que sofremos. E isto é verdade sobre todos nós. Todos os juízes e todas as suas vítimas. O verdadeiro sofrimento da pessoa castigada é um facto arbitrário e gratuito lançado ao mundo para emprestar falsa substancialidade a um sistema etérico.

O estado burguês é um calmante com efeitos secundários letais.

A compreensão sócio-histórica da repressão tem sido impressionantemente executada; o que agora temos de fazer é reflectir e agir a partir de uma realização da sua infra-estrutura ontológica. *

Continuando a fazer referência ao caso oral, consideremos fenómenos, tais como o bom peito alucinado da criança e objectos de transição. Normalmente, pensa-se que estes significam uma espécie de movimento

* Não estou a discutir a distinção marxista clássica entre a infra-estrutura como materialidade, no sentido de meio de produção e relações de produção interactuando e i`nterpenetrando com a supra-estrutura, que é consciência, e seus produtos que @reflectem> a infra-estrutura. Por infra-estrutura ontológica, entendo a fonte de interacção e interpenetração, a pré-condição não-analisável mas locatável da análise.

37 de má-vontade e meio-protestante contra a «realidade». É evidente que (talvez com o «auxílio analítico») passemos além desta situação e ela juntar-se-á ao resto da nossa bagagem inconsciente devidamente decidida no depósito de bagagens do nosso espírito. Mas que fazer se o protesto se torna menos indiferente e deixamos de equacionar a resolução de conflito com ajustamento social adequado? Que fazer se o bom peito alucinado é uma tentativa para manter uma identidade transpessoal do interior e exterior, o único momento bem sucedido da loucura que a maioria de nós possui e de que **temw, de perder qualquer inclícío muito rapidamente? Que fazer se o canto do trapo que a menina chucha é mais real do que o peito da mãe (que «é» o peito que elajá não chucha) ou o bom peito interno, que ela projecta no trapo? Não seremos capazes de imaginar uma situação, em que o trapo esteja em primeiro lugar, tendo em conta o que ele, na verdade, é, nem subjectivo nem objectivo, isto é, o bom peito interior-e-exterior? Por outras palavras, a procura da menina pelo canto certo de trapo não está na menina, nem entre ela e o trapo, nem em qualquer outra parte do mundo, mas no próprio trapo. O trapo, em si, constitui, para a criança, um substituto do peito, mas este facto é uma falsa hermenêutica, na medida em que é uma explicação não-recíproca que, primeiramente, conforta só o explicador (embora, evidentemente, como acontece com a psicoterapia muito dificilmente interpretativa, a criança obtenha um certo conforto ao sentir que, pelo menos, o explicador explica qualquer coisa a si próprio). Neste sentido, o mundo está cheio de objectos milagrosos, que precedem o indivíduo que testemunha ou faz milagres. O homem, que fala de magia, é supérfluo.*/*O único objectivo em ter nascido é descobrir que «nozs;, já

O único objuctivo em morrer é experimentar este facto do nosso nascimento.

Esta questão é a questão geométrica.

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38 A geometria é tarefa difícil. Apos estas considerações sobre a relação do interior para o exterior e de ambas para o que não é nem um nem outro, voltemos ao amor e ao casamento - se podermos manter, por uns momentos, esta conjunção específica de termos.

De algum lugar no mundo, parcialmente suposto e parcialmente estabelecido, temos de olhar através da nossa família para o mundo convidativo, mas um tanto sombrio, de outras pessoas exteriores a ela. Temos de olhar através do casamento dos nossos pais e da nossa própria condição de sermos casados, de uma certa maneira, com o seu casamento, e do nosso próprio casamento com cada um dos nossos pais, sucessivamente. Também através do nosso casamento com cada um dos nossos irmãos e cada uma das «outras pessoas importantes» (e do seu casamento com nós próprios, uma vez que o casamento pode ser totalmente não-recíproco - podemos sentir-nos casados com uma pessoa que não se sente casada connosco). Então, ãntes de chegarmos a qualquer relação marital com outras pessoas do mundo exterior à família, temos de passar por uma grande quantidade de processos de divórcio com

cada uma destas pessoas a um grau mais ou menos parcial ou total. Teremos, talvez, de acabar por divorciar-nos da nossa paixão pelo seu casamento e assim sucessivamente com os nossos irmãos e «outras pessoas importantes».

Depois de termos passado por esta posição mais ou menos com êxito, ficamos reduzidos a nós próprios, prontos a enfrentar mais uma vez a possibilidade de casamento, agora, contudo, com alguém exterior ao sistema, mas, sem dúvida, dentro do seu próprio sistema comparável, se não idêntico, ao primeiro. Finalmente, para evitar repetições contínuas daquilo por que já passámos, mas utilizando outras pessoas diferentes (isto é, nã o originais) em vez das outras pessoas originais (isto é, outras pessoas da família ainda menos originais),

39 podemos decidir-nos por um regresso a nós mesmos. Mais tarde poderemos casar com nós próprios ou divorciar-nos de nós mesmos, e talvez divórcio e afastamento de nós próprios não sejam bem a mesma coisa. Assim, voltamos atrás e atingimos um ponto de, ou odiarmo-nos o bastante para gerar ainda outra repetição do antigo sistema de espíritos e vidas meio- real izados, ou amarmo-nos o bastante através de um divórcio em série das relações com todas as outras pessoas meio-casadas e meio-divorciadas no nosso espírito, de maneira a nos encontrarmos totalmente e, em seguida, decidir o quu queremos fazer connosco, se alguma coisa, em relação a todas estas possibilidades de relações.

Podemos alcançar um ponto de «narcisismo» suficiente para reavaliar aquela categoria «psicopatológica» em direcção a uma realização de que nunca poderemos amar outra pessoa antes de nos amarmos o suficiente a nós próprios - em todos os níveis, incluindo o nível de masturbaçã o adequada (isto é, completamente orgásmica) - ou seja, pelo menos uma vez, masturbarmo-nos com alegria.

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Sem uma base suficiente segura no amor próprio, corremos o risco de adquirir, inevitável e repetidamente, nas nossas relações com os outros, grande quantidade de culpa implantada. No começo deste século, em Inglaterra, os hospitais para doentes mentais deram a conhecer ao pessoal, num grande cartaz, uma lista das causas da doença mental. Em relevo, no cimo desta lista, encontrava-se a masturbação. O progresso da psiquiatria liberal fez esta atribuição parecer ridícula, mas isto foi só para substituir mentira por mentira. É evidente que a masturbação conduz os indivíduos à loucura, se começarmos a considerá-la uma forma de sexualidade que nega a família, para cuja constituição nos temos de preparar, se a considerarmos um--i negação da perda socialmente des,@,@ada do eu e náo-eu - mas, sobretudo, se nos masturbarmos devidamente, quer dizer, no sentido de uma exploração ilimitada do nosso corpo, incluin-

40 do todas as formas de afastamento anti-social, que podem ser consequência desta anti-episterriologia do conhecimento carnal do eu, que se desloca em direcção à outra pessoa, assim que está preparado.

Penso que, agora, vale a pena fazer a distinção entre relação com amor e relação de amor, embora possamos desejar sempre uma fusão de ambas. Uma relação com anior é uma relação, em que cada pessoa torna possível à outra amarem-se o suficiente para pré-condicionar um desenvolvimento da relação. É tudo uma questão de como uma pessoa não para de fazer a outra ou outro sentir-se bem e confortávei. Estas expressõ es são banais até ao ponto de idiotia emocional, mas talvez tenhamos de tornar-nos idiotas emocionais com respeito total por esta necessidade, primeiro em nós e depois, nos outros. A minha experiência mostra que ninguém pode realizar um bom trabalho num grupo, antes de poder catalisar pré-condicional mente a possibilidade de ser agradável e amável para cada um dos outros. Isto leva sempre tempo e dá trabalho. Mas, então, se quiser~ mos amar, temos talvez de curar a desilusão de amor à custa de transpirar.

Tentemos traduzir esta situação em termos ligeiramente diferentes.

Porque não arriscarnio-nos e «jogar ao sistema», neste sentido, corri um pouco de seriedade. Falemos sobre casamento como algo real, uma conjunção entre pessoas ou entre pessoas e outras do sexo oposto. Neste sentido, somos internamente polígamos a um nível bastante notável. O que, significativamente, pomos de parte é o casamento secreto e em segredo com nós próprios. Portanto, a constelação interna parece-se um tanto com o que se segue:

41 Eu (o inciassificável para ser classificado)

Bisavós e avós, mãe, pai, irmãos, irmãs, filhos, filhas, bisnetos, bisnetas, netos e netas, e todas as extensões de primos, tias e tios do sistema.

O “Mundo Exterior” As ---Outras Pessoas” que estão enredadas no mesmo padrão.

Eu - - - - - - - - - - - - - - -- Eu

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Eis onde entrámos, mas não pudemos sair.

Neste- caso, o estado normal das coisas é que o Eu tacteia, hesitante, através do mundo familiar tanto dentro como fora do seu espírito e, depois, tropeça no

mundo exterior à família. Ele acha que o mundo exterior à família tenta igualar-se tanto quanto pode ao mundo familiar, que ele conheceu anteriormente, tal como o mundo familiar tentou igualar-se tanto quanto pôde ao

mundo exterior. Parece não haver nenhuma diferença importante entre os dois, a menos que o Eu, o indivíduo,

‘ 42 possa inventar tal diferença. Se o indivíduo se aperceber deste facto, que, na verdade, a essência de ser uma pessoa maçadora não é ter ido, em imaginação pelo menos, além dos horizontes limitados da família e repetir ou

conluiar com repetições deste sistema restrito, fora da família; em resumo, que ser uma pessoa maçadora é ser uma pessoa da família, uma pessoa que encontra a primazia da sua experiência mais no reflexo do espelho do que na imagem reflectida. Então, o indivíduo pode voltar ao ponto de partida e tentar encontrar-se, fazer a corte a si mesmo e casar consigo próprio.

É evidente que, quando o indivíduo regressa ao Eu, a sua linha de visão é deformada por refracções em

série através dos outros primeiro fora e depois dentro da família, e sempre através dos outros, tanto dentro como fora do seu espírito (um sentido de diferença, se não uma consciência definitiva, existe sempre ali).

Finalmente, contudo, uma vez este projecto realizado, o Eu encontra-se num mundo interior deserto - todos os outros murcharam, devido aos efeitos irradiadores do seu espírito e ele vagueia, solitário, no baldio, encontrando alimento na pedra que chupa e na cinza ingerida pelos poros da pele.

Depois, se quiser um oásis, formará um entre os montículos da sua areia com as lágrimas que segrega. A seguir, pode convidar outra pessoa para vir com ele, por uma questão de subsistência e para ampará-lo.

Mas ele permanecerá sempre no seu deserto, porque esta é a sua liberdade.

Se algum dia não precisar mais dessa liberdade, então esta será também a sua liberdade.

Mas, em qualquer caso, o deserto permanece. Se tentarmos olhar para a expressão do amor como facto social, a nossa reacção social torna-se dominante em todo o campo de respostas: a reacção do ódio. A aparência do amor é subversiva a qualquer disposição social boa da nossa vida. Muito mais do que ser estatisticamente anormal, o amor é perigoso, pode até espa-

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43 lhar-se pelo escudo asséptico, que cada um de nós obriga'os outros a erguer à nossa volta. Devido ao condicionamento social, o que necessitamos e esperamos não é amor, mas segurança. A segurança significa a afirmação total e repetidamente reforçada da família. Um homem casa com uma mulher que nunca deixará e porque ela sabe que ele nunca a deixará, nunca há-de deixá-lo. Ela aceita a condicionalidade da sua situação, por que nesta está edificado um suborno social, no sentido em que o

marido só pode optar fora do sistemi condicional, se

ele, como iniciador aparente de toda a história, aceitar a culpa, que lhe pode ser letal ou quase letal. Este pobre homem sofre, então, até às últimas moedas de centavo, pelo menos, e olha através da megalomania em que foi tão bem instruído, vendo o seu próprio salário em termos da capacidade de se sentir indefinidamente culpado e dilacera-se com esta culpa alheia.

Uma vez, um homem, já próximo dos qua!-enta anos, casado, com quatro filhos, contou-i-- este história, Uma noite, em que não tinha tomado álcou! nem qualquer outra droga, acordou às três horas da manhã. Estava a dormir sem sonhar até que, de repente, acordou para uma compreensão assustadora daquilo que pensou ser o significado de toda a sua vida. A princípio, parecia muito suave, uma obstrução gradual do sangue nos pequenos canais nas extremidades do corpo. Começou debaixo das unhas das r-nãos e dos pés, nos lóbulos das orelhas e na ponta do nariz. Depois, espalhou-se, como um coágulo ominoso, pelos canais sanguíneos maiores do corpo. Sentia, a cada momento, que podia suspender a experiência, desaparecendo - saltando das pontas dos dedos, caindo da ponta do nariz. Os capilares do cérebro encheram-se de sangue coagulado e os neurónios corticais morreram um a um - apenas permaneceram alguns para manter o coração consciente. Depois, as artérias coronárias obstruíram-se, até que o coração parou, morreu e, a seguir, irrompeu numa enorme ejaculação galáctica por todo o cosmos. Nesse

44 momento de disseminação universal, ele sentiu, como nunca antes, um desaparecimento da mais pequena cólera e ressentimento com os seus iguais. Foi tudo amor puro e, além de amor, compaixão, até contar a experiência à mulher na manhã seguinte. Passara, por fim, por uma experiência de morte e renascimento, ficando a saber o significado da compaixão; não havia necessidade de haver mais problemas entre eles que, de facto, interessassem.

Mas como ela o odiava por isto! E como tinha razão.O colectivo social existe, afinal de contas, e enquanto necessitarmos que ele exista como colectivo, precisaremos de famílias que definam o amor como subversivo à segurança e à normalidade. E também precisamos de ser desafiados.

Neste caso, a tragédia não era nada menos do que o

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destino de ser casado, de ter a sua relação definida não de uma maneira interior, que possibilitaria a revelação pessoal indiscreta, mas do exterior de urn modo que proscreve a expressão da verdade - pois de contrário «tudo se desr-nembra».

Simplesmente, mesmo se isso acontecer, nunca acontece.

De um modo quase ingénuo, parece-me sempre estranho e irónico, que as pessoas não se atrevam a dizer a verdade sobre elas, por muito deformada que esteja a sua perspectiva a este respeito, quanto à relação de casamento em qualquer sentido deste último termo, quer confirmado legalmente ou baseado, mais lealmente, na combinação e compreensão de duas pessoas, que querem amar-se com ou sem o aparecimento, no lar, de outras pessoas, tais como crianças. Contudo, as pessoas preferirão dirigir-se à complexa figura profundamente esterotipada, a que se chama psicoterapeuta, pago por hora - que tem toda a natureza da prostituta (sendo todas as coisas para qualquer indivíduo), muitas vezes, sem a honestidade de estar a realizar a sua vocação, mas a quem se pode confiar as nossas experiên-

45 @J-4s, t@@iujor@4 -)ao demasiado optimisnie, a nível de moi-te e nn-.@scIm@-nto.

CoIm i espe;,o a «prob!emas» tais como narcisismo e homossexualidade, parece-me que a teoria psicanalítica está sobrecarregada de dúvidas puritanas sobre os referidos estados.

Penso que podemos reduzir esta situação complexa a uma afirmação muito simples, que já não era preciso ser indicada, mas afirmada directamente.

Não podemos pensar jamais em amar outra pessoa, antes de nos amarmos o suficiente. Amor a nós próprios significa, neste caso, uma compreensão total do nosso corpo - não só das suas pregas e dobras exteriores, corpulência, escuridão e zonas claras - mas tarribém da experiência completa do interior do nosso corpo - temos de saber as flutuações da musculatura do íntestino, o som das gotas vindas dos ureteres na bexiga, o sangue em cada ventrículo do coração. Então, @om uma

quase-objectividade, tendo estudado o nosso corpo como um fisiólogo, podemos deitar abaixo a sua compartimentalização transfori-nando-a num gesto que significa amor--próprio. Temos de conseguir urna satisfação completa no sentido eréctil-ejaculatório total do clitóris ou pênis.

Antes de podermos amar outra pessoa, temos de nos amar o suficiente. Antes de podermos aipar outro ser do sexo oposto, temos de ser capazes de amar «o suficiente» outro ser do mesmo sexo. Se manifestamos publicamente a nossa homossexualidade ou i-ião, é indiferente - mas é certo que temos de reconhecer as suas inrupções nas fantasias* e sonhos - mesmo nas fantasias que um homem tem com a mulher que ama, mas ainda mais por causa do recalcamento dominante da sexualidade total da mulher, entre a mulher e o homem que ela ama.

* Fantasias, neste caso, significam meditações conscientes e não fantasia no sentido de <4antasia inconsciente% isto é, a projecção do «interiorizado».

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46 De facto, o narcisismo e a homossexualidade não são mais doencas ou estados fixos de desenvolvimento do que o são fénómenos tais como deixar um emprego fixo, suficiente para sustentar a família ou, em geral, ser um pilar da sociedade.

O verdadeiro problema para o terapeuta é quando os indivíduos se afundam e afogam no último estado.

O verdadeiro problema para o terapeuta é ser um terapeuta.

O verdadeiro problema é ser.

47 AS DUAS FACES DA REVOLUÇÃO

An*es de falar sObre novos tipos de organizações de vida entre indivíduos, que possam evitar as restrições e

violência subtil da família, temos, primeiro, de esclarecer um ponto. No caso de países capitalistas do primeiro mundo, só podemos falar de comunas como situações prototípicas, que não se podem estender livremente e

florescer num contexto pré-revolucionário. A psicologia Je apropriação, de tratar as outras pessoas, até um grau maior ou menor, como mercadorias que podemos possuir ou trocar, é tão objectivamente predominante que os casos da sua transcendência devem ser raros e isolados. Mesmo nesses casos raros, a transcendência é, normalmente, mais aparente que real, na medida em que parece haver um recurso inevitável ao recalcamento (tentar não pensar), repressão e recusa (as manobras «inconscientes» e pré-ref lectivas) e as várias estratégias de retirada. Por estes vários meios, podemos fugir ao espectáculo de possuirmos e «utilizarmos» os outros -

normalmente, sob a forma de coriluio, claro, uma vez que as pessoas estão tão condicionadas a ser utilizadas e exploradas nas suas relações.

49 Neste contexto do primeiro mundo, o que temos a fazer é acumular experiência na s@tijação pré-revolucionária, que só pode atingir- p1-'@na expressão social após a revolução - a qual ache ,,,,ue tem de ser estrategicamente reconsiderada no prinieiro mundo, e reconsiderada precisamente no âmbito da experiência micro-política, isto é, a experiôncia adquirida Prn grupos, que variam desde, o encontrn enire do;'s indivíduos a qualquer encontro entre indivídijos, que não é tão grande que os indivíduos não possam adquirir uma interiorízação completa de cada um, que conduza a um

sentido distinto de reconheci men m e de ser reconhecido, qualquer que seja a confusão que permaneça nos seus espíritos sobre a identidade « exacta» decada um.

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Neste capítulo referir-me-ei a certos tipos de disposição em comuna que se tentaram no primeiro mundo, mas não considerarei tipos de disposição anti-familiar que se realizaram em Cuba e ria China, especialmente. Os paralelos entre os países do primeiro rnundo e países revolucionários do terceiro mundo são, deveras, muito poucos, até que definamos, no futuro, o significado de um terceiro mundo escondido no coração do primeiro mundo. Antes de prosseguir, contudo, quero definir comuna, como um tipo de alternativa potencial da organização micro-social do primeiro mundo: uma comuna é uma estrutura micro-social que atinge uma dialéctica viável entre a solidão e o esta r-co m-os-outros; implica, ou uma residência comum para os membros ou, pelo menos, uma área comum de trabalho e experiencia, a volta da qual se podem espalhar perifericamente as situações residenciais; significa que as relações amorosas se difundem entre os membros da rede de comuna muito mais do que acontece no sistema familiar, e isto significa, evidentemente, que as relações sexuais não se restringem a uryia disposição socialmente aprovada de duas pessoas, homem e mulher; sobretudo, porque este facto choca em cheio com a repressão, significa que as crianças deviam ter acesso comple-

50 tamente livre aos adultos, além dos seus pais biológicos. Estes elementos de definição indicam uma tomada deposição ideológica, que se pode enunciar da seguinte maneira: FAZER AMOR É BOM EM SI E QUANTO MAIS ISSO ACONTECER DE QUALQUER MODO POSSí VEL OU CONCEBíVEL ENTRE TANTAS PESSOAS QUANTO POSSíVEL E O MAIOR NUMERO DE VEZES POSSIVEL, TANTO MELHOR.

Mas devo sair desta posição por um instante e registar algumas cláusulas. Penso que a condição mínima para que uma relação entre pessoas seja uma relação de amor é a experiência, após muito trabalho nas relações, da ternura, que é o resíduo positivo do sentimento, depois de se ter dissolvido bastante frequentemente e bastante profundamente toda a negatividade, ressentimento, hostilidade, inveja e ciúme. Se se comprimir consideravelmente a nossa definição de amor, este sentimento levar-nos-á a confiar. Este facto significa o fim dos segredos, dos actos de relação efectuados por detrás das costas de alguém, embora a intimidade, antitética à reserva moldada pela família, seja sempre uma possibilidade. Mas não caiamos nalguma espécie de mito eufórico sobre a franqueza a este ponto. Franqueza, no sentido que estou a sugerir, significa muito traba-

lo difícil. O que estou a sugerir significa inevitavelmen~ te uma quantidade considerável de sofrimento, devido às consequências de erros emocionais que cometemos nas nossas relações, e uma clarificação disciplinada e até

impiedosa de bloqueios e coisas coercíveis que actuam dentro do nosso espírito. Franqueza significa dor, e, apesar da amabilidade atenciosa, ajuda e clarificação que os outros nos possam dispensar, a dor, fundamentalmente, deve ser sofrida a sós; e é desta posição de solidão que deve provir a clarificação elementar. Que não haja o menor erro nisso, sentirão sempre outras pessoas, mesmo sem se aperceberem do que sentem, quando alguém do grupo tenha passado por esta espécie de auto-confrontaçâo. Seria fátuo falar de comunas,

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51 sem a presença no grupo, em primeiro lugar, de pelo menos uma pessoa que tenha tratado da sua vida bas-tante rigorosamente nestes termos.

Isto muito naturalmente conduz a uma consideração de ciúme, o ponto máximo em que as disposições em comuna tendem a sucumbir. O ciúme, à maneira clássica, parece ser tríade na sua estrutura. A pessoa A tem ciúmes da pessoa C, que rn@,n@ém uma relação com a pessoa B, a qual, aos olhos da pessoa A, é a «sua» pessoa, Ora, não creio que, neste caso, a estrutura tríade seja o aspecto mais perturbador & sítuação de ciúme. Claro que sabemos que urna grande quantidade do temor e raiva subsequentes na pessoa A deriva dos seus desejos homossexuais recalcados, dirigidos neste caso à pessoa C, de modo que, quando a pessoa C penetrar genitalmente em B, isto significa para a pessoa A um rapto anal desejado e terrível (mostrando um exemplo heterossexual claro, tendo como força activa o ciúme masculino). Na comuna, este aspecto seria tratado idealmente por A - e de modo idêntico por C e B - tornando-se conscientes da sua homossexualidade recalcada, para que, por exemplo, A e C pudessem ter entre eles uma boa relação ou, pelo menos, facilmente visível (este facto poderia envolver uma relação sexual evidente, mas se a sexualidade está explícita ou implicitamente reconhecida, é simplesmente uma questão indiferente de escolha e predilecção - a homossexualidade, neste caso, ou qualquer forma de se-xualidade, em qualquer caso, deveria ser uma possibilidade acessível a todos e nunca um dever!).

Há, contudo, um nível mais indefinível da compreensão do ciúme que me parece ser, quanto muito, mais monadista que tríade. Um dos piores destinos de uma relação de duas pessoas - e isto é o que, na verdade, acontece em muitas relações conjugais na maior parte da sua história - é quando as duas pessoas passam a ter uma relação simbiótica entre elas, de maneira a que cada uma se torna o parasita da outra, ficando

,52 cada uma escondida no interior do espírito da outra. Procuramos a pessoa A e encontramo-la no espírito da pessoa B, mas a pessoa B está dentro do espírito da pessoa A, e assim por diante através de interiorizações em série por cada uma das interiorizações da outra sobre as suas interiorizações da outra, etc. Deste modo, tanto A como B tornam-se invisíveis com toda a imperturbabilidade e segurança da invisibilidade social. Isto constitui, na verdade, um casamento feliz, simplesmente o preço é um desaparecimento do ser humano de cada indivíduo. Assim, as pessoas A e B desaparecem numa entidade pessoal composta A-B. Em seguida, aparece uma pessoa C, mas C é apenas um terceiro aparente, uma vez que A e B são, realmente, mais uma do que duas pessoas. Nesta situação, C, uma pessoa ilusória, tem uma «relação» com B, que, como B, é evidentemente também ilusória. «A» fica então perturbado com a relação de «C» com «B», mas o «ciúme», neste caso, significa que A se vê a si próprio com os olhos de C (o que quer dizer que C é, de facto, A olhando para A: a violência, pela qual A e B eliminaram as suas realidades separadas estende-se a C, que deixa de ser ele, quem quer que ele fosse, para se tornar, inconscientemente, uma personificação auto-reflectida de A até agora recusada). Aqui, a questão é a súbita ruptura da pseudo-unidade simbiótica A-13, de maneira que A tem de se ver pela primeira vez no mundo como uma pessoa isolada, encontrando-se só para enfrentar o futuro, tendo de fazer as suas próprias escolhas a partir da nova posição de liberdade indesejada. Agora ele será

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responsável pelas suas relações, a menos que possa reinventer baspelas suas relações, a menos que possa reinventar bastante rapidamente a simbiose com B ou com outra pestambém tem de enfrentar a sua separação, mas à sua disposição está uma fonte de conforto mais rápida. A sua «relação» com C apresenta uma certa normalidade- pode parecer mais uma relação de duas pessoas boa e saudável do que o suicídio de uma simbiose. Também B

53 e C podem desistir da sua liberdade no interesse da segurança duma pseudo-unidade B-C.

A minha experiência quanto a pessoas que vivem juntas, sob o mesmo tecto ou numa disposição em rede mais difundida, demonstra que, quando de qualquer forma aparece o ciúme, tem de haver, pelo menos, uma

pessoa bastantelforte ou «sábia», primeiro para catalisar a emergência de um grau maior de realidade emocional entre as pessoas respeitantes, segundo para garantir a sobrevivência e futuro desenvolvimento da integridade pessoal de cada uma. Esta últir-na qualidade e

algo assim: o indivíduo conhece, através do trabalho e disciplina da vida gradualmente adquirida, a família que interíorizou, trá-la na memória e exterioríza-a repetidas vezes para outra situação micro-social e, depois, «retira» esta exteríorização de um modo suficientemente perfeito para deixar os outros inalteráveis, devido à modificação transitória da sua realidade. Então, devido a estar bastante familiarizado com esta operaçã o na sua própria experiência, pode observar processos semelhantes nos outros, para poder agir sempre de uma tal maneira que o sistema móvel da família interna e presenças exteriores reais se torne, se não claro, pelo menos, menos confuso para toda a gente. Isto não significa que o indivíduo tenha de tornar-se um terapeuta para o grupo e decifrar interpretativamente os movimentos da realidade interior para a exterior e fazer recuar as falsificações concorrentes que actuam em ambas as dírecçôes.

O que é indispensável, contudo, é que os indivíduos implicados deveriam sentir isto, pelo menos, aquilo que um indivíduo sente relativamente à acçã o recíproca da realidade com a sua des-realização e, a seguir, re-realização; depois, outros também poderiam. Não é, essencial merte, urna questão de @@bP_r exactamente o que se passa no grupo, mas de saber que alguém sabe e porque sabemos que alguém sabe, sabemos que podemos conhecer-no,,3. Neste caso, o ponto final ideal, como

54 é óbvio, e que todos sabemos o suficiente para tirar a carga de compreensão das costas do «conhecedor» origirial do grupo -- por maior que seja a sua «paixão em compreender os hornens» (Sartre). De facto, o conhecedor pode ter de saber o bastante para ser suficientemente amável consigo e deixar de saber, dando assim uma oportunidade aos outros!

Uma palavra que nos poderá ajudar a favorecer este sentido de sabermos que nos conhecem é a palavra «testernunho».

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É muito uma questão de verificar o que se passa entre nós e as pesssoas mais chegadas e alguém com que qualquer uma delas mantenha relações. Em calão, isto pode parecer uma resposta especialmente maeciquista à nossa paranóia, levando-a até ao limite e qu&6e morrendo ou ficando loucos por causa da perseguição. Verificar pode ser bem literal ou pode ser apenas saber o que se passa, compreendendo-o e não permanecendo nas trevas.

Quando os casamentos «se desfazern», e@ ainda sinto vestígios de espanto sobre a maneira como um estado de não saber de uma aventura amorosa, que outrora o outro cônjuge tivera e agora «confessa», sai deformado num resultado de ciúme e raiva. De facto, se voltarmos atrás à história da relação, o momento em que o cônjuge teve a aventura de que o outro não «tinha conhecimento» foi, muitas vezes, um momento de liberação para o outro em termos sexuais e de relação (o cônjuge «traído»). Mas o divórcio prossegue, evidentemente, porque há um falso ressentimento em vez de uma gratidão verdadeira. - Mas então o único mal do divórcio é o mal mais importante do casamento.

Nesta altura, acho que temos de fazer uma distinção entre as gerações e as suas possibilidades. Penso que, se nós agora, sempre num contexto do primeiro mundo, considerarmos a geração das pessoas no começo da meia-idade e também a das pessoas, neste momento, dos quinze aos vinte e cinco anos (a lacuna de geração

55 entre estes dois grupos parece ser, agora, pouco mais de doze anos), deparamos com um problema vulgar, se bem que seja um problema que muitos de nós deveríamos ficar gratos de ter: o problema é a necessidade de uma relação de duas pessoas forte e central, que outros, inevitavef mente, acham que devia ser um tanto excluída. Se esta necessidade se aplicará no futuro à geração ainda na escola primària é outro assunto, uma vez que a taxa de desmoronarnento da fábrica institucional da sociedade burguesa pode ser suficientemente rápida na próxima década, com respeito a apresentar-Ihe@: a possibiiidade de um sistema de relações menos central. Pode haver um sistema móvel de díades, conduzindo a uma estrutura de relação policêntrica, muito embora possa haver, provavelmente, um grau de hierarquização no significado emocional das várias relações de duas pessoas que cada indivíduo tem.

Mas, por agora, tentemos ser mais claros sobre a «relação de duas pessoas forte e central». Como eu a considero, esta relação não inclui, em nenhum sentido, a formação de um sistema familiar fechado, isto é, uma exclusão, devido à relação, de outras relações significativas em cada uma das duas pessoas e a clausura muito cerrada das crianças dentro do pequeno sistema de relações «primárias». A possibilidade nítida realizada agora por muitos indivíduos é que as relações mais ou menos periféricas com os outros podem ser introduzidas na relação central de duas pessoas, de uma maneira que enriqueça a sua qualidade em todos os níveis e reforce a sua intensidade. Esta realização, contudo, pode levar novamente a um idealismo eufórico, a menos que reconheçamos determinadas qualificações. Em certos períodos de uma relação de duas pessoas, um ou ambos os cônjuges pode sentir necessidade de fazer certas prome@,s@-@. A@@ explorar a reiação, pode necessitar que o outro cônjuge c, ricorde em nao

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er,crar noutra relaçãG, até que haja pleno acordo acerca da «devida altura». É claro que nenhum é obrigado a fazer ou manter tal pro-

56 messa, o direito de dizer «não» é fundamental. Por outro lado, dada a natureza predatória da nossa sociedade e o

facto de que todos nós interiorizámos a sua preclatoriedade e reproduzimo-la nos nossos actos, embora com as melhores intenções, em todas as nossas relações, parece razoável que duas pessoas cheguem a uma restrição contratual temporária relativamente a outras relações. Este contrato é antitético ao contrato de casamento no seu ponto mais essencial, o ponto da altura das relações.

O contrato de casamento envolve a submissão da necessidade pessoal a um esquema de tempo externamente imposto e, através desta submissão, o nosso tempo e espaço sociais deslocam-se para uma região de não-eu, deixando em nós um vazio, de tal modo que já não notamos o «tempo dado» (que acaba por nos tirar o tempo). Se o notarmos, talvez queiramos novamente o nosso tempo, mas depois achamos que tê-lo outra vez implica uma destruição devastadora das nossas estruturas de segurança erguidas laboriosamente e a completa libertação da culpa arcaicamente implantada sobre o que estamos a fazer a favor da segurança dos outros, Desesperados, podemos também desistir, mas se ficarmos suficientemente alertados às consequências, ver-nos-emos empalados no outro chifre do dilema de culpa, porque, em seguida, vem a disseminação progressiva do nosso desespero por todos os outros de quem somos parentes próximos.

A saída de uma situação como esta parece-me ser a brilhante realização de que talvez a acção mais libertadora que podemos fazer pelos outros é executar a acção que nos é mais libertadora. A «coisa mais libertadora» é sempre a mais alegre, mas temos de entender, aqui, alegria de um modo bem distinto de felicidade (a qual recai sempre, de certa forma, na segurança, isto é, uma restrição ilusoriamente confortável das nossas possibilidades). A alegria abrange o desespero, passando por um termo de dor e voltando outra vez à alegria. Enquan-

57 to a felicidade é um tom de sentimento unitário resultante da segurança, a alegria é a expressão completa e simultânea de um espectro - alegria numa extremidade, desespero no meio e depois alegria novamente na outra extremidade. Na minha experiência sobre esta cultura, é bastante raro os indivíduos chorarem no desespero de um modo suficientemente livre. É muito raro estar presente uma alegria nào-contraditória durante tal choro. O facto de que a liberação é imediatamente clor e significa sempre, do momento decisivo em diante, trabalho duro em nós próprios, não é nenhuma ironia enigmática, mas uma consequência da nossa interiorização de uma contradição objectiva na sociedade burguesa.

Numa relação de duas pessoas, que opta mais pela sua própria definição auto-evolvente do que pela escolha de uma definição estática externamente imposta, existe, pelo menos, a oportunidade de respeito pela história natural de uma relação totalmente exterior à principal. Por exemplo, em qualquer relação de duas pessoas, há uma

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flutuação natural na intensidade do envolvimento sexual. Pode haver períodos completamente longos de afastamento sexual mútuo ou de um lado, que não podem ser reduzidos a um «conflito neurótico» resolúvel - tentar produzir sexualidade como pudermos, e por mais respeitosa e obedientemente que o tentemos. O envolvimento sexual com pessoas exteriores à díade pode muito bern quebrar o afastamento intra-cliádico, se se puder destruir uma ilusão muito importante -a ílusão da quantifiabilidade do amor.

O amor, como qualquer experiência que possamos adquirir, pode ser evidentemente reduzido a um estado de existência que, por sua vez, pode ser reduzido à con-

dição de mercadoria e depois enfeitiçado como qualquer outra r-nercadoria. Torna-se uma espécie de parcela com dimensões socialmente estabelecidas que não se podem exceder nas circunstâncias de qualquer relação específica. Todavia, somos levados a acreditar e, depois, mais tarde, levamo-nos a acreditar que temos mui-

58 to amor para oferecer. Se damos quase todo o nosso amor a uma única pessoa, temos proporcionalmente muito pouco para dividir pelas outras. Se trabalharmos com esta álgebra ingénua, deparamos com o seguinte corolário: qualquer acto de amor é considerado uma perda de uma determinada quantidade interior de amor. Ora, parece-me que o carácter ilusório desta teoria de doação do amor, implicando perda, deriva de uma ultra-simplificação na compreensão de toda a estrutura do acto de amar. Este acto inclui os seguintes momentos experimentais, se tomarmos como exemplo o caso da pessoa A amando a pessoa B: A interioriza uma «imagem mais ou menos completa» de B durarite um certo período de tempo; o tempo, em termos de relógio, pode ser anos ou segundos - o último, porque amar não implica necessariamente uma formação a longo prazo ou

entrega a longo prazo nesta relação particular de duas pessoas, o que envolveria muitas considerações superíores à linha-base do amor.

«Durante» e «após»* este acto de interiorização, tem lugar outra forma de acção, e esta é uma acção exercida sobre o acto de interiorização. Este segundo acto, se tentarmos desmistificar uma possibilidade de amor, afasta-se tanto quanto possível das interiorizações anteriores, que, na nossa vida fizemos de outros e deixa ficar uma presença relativamente inalterável da pessoa B na experiência de A. Estas interiorizações anteriores soam como uma nova interiorização qualquer e, assim, transformariam numa ausência relativa a presença potencial de B na experiência de A. Se, por assim dizer, A identifica B como muito próxima da sua mãe, num nívol do qual ele não está bem consciente, não pode, precisamente até esse ponto, amar B, na medida em que B, como B, torna-se ausente devido à identificação e só podemos amar com base na presença interna (embo-

* Deixámos agora a região de crono-logia objectiva e «antes,> e .d~» referem-se ao tempo strojectivo ou à vtem@)ora!ízação» de nós próprios.

-59

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ra, com certeza, possamos ser bastante felizes com uma ausência).

Em seguida, A regista na experiência de B o seu (de A) registo da presença de B. A comunicação pode ser por palavras ou extra-verbal ou ambas as coisas. Em qualquer caso, devido a uma acção futura por parte de A, B reconhece o seu reconhecimento por A.

O nível seguinte de estrutura, que é da máxima importância, é uma acção por parte de B, que deixa A ver que B reconhece o seu reconhecimento por A. Neste caso, a importância é que, o que designámos por acto de amor de A, depende, na sua própria existência, de uma acção - talvez subtil e pouco óbvia - por parte de B. Na relação social vulgar, B pode suprimir o seu acto de expressar registo sobre o registo de A sobre ela, tal como A pode suprimir o seu conhecimento da supressão de B. Isto torna-se uma dificuldade acentuada nas relações, chamada psicoterapia, em que A (neste caso o «terapeuta») deve recusar a supressão do seu conhecimento da supressão de B sobre ela, de modo a ser possível um amor medicinal; quer dizer, um amor que é suficientemente disciplinado para evitar cair numa falsa entrega que viola o respeito que cada um deve ter pelo tempo do outro, se for para evitar uma absorção fatal (mas mais uma vez bastante confortável).

Mas voltemos atrás ao início de tudo isto, porque até agora tratámos mais da estrutura pré-condicional do amor que da sua definição axial. Quando falei da separação dos traços internos inerentes, o que estava implícito era a eliminação de elementos alheios que podiam contaminar a nova presença interna. Por outras palavras, o outro (B) podia ser amado ou odiado ou, mais vulgarmente, ambos, sob a forma do outro - «outro», aqui, podemos designar por não-AI, e não-A2, não-An, o que significa uma ou qualquer das interiorizações anteriores de outros efectuadas por A. O que é definitivo no amor é este aparar de sentimento falsamente transposto para a nova presença - depois cada um é livre de

60 amar e a liberdade de amar mutuamente reconhecida é amor. Evidentemente, se A é livre de am@ir B, pode também odiar B, se B lhe der razã o para isso, mas, neste caso, se o sentimento negativo transposto fosse bastante minuciosamente relegado, uma hipótese inspirada poderia ser a seguinte: o único ressentimento novo baseado numa violação da disciplina do amor, que é a incapacidade de respeitar com vivacidade as necessidades de tempo internas do outro. A expressão «clá-me tempo», tantas vezes proferida nas relações, pode ser

compreendida não como um pedido de amor, consideração, paciência, mas como uma enunciação triste e confusa do desejo de amar. Mas entã o, num mundo em que o tempo é absorvido pelas molas do relógio e simbolizado, sem nenhuma realidade, por uma praxis social sombria, em dinheiro, merda, tabelas e anti-trabalho ritualizado, quem pode esperar mais tempo?

Uma experiência realizada em Londres durante a úl- tima década teve o seu centro no desenvolvimento das comunidades des-hierarquizadoras, em que alguns dos membros foram, ou noutros casos teriam sido, psiquiatricamente estigmatizados como «loucos» ou, em calão equivalente, «esquizofrénicos».* Parece-me relevante considerar agora

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estas comunidades, porque, além das suas qualidades intirínsecas de inovação radical, as suas implicações estendem-se muito para além dos estreitos limites da psiquiatria e «revoluções» em psiquiatria e exigem uma reavaliação histórica de todos os actos humanos que foram considerados loucos; e, por fim, creio, a integração da «experiência da loucura» nas mentes de todos nós, onde representará mais uma extensão de conhecimento do que será uma fonte de re-

presálias assustadas de uma minoria. Também com significado prático mais imediato, achamos inevitavelmente que, quando as pessoas se agrupam para consti-

* Comunidades f,,-,dadas sob os auspícios da Associacão Filadélfia, Londres. A prin(,,@paI destas comunidades foi <,Kingsley Haffi,, a

leste de Londres. tuir cor@-i; r@-,des liberatórias sem referância ps:iquiáti-i@,,,,, surgem problemas sennelhantes em relação @@ alguns dos membros com tumulto, causando assim noz@ outros tentações para enfrentarem tal ui,rnulto uma v;ol@'.@ncia que reduplicaria a de toda a

dade, ‘sto e, po@- o@ erações de exclusão e prisão de cada indivíduo.

Como as comunidades a que me referi foram descritas numa série de publicações, apenas indicarei alguns princípios da sua organização, ou melhor, anti-organização.

Em primeiro lugar, não há diagnose psiquiátrica e, por isso, não se dá o primeiro passo na invalidação das pessoas.

O verdadeiro significado de diagnose, em termos socialmente eficazes, é atravessar uma espada no coração da gnose. É o assassínio da possibilidade de conhecer o outro indivíduo, assassínio esse executado pela deslocação da realidade do indivíduo para o limbo da pseudo-objectividade social.

Designar alguém corno «esquizofrénico», «paranóico», «psicopata», algum tipo de «invertido sexual», ,(viciado», «alcoólico», é dirigir os nossos foguetões portadores de mísseis contra uma determinada cidade. Momentos depois e após esquecer um pouco, premir o botão torna-se uma questão tão indiferente que passa a

ser um não-acto.

A bomba é a acção actuando nela própria para ne-

gar-se a si mesma.

Então, embora a sua fonte fosse activamente perdida, finalizamos com uma verdadeira devastação de es-

píritos e corpos.

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O facto de não se recorrer à falsa categorização das pessoas nestas comunidades é pré-condicionado pela des-hierarquização do grupo. Existe quer uma destruição progressiva quer imediata da estrutura binária de papéis, relativamente a doutor ou enfermeira versus

doente, Se se transpusesse alguns dos indivíduos para a estrutura institucional de um para doentes mentais, uns seriam chamados psiquiatias, outros seriam chamados doentes. Nas comumdad@_s, no entanto, são apenas indivíduos, alguns dos quais estão mais em contacto do que outros com a realidade mutável do grupo e as alterações produzidas dentro de cada indivíduo rio grupo; mas os indivíduos com este carisma de conhecimento podiam também ser «os doentes» no esquema convencional. Em resumo, as comunidades são locais Dara os indivíduos estarem e não locais para serem tratados - estar é activo e vivo, é não optar pela falsa passividade de ser tratado ou, em certo sentido, ser cuidado pelos outros.

O centro positivo da experiência da comunidade reside, contudo, na garantia de que alguma outra pessoa nos acompanhará sempre na nossa viagem em direccâo ou através do nosso eu. Esta «garantia», voltando a linguagem burguesa contra si própria, não implica uma grande corporaçã o com activo devidamente registado na secção Inanceira do Times, mas uma promessa implícita feita por um ou mais indivíduos a outros indivíduos. Se quisermos submeter-nos a experiências bastante profundas de desintegração pessoal e depois reintegração, de,,Oes -estrutu ração do nosso padrão de vida e depois re-estrutu ração do mesmo, nrecisamos da promessa de que alguém completamente neutro, isto é, suficientQ-riente sem algum assunto pessoal a resolver, esteja atentamente connosco no decorrer da experiência. O que se pede é unia pessoa que não interfira, que é milito simplesmente uma pessoa que compulsivamente não tem de interferir. Alguém que deixará a outra estar. *

‘ Isto aplie2 sL a outros ramos da medicina aléni da psiquiatria, Por exemplo, quéntos ginecologistas podem permitir que as suas doentes tennarn us seus proprios bebés, isto é, os bebés da doente, nao os do ginecologista. Corno parte do 3stágio do ginecologista, sugeriria a norma de sentar-@@e [,,,,!o menos -ima hora por semana, ouvindo uma das suas doentes 2 faIa@ sobre s,@,r unia mulher.

63 Alérn disto, a comunidade anti-psiquiátrica seque os princípios de qualquer outro comuna. Por exemplo, a dialéctica entre a solidão e estar com outras pessoas, que atinge a sua própria síntese na actividade de ir e vir- uma síntese que pode ser imaginativamente reproduzida pela imagem de uma pessoa numa multidão em frente da televisão de Wimbledon, que já não volta a

cabeça para a direita e a seguir para a esquerda, mas olha directamente para a frente, para a caixa, pois é lá que, afinal de contas, está a graça.

Esta dialéctica reflecte-se na arquitectura do centro e transmite-se ao princípio das celas individuais (para as quais se podem deslocar, como é evidente, outros indivíduos e dividi-Ias com o habitante do quarto, por meio de uma escolha livre e completamente admitida entre este e eles) e uma grande sala de estar comum, onde cada um pode passar

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mais ou menos tempo. Se um indivíduo assim preferir, não precisa de ver mais ninguém durante semanas, meses ou anos. Quando alguém quer ou precisa de outras pessoas, sabe os lugares onde pode encontrá-las. Um equipamento simples de cozinha em cada quarto tornaria desnecessária a discussão dos indivíduos sobre a utilização de uma cozinha central, que, numa comuna, é sempre um dos principais blocos hesitantes e de território imperativo.

Um outro princípio relacionado com este, que se aplica a qualquer outra comuna, é o respeito pelo direito de cada um dizer «não» aos pedidos e desejosde qualquer outro. O «não» pode ser temporário ou permanente, mas, em qualquer caso, requer toda a atenção, porque uma violação do «não» significa uma violação das nossas próprias necessidades de tempo, se as considerarmos como uma síntese do tempo exterior (social, biológico) e tempo interior, e também, a um terceiro nível, o tempo que precisamos de levar para provocar esta síntese.

Em seguida, vem o princípio de saber que alguém sabe. A expressão deste princípio pode revestir-se de

64 várias formas. Uma forma é a experiência do nosso encontro com a família, estando presente um medianeiro, de maneira que, pela primeira vez, possamos ver objectivamente a família como a quase-totalidade em qúe se tornou para nós, dominando ariossa vida desde o interior do nosso espffito e reforçando a sua presença interna por uma multidão de manobras externas, obrigaçôes, armadilhas, etc., que são tão enganadores que nos fazem pensar que devemos estar a sofrer de ilusões paranóicas. Sentir-nos outra pessoa, contudo, talvez no decorrer de um encontro só de uma hora, pode ajudar-nos a conseguir livrar-nos totalmente da família e debruçar-nos sobre um campo de visão completa.

Se a nossa mãe é a pessoa que nos conhece «por dentro e por fora», que fazer numa situação em que sabemos que mais alguém, fora da estrutura familiar, sabe que a nossa mãe nos conhece perfeitamente por dentro e por fora? Se, como filhos dos nossos pais, sabemos que o conhecedor também pode ser conhecido, a comuna pode até oferecer aos pais uma esperança de liberação - e, além dos pais, aos psiquiatras.

Com base em experiências sobre comunidades deste tipo, começamos a fazer perguntas que, aparentemente, parecem tão disparatadas como as seguintes: ,lual é a diferença entre o hospital para doentes mentais e a universidade? Porque é que as universidades não se podem tornar hospitais para doentes mentais e porque é que os hospitais para doentes mentais não se podem tornar universidades? A concepção exterior é bastante semelhante, o corpo administrativo e vários departamentos, casas de habitação, laboratórios, terapêutica profissional, etc. Algumas universidades possuem sebes e casas de porteiros para fiscalizar quem entra ou sai.

A ironia desta situação está no facto de que, provavelmente, nunca ninguém sai e, certamente, nunca ninguém entra.

Nas duas instituições é corrente haver uma falsa

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65 ,5 protecção de tipo paternal ísta-maternalista confuso por parte dos «quardiães», a qual actua contra os «guardados». Ambas são boas mães (a alma mater) com os seios cheios do velho veneno, tranquilizantes em todas as formas concebíveis, tudo desde o comprimido exacto para o doente exacto, até ao trabalho exacto para o licenciado exacto. Ambas têm medo da sexualidade e, por isso, da realidade das relações humanas em qualquer sentido. As duas instituições são governadas pelos oportunistas tristes, sombrios, anónimos e insignificantes de uma sociedade oportunista, que só pode justificar internamente a sua própria servidão pela eseravização de outros que, por si próprios, possam governar a coisa muito melhor, precisamente na medida em que estão menos assustados e já não precisam das velhas estruturas de segurança estéreis daqueles que pretendem ser seus mentores.

Considerações deste gênero conduzem-nos a outro tipo de comunidade, a que podemos arcaicamente chamar espiritual, esotérica, gnóstica. Definindo o novo significado de revolução no primeiro mundo de hoje, acho que, agora, temos de encarar uma incorporação total no movimento social em massa, não só de formas ,de actividade que são pessoalmente libertadoras no sentido «terapêutico», mas também actividades que são «espirituais» num determinado sentido. O sentido a que me refiro é a dissolução radical de falsas estruturas egóícas, em que somos obrigados a conhecer-nos. A dissolução de um auto-retrato desprovido de cérebro, para o qual somos viciosamente doutrinados pelas pessoas mais amáveis, mais íntimas e mais bem intencionadas do mundo - os nossos pais e professores. Contudo, temos a certeza de que não podemos demonstrar-lhes generosidade ou compaixão, até que os façamos compreender que não nos submeteremos mais ao aperto asfixiante da corda que eles têm à voltado pescoço.

O único caminho para uma implicação compassiva com os outros é o atalho da nossa própria liberação.

66 Neste sentido, considerarei um aspecto de revolução como a libertação universal de uma espiritualidade total, em que as formas de experiência religiosa em toda e qualquer tradição espiritual regressam ao passado ultrapassando o ponto da sua história, onde se tornaram institucionalízadas, burocratizadas e despersonalizadas, e passaram a tornar-se pessoalmente importantes no grupo de confrontação face-a-face da comuna, onde ninguém proselitiza os outros mas apenas a si próprio. É uma questão de compreender que não há nada a acres-

centar além de um ponto de auto-conjuntura - mais brutalmente, é uma questão de fazermos um_auto-encontro e depois decidirmos se queremos ou não continuar a relação.

Das muitas possibilidades esquecidas que temos de tornar outra vez possíveis, as duas principais parecem ser as possibilidades de recordarmos os sonhos, reunindo as estruturas postas de lado que produzimos como anatomista do sonho, segregadas como tal de nós pró~ prios, e sentindo completamente a série de possibilidades de nos suicidarmos. O sonho certo é um sonho recordado e reconhecido. O suicídio certo é precisamente aquele que não cometemos. O suicídio mais autêntico da nossa era (isto é,

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após o de Cristo) é, provavelmente, .> de Kirilov em Os díabos por Dostoievski - e esse, necessariamente, foi fictício.

Duas das principais funções da comuna devem ser, em primeiro lugar, reinventar a possibilidade de registar os sonhos com nós próprios e, depois, pelo menos com mais uma pessoa e, em segundo lugar, readquirir as fantasias adolescentes perdidas de suicídio e uma visão infantil, ainda mais perdida, da morte, e falar abertamente com outras pessoas sobre estas fantasias.

No início deste capítulo, falei da necessidade de reconsiderar, nos termos mais básicos, o significado de revolução nos países do primeiro mundo. E em alguns países «do terceiro mundo» como a Argentina, onde sessenta por cento da população é urbana e em certos

67 países como a África do Sul e Israel, onde a identidade do primeiro e terceiro mundos se perdeu, em virtude das estratégias imperialistas. Parece-me que esta reconsideração deve provir da experiência micro-social realizada em grupos de confrontação face-a-face. Se temos de falar em guerrilha urbana como estratégia decisiva nos países do primeiro mundo, temos de reconhecer uma multiplicidade no armamento que os indivíduos poderão utilizar. As granadas de Molotov têm lugar certaniente numa rebelião estuda riti I-operá ria significativamente organizada, anti-crimes oiganizados, tal como pilhar lojas e incendiar instituições anti-populares é, obviamente, prescrito pelo contexto objectivo de uma

rebelião de quetto negra.

Mas também se podem utilizar outras espécies de bombas.

Na minha opinião, é um acto revolucionário se, decorridos meses ou anos, um indivíduo transcender os pedaços mais importantes do seu condicionamento micro e macro-social em direcção à auto-reivindicação espontânea de autonomia pessoal total que, em sí, é um

acto decisivo de contra-violência contra o sistema. Significa que o indivíduo está preparado de uma maneira como poucos estão. Além da escala a uma-pessoa, mas aparecendo sempre no sentido de «uma pessoa», existe o potencial explosivo de um grupo ou rede, que, no decurso de longo trabalho, demonstra a possibilidade de desenvolver relações primeiro viáveis e depois boas, que são antitétícas ao longo dos parâmetros mais essenciais das relações burguesas, as quais são impostas, não escolhidas, não criativas e não criadoras e as quais se baseiam sempre no padrã o da familia nuclear, quer nas suas formas originais, quer nas reproduzidas.

Num ensaio anterior*, referi-me à necessidade de desenvolver Centros Revolucionários de Consciência.

* Cooper, D.G., «Para além das palavras», em As Dialécticas da Liberação, Penguin, 1968.

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68 Estes apresentar-se-iam sob a forma de agrupamentos de indivíduos espontâneos e anti-institucionais, que actuassem fora das estruturas burocráticas formais da fábrica, escola, universidade, hospital, corporação de radiodifusão, instituição de arte (quer no sentido de escola de arte, quer de política de galeria), etc. Neste tipo de agrupamento não haveria recalcamento da realidade pessoal de qualquer membro quanto à serializaçã o (isto é, formação de bichas de autocarro por pessoas que trabalham na estrutura institucional e que esperam por um autocarro que nunca chega). Também haveria uma influência paradigmática que se estenderia a outros grupos potenciais.

A natureza revolucionária destes grupos (que, embora sem um programa, já estão a surgir) reside na explosão da contradição entre as operações desesperadamente controladoras da sociedade burguesa que reduz os indivíduos ao anonimato, ordena-os ou classifica-os, e, apesar disto, no impulso que realmente se encontra nos indivíduos para bradarem os seus nomes ao mundo e anunciarem-lhe o seu trabalho; de facto, para se mostrarem ao mundo, porque eles próprios podem começar a olhar para o seu eu.

Mas as coisas não podem ficar neste nível de subversão que se espalha rapidamente a partir da base micro-política de liberação pessoal. A realização da liberação só se atinge com a acção macro-política efectiva. Portanto, os Centros de Consciência Revolucionária também têm de tornar-se Bases Vermelhas. Neste caso, a acção macro-política pode ser essencialmente negativa e toma a forma de tornar impotentes, por todo e qualquer meio, as estruturas de poder burguesas. Os meios podiam ser uma mímese revolucionáría das tácticas da estrutura de poder burguesa. A estrutura é ávida, devora os indivíduos e consome o seu trabalho, menosprezando os resíduos indigestíveis como o pagamento, campos de férias obscenos, etc. Então, porque não imitar a avidez do sistema, seguindo o seu exemplo o mais

69 perto possível? Afinal de contas, dificilmente podíamos ser mais morais do que isso. Por outras palavras, se os patrões ou autoridades universitá rias fazem conces-

sões, exigimos e reclamamos cada vez mais «concessões», até que eles se apercebam que não tinham nada que dar em primeiro lugar. Em seguida, tendo abolido esta falsa estrutura familiar, tudo o que temos a fazer é certificarmo-nos de que ela não irá estabelecer-se novamente. A revolução torna-se não um acto histórico, mas

a história em si - Revolução Contínua. Ou, niais uma vez planeando a sua desorganização, podemos demonstrar que as estruturas de poder burguesas não têm poder, pondo de parte o que nelas investimos obedientemente. Algumas acções muito simples mas cuidadosamente combinadas podem fazer isto.

Além disso, existem as tácticas mais convencionais de luta e greve de braços cruzados, mas o trabalho a nivel micro~político pode despojar estas tácticas do seu economismo, o que significa que, num contexto do primeiro mundo, nunca pode ser simplesmente uma questão de mais alguma coisa, mas mais alguma coisa e r-nuito mais realidade.

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Em resumo, o que queremos não é mastigar a nossa carcaça, mas consumir o sistema, para que, por fim, possamos adquirir um gosto por nós próprios.

70 O FIM DA EDUCAÇÃO - UM COMEÇO

Nós não aprendemos nada, nós não sabemos nada, não compreendemos nada, nós não vendemos nada, nós não ajudámos, nós não traímos, e

nós não esqueceremos.

Cartaz da Liberdade Checo

Em primeiro lugar, temos de eliminar do campo de dissertação certas pressuposições sobre o que é a educação. Assim, eliminamos noções tais como classificação de exames, divisões entre crianças e escolas primárias e secundárias e, por fim, qualquer segregação de idades e sexos, duraçõ es de determinados exames em vários cursos universitários, o doutoramento, ritos de transição de um limbo absurdo para outro limbo, com o qual se espera que o candidato esteja preocupado, como seu verdadeiro objectivo. E assim por diante.

Está à disposição a validação do acto de eliminar estes rituais frenéticos, que se desviam das realidades

71 de iniciação em direcção a uma doutrinação simplória para o conformismo, que confunde os indivíduos até um ponto em que o seu conhecimento crítico da situação já dificilmente actua. Vou tentar esclarecer esta situação, embora, agora, já outros estejam começando a fazê-lo.

Acho que temos de definir educação num sentido deveras amplo, porque qualquer restrição nesta amplidão requerida teria o efeito de uma corda em volta do pescoço de uma vítima estrangulada.

Portanto, consideremos a educação como movimento auto-totalizante de acção recíproca entre a formação interminável do eu do indivíduo e as influências formativas de outros indivíduos, que actuam sobre ele durante a sua vida. Formação, neste caso, significa a emergência de um determinado gênero de indivíduo que inclua campos especializados de perito. Significa transcendência da divisão sujeito/objecto, n---a medida ern que o indivíduo, e fundamentalmente só ele, sintetiza estes pólos etorna-se um utilizador activo do momento passivo da sua experiência e a testemunha passiva da sua actividade e da dos outros, até um ponto em que testemunhar, em si, se torna um acto, e assim por diante. Além disso, a expressão «durante a sua vida» não se refere à duração biológica da vida de um indivíduo, contável em anos. Não exclui o facto de que podemos, num sentido discernível, viver e sentir antes e depois dos factos biológicos de nascimento e morte, nem exclui a possibilidade futura de uma fenomenologia concreta de tal experiência.

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Consideremos de que maneira uma determinada forma de vida está planeada para nós (sendo nós, evidentemente, autores do plano para as vidas dos outros) muito para além do nosso começo biológico, assim como as dos n;@)ssr)s pais e seus pais - por agora, poremos entre parênt?ses a extensão def@tes planos à regiãe da nossa morte corpórea.

Investigações realizadas nas últimas duas décadas

72 sobre a gênese da esquizofrenia em famílias, mostraram muito nitidamente como a loucura se torna inteligível, se compreendermos os sistemas de comunicação-acção que se passam numa família nuclear. Os desenvolvimentos mais recentes nestes estudos demonstram quão importante é incluir, de novo, a terceíra geração, os pais dos pais do indivíduo que se diz estar louco, se queremos alargar esta inteligi bil idade adequadamente. Eu diria que não temos apenas de incluir, de novo, a quarta geração neste tipo de estudo, mas que, para conseguir uma inteligibilidade total, temos de mergulhar num passado, que vá para além da evocação consciente de qualquer membro da família que o indivíduo já conheceu.

Este passado mais remoto é recapturado em sonhos, em «experiências psicóticas» e certos estados provocados pela droga, mas acho que também numa situação empírica presente e convenientemente estruturada, que deve tornar-se muito em especial o interesse da educação. Isto toma este rumo, porque o que foi dito sobre a compreensão de alguém designado de esquizofrénico aplica-se à compreensão da vida de qualquer indivíduo, uma vez que a mancha ilusória da normalidade desaparece.

Com vista a ilustrar este ponto, vou citar um sonho crítico que teve recentemente um indivíduo judeu, de trinta e um anos, que dirigia filmes. Saíra de casa aos vinte e três anos, pensava em termos honestamente decisivos -e casara com uma rapariga de um país notoriamente anti-semítico. Estavam em crise nas suas relações e, após ter-se submetido a uma quantidade de sessões familiares (em relação a uma irmã mais nova que tinha sofrido um colapso «esquizofrénico») e a várias sessões individuais (em relação à sua «crise conjugal» e «inibição no trabalho»), teve o seguinte sonho:

O sonho que teve parecia pertencer a toda a gente no mundo. Parecia ter sido dirigido, por seu intermédio, a milhões de pessoas desconhecidas mas muito defini-

73 das. Uma expressão que aparecia periodicamente no sonho era: «Perdi o livro». No sonho, ele foi ter a uma casa, numa aldeia árabe do Médio Oriente. Após um interiúdio no sonho, em que teve relações com uma rapariga branca e uma negra, emergiu no cimo da casa deparando-se com uma paisagem desértica e dirigiu-se a uma cabana, onde encontrou um antigo Rabi. Sentou-se num banquinho muito pequeno em frente do Rabi. Todas as sensações de perseguição da primeira parte do sonho pareciam evaporar-se e invadiram-no sensações de perda e tristeza. Entã o, de repente, desatou às gargalhadas e caíu do banco abaixo. Houve um interiúdio súbito e momentâneo com o sábio, em que ambos rebentaram de riso. Acordou com uma sensação muito intensa de que «não foi apenas o meu sonho». Em certo sentido, este indivíduo seguiu o seu cordã o umbilical até ao devido local de ligação e, a seguir, devido à explosão de riSG entre os dois

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homens, o cordão rebentou, deixando-o isolado no mundo, vendo o outro como um o ut ro.

Acho que se deve dar ouvidos ao facto de que o período intra-uterino (pondo de parte o que acontece antes disso) não representa sete décimos ou oito décimos do «iceberg», mas, jogando com os números de um modo apropriado, talvez mesmo nove décimos da experiência que um indivíduo pode ter, Um nível de experiência intra-uterina estende-se por toda a nossa vida, não está com certeza limitado aos nove meses originais. Como podemos recordar, precisamente por causa da questão anterior que era: como podíamos esquecer, a cascata de sangue na aorta abdominal da nossa mãe com o seu relógio biológico regular e disciplinado, repercutindo por fracções uma pulsação mais distante, em oposição aos seus nervos muito mais espontâneos e murmúrios calmos, a incrível orquestração dos sons respiratórios, o nítido chiar das tensões e relaxamento dos músculos, a sua mão que sente os nossos movimentos e o apalpar cuidadosamente descuidado da mão do doutor e da par-

74 teira? As drogas destinadas a manter a nossa vida e as

que são aplicadas com a intenção de livrar-se de nós. As fantasias que a nossa mãe tinha, devido às fantasias que sobre ela tinham outras pessoas infinitamente remotas na história. O enrolamento do nosso cordão neural e a lembrança da possibilidade genética de omitir o seu acabamento. A formação do nosso sexo que desafia toda a liberdade subsequente de modificá-lo de tempos a tempos. Seguidamente, a experiência de virmos ao mundo de luz clínica muito viva, caindo em mãos respeitadoras e insatisfeitas, o tinir de instrumentos de cró- mio e bandejas assépticas, o imperativo importuno en-

tre os dedos das mãos da parteira que nos diz para esperar, talvez até para regressar por um momento, até que «eles» estejam prontos, disfarç ados como o momento da nossa prontidão para emergir para o mundo. E depois, quase orgasmicamente, nascemos e colocam-nos numa escudela para sermos consumidos num infanticídio derradeiro cometido pelo mundo de indivíduos esqueléticos e vorazes, cujos ossos estão desprovidos de toda a carne. Em seguida, berramos e, i ncidental mente, enchemos os pulmões de ar, mas o berro é recordado como algo que nunca mais voltaremos a fazer - a me-

nos que seja num carro com as janelas abertas andando numa auto-estrada a cento e vinte quilómetros por hora.O protesto sentido e representado fisicamente termina aqui - mas pode haver outras formas de protesto contra o direito inato e destruido pelo nascimento de gritar «Não» ao mundo. Não, começamos de novo, melhor desta vez, porque esta será a nossa vez. Os doutores e

as mães terão de esperar pela nossa vez e encontrar a deles através da nossa, pois a alternativa é a imagem de Beckett do accoucheur - coveiro - que, na cova que acabou de cavar, espera agarrar a criança vinda do ven-

tre materno mesmo ao cimo da cova, assim que esta

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cair nas suas mãos - que são as mãos da mãe e as nossas.

De facto, estamos agora a tentar analisar uma fase

75 crítica da educação, mas educação num sentido bivalente. É a educação de pessoa emergente em interacção com a educação da mãe, doutor e parteira. Educação dos adultos significa quase imediatamente estar aberto à experiência da criança no sentido de permitir que as ressonâncias experienciais cheguem às suas próprias experiências de nascimento, as quais creio que são mais ensinadas fora deles por um processo não-educacional altamente consciente do que recalcadas na forma psicanalítica familiar. O recalcamento é um termo bem definido e altamente especí fico da teoria original de Freud e, certamente, actua de uma maneira significativa como ensinamento pré-reflectivo da mãe para a criança de um ou dois anos de idade. Isto quer dizer que a criança interioriza aspectos da presença da mãe que excluem o

poder da experiência do nascimento, mas a mãe não só foi sujeita a uma situação semelhante com sua mãe, como também a um grande número de experiênciais sociais conscientes e conscientemente aplicadas, que a levam a fazer a criança esquecer. A razão evidente para este facto é que as áreas de maior tabu da experiência humana são as que envolvem o nascimento e a morte -

pondo de parte a experiência do pré-nascimento e pós-morte. A delineação da operação de tabus de incesto e, mais geralmente, tabus sexuais foi uma introdução histórica necessária a estas maquinações mais extensas do homem, que vê o terror na palavra «Não».

Assim, verificamos o que é, com efeito, um cerco de recalcamento motivado por uma multiplicidade de manobras conscientes, que podem ser muito concretamente obrigadas e atacadas por uma contra-educação. Antes de ser o próprio bebé da mãe, a menina é rodeada de brinquedos (as bonecas mais «perfeitas» e também as mais caras), para que assim possa aprender a esquecer a sua experiência de nascimento e infância e tornar-se não a própria criança da mãe, mas simplesmente criança ou, se mais tarde quiser voltar a estes tempos, infantil (regressiva, histérica, etc). Portanto, ela é ecluca-

76 da para ser uma mãe como a sua mãe e como todas as outras mães que foram educadas, nao para serem elas próprias, mas para serem «como mães». Lembro-me de uma história que um colega meu me contou sobre um rapaz dos Estados Unidos (subsequentemente, é claro, dignosticado como psicático) que, com uma bomba de relógio, fez explodir um avião completamente cheio de passageiros, no qual seguia a mãe em viagem de férias. Antes deste acidente, ele enviara à mãe um cartão comemorativo do dia da mãe, onde se lia: «A alguém que tem sido quase como uma mãe para mim». Bem, talvez essa bomba de relógio esteja neste momento debaixo da nossa cadeira, porque temos dúvidas sobre quem é inocente e quem é culpado, e porque a coerção que se opõe é que somos nós que temos de fazer a pergunta. A este nível, quão diferente é qualquer um dos nossos destinos do do guerrilheiro perseguido no Vietname, em África ou na América do Sul, que agarra na espingarda e diz, na sua

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metáfora mais apropriada: «Estou aqui, sou eu, deixem-me estar e deixem-me escolher aqueles com quem quero estar, porque se não me deixam...

O movimento desde a repressão (que pode ser modificada e adaptada socialmente, mas que essencialmente fica connosco para a utilizarmos, se possível, para o «bem social») ao recalcamento honesto é, hoje, muito nítido. O recalcamento pode ser desleal e pode possuir uma certa manha sob o disfarce de sofisticação liberal, mas, na verdade, vem para nos armar com todas as armas disponíveis. A paranóia como fantasia resolú vel teve a sua época. A perseguição corno verdadeiro facto social apodera-se, agora, do campo. Se ainda nos restam fantasias paranóicas e problemas de super-ego, talvez o acto de resolução seja utilizá-los. Se estamos realmente interessados, podemos desejar que a psicanálise, um dos instrumentos liberatórios potencialmente maiores que temos, evite a má utilização reaccionária. Se estamos menos interessados neste caso, podemos apenas desejar eliminar o campo de reacção política,

77 que é assiduarnente definido como não-experiência. Tudo isto está muito relacionado com a situação dos jovens lutando para se libertarem com vista ao seu próprio futuro, distinto daquele que lhes era determinado por delegação e por amor por seus pais e professores (que nunca podem constituir associações para sua própria segurança sem a confusão primordial daquele pretexto - pelos filhos). Como é óbvio, neste caso, o falso projecto é procurar a liberação, alterando os pais -os filhos ficarão livres, se por fim os país ficarem livres. Esta é a solução dos pais, utilizarem os «seus» filhos para serem seus pais, absorvendo assim a sua agressão (como manifesta punição dos filhos, que se vingam agora nos e dos seus «próprios» pais ou de deformações mais subtis dos projectos autónomos a que aspiram). Aparentemente, a família nuclear burguesa não pode funcionar sem esta inversão de papéis que confirma o anterior sistema de papéis. Uma inversão invertida, pela qual a criança tem de manter a todo o custo a família unida - ou, segundo a verificação normal, à custa do tranquilizante mais caro da lista de receitas do Serviço Nacional de Saúde. Portanto, é, mais uma vez, uma questão de como passar a receita médica que nos acusaria de prejudiciais.

Se não podemos alterar os nossos pais, se chegamos a um ponto de generosidade em que podemos permitir-lhes terem, por fim, os seus próprios problemas, podemos, pelo menos, pensar em alterar os nossos professores. Isto pode implicar, em relação a um professor primário, a «perigosa» transição de substituto de pai a indivíduo. Se o professor primário é a primeira «outra pessoa importante» exterior à família, como muitas vezes ele, ou mais vulgarmente, ela, é, como pode ele explicar o «ser exterior», sem evocar censura ou despedimento por parte da burocracia insignificante das autoridades de educação locais? De igual modo, como é que os professores de Universidades e Colégios podem evitar um destino idêntico? A resposta, que não é fácil,

78 é, sem dúvida, levar a um ponto extremo a nossa clareza dentro do sistema, tornar-nos tão claros quanto possível sobre o que queremos aprender (não ensinar, pois o

ensino é pura colaboração) e, em seguida, chegar a um desaparecimento tão massivo quanto possível de professores, alunos e estudantes, até ao ponto de, de acordo com

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movimentos semelhantes em outras instituições, parar as operações da nossa escola ou colégio específicos tão definitiva e decisivamente quanto possível e, a seguir, tramar as conspiraçoes para reintroduzir-nos no sistema por guettoização ou quaisquer outros meios.*

Depois é uma questão de onde saímos e onde caímos.

O que estou a propor é uma estrutura móvel totalrnente des-hierarquizada que está em revolução constante, e por isso pode gerar revoluções futuras além dos limites da sua estrutura. A universidade (ou, nesta fase da história, o que se tem de chamar anti-universidade, contra-universidade, universidade livre, ou algum termo parecido**) é uma rede de indivíduos completamente ampliada, qualquer coisa como 50/60 a 200/300 pessoas, no presente momento. No caso do número maior, o princípio unificador do grupo é que qualquer indiví-

* Desde a Rebelião de Maio de 1968, em França, as autoridades seguiram uma política de reunir os pensadores num só local, para facilitar o recalcamento das novas ideias, sendo um exemplo flagrante a expulsão de Jacques Lacan da Escola Normal Superior com um pretexto absurdo e o seu subsequente convite para leccionar em Vincennes nos arredores de Paris. ** Esteu a referir-me, neste caso, não só às universidades espontâneas e livres geradas pela rebelião dentro das universidades existentes, r-nas a outras experiências prototipicas, algumas das quais muito diferentes das que descrevo neste capítulo, tais como o Novo Colégio Experimental da Dinamarca, a Universidade Livre de Nova lorque, a anti-universidade de Londres (patrocinada pelo Instituto de Estudos Fenomeriológicos - unia anti-organização «à sombra,, que também «organizoii» o Congresso sobre as Dialécticas da Liberação - ver As Dialécticas da Liberação, ed. David Gooper, Penguin, 1968 - em Londres e desapareceu para reaparecer se e quando desejar) e outras.

79 duo pode apresentar um relatório extenso sobre a sua experiência de trabalho (que inclui, desnecessario dizer, a experiência de outro indivíduo na rede ou a própria rede ou qualquer segmento da rede) a alguém que queiraescuta@, por simples combinação- para o que o primeirp indivíduo toma a iniciativa. Inevitavelmente, alguns chefes ou professores com carisma atraem multidões, mas, neste contexto, a natureza definitiva do chefe carismático é que não se apropria do carisma dos outros, de forma que os grupos libertam-se do grupo preparatório levando consigo os seus próprios centros carismáticos, que são, de igual modo, distribuídos e alargados de uma maneira que permite uma relação livre do grupo com a sua fonte inicial - ou não, se tal referência não for necessária. Em qualquer caso, há um desaparecimento decisivo da oposição burocrática acadêmica do professor e aluno.

O contexto das interacções do grupo deriva de uma

afirmação consensual de interesse e relação, mas o

consenso é disciplinado pela autoridade manifestada por uma ou mais pessoas de cada grupo. Isto é quase antitético ao autoritarianismo. Em certas alturas, as necessidades coalescem ao desejo de tratamento rigoroso e instrutivo do nosso problema por um

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indivíduo especial ou ao projecto de uma sequência de explorações do nosso problema com leituras planeadas pelo indivíduo de maior autoridade nesse campo. Contudo, o ponto significativo é que a verdadeira disciplina e rigor só podem ser desenvolvidos a partir de uma base sólida de liberdade e confiança no grupo. As «qualificações» do indivíduo que inicia o grupo dependem do seu conhecimento anterior sobre a escrita, fala, trabalho criativo e trabalho político. Estes termos estão empregados num sentido, deveras lato; por exemplo, o trabalho criativo inclui a poesia dos gestos de uma loucura completamente experimentada. Além disto, não se requerem outras qualificações em cada indivíduo, nem há um limite de idade. Nem há nenhuma estrutura de «exame»

80 sem «grau». Se alguém necessitar de urn relatório sob@-:@ o trabalho que fez nos grupos, isto tornaría a fo,-nia de uma relatório de consenso detalhado, compilado pelo grupo incluindo o indivíduo que quer utilizar tal relatório. Jogando ao sistema, claro, pode ser passado um certificado especial por um «professor» de reputação reconhecida no mundo exterior. Não é completamenle verdadeira a suposta dificuldade que os indivíduos, numa sociedade pré-revolucionária, terão em ganhar dinheiro para viver. Os indivíduos terão talvez de desempenhar tarefas de ensino que são pagas ou utilizam concessões de estudantes fornecidas para trabalho universítário oficial ou qualquer outra espécie de tarefa.

As celas funcionariani quer dentro de urna universídade ou escola oficiais corno anclídoto àquele sistema, quer completamente independentes. No último caso, funcionariam da base de uma determinada fábrica ou sob a forma de reuniões combinadas em casas particulares,* bares, cafês e, talvez, no futuro, as igrejas (não sé os átrios das igrejas) seriam utilizadas para reuniões. Finanças e escolha de locais são da responsabilidade conjunta do grupo.

No primeiro caso, no entanto, temos unia oportunid;.@de de nos apropriarmos das facilidades dos usurpa- @ Dres de ideias. As acomodações da universidade são destinadas à utilização das celas, incluindo possibilidades de alimentação, dormida e de amor. A participação por parte do pessoal é, obviamente, benvinda, mas não é permitida qualquer imposição da estrutura hierárquica oficial. Livre acesso a qualquer grupo inclui assistência pelo pessoal não-académico e por alguém exterior à universidade. As pessoas exteriores à universidade se-

1 Por exemplo, no grupo anti-universitário que frequentei durante os dois últimos anos, cada reunião é combinada ao hoc numa cas@, ou apartamento particu!ar(,-s e o local tende a ser fixado por contacto oral em rede, p;3@@a que nã,D tenhamos conhecimento dele até. o dia da reunião.

81 rão naturalmente solicitadas para fazer apresentações constantes do seu trabalho.

Se se objectar que o conhecimento técnico - isto é, nas ciencias e na medicina - pode tornar-se impossível, devido a este desenvolvimento «anárquico», deverá ficar assente que os grupos que descrevi são um complemento humano d3 tecne. É evidente que o conhecimento técnico continua, mas já não --- meramente aquele e

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com certeza movimenta-se a partir da situação de leituras em massa, que são ou podiam ser duplicadas e distribuídas de qualquer maneira como extensões a compêndios em grupos de seminário face-a-face, em que uma «aprenclizagem» completa se realiza no contacto das ideias. Mais uma vez, contudo, desaparecerão os exames escritos e respostas a perguntas. Os impostos deverão ser feitos no trabalho e não numa cozinha numa ansiedade ridícula e irrelevante.

Uma das principais funções das celas é ultrapassar a diferença entre a terapêutica e o conhecimento, e, inevitavelmente, um dos obstáculos é o forte impulso para limitar a actividade do grupo à terapêutica no sentido convencional. Isto mostra a diferença entre os chefes de grupo que, na prática, tiveram tendência para ser quer professores, quer terapeutas. Muitas vezes, os professores não se sentem seguros ao tratar do impulso do grupo em direcção à terapêutica; da mesma maneira, os terapeutas encontram dificuldade em articular a sua experiencia em relatórios constantes e suficientemente gerais. No entanto, talvez a resposta não seja para os professores e terapeutas entrarem nos seus próprios grupos com vista a aprenderem a dominar estas diferenças de segundo plano, mas para serem ensinados e «terapeutizados» por.outros indivíduos do grupo que estejam aptos a fazê-lo. Claro que poderão ter de esperar. Ou pode haver um comprornisso, em que vários professores e terapeutas se reúnem para considerar os seus problemas implacavelmente e sem apoios críticos marcados num grupo que estaria aberto a quaisquer

82 outros membros das suas diferentes celas, que quisessem vir e comentar as observações feitas ao trabalho de cada um.

Há um sede, agora quase universal no primeiro mundo, de professores supremos, mestres espirituais, que iriam, se não resolver todos os nossos problemas, pelo menos indicar o caminho certo para o objectivo certo. Uma das características mais marcantes do imperialismo cultural não é a imposição no terceiro mundo de padrões culturais do primeiro mundo, o que é bastante violento, mas a sucção parasita de sabedoria, em qualquer forma, das civilizações mais antigas. Os resul-tados desta situação vêm dar origem a uma mistificação reaccionária que nada sabe de misticismo. Se, por assim dizer, se transferisse para o Ocidente alguns elementos do budismo i-nahayana sem se respeitar as diferenças críticas ria realidade social entre Butão e S. Francisco, gerava--se um quietismo que conluía totalmente com o sistema explorador. Os verdadeiros místicos tiveram sempre um conhecimento intenso da natureza da sociedade circum-ambiente e, neste sentido, foram realmente homens políticos.

Não obstante, quando falamos de uma universidade revolucionária e de um sentido renovado de conheci- ,yiento que abrange todos os níveis de experiência humana, que irrompe dos* confins dos edifícios e currículos de escolas e universidades, creio que temos de re-definir o significado de «professor», de modo a compreender funções e maneiras de ser que venham de outros pontos do mundo e de outras épocas. Por exemplo, a verdadeira função de um professor aproxima-se muito da função profética. O profeta olha do seu presente através do seu passado para todos os nossos passados e

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* É irónico que estudantes da Escola de Economia de Londres, que estavam a tentar fugir da instituição, fossem obrigados a penetrar pelas portas a fim de ocuparem o vazio da universidade com alguma realidade humana.

83 depois para o nosso futuro. Abnega o que diz respeito ao seu futuro no interesse da clareza sobre o futuro de todos à sua volta. Condena a excepcionalidade na visão de si próprio, porque sabe que está meramente a realizar um potencial de ensino que reside em cada um de nós e sabe que, por vezes, este potencial é especialmente forte naqueles que lhe prestam r-nenos atenção. Mais do que apresentar uma visão a outros indiví duos, ele indica o caminho para uma pos@,íveI co-visão que resulta do encontro. Quando fala com um grupo de indívíduos, sabe que normalmente há um @iicon1ro entre ele e um escasso número deles; além d;@;so, há apenas um grupo daqueles que só podem ouvir sem escutar. O argumento do profeta é sempre - «Se me escutarem, poderão finalmente ouvir-vos a vós próprios - depois poderemos escutar-nos uns aos outros e passar a ver onde estamos e para onde vamos!»

O guru, que é, por outro lado, pseudo-messias - e todos os messias são pseudo-messias - imporia a sua visão e teria mais um séquito do que uma reunião. Ele é o único, o chefe, ao passo que o professor profético é aquele que descobre nos outros os seus poderes proféticos, tendo estes, assim, prioridade em certo sentido. Isto aproxima-se de um princípio semelhante que actua a nível político. Os falsos chefes são simplesmente presenças sombrias com carisma artificial de «grandes-hornens» passivamente regurgitado por processos sociais institucionalizados e não-humanos, por exemplo, os de Hitler, Churchili, Kennedy, etc. O verdadeiro princípio de chefia é encarnado por homens como Fidel Castro, Mao Tse Tung, que chefiam quase recusando serem chefes no sentido em que difundem para o exterior a qualidade de chefia, de maneira que os espíritos de milhões de indivíduos se tornam animados com as suas próprias qualidades de chefia e cada indivíduo se torna a origem única da luta.

Uma das principais funções do professor, por conseguinte, é deitar abaixo progressivamente a ilusão

84 predonninante de impotência. Não só nas instituições acadernicas, mas em todas as instituições da nossa Sociedade, deve-se ajudar os indivíduos a compreenderenn de que maneira o poder da élite governamental e sua burocracia não são nada, nada senão o seu poder recusado e exteriorizado. Depois, é uma questão de recuperação desse poder; e a estratégia de recuperação é bem simples: acção contra as «regras» e a própria acção converte o poder ilusório deles em poder real em nós. Também me surpreende como os indivíduos limitados acham significativo falar com outros indivíduos. Se declararmos mesmo a um outro indivíduo um conhecimento significativo sobre nós próprios, ou declararmos talvez um conhecimento que temos sobre eles, a ramificação desta afirmação por um número infinito de outros indivíduos pode ser aterradora - e, regra geral, infelizmente não reconhecida tal e qual é. Um conhecimento bastante significativo pode alterar radicalmente as relações na família daquele indivíduo e também numa vasta rede de indivíduos além daquela. Assim, um conhecimento significativo de um indivíduo «vulgar» numa realidade social pessoal ou mais ampla

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pode afectar centenas de pessoas. Se a libra desce mais de uma vez, a influência é proporcionalmente maior. Muitas pessoas, que manifestam «desilusões orrinipotentes» sobre a extensão da influência das suas ideias em relação às ideias das outras ou ideias de ligação com pessoas aparentemente remotas, estão, de facto, a expressar a sua experiência do que estive a descrever - mas em termos socialmente não-aceitáveis. Em seguida, baseando-se num condicionamento anterior à posição da vítima, conluem com a sua invalidação pela sociedade - por exemplo, incluindo na sua rede de influências, instituições tão absurdas como a Scotiand Yard, a Rainha de Inglaterra, o Presidente dos Estados Unidos, ou a BBC. De facto, o aspecto essencial do que estão a dizer distinto da sua coloração superficial é mais verdadeiro do que, por exemplo, qualquer coisa representada pelas instituições

85 banais a que eles obedientemente se referem. A uma certa altura crítica, um rapaz que conheci, sentiu que a sua vida estava tão devastada pela falsidade à sua volta, tanto em termos das suas relações imediatas como das estruturas sociais menos imediatas, que decidiu preparar uma invasão a um-homem à BBC»O seu objectivo era dizer a verdade acerca da falsidade que, naquela altura, tinha reconhecido, e dizê-la pela primeira vez. A sua invasão foi completamente não-violenta e posta em palavras e ele podia pela primeira vez ter dito uma certa verdade na BBC, mas, como é evidente, foi rapidamente levado por um bando de polícias e colocado num curso de tratamento electroconvulsivo no hospital local para doentes mentais. Até agora, na nossa cultura, pareceu ser uma impossibilidade social um indivíduo receber, sem reacções de ansiedade e pânico, uma comunicação que ilude as banalidades estéreis e evasivas da conversação social normal.

86 DEPLORA A TUA CARNE DE PORCO

(ou de porco-espinho, se sentires espinhos naquilo que vou dizer)

As pessoas, evidentemente, são porcos. As instituições humanas, evidentemente, são chiqueiros ou centros produtores de porcos e matadouros de porcos. Mas porquê « evidentemente»? O «porquê» do «evidentemente» está no próprio curso da história. Os porcos rebolam na lama, assim como nós rebolamos com igual conforto na lama ecológica dos nossos efluentes e desperdícios urbanos e rurais. Os porcos destroem com frequência a sua prole, mas nós também o fazemos à nossa maneira humanóica mais desonesta. Estes modelos de porcaria descuidada e canibalismo gratuito estão, até agora, muito próximos.

O casal burguês convencional não só é o porco super-ambissexual como também uma fábrica maciça de toucinho. Nisto reside a sua principal ambiguidade. Aqueles que se escapam por uma saída de emergencia ou disfarçados de trabalhadores tendem a acabar num grande silo ou numa prisão ou num outro matadouro.

87

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Alguns, a custa de rnuito trabalho e sofrimento, consequem escapar e tornar-se saudáveis, e são estes que trazem i nev7;tavel mente consigo uni fardo profético.

Quanto aos restantes, acabanios por nos precipitar rolando num pedaço de lama de grande profundidade, no qual seremos enterrados, ou conseguimos ser fritos na cripta de um forno crematório tiarisformando-nos num toucinho duro e seco - rnantendo, assini, quentes os pés de porco dos nossos parentes.

Podeis ter a certeza de que não há qualquer acaso na designação de «porco» dada por jovens revoluciorinrios americanos à polícia e seus colaboradores, psiquíatras e autoridades falsas em geral. O porco é uma identificação propositada. A outra expressão «mater-i-i@aníaco» é mais ambígua no que se refere a poder implicar uma limitação da sexualidade de um indivíduo à mãe ou, alternativarnente, urna libertação de um tabu fle incesto.

Apf--.s,ar do seu canibaii@.,rTio, o porco é o animal ana- @ige@WF,'mcnI.e niais convidativo do mundo. Ele oferece todos rs que se lhe aproximam o seu orifício anal, (@om um protuberante iábio anal inferior. Através do I-Peonhecimento desta bestialidade convidativa, talvez r)ossarnos ver a nossa maneira de sermos as bestas que %omos para com os outros. Talvez possamos deixar de `@@er aquela besta estranha que se arrasta em direcção à r)ova Belém, como Y(,ats escreveu num poema a exr)ressar a sua teoria cónica, ou con-ica, da história. Talvez nos possamos. tornar não falsos messias mas verdaCleiros profetas, não a tagarelar mas a emitir mensagens Verdadeiras uns aos cutros. O falso messias exterioriza ‘@PPnas os maus espiritos do louco e trai-isríiite-os aos Suino,8, que irão precipitar-se pela encosta de Gadarene

baixo. O verdadeiro profeta mostra aos outros, através

t-,ripÍo, qual -9 maneira de des.JS k ças demoníacas, @@ntê-las no própric>4idivíduo e. integrá-las e protegê-las. AnsiaWio@; por coril1ecer o futuro do homem, que foi tão vio-

88 lentamente despojado por Cristo dos seus demónios. O homem que disse o seu nome foi Legião, porque tinha imensos números (arcaicos) internos familiares e pré-familiares. Acho que nesta parábola, podemos ficar certos de uma coisa: a loucura deixou, de certeza, o homem, mas não morreu com o porco - permaneceu in vacuo, à disposição de todos. A loucura, embora sempre particularizada em cada indivíduo, é também algo que penetra no éter humano. A loucura é uma visão experimental dum mundo novo e mais verdadeiro, que será atingido por meio de uma d es-estrutu raça o - uma des-estrutu ração que deverá tornar-se definitiva - do velho mundo condicionado.

Mas voltemos aos porcos. Em italiano, supõe-se serem blasfémias porco dío e porca madonna. Na realidade, nestas invocações (geralmente erguemos os olhos, quando alguém as profere), estamos a pedir a nossa fusão suína com Deus e com Nossa Senhora - tirai-me desta pocilga e levai-me para o vosso lugar mais elevado. Portanto, é invocação, não blasfémia. As blasfémias inglesas e francesas são simples. Merde quer dizer que alguém (ou algo) não presta para nada ou deve desaparecer e evacuar. Fuck ou Fuck you estão inocentes de qualquer qualidade transcendental e são, na verdade, anti-

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sexuais. O polaco vai ter com a tua mãe é igualmente imanente. Não pode haver confusão com porcos.

Se os porcos tivessem asas, como diz o provérbio, qualquer coisa podia acontecer. Ora, talvez os porcos tenham, de facto, asas misteriosas e invisíveis, e talvez nós não vejamos as asas, PORQUE temos medo que possa acontecer qualquer coisa. Nesse caso, somos porcos quer com asas invisíveis quer com vestígios delas. Para algumas pessoas, as asas são simplesmente invisíveis e podem ser feitas para aparecer em qualquer altura. Para outras, os vestígios de asas podem não se elevar nem voar jamais, mesmo em sonhos.

Não foi por simples acaso que Cerietti descobriu o

89 «tratamento» electroconvulsívo nos matadouros de Roma, onde se matavam os porcos por electrocução. Os porcos que não morriam, mostravam alterações consideráveis no seu modo de comportamento; e então, como é natural, ele começou a dar choques eléctricos a doentes mentais para modificar o seu comportamento, tal como Hitler matou «experimentalmente» 60000 doentes mentais também para «melhorar a raça». Isto está relacionado com o livro clássico do geneticista Kaliman, em que ele começa pelas maneiras de eliminar o inferior genético a fim de purificar a raça e, assim, elevar o nível cultural da humanidade. Uma grande quantidade de psiquiatras, que consideravam a loucura genética e constitucional, foram influenciados pela obra de Kallman, apesar da sua metologia duvidosa e dos resultados contraditórios que se publicaram mais tarde.

Mas a carne de porco, como nós, implica sempre dor. Como a legendária história do chinês, cuja casa se incendiou e cujos porcos morreram assados. Ele pôs o

dedo num dos porcos, mas depressa o tirou devido ao intenso calor. Chupou o dedo com a dor e achou o sabor delicioso, e assim se descobriu a carne de porco assada. Não há dúvida de que nesta história havia algo de intencional por detrás do incêndio da casa. A alimentação é sacrifício dissimulado, agulodiceénecrofilia disfarçada.

A carne de porco humana apresenta-se sob muitas formas. Num talho londrino, há um cartaz com uma rapariga nua, mostrando linhas traçadas no seu corpo para marcar as várias juntas de carne, seios, pernas, etc. Aqui, a dificuldade reside no facto de que as pessoas não se importam com a violência feita às mulheres em relação a torná-las puros objectos objectos - e até aqui as mulheres parecem ser quem nota menosquetodos.

A avidez pode envolver partes do corpo das pessoas ou pode envolver pessoas inteiras e grupos de pessoas ou até classes inteiras.

A avidez oral é, talvez, a que se compreende mais facilmente. Muitas vezes, as mães acham que os seus

90 bebés são ávidos até ao ponto de quererem absorver o peito todo - pelo menos! E, evidenteente, se não se amamenta e segura os bebés do modo instintivamente

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conveniente, eles exigirão mais alimento do que objectivamente necessitam. Esta avidez oral repete-se no caso de indivíduos que tomam drogas muito fortes ou álcool em excesso - embora haja, aqui, evidentemente, muitas camadas de i nteligi bíl idade além da situação oral infantil, que devem ser analiticamente examinadas. O canibalismo é supremo como uma fantasia de avidez, mas, na prática, é ritualista ou uma expressão directa da fome (ver o filme de Pier Paolo Pasolini «0 Chiqueiro»).

Melanie Klein referiu-se tão bem à avidez a este nível, que só me resta continuar com os mais remotos alcances da avidez.

O gênero seguinte de avidez que devemos considerar é a avidez de evacuação. Isto diz respeito à necessidade excessiva de evacuar ou lançar gases em outros indivíduos, uriná-los de uma grande altura, cuspir na cara de alguém, além do outro provocar primeiro. Atinge limites psicóticos, utilizando o termo no seu sentido convencional, com bombas e espingardas, tal como no massacre de My Lai no Vietname, que foi uma autêntica exibição de avidez de evacuação. Agora, se alguém será suficientemente ávido para lançar a bomba-H, ou dar rédeas a uma guerra química, é outro assunto.

A essência definitiva da avidez, além da sua direcção para o exterior, é que ela é auto-destrutiva - o que um indivíduo come ou evacua ou ao qual se torna subserviente, é o seu próprio eu!

A terceira espécie de avidez envolvendo partes do corpo é a avidez de retenção. É óbvio que quando uma criança retém as fezes que seriam o famoso presente para a mãe está, de certa maneira, a ser ávida (embora neste facto haja também uma boa maneira de ser egoísta, em controle dos nossos actos). Um campo mais misterioso é a retenção dos bebés no útero. Eu não acredito nem por sombras que isto seja medo ávido por parte da

91 mãe, acho que há uma avidez colusória entre mãe e fi- !ho para que este último permaneça dentro da primeira, cada qual consumindo avidamente o outro por meio de um sussurro visceral, um murmúrio através do cordão umbilical, intestinos, vasos sanguíneos, ureteres, etc. Se quisermos perceber alguma coisa sobre a prematuridade e pós-maturidade, temos de ter algum conhecimento desta linguagem visceral. Mas se a avidez, como muitas vezes pode ser o caso, satisfaz mutuamente, não será necessária qualquer intervenção alarmante. Mas receio que esta satisfação mútua não constitua uma verdadeira estrutura de avidez. A avidez requer uma cisão violenta entre a parte ávida e a parte de que a parte ávida está ávida. A resposta mais imediata a este facto é que a parte ávida penetra na análise da sua avidez, e a outra parte, pelo menos temporariamente, retira-se da cena de avidez, por mais doloroso que isso seja. Com base na rninha experiência, a avidez raramente provém de privação real, mas sempre de fantasias de privação que têm de ser examinadas. Na verdade, a avidez provém, frequentemente, não da privação real ou fantasia, mas de um excesso de amor. Um excesso de amor conduz a um estado de coisas em que os nossos olhos não-corpóreos se tornam maiores do que o nosso estômago metafísico. As pessoas que são ávidas deste modo são como as

crianças que ficarn enjoadas após um excesso de um delicioso bolo de amêndoa com frutas em festas de aniversário.

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O bebé deve sentir que é, e ser sentido que é, uma entidade humana separada, embora conjunta antes do nascimento e, pondo de parte a mãe sentir o seu abdómen e a outra entidade pessoal dentro dele, a melhor maneira de atingir este sentido de separação é através da existência de relações entre os pais durante a gravidez da mãe. O impacto do pênis no colo do útero faz o bebé sentir-se nitidamente «outro». Ser outro, neste sentido, é bem oposto a alienação, que significa fusão e

confusão e perda de identidade numa outra pessoa ou

92 num processo de trabalho. A evidência. destas asserções encontra-se precisamente na anamnésia devidarnente gerada de trabalho psicanalítico. Mas isto é, de novc, mais recordação da experiência do que memória simples e directa. Em terapêutica, o indivíduo pode, em certa medida, examinar a resposta fetal ao coito paternal, sem saber e sem memória no sentido vulgar*,

Finalmente, devemos considerar a avidez de pessoas inteiras que inclui todas as espécies de avidez de partes do corpo atrás mencionadas. Quando os indivíduos se agrupam numa rede é por vários motivos: alguns individuos desejam manter a sua autonomia e intimidade (embora não em segredo), enquanto outros desejam constituir réplicas de família que possam invadir a autonomia dos outros: esta última forma é avidez -

a violação do território interno de outro indivíduo. Se esta avidez prevalece, muitas vezes devido ao conluio dos outros com ela, a rede desfazer-se-á, provocando com frequência desastres individuais. Esta rede também sucumbe em termos de avidez competitiva de aclamação e fama.

Há também, como é evidente, a necessidade de introduzir indivíduos em linhas de produção, o que é avidez, e a necessidade de introduzir acontecimentos sobre indivíduosem computadores,ci quetambérné avidez.

Em seguida, há também a avidez de genocídio tal como o desejo do governo dos Estados Unidos em consumir o povo vietnamita.

Parece que, pelo menos, no primeiro mundo, somos todos uns porcos ávidos. Sinto-me já a transformar-me em bacon!

* Outra possibilia,@de a considerar é a retenção de um periodo menstrual numa m@,;her que queira um filho não naturalmente, mas em lugar da avidez,

93 A OUTRA MARGEM DA TERAPÊUTICA

Gate, Gate, Paragate, Parasamgate, bodhl, svaha. (Foi, foi, foi para a outra margem, passou são e salvo para a outra margem.)

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Uma das ilusões mais grotescas que afligem os pianos de vida, quer estes sejam planos individuais, de grupo ou colectivos, é a noção do Fim Perfeito. Também soa muito razoável e honroso formar uma ideia clara sobre um objectivo de vida. Na verdade, como podemos deixar de fazê-lo?

A noção do fim, normalmente, toma a forma de uma relação perfeita e libertadora, na qual finalmente se transcenderá toda a negatividade numa união amorosa perfeita, ou será a viagem perfeita que finalmente nos

levará «lá» (sem se fazerem perguntas sobre donde viemos, com o fim de lá chegarmos, ou onde, se em alguma parte, se encontra «lá»); ou será o orgasmo perfeito que reúne a nossa animalidade e espiritualidade numa só natureza: ou será o plano de trabalho perfeito, no qual nos realizamos verdadeiramente - se bem que só com o vazio do nosso eu. Mas em nenhuma parte o

95 carácter grotesco é mais aparente do que na ideia de rnaturidade, que frequentemente se supõe ser um objectivo da psicoterapia. Em termos efectivos, a maturidade significa uma liquidação dos valores dominantes da sociedade burguesa, alcançados através de uma pietora de consciência especial, mas com inconsciência total do significado histórico da nossa própria transformação renegada.

O único sentido de «homem maduro» que acho significativo deve ser nestes termos. Em primeiro lugar, leva «um homem» a viver fora da realidade da mulher que é. Leva ainda mais um homem, «o homem maduro», a viver fora da realidade da criança que é. O homem maduro é o homem verdadeiramente criança, uma vez que quando voltamos aos longínquos momentos infantis e do pré-nascimento da nossa história, e quando não paramos lá, descobrimos, por fim, no nosso eu um velho homem-mulher sábio, que é o sinal experimental de maturidade, de uma maturidade remota, que pode apodrecer muito rapidamente no eu que, se estamos a tempo (isto é, se somos mais oportunos do que encerrados no tempo), está apenas, mas não totalmente, no ponto de piorar. Em qualquer caso, tem de haver uma divergência importante da utilização vulgar de palavras como as seguintes - homem, mulher, criança, maturidade, envelhecimento, e além destas palavras, construções como pai, mãe, os nossos próprios filhos, irmão, irmã e todo o resto.

Se se tem de girar a maturidade fazendo-a subir da maneira certa, de modo que assente mais em baixo do que em cima da sua cabeça, tem de haver uma revisão recíproca da sua antítese aparente: neurose. Para começar o desuso da palavra neurose, consideremo-la como uma maneira de ser que é feita para parecer criança através do nosso medo pelo receio dos outros sobre nós nos tornaNos infantis. A sociedade burguesa exclui os idiotas dostoievskianos sem nenhum elogio. Pelo menos, ao sermos estigmatizados de «neuróticos», precipi-

96 tamo-nos numa verdadeira região de medo social, à qual devemos ficar realmente agradecidos sem. malda-de. O medo é o medo da loucura, de ser criança ou até de estar antes-das-nossas-origens, de modo que qual-quer acto se possa juntar a outros contra

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nós próprios para suprimir qualquer gesto espontâneo, que socialmente tenha ressonâncias arcaicas disruptivas. «Na neurose», emprestamos uma falsa primazia às reacções dos outros e, depois, conluiada e amavelmente atraímos a nós o medo dos outros. Portanto, a neurose é uma estratégia complexa, que inevitavelmente é presa, por abrir, lutando, o caminho de regresso, primeiro à nossa própria cabeça e, segundo, ao nosso corpo, e «depois» ...

A neurose, pelo menos, está na direcção certa - não é algo que vá mal - e a terapêutica, no melhor sentido, está relacionada com um aparar de complexidades desnecessárias dessa estratégia, juntamente corri um reforço quase didáctico na çonsciencia das tácticas diárias de manter-se longe de agitações no sentido de uma maior invalidação social. O modo de operação da terapêutica -

e quando falo de terapêutica refiro-me a todos nós como terapeutas na medida em que somos a díade con- ‘inuadora do terapeuta/terapeutizado, embora o mo- @nento do terapeuta tenha de ser disciplinado para uma utilização social mais vasta em pessoas seleccionadas, não eleitas - consiste na recolha de várias ligações que, pelo menos, não privam o indivíduo da liberdade de voltar a ligar as coisas à sua própria maneira. Para o terapeuta, o trabalho da terapêutica reside muito centralmente na praxis negativa da não-privação, baseada na compreensão de que, neste contexto de relações, ninguém pode privar alguém de alguma coisa de qualquer maneira. O terapeuta culpado sente sempre que não está a dar o suficiente, mas o «crime» está na culpa e não no dar ou não-dar. As consequências mais destrutivas da terapêutica surgem quando o terapeuta se preocupa consigo disfarçado de outro. As alterações terapêuticas

97 deslocam-se primeiro pela fase do terapeuta, sem este estar disfarçado nem recorrer a uma ausência clássica. Pouco tempo depois, durante o qual tudo pode flutuar enquanto o terapeuta descobre o seu terreno, torna-se possível um encontro entre os dois indivíduos e o sistema de papéis binário de terapeuta/terapeutizado, analista/ analisando. médico/ medicando, sucumbe em plena fase de terapeia, O «enquanto» isto se segue é gerado não como um tempo em cada um dos indivíduos, mas na região entre os indivíduos, que é gerada por eles no efeito recíproco completo dos seus sistemas de tempo pessoais.

Mas um indivíduo dirige-se ao terapeuta com «sintomas neuróticos» ou «sintorTias psicótipos prematuros ou latentes» organizados com graus variáveis de articulação em expressões linguisticamente coerentes de angústia ou medo em qualquer das suas formas reconhecidas. Se o indivíduo é suficientemente sofisticado, certifica-se de que não cai no estereotipo psiquiátrico de ser «fóbico» num determinado modo estabelecido ou «paranóico» em qualquer das suas rinco ou seis ou cinquenta ou seiscentas variantes de expressão. Assim, através de uma determinada escolha de estruturas de linguagem, ele decide falar das sensaçoes que teve na rua acerca da reacção de estranhos perante a sua presença, apercebendo os pensamentos subtilmente comunicados sobre a sua maneira de ser esquisita o u, num sentido mais difuso, louca, ou decide falar em termos de reverberação ou ondas ou ressonâncias ou alterações cinésicas que recebe de outros indivíduos em qualquer situação sobre a maneira como ele «avança para» eles. Este é o probelma. Neste passo da história, o psiquiatra convencional mente treinado tem de ir-se embora para fazer alguns trabalhos de casa. Modelos interpretativos

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convencionais baseados nas relações interiores-exteríores - introjecção-divisão-projecção-reintrojecção - são sempre úteis, mas é apenas uma investigação etimológica muito antiga da terapeia (que,

98 em certo sentido, significa «servir» o outro) que torna o cuidar importante lia terapêutica. Mesmo o «servir» já não é socialmente relevante excepto como intensificação da invalidação.* Nem «ministrar», a que finalmente se juntou o prefixo ad-.

Mas não minimizemos o problema nesta altura. Alguém chega com sintomas «neuróticos» e estes não se encontram fora de uma realidade desviada e talvez urgente. A realidade centra-se num impulso desesperado para manter um valor de sobrevivência no mundo normal, sem o qual parecemos estar em abnegação necessária de urri,3 realidade pessoal prístina, para a qual o indivíduo começou já a sentir-se regressar.

Um indivíduo veio consultar-me com uma lista de sintomas que, quando se procedeu a nova contagem, atingiam um total de sete. Esta pessoa tinha certa lembrança de um mito que parecia adaptar-se à numeração das suas sete doenças. O mito era de um grupo, um corpo de sete sát)@os com óculos que, em vez de lentes, tinham espelhos em frente dos olhos. Por meio de uma etimologia fácil, é simples considerar os sintomas como uma queda em conjunto; requer apenas um pouco mais de esforço, mas talvez muita terapêutica, para ver um

conjunto original que simplesmente não podia acreditar ,,-n si, até que encontrou um espelho ou uma série de espelhos nos recessos de si próprio construídos de nada senão da sua matéria imaterial. De facto, os sintomas são uma forma auto-inspectora de desmembrarmos o nosso eu, mas, nesta altura, o eu está falsamente substancializado como uma meta de qualquer espécie -

temos de ser ou tornarmo-nos o nosso próprio eu.

* Em certos hospitais para doentes mentais da Inglaterra é cos-

tume os médicos visitarem as «suas>@ enfermarias no dia de Natal e ser-

virem o jantar aos <seus» doentes, que poucas horas mais tarde se ternarào, novarriente, esquizofrénicos delapidados crónicos. Neste caso, a

ironia é que existe alguma realidade de sentimento nesta troca irrisória. @4á um minúscido vislumbre de calor humano que se extingue em «comunidades terapêuticas>, menos feudais.

99 --- Um examinador de psquiatras concorrentes ao Diploma de Medicina Psicológica costumava perguntar aos candidatos, por que razão os esquizofrénicos se olhavam tanto ao espelho. A resposta que se esperava era «para se assegurarem de que realmente existern». De facto, o que os indivíduos, que correm o risco de chamar-se

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esquizofrénicos, fazem com os espelhos, é tentar ver através da aparência social do eu, o eu destinado aos outros, no nada que é a realidade do eu destinado a nós próprios. Olhar-se ao espelho não é um piano falso para reassegurarmo-nos de , @,m sentido de insuficiêncía ontológíca, pelo contr@-,,rio, é um esforço para não nos vermos mais, para vermos através de nós próprios como um indivíduo limitado a uma existência relativa circunscrita por outros indivíduos com ele relacionados. Poucos indivíduos conseguem aguentar esta auto-consideração não-relativa por mais de um ou dois minutos sem sentirem que estão a ficar loucos no sentido de desaparecerem. Eis porque os indivíduos utilizam os espelhos, não para verem o eu com a possibilidade de ver através dele, mas para ver-em manifestaçõ es fragmentárias como o cabelo, a pintura dos olhos, o alinhamento da gravata, etc. Se não efectuássemos esta fragmentação evasiva da imagem do espelho, ficaríamos com a experiência de que ver-nos significa ver através de nós próprios. Não pode haver nada mais terrível do que este facto.

Se consideramos a nossa vida uma trajectória linear fora de um passado, através do presente, avançando em direcção a um futuro, podemos ficar desiludidos (uma desilusão normal de que os loucos estão destituídos) quanto à concepção de haver uma meta nalgum ponto fundamental desta linha que dá à trajectória uma definição topográfica entre outras «linhas de vida» ou «linhas de mundo» sociais, dando assim significado às nossas vidas.

100 Pessoa Futuro

A Meta

Nada

O que fazemos é apoderar-nos de um pouco do nada do nosso futuro e convertê-lo num objecto quase-concreto da meta, que se encontra na trajectória da nossa vida, bloqueando, assim, a visão através do nosso próprio desespero para ver. Vivemos, então, por meio deste fim falso reificado e hipostasiado e, na medida em que vivemos por meio dele, morremos dele. Qualquer significado derivado de uma fonte exterior aos nossos actos, assassina-nos. Talvez tenhamos, pois, de determinar o significado, como sendo, muito simplesmente, nada senão o nada do ponto geomé trico da traJectória de vida, em que estamos neste momento. Talvez Deus tenha bastantes problemas nas suas mãos, sem comprometer os nossos e, em último lugar, os nossos relacionados com ele, como uma espécie de responsável pelos objectivos das nossas vidas, aprovado pela gerência de um banco - de facto, o maior problema de Deus, se conseguirmos ser suficientemente compassivos para aceitar a possibilidade, pode ser o seu problema sobre não ser Deus. Talvez a trajectória não seja mais do que o voo do seixo que nós lançámos ao mundo, que somos nós - não somos, com certeza, tão substanciais como o seixo que pretendemos ser, mas concebivelmente somos o seu lançamento e somos, certamente, algum momento do seu voo. Alterando a metáfora, podemos ser o local que já não existe, donde proveio a onda gigantesca de Hokusai. «Nós» lançamos o seixo no poço que somos «nós». A pedra afunda-se até ao fundo. Somos o «afundamento até ao fundo» e somos as pequenas ondulações (as ondas gigantescas, tsunamis), que se estendem a partir do ponto de contac-

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101 to entre a pedra e a superfície do poço, que já não está lá, pois o seixo deixou-a por um lugar onde também não estamos (o fundo de nós próprios). Uma verdadeira fenomenologia da ciência física deve e$tar relacionada com o aparecimento da acção e o desaparecimento dos objectos. Uma verdadeira fenomenologia do eu é baseada na realização do seu não-aparecimento, que surge em experiências críticas de ausência. Por outras palavras, o eu é sempre o local donde proviemos e para onde nos dirigimos, mas o aparecimento da nossa vinda é o desaparecimento do local, que ficou sempre sern existência no passado, no futuro e, muito evidentemente, no presente.

A realização da não-substanci ai idade do eu está na base do que, provavelmente, é a experiência mais radical e transformadora da «terapêutica», a experiência da ironia essencial no centro de alguma das situações pessoais mais agonizantes, em que podemos meter-nos. Os dois níveis que definem esta forma de ironia são, em primeiro lugar, o nível de um reconhecimento total e sofredor do «problema», e, em segundo lugar, o que importa é este reconhecimento da problemática e não a imaterialidade do eu que se aflige com o problema. O problema tem de ser visto, mas, inextricavel mente enroscado com o ver do problema, está o ver através do eu. E assim fartamo-nos de rir com o outro indivíduo que vê através do nosso eu e vê através do nosso ver <através do eu. A dor permanece totalmente real, mas pode tornar-se, agora, a bola de um alegre jogo, sem perda do seu valor como dor. A piada, que a consciência irónica leva a cabo numa realidade s@inultaneamente explosiva e implosiva, depende do reconhecimento conjunto do absurdo da noção do eu estar atormentado pela dor. É certo que podemos ser dolorosamente afectados por o,,itra pezísoa, mas, an,. -erto sentido, isto é, suficientemente Jaro e, em certo sentido, também não constitui problema: pelo menos sabemos onde estamos. A problemática mais místificadora e difícil, a que

102 estou a referir-me aqui, está dependente da ideia de afligirmos o nosso eu com o problema. Em termos de auto-consideração, somos seres relacionados. Se os seres

relativos são indivíduos que dão prioridade à sua consideração pelos outros contra a sua consideração por si próprios, os seres relacionados dão prioridade a um não-eu falso neles contra a verdadeira auto-identidade dos seus eus. Reflectimos em nós próprios, de modo que existe o eu reflector e o eu no qual o eu reflector se reflecte, e, evidentemente, podemos reflectir no eu reflector e decidir reflectivamente neutralizá-lo e, simultaneamente, decidir neutralizar uma decisão como esta. O efeito final desta rotação bastante comum é produzir um

eu isolado ilusório, que é algo parecido com um objecto esbofeteado pelo m undo nu m jogo de f utebol, que é totalmente passivo e totalmente triste. Todavia, através de algum reconhecimento irónico, podemos fazer a pergunta: «Quem é o eu aflito com esta problemática e

quem é o eu que se aflige desta maneira?», e depois fazemos mais uma pergunta: «E qual é, de qualquer maneira, a diferença entre estes dois eus?». Se fizermos esta pergunta da única forma que pode ser feita, a qual é paradoxalmente e com uma

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absurdidade de amor-próprio total e brincalhona, estamos simultaneamente a mascará-Ia; e esta é a irónica liberação em verdadeira auto-unidade.

Em resumo, temos de aprender a brincar com a dor. De otxro modo, repetimos jogos maçadores e intermináveis, tanto com outros como dentro de nós. A terapêutica está de acordo com o não-jogar destes jogos e o não-fazer perguntas, que são sempre mentiras obreptícias. A dor não é desvalorizada por este seu manejamento irónico, mas a alegria é impelida para uma conjunção astrológica com a dor. Em termos da vida de um indivíduo, a ironia é, o sentimento mais revolucionário de todos.

Todas as crianças, desnecessário será dizer, sabem tudo acerca disto. Cada criança ama-se o suficiente para

103 brincar com a sua dor, até -que lhe ensinamosos nossos jogos. Se olharmos agora para o berço da próxima revolução interminável dos nossos tempos, acharemos que o nosso hino é uma berceuse. Mas é uma canção que temos de escutar antes de começarmos a cantá-la. O estado de cair no sono é tão desastroso como cair no amor. A queda é contra-revolu cíoná ria em todos os sentidos. Temos de dormir, acordar e amar. Assim, a certa altura, caímos em vários estados de intoxicação, aproximando-n@>s, pelo menos, do amor e somos esmagados por ele ou talvez, com sorte, amados por ele. Mas, a dada altura, a separação tem de prevalecer, para que o par quase-monógarno se abra para o mundo. Toda a monogamia é uma pretensão a ser o que é. Um acto despretencíoso pode produzir não só uma cessação da pretensão, mas também iniciar, num modo que eu designaria de revolucionário, o começo do Amor e o nascimento da bomba -- mas não Aquela Bomba.

104 A REVOLUÇÃO DO AMOR E DA LOUCURA

O medo mais dominante e, para a maior parte das pessoas, secreto, mal expresso ou não expresso nas sociedades do primeiro mundo, é o medo de uma loucura sem limites, uma loucura que destrua a vida pré-estruturada não só de um indivíduo, o indivíduo que «fica louco», mas além deste toda uma região social de vida - alguém que conhece esse indivíduo ou que conhece alguém que o conhece, a fantasia continua, o mundo desfazer-se-á, nós arruinar-nos-emos, com todos os nossos espíritos apagados, inútil e finalmente. Não pode haver nenhum tempo limite para pensar no que está a acontecer. A loucura deles torna-se propriedade comum, é a nossa loucura e o problema que daí resulta é qual a melhor maneira de relegarmos a loucura para um lugar seguro - um lugar onde aquele «outro» se afasta, contendo com segurança em qualquer outra parte a nossa loucura para nós. Supõe-se que os colapsos mentais, psicose, esquizofrenia continuam por algum tempo. O tempo, com muita ironia, é prescrito medicalmente. «Ele» estende-se por semanas, meses ou anos. Tendo êxito no tratamento é apenas uma ques-

105

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tão de duas ou três semanas ou meses. Alguns cho .ques eléctricos, alguns comprimidos (com um lucro em tranquilizantes calculado em 1000 por cento para a indústria de drogas) podem reduzir esta prescrição a um número mínimo. De outro modo, leva pouco tempo mais para moldar este ou aquele indivíduo à forma socialmente aceitávei. Não devemos esquecer que os médicos e cirurgiões provieram de barbeiros, que barbeavam o couro cabeludo dando-lhe a tonsura certa - ou a errada. Mas, acima de tudo, exige-se o celibato.

O movimento está sempre relacionado não com as relações sexuais ma's com a alimentação. Deixámos na índia a sífilis letal, mas no Oeste, no século dezanove, morremos de tuberculose pulmonar. A tuberculose pulmonar é a nossa doença - este facto está totalmente comprovado.

Nunca conheci um indivíduo que não tivesse penetrado completamente na sua loucura particular e saísse dela dez dias depois, dada uma certa falta de interferência sob a forma de tratamento. Se um outro indivíduo pudesse ficar com o indivíduo que se supõe atravessar a experiência da loucura sem pedir ajuda de nenhum modo suspeito, eu pensaria que o indivíduo no primeiro caso penetraria naturalmente na sua experiência e depois talvez voltasse atrás para uma elucidação mais detalhada, mas não necessariamente desta maneira. Em termos efectivos reais, o único problema é como se manter afastado do silo, que pode ser quer o convencional hospital para doentes mentais, quer o seu sucessor ainda mais grotesco, a unidade psiquiátrica avançada do hospital geral, onde se tratam todas as «cloenças» por igual. A «Unidade» torna o sistema eunuco - e, com total concessão de subsídios pelo estado, ela decai, ao trabalharem benefício de uma fábrica de não-espíritos.

A sociedade do primeiro mundo é, evidentemente, uma sociedade de consumo. A sociedade do segundo mundo, evidentemente, com algumas qualificações teóricas marxistas-leninistas sobre o que ela é, aspira ao

106 mesmo destino. Através de uma curiosa evasiva da história, a doença mais letal da Europa imperialista charriava-se consumpção (tuberculose), mesmo «consumpção galopante», se se tornava bastante pior ou bastante próxima da morte, com a euforia final manifestando a satisfação que expressava a visão quietista de que nada de real está a acontecer: estou a morrer, mas sou consumido por um bacilo a partir do meu interior, portanto---, não se preocupem, aquentem e esperem. Esta doença cortou transversalmente as divisões de classes, podíamos ser um limpa-chaminés ou um soldado da África do Sul ou um escritor de renome, mas morríamos da doença que deu à luz o primeiro mundo. E, ao longo das dé cadas, Keats contraiu-a, Katherine Mansfield, Simone Weil contraíram-na, vós também podeís contraí-Ia. Tende-Ia e que ela vos tenha, vivei e morrei dela.

O país A (por exemplo, os Estados Unidos da América) compra tomates a um país B (por exemplo, um estado empobrecido da América do Sul) e vende-os novamente em latas ao país B com 300 por cento de lucro. Isto é conhecido por Auxílio, e o auxílio aproxima-se muito de ajuda e tratamento, sendo tudo maneiras de manter em ordem o mundo social, quer a nível pessoal quer macro-social.

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O sentido emocional do fascismo, nesta época, está terrivelmente espalhado. Já não é simplesmente uma questão de milícia, polícia e polícia secreta actuando violentamente contras as pessoas, no interesse do capitalismo de monopólio em crise. As instituições mais benevolentes da nossa sociedade tornam-se nossos opressores de um modo que relega as câmaras de gás de Auschwitz para o nível de uma ingénua e desajeitada tentativa de massacre; o último suspiro expiratório ciânico é apenas o começo da tortura. Técnicas de aniquilamento de corpos conduzem, evidentemente, a técnicas de aniquilamento de espíritos, e toda esta região de tecne tem presentemente uma qualidade vulgar. O seu verdadeiro horror, contudo, é que, quando ele chega

107 aos espíritos, ninguém se lembra de importar-se. Se as

torturas físicas se esquecem i nci dental mente, o esquecimento esquecido dos assassinos de pensamento e sentimento é bastante importante em relação à natureza do trabalho letal. Continuamos a viver, geramos e somos gerados por uma época de cuidado benevolente. Toda agente se preocupa com o destino do anti-estalinismo checoslovaco, mas ninguém se preocupa o suficiente consigo próprio, a fim de perceber, ponhamos de lado o protesto contra isto, a operação de verificação à maneira de computador relativamente a cada aspecto da sua

vida. Assim, todos se centralizam num estado falso que é «o» Estado.

Deixaremos entre parênteses a definição de verdadeiro estado e, quanto a este assunto devemos ficar por aqui, mas prossigamos com o estado falso que é o Estado. O Ministro das Finanças é um bom psiquiatra - diagnostica um determinado estado de coisas e, depois, introduz reguladores que controlam as entradas e saídas.O que ele não sabe é que, quando fala sobre a administração financeira da economia do país, está a falar com supremacia absoluta e absoluta inexperiência sobre uma certa tensão da musculatura do seu ânus. Ele esqueceu o seu corpo ou perdeu-o no corpo político. Cada palavra que diz sobre a balança de pagamentos poisa não nos lábios da sua boca mas nos lábios do seu ânus, palavras que escorregam em hemorróidas de sangue dolorosamente trombosado e estagnante, escondido nas dobras de uma esteatopigia política exagerada. Não é de admirar que os jovens, a fim de separarem as dobras e adquirirem uma visão clara sobre a escuríclão escondida, pensam em termos de pôr fogo às urnas de voto. Mas uma vez por ano, este Ministro consegue apresentar uma velha caixa preta contendo não um ex-

cremento saudável alegremente evacuado, mas uma porção de excrementos retidos, que é exibida aos operadores de televisão, que tentam colocar o saco ao alcance da visão do público e, em seguida, é retirada para

108 os escuros lugares recônditos suculentos e colónicos do seu espírito, que já não é o seu espírito, mas um não-espírito colectivo lamentável, que nunca tem irriportância através de uma série de negações de cada acto social, que possa mesmo fazer diferença a algum indivíduo. A última defesa efectuada pelo imperialismo inglês é a da inocência; para mostrar inconscientemente o que ele não sabe e depois esperar pelo melhor e fornecer

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armas a um bom manual de intrujice. A justificacão teológica para este facto vem, sem dúvida, de Mar@in Lutero, que sentiu que era um monte de excrementos no ânus de Deus à espera de ser evacuado para o mundo e, em seguida, com uma pura pretensão de passividade, esperou que outro indivíduo evacuasse. Ora, talvez a merda venha e talvez «outras pesoas» a façam. E talvez a Praça de Grosvenor ou a Praça de Saint Michei ou o Parque Central de Nova lorque ou toda a cidade de Chicago não sejam bacios de capacidade adequada para poderem conter todo o excremento sem derramar.

Em Cuba, espera-se abolir o dinheiro dentro de dez anos. Cada indivíduo poderá entrar nas lojas e servir-se do que precisar sem pagar, ou ir para qualquer parte de comboio ou autocarro sem pagar bilhete. Cada indivíduo será tão ávido ou tão abstêmio como precisar, enquanto o seu apetite for verdadeiro. Entretanto, todas as mulheres, homens e crianças de Cuba têm acesso a uma espingarda, porque sabem que em Miami há muitas pessoas com falso apetite, pessoas que estão decididamente condicionadas a tirar e a consumir e a não verem como estão a ser consumidas pelo seu consumo.

A pele é outra região muito difícil de experiência socio~política disfarçadamente corporificada. Estou a referir-me, é claro, à Política de Imigraçã o. Através das espessas calosidades da nossa paquidermia política, perdemos contacto com as extremidades dos nervos que nos transmitern contacto e nos deixam ser tocados, porque temos receio de ser «tocados» pelo nosso tacto. Em Inglaterra, a barreira da pele é crítica; lá, às nossas

109 cerlas «cabeça.-3» @@pretas» não deve ser autorizada nenhunia aquisição no solo da nossa cutarieidade susceptível de sujar-se. Mantenhamos fora do corpo os bocados negros e mantenhamos os espíritos brancos e puros - mas sejamos «limpos», enquanto extraímos os bocados negros. Assim fala a voz colectiva anónima de uma sociedade que nunca se expurgou a si própria, no sentido de eliminar-se através do suar dos poros da sua pele social, através dos seus poros, ou pobreza. Uma sociedade que nunca descobriu a sua própria pobreza, mas que sempre a atirou para o terceiro mundo. Stanley e Livingstone apertam a «mão» através da África numa masturbação mútua que nega o mundo nurna exclusividade sádica. Imagina-se que o Biafra está a sofrer, e a consciencia imperializante perde-se no Simbac,é, depois de perder milhares de indiví duos não-imaginários em campos de concentração ou nas forcas erguidas, sem aquele amor familiar intenso, pelos nossos leais amigos e parentes. Centenas de polícias paranóicos são mobilizados, tendo de deixar o fim de semana com a família para irem bater nos dissidentes na Praça de Grosvenor ou prender os comunardos de Piccadiily, mas não se manda nem um expulsar a grávida de Smith com a sua criança disfarçadamente incestuosa para as planícies invernosas e neves natalícias do Simbaoé. Isio deve ser certamente amor familiar no seu limite temerário. Mas, em seguida, mesmo as famílias mais seguras desagregam-se, quando alguém anseia bastante por não lhe pertencer, gerando uma contra-violê ncia revolucionária suficiente para des-estruturar a estrutura menclaz e introduzir uma verdade de sabotagem. Neste ponto, encontro uma equação subtil mas luminosa de loucura e victória política.

Em certo sentido, tudo o que temos a fazer, primeiro, no nosso contexto de primeiro mundo, é libertar-nos pessoalmente a nós próprios por meio de uma Revolução de Loucura. Se esta liberação é suficientemente radical dentro de nós e suficientemente extensa em toda a

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110 sociedade, significará que o primeiro mundo se torna incontrolável e que a sua estrutura de poder interna se desintegrará e, consequentemente, que o seu poder externo representado pela violência imperialista contra o terceiro mundo, não actuará jamais.

Talvez possamos falar de «loucura», que é a irracionalidade genocida e suicida do modo capitalista de governar pessoas, e Loucura, que é a tentativa individual, por parte das verdadeiras pessoas identificáveis, de se tornar incontrolado e incontrolável - não por uma espontaneidade indisciplinada mas por uma reforma sistemática da vida, que recusa uma sistematizaçao apriorista, mas que se desloca por fases de des-estrutu ração, in-condicionamento, des-educação e des-familiarização de nós mesmos, para que acabemos por viver com nós próprios em termos familiares m@s não de família e depois fiquemos prontos a nos re-estruturarmos de uma maneira que recuse todos os tabus pessoais e que, consequentemente, revolucionará toda a sociedade.

Tudo o que temos a fazer sobre o primeiro mundo é pará-lo. Podemos pará-lo, ultrapassando a pálida cor da nossa pele e entrando numa metamorfose livre de cor e de forma reconhecível no caleidoscópio político de jogo mortal. Entre outras cores, ficaremos pretos e vermelhos. Entre outras formas, ficaremos loucos mas nunca mais mortos.

Vaneigem tinha razão quando escreveu ceux qui parlent de révolution sans en réterer explicitement à Ia vie quotidienne ont un cadavre dans Ia bouche.*

A menos que gostemos demasiado do cadáver que consumimos e percamos a cabeça por causa do sabor da nossa morte, devemos cuspi-lo novamente na face do sistema que nos cremaria, para que mesmo o desesperado símbolo de Artaud sobre o nosso predicamento

* Aqueles que falam de revolução sem relacioná-la explicitamente com a vida quotidiana, falam com um cadáver na boca.

111 - nós, todos nás mudos fazendo sinais uns aos outros atravAs das chamas das nossas piras funerárias respectivas - já não seja possível.

Num sistema que é definido pela negação da negação, o sistema que diz não a todos os indivíduos e a todas as experiências que poderiam nascer e ser suportadas, sem se tornarem estúpidas na rapidez da sua vida, o sistema do estado burguês capitalista de união entre psiquíatra-polícia-família, talvez seja surpreendente que poucas pessoas possam ser tão implacáveis, de modo a

serem suficientemente generosas para dizer «Não!». Mas, em seguida, se abrirmos a surpresa à força, podemos aceitar a surpresa como um falso ressentimento que reflecte simplesmente a mistificação do sistema, que actua sempre em segundo grau a partir da experíência primária. Esta é a base pré-condicionada de todas as estruturas de jogo entre pessoas e é a base social das estruturas de recalcamento (Freud) e má fé (Sartre)

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- sendo a última uma versão re-concebida e socialmente extensa da primeira, que não confia num inconsciente semelhante a um objecto. Neste sentido, todos os jogos que jogamos uns com os outros são jogos capitalistas. A introspecção é um hábito burguês. Mas todos nós queremos ganhar. Mas queremos ainda mais ser «convencidos» (passividade) por sermos «superiores» (activídade). O destino mais feliz, o destino do Homem Contente, é ser impelido para a actividade. O último desejo do homem contente seria penetrar no mundo não com o seu pénís, que nunca poderia ser tão grande, nem com alguma potência metafórica, mas com algo mais, menos nitidamente separável dele - em qualquer forma da assim chamada castração - quer sendo alguém que lhe tire o pénís ou alguém que o afaste do seu falo impulsivo.

Ora, porque não o nariz? Um dos problemas mais comuns na terapêutica de homens é que eles têm, pelo menos, dois narizes. Um nariz, que vem da mãe, é enxertado no nariz «hológíco» original. Numa cultura

112 dominada pela necessidade de ser for[-2, de uma maneira que se torna social mente visível como força fálica, até as mães precisam de pênis. Se o pai leva o pênis para longe e perde-o no trabalho, em relações casuais ou em masturbação solitária, e se toda a pessoa do filho dessa mãe não pode tornar-se o seu pênis esquizofrénico, ela fica com a imagem interna do filho sobre ela, a qual é expulsa para qualquer outra parte tal como a ponta do nariz. Ironicamente, num exercício de meditação favorito, supõe-se que concentramos o ego no nariz e depois deixarrio-lo cair da ponta, de modo que somos atirados para lima liberação inegóica. O que normalmente acon-

tece é que a imagem interna da nossa mãe cai da ponta do nariz e regressa a pedir mais da personalização do eu, que, evidenternente,. ainda está todo lá.

Portanto, a família interna permanece e reflecte-se externamente em todas as nossas relações. A problemática ínterna é que, como Deus, temos de imaginar pais por falta da sua existência, e que, mais uma vez como Deus, temos de matar mães por quererern a existência -- de outra pessoa. Nada disto poderá ser necessário, mas nós passamos a maior parte do tempo directa ou indirectamente, consciente ou inconscientemente,

-ste tipo de exercício. É claro que o único problema é c,orno conseguiremos ser agradáveis e amáveis para com os outros e, depois, possivelmente um pouco mais, mas parece que pouca gente alcança o primeiro degrau desta escada de desfazer a falsa problemática. O nariz que sabe não é o nariz aparente que pensa que sabe o que o nariz realmente sabe. A gnose do nariz é uma capacidade do faro secreto que sabe da negação do na-

riz que é. O primeiro nariz, o transplante, é a pura afirmação que sabe que não ousaria saber absolutamente nada. A gnose que é o faro sabe que os narizes, de qualquer, mcdo, realmente não sabem e certamente nada sabem da negação, no sentido de dizer sem generosidade a alguém uma fantasia apresentada que está relacionada ou com narizes ou corn narizes que não são gnose.

1 13

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Falando de pais, Freud disse:* «Concordemos, portanto, que o grande homem influencia os seus contemporâneos de duas maneiras: através da sua personalidade e

através da ideia que defende. Por vezes - e este é certamente o efeito mais primitivo - só a personalidade exerce a sua influência e a ideia desempenha uma parte decididamente subordinada. Por que razão iria o grande homem até ao ponto do significado, não temos dúvidas absolutamente nenhumas. Sabemos que a maior parte dos indivíduos tem uma forte necessidade de autoridade, que os indivíduos podem admirar, à qual se podem submeter e que os domina e, por vezes, até os maltrata. Pela psicologia do individual, sabemos donde vem esta necessidade das massas. É a saudade do pai que vive em cada um de nós desde os seus dias de infância, do mesmo pai que o herói das lendas se vangloria de ter vencido. E agora, começamos a compreender que todas as características com que fornecemos o grande homem são traços do pai e que, nesta semelhança, reside a essência- que até aqui nos iludiu-dogrande homem.

Mas o que é este pai? A verdadeira violência é que se colocam as crianças na desesperada posição de precisarem de «pais», pais violentos. Um indivíduo que foi educado numa área da classe trabalhadora de Manchester por pais que frequentavam um partido comunista, que eram acadêmicos distintamente da classe superior, que tiravam os seus conhecimentos de livros de Spock, ouviu falar, cheio de inveja, de um amigo, cujo pai lhe dera uma violenta sova por ter dito « maldito sejas». Quando ele disse ao pai «foda-se», este respondeu-lhe: « Não deves falar assim com o teu pai na presença de outras pessoas». Felizmente, a família desmembrou-se, mas o filho não tem tido muita sorte com outras pessoas desde então.

Uma rapariga de cinco anos era filha de um missio-

137-4.

,<Moisés e o Monoteísmo>,, Hogarth Press, Londres, 1939, pp.

114 nárío médico do Norte da índia. O pai tinha estado ausente por mais de um mês, na qualidade de «médico de família» de uma extensa área. Quando regressou, a pelíza delirou de entusiasmo quando o viu de novo e atirou-se para cima dele, de uma maneira que ele simplesmente não podia suportar, por causa do seu carácter sexual e do sinal demonstrativo de alegria selvagem. Levantou a mão para lhe bater e acalmá-ia, mas susteve o movimento a escassos centímetros do seu objectivo. Corno alternativa, ele e a mulher discutiram o assunto e decidiram metê-la na cama durante uma semana até que «acaIr-nasse». Acalmou. Vinte e um anos mais tarde ficou novamente extática em relação ao marido e dois filhos. Numa tarde, durante um lapso de tempo, ela divertiu-se, fez jogos de linguagem e sentiu-se euforicarnente feliz, A mão levantou-se de novo. Desta vez, não voltou a acalmar-se e teve dê recolher à cama por uma semana num hospital local para doentes mentais. Discutiu-se sobre tratamento electro-convulsivo, mas ela nunca chegou a ter essa falsa gratificação punitiva. Não tinha estado assim tão mal, apenas demasiado feliz, portanto aquilo passou-lhe, em vez de ser eliminadu, com tranquilizantes. O pai-marido e pai-médicos proi,;@overam a sua re-admissão nas cinco ocasiões subse- @uentes em que ela se tornou demasiado aguda ou

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demasiado feliz, até que, ela decidiu sair de casa e viver só. Todos os lares são lares de família. Quanto à sua an. ti-instintividade, a família, como tivemos ocasião de ver, está intermínavelmente reproduzida por todas as instítuições desta sociedade. Sair de casa é a resposta mais breve possível. Esta rapariga só pode contar a sua história sobre o não--traumatismo original com o pai, anos depois de ter deJxado o sistema do hospital para doentes mentais, onde nunca se poderia ouvir essa história, porque contestava demasiado profundamente a estru-

tura de família do hospital.

A prostituta P, alguém que representa outra pessoa, pedaços e partes do espírito e corpo dos nossos pais e

115 irmãos e pais dos nossos pais e os nossos próprios filhos. O bom prostíbulo é uma cena familiar, em que podemos ordenar e dominar todas as nossas fantasias perversas incestuosas e polimorfas, de uma tal maneira que os tabus e medos da sexualidade dentro do sistema familiar são ultrapassados com disciplina, regulação de tempo e estrutura de honorários e, Mém disso, alguma dignidade.

No segundo capítulo deste livro, defini amor como estando baseado num acto C,),,recto de estabelecer separação. A sexualidade, que se d@'.7'ge para o amor, de cima e de baixo, da frente e de trás, é muito uma questão de técnica adquirida, e nenhum de nós está longe de aprender um pouco mais. Dentro do contexto de uma relação de duas pessoas, pode ser libertador para além das palavras, tornar públicas ou, pelo menos, visíveis as nossas fantasias mais temidas.

O psiquiatra seria uma prostituta ao nível da «tecne» de como devemos viver. Para fazer isto, também tem de aprender a ser outra pessoa para outra pessoa. A maioria dos psiquiatras são inexperientes ou «novos» nesta velha técnica de trabalhar com as pessoas sobre o que estão a fazer com a sua vida. É absolutamente fácil passar a ser uma figura-pai, mas isto é apenas o começo da história. Algumas comunas europeias declaram, como sua tomada de posição teórica, a abolição do pai, a substituição de um ideal paternal por um fraternal. O que elas, de facto, fazem, é re-imaginar famílias com uma proscrição quase legal de possibilidades de relações e, por vezes, uma verdadeira definição legal de relação, em que se celebra um contrato entre duas pessoas na presença de uma advogado, cuja tarefa é dispensar especial atenção à mulher e filhos. Neste caso, a liquidação dispendiosa é que a nada disto se chama casamento.

Voltando ao problema com que o psiquiatra se debate, parece-me que há uma rigidez de papéis que reflecte uma determinada escierose social. O psiquiatra é

116 impelido a ser unia figura-pai com alguns elementos de figura-i-fiãe adicionados a esta prostituição inicial, É muito mais difícil para ele, sentir-se criança em relação ao «seu» «cloente». Se o sentir, cai na armadilha de ver a outra pessoa como um super-ego paternal, que controlaria a sua vida punitivamente. É ainda mais difícil cair na posição, que creio ser a posição fundamentalmente mais importante em psicoterapia, que é a da

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antiga mulher-homem bissexual velha, que em certos momentos críticos explode num gracejo sério.

Um rapaz que, na apresentação, -me anunciou ser «um homossexual» (dando, evidentemente, à expressão uma determinada segurança de auto-definição) deu-me a ler uma carta da mãe que lhe era dirigida. A carta era sobre o colapso cardíaco que sofrera (ela tinha sido hospitalizada em várias ocasiões com ataques de coração*), quando visitou o Lago Genebra, que ele lhe tinha dito ser o seu «lugar espiritual». Ao ler a carta, que era, evidentemente, uma carta de amor cheia de paixão, senti uma transformação na minha relação com o rapaz no sentido em que me tornei sua mãe mais do que a mãe interna era sua mãe. A entoação da minha voz alterou-se, tdrnou-se mais aguda com a qualidade distintamente de Urmutter, ao passo que a voz dele se afundou num dominador som masculino. Tínhamos imaginado pais repetidas vezes, mas o ponto de alteração foi que, ao ler a carta da mãe, senti a extrusão progressiva da sua mãe interna em mim, não como uma idealização teórica mas numa experiência verdadeira.

‘A metáfora de «ataque» está vulgarizada na medicina. Sofremos um ataque de cólica biliar ou influença. No tratamento, continua a

mesma metáfora. «Atacamos,> a leucemia ou outras formas de cancro ou sífilis cerebral com tratamentos que, em si mesmos, são doenças. As estratégias médicas de ataque terapêutico parecem excluir não só as

possibilidades liberais de coexistência pacífica, isto é, com o nosso can-

cro, mas também a mais libertadora possibilidade de amar a nossa

117 Ele ficou com a vaga aparência do pai. Pouco a pouco foi percebendo, em sessões subsequentes, o seu medo ou o medo do pai pelo seu (do pai) amor por ele. Este facto concretizou-se na'sua imaginação, como uma equação sexual-agressiva, em que seria penetrado-ataca do-mascu li níza do por uma penetração orgásmica do «homem» numa desejada sessão de LSD comigo.

A natureza ilusória do desejo deste homem foi rapidarnente observada, mas a maioria dos psiquiatras es.tão presos ao mesmo nível de aspiraçã o e, em seguida, começa realmente a violência do tratamento psiquiátrico. O «outro», que contém a loucura da comunidade, tem de ser silenciado sob a forma de tratamento ou até de «conversão» anti-paulístana. Uma parte esciarecedora da história de terror é a diagnose e tratamento de «homossexuais» por métodos aversivos. Homens que, queixam-se os psiquiatras, se queixam de desejos homossexuais, têm um aparelho amarrado ao pênis que mede a força de erecção pelo volume de sangue no pénis. Mostra-se-lhes uma série de homens nus entremeados com uma série de mulheres nuas. Quando reagem aos homens nus por um aumento de erecção aplica-se-Ines um choque eléctrico, quando reagem à s mulheres nuas dá-se-lhes a «recompensa» de um não-choque. Foi avaliado que acerca de 70 por cento de homens homessexuais se «converteram» no final da experiência. Não se menciona nem uma palavra quanto à atitude do investigador em relação à sua própria homossexualidade, à reacção que qualquer ihdivíduo tem perante a dor Provocada pelos choques eléctricos ou, sobretudo, à qualidade das fotografias de nus. Tudo o que parece

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ter iniportância é que, no final, nos submetemos. O critério do tratamento psiquiátrico bem sucedido é, mais uma

n - - i ,@ver connosco nun-iz-, de anti-casamento, que pooeria deitar ab@ xo a redução estatitisc-. de certos cancros para taxas de sobrevivência de dois ou cinco ou sete anos após a cirurgia ou radioterapia. Em afirmação extrerna, podemos dizer que todas as doen- (:”- letais são suicídios no sentido de uma recusa ao amor. vez, considerado como sendo uma submissão aos valores dominantes da sociedade. Qualquer prostituta respeitável seria mais respeitosa do que este procedimento. Mas os psiquiatras ainda não são prostitutas respeitáveis. Devido ao seu treinamento, os psiquiatras tendem a transformar-se em homens idênticos nos mesmo fatos discretos e decentes de malha muito fina, com os mesmos atacadores cuidadosamente apertados, com as mesmas expressões de cordialidade e o mesmo sotaque de escola particular inglesa ou da Europa Central e

com o mesmo garrote em volta do pescoço que se amarra em volta do pescoço dos seus doentes, que não só representam o pescoço deles, como também o pescoço das galinhas de aviário nos talhos locais. Causa menor admiração que Cerietti tenha inventado o tratamento electroconvulsivo sob a fascinação dos matadouros de Roma - a inspiração da transformação da personalidade de porcos meio-chacinados é o leitmotíf da ó pera de estilo barato da psiquiatria contemporânea.

A certa attura dos seis primeiros meses após o nascimento, pode surgir em alguns bebés a seguinte situação crítica. Primeiro, o bebé gHta com aquele grito que é o mesmo da sua mãe, embora normalmente seja com o grito não gritado da mãe que, como é natural, o bebé grita. Há um determinado prolongamento de humor entre mãe e filho, o qual pode ser simbioticamente perpetuado indefinidamente mesmo na vida adulta, abandonando muitos de nós numa terra-de-ninguém emocional, em que nos encontramos em estado de não-gritar o sentimento de angústia não-gritado do outro (mãe). Mas, em seguida, a mãe pode demonstrar uma capacidade instintiva de ficar separada do filho, não indo automaticamente calar o bebé. Mostra uma capacidade de conter a sua própria perturbação e de deixar o bebé ter a sua. Neste caso, pode t@r consciência de uma alteração na qualidade do grito do bebé. Já não é o grito dela ou, antes, o grito deles mas o próprio grito do bebé. Em certo sentido, ambos hão-de saber e recordar sém-

119 pre, se esta experiência acontecer, e o seu acontecimento histórico deve certamente tornar-se evidente na terapêutica.

Na minha opinião, este acontecimento é um tanto raro, e devido à sua ausência, encontramos uma grande quantidade de instinto gregário compulsivo. Por exemplo, em recepções que são pessoalmente atornizadas, mas socialmente colectivas - o colectivo aton-iizado distinto do «grupo de confrontação» face-a-face, no qual os indivíduos se relacionam uns coni os outros a partir de posições autónomas.

O barulho gerado numa recepção é inaior do que a soma das vozes que falam, e a caracterização, que acho mais adequada para esse grito, é o desespero de cada pessoa

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em busca do seu próprio grito, o grito de que foram destituídas e o qual não conseguem encontrar Prn outras pessoas, mas numa região solitária através de outras pessoas. Assim, muitas pessoas vão a festas à procura de unia solidão correcta, mas, inevitavelmente, perdem-se no carninho, porque não estão seguras da sua necessidade e nunca imaginariam que vão à festa para não estarem lá. Portanto, a verdadeira solidão perde-se num isolamento frenético.

Podemos, talvez, definir uma festa que não seja como esta, no sentido em que a solidão se torna mais real, de modo que as pessoas falam livremente a partir das profundezas de uma ordem interior que não exige nada de outra pessoa e representa, por isso, o puro dom do abyssus invocat abyssus. Descreve r-se-iam, então, deste niodo, as pessoas que vêm à festa: duas pessoas que nunca se tinham encontrado, podem começar a falar, mas haveria um sentido previo de ligação em que uma das duas pessoas teria tido uma experiência significativa com alguém com quem a outra pessoa teria tido uri;@ z-m?r:-Ancia significativa ou, t;,@lvez, a uma pequena distancia disso r @as não mais. A «;Igaçâo prévia» nãc.@ constitui um Hmite de espontaneidade, mas, de facto, condiciona a possibilidade do seu aparecimento na oca-

120 sião. Não estou a sugerir a conversão da festa nalgum género de situação de trabalho austero, mas quero dizer que nesta situação são necessários trabalho e uma certa disciplina e que a alegria que se possa compartilhar provém deste trabalho anterior. Oposto à ideia convencional de «procurar novas relações» com uma qualidade inexorável de desespero, sugiro um regresso clíaléctico às estruturas de velhas relações, regresso esse que se desloca simultaneamente para uma nova região. Parte do «trabalho da festa», escusado será dizer, incluiria o desenvolvimento livre de relações sexuais, em qualquer forma, acessíveis a todos, com o cuidadoso respeito pelo direito de cada um dizer «não» sem que isso seja tomado como uma rejeição.

Por experiência significativa, subentendo qualquer acto, mesmo que ele seja momentâneo no tempo, de atenção total e registo total de cada pessoa pela outra. Isto poderia tomar a forma de um indivíduo a ver uma pintura, ouvir uma música improvisada ou ler um manuscrito do outro. Ou podia ser uma relação sexual em que se deitaram'abaixo alguns tabus físicos, ou podia ser uma sessão em que se utilizou uma droga como cânhamo de um modo friamente libertador; ou podia ser nalgum encontro terapêutico formalmente definido -

ou, ainda, alguma ocasião não definida, em que cada pessoa tem de cuidar da outra numa altura de aflição ou necessidade física.

Uma grande limitação na operação efectiva de grupos políticos radicais é que estes actos elementares de comunhão estão quer fragmentados quer simplesmente não reconhecidos e, em vez disso, temos um complexo infinitamente multiplicador de relações incestuosas que antes evocam velhos problemas de incesto do que os resolvem, e perpetuam bloqueios sexuais que ocultam uma fúria elevada mas inutilizável. A liberação deve terminar numa batalha revolucionária, mas também deve começar na cama. Neste caso, a cama é a cama em que nascemos, dormimos, sonhamos e fazemos amor.

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121 É claro que as armas têm o seu lugar, mas a cama é talvez a grande arma secreta não utilizada da revolução que temos de fazer.

Depoi's de revolucionários, loucos. Numa instituição psiquiátrica de recuperação, que custou às autoridades locais uma elevada quantia de dinheiro, os doentes provenientes do hospital local para doentes mentais são segregados sexualmente e a porta entre a ala masculina e a feminina pode ser aberta, mas tem um olho electrónico. Se alguém tentar atravessar esta soleira após uma

certa hora, toca uma campainha no quarto de dormir do enfermeiro que, evidentemente, dorme (pelo menos) com a mulher com quem está devidamente casado. Para muitos indivíduos que estão hospitalizados como esquizofrénicos, o principal problema é a apresentação mistificante dos pais pelo medo sexual, de uma maneira que caricatura o medo sexual difuso de toda a sociedade burguesa.

Certo dia, quando percorri uma unidade para rapazes designados esquizofrénicos dentro da estrutura do Serviço Nacional de Saúde, o patos de privação sexual era quase inacreditável. Um rapaz foi a Londres visitar uma prostituta e, pouco tempo depois da sua transferência para uma enfermaria fechada noutro hospital, foi habilmente levado pelos pais, após ter passado um fim de semana em casa com eles, e ter sido tão condicionado em relação a não guardar segredos, que lhes disse a verdade. George Washington - esse homem que não dizia mentiras - tem muitas contas a prestar. Desde que a questão seja as famílias, uma das principais experiéncias de aprendizagem em terapêutica deve ser a aquisição de uma capacidade adequada de mentir, pois se dizemos a mentira certa, estamos a dizer a verdade do sistema mendaz.

A chamada desagregação sexual dos hospitais para doentes mentais é, simplesmente, uma mistificação ulterior no gênero de traquinada clínica, que somente mais tarde prenderá as suas vítimas. No caso da unida-

122 de a que me referi, sugiro, como maneira de poupar rapidamente o dinheiro do Serviço Nacional de Saúde, o

emprego de um ou dois homens ou mulheres experimentados (esta era uma enfermaria só de homens,) que actuariam como sacerdotizas e iniciariam sexualmente

os rapazes - pagas pelas horas extraordinárias, se necessárias, devido às chamadas perversões. A técnica é de grande importância na sexualidade, mas a sexualidade é o objecto mais temido do serviço psiquiátrico, que precisa dos seus loucos e tem medo de perder a sua razão de ser, que não e nada razoável. Portanto, as policlínicas multiplicam-se, como acontece com a variedade de drogas tranquilizantes, como acontece com os olhos electrónicos literais ou metafóricos que, no interesse de um ideal familiar remoto e estúpido, controlam destrutivamente todas as possibilidades extáticas de experiência e qualquer tentativa feita em direcção a uma libertação sexual.

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A maioria dos tranquilizantes tornam os indivíduos gordos e impotentes, mas i ndu bitavel mente mansos. De facto, o doente torna-se o outro ego do psiquiatra sistematicamente degradado.

Por detrás da facilidade do dito de Wordsworth de que «a poesia é a emoção recordada na tranquilidade», jaz uma verdade muito importante. A lembrança implica um desmembramento analítico de certas regiões de experiência e, depois, reconhece certas formas de desmembramento, que é a operação analítica. Neste caso, inevitavelmente, a disciplina penetra e, muitas vezes, alcança-se na linguagem verbal. O recalcamento, no

sentido de Freud, tem muita relação com a experiência que é «expulsa» do espírito e tem de encontrar o caminho de regresso para a experiência conhecida através das redes de arame farpado das palavras. Por outro lado, a recordação é um acto essencialmente extra-verbal de reunir todas as partes da nossa vida numa só, revivendo verdadeiramente alguns dos momentos experienciais mais remotos da nossa vida. A disciplina, neste

123 caso - e é tão forte como no caso da lembrança - não é analítica:a definição de sectores de experiência e a definição de sectores e inter-relações através destes limites; mas antes é poética. A tranquilidade é importante, pois significa uma solidão certa, a solidão dos seis primeiros meses, de que tenho estado a falar, quer fisicamente, quer na presença de outra pessoa, que possa catalisar o desenvolvimento, mas nunca interfira. O verdadeiro poeta sabe que as palavras no nível mais profundo não têm relação com a experiência que é a recordação de si próprio, de modo que gera, de facto, uma violência contra a linguagem que torce o nariz das palavras e, depois, insere nele um arganéu, através do qual concluzi-las-á à realidade da sua experiência recordada. Se os poetas são atletas do extra-verbal, então muitos indivíduos são designados esquizofrénicos.

Grande parte da psicanálise tende a ser análise redutiva desde as estruturas verbais proferidas no presente às estruturas pré-verbais que regressam à altura da nossa vida, em que quase literalmente não podíamos falar, e depois prossegue novamente para um presente decidido. Creio que existe uma continuidade extra-verbal de experiência que vem de certos pontos no tempo que precedem a nossa concepção e nos atiram em reinos, que continuam após a nossa vida.

Alguns indivíduos designados esquizofrénicos parecem agir durante a maior parte do tempo nesta continuidade extra-verbal. Assim fazem os poetas, mas os poetas oferecem ao mundo concessões talentosas, mergulhando no passado do Mundo. A disciplina da poesia, e estou a referir-me a poesia no seu sentido mais lato, incluindo pintura, música e outras formas de arte, não consiste num desdobramento de cartas em papel, tintas em tela, notas em pautas ou técnica instrumental, mas numa operação interna anteriorqueé otrabalho da arte.

A tradição muito recentemente evocada de tocar e abraçar pessoas, a nova tradição de abraçar e beijar qualquer pessoa em todos os encontros e não apenas

124

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em reuniões socialmente prescritas, parece-me ser boa, mas essencialmente uma manobra de dessexualizacãr) e anti-erótica. Introduz calor, mas, por baixo, estão vira dos os pratos congelados, para se misturarem ao calor e limitarem a sua extensão. Se vamos continuar na realidade transssexual do orgasmo que dialecticamente re-

tém a sexualidade no presente nível novo de síntese, temos de estar preparados para futuros movimentos constantes.

Loucura e Saúde Mental

o Verbal

(Análise Redutiva)

Continuidade extra-verbal

Um-verbal

Uma invenção que se movimenta para o futuro é a «terapêutica da carna», estritamente exterior ao reino enquadrado pela profissão, é claro, na qual duas pessoas que podem ser colocadas num retiro sexual de um

125 lado ou, ffiais tarde, de dois lados, são seguras por uma terceira pessoa que é suficientemente disciplinada para não intervir na relação, mas para gerar, através do seu

(dele ou dela) acto de segurá-los, com um carinho tão intenso que sente, por ambos, o próprio amplexo deles e depois, deixá-los, a fim de desenvolver uma relação exterior renovada do amplexo que eles conseguiram. Maistarde, um deles podefazero mesmo porele ou ela.

As relações múltiplas podem vir mais tarde nos sistemas de necessidade sexual de cada indivíduo, através de uma aquisição ulterior de disciplina que reforça outra vez a relação central de duas pessoas, de que, no presente momento histórico, a maioria de nós ainda parece ter necessidade.

Isto está tudo muito bem para os intelectuais sofisticados da classe média do primeiro mundo, os quais mesmo nesse momento, a menos que sejam guiados por um carisma, terão as suas «dificuldades», mas para as relações de homens-mulheres menos sofisticados da classe média e trabalhadora (estando a classe superior completa e finalmente dedicada à não-sexual idade), precisamos de uma actividade revolucionária mais totalmente operadora em toda a sociedade. É aqui que terão de aparecer, com compaixão orientadora, as greves perspicazmente dispostas, bombas e metralhadoras, mas também uma certa realidade que é completamente objectiva, vista e sentida pelos agentes da sociedade burguesa, contra quem só podemos ser compassivos em segundo grau.

Após toda a análise pessoal, o trabalho institucionalizado, a adição de drogas fortes e o vício alcoólico chegam a ser uma espécie de esforço subtilmente adquirido de conter

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uma alegria extática, que pode não casar com as bombas, mas vive numa união livre e completa com elas. Tudo o que temos a fazer com a estrutura do primeiro mundo, a estrutura que destrói o terceiro mundo e tem uma união ilícita paranóica e suspeita com o segundo mundo, é pará-la. Temos de paralisar o fun-

126 cionamento de cada família, escola, universidade, fábrica, corporação comercial, companhia de televisão, divisão da indústria de filmes - e, após tê-la parado, imiginar estruturas móveis e não-hierárquicas que distríbuam as possessões acumuladas em todo o mundo. Na devida altura, estas estruturas tornar-se-ão rígidas, devido à nossa atitude medrosa em relação à liberdade, mas se observarmos o princípio de revolução contínua - a destruição de estruturas sociais que, uns momentos depois, forjam inconscientemente a sua própria morte e, em seguida, aparentam ter uma certa vida -temos de encontrar uma maneira não só de sobreviver, mas de nunca mais voltar a cair no padrão normal do mundo, que é o único sentido de «retrocesso» que podemos recon,hecer neste período da história. Talvez as únicas relações «verdadeiras» sejam as que repercutem a se~ paração do grito da mãe e do filho. Daqui saem juntas duas pessoas. Daqui parte a revo';ução. Por vezes, conseguimos aproximar-nos o mais possível de uma verdadeira simbiose, se entre nós e a outra pessoa existe a distância de sete mil milhas. E depois, se sabemos que nas profundezas de nós próprios estamos dentro dele, passamos para fora dela e gritamos com o nosso próprio grito no nosso deserto não compartilhado. Bons e prestáveis amigos poderão tentar ajudar, mas esse é o gritodeles no seu deserto. Ora, essetipo de deserto, pelo menos, nunca pode ser possuído como território de alguém. Atravessamos a topografia interna de um eu que, como tivemos ocasião de provar, é uma abstracção que conduz a um nada que está além, só na medida em que era tão anterior ao eu, que falamos dele quase sem humor.

A principal realidade que consigo entender no que se refere ao que os indivíduos consideram orgasmo é em termos de uma entrada não-possessiva no orgasmo do outro. Aquilo em que nos tornamos é esse aquilo que é o que é.

Pareceu-me que os dois ou três mil indivíduos, com

127 quern falei na ultima década, não tinham rienhuma articulação de experiência que se aproximasse daquilo que eu consideraria experiência orgásmica. O orgasmo é a experiência total da transsexualidade. O que mete é penetrado no decorrer da sua (dele ou dela) relação. Ao ter relações, tornamo-nos não só ambos os sexos, mas todas as épocas e todas as gerações. Tornamo-nos uma criança ditosa e também, simultaneamente, um antigo sábio bissexual. Acima de tudo, num acto de evacuação maciço, deitamos fora toda a constelação familiar interiorizada. Assim, ter relações torna-se a transcendência da não-relação dos nossos pais e do não-amor das famílias.

No contexto do primeiro mundo, penso que precisamos, simultaneamente, de uma Revolução de Amor, que re-imagine a sexualidade, e uma Revolução de Loucura, que re-imagine o eu e, por conseguinte Revolução em termos de uma paralisia muito mais directa das operações do «Estado». No primeiro mundo, o nosso dever revolucionário é

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bem simples. Tudo o que temos a fazer, como já disse, é pará-lo e divertírmo-nos, introduzindo em nós no decorrer do processo uma alegria, de que estávamos privados.

O que penso que temos de fazer, em termos do primeiro sistema de necessidades a que me referi, é criar as condições de relação para uma corte amorosa não-competitiva. Todos os pênis e vaginas são muito semelhantes, excepto em termos de minúcias de experiência, que também são muito importantes. O «êxtase do ego», ao comparar as experiências sexuais, é simplesmente irrelevante nesta época. Tudo o que temos a fazer é sentir, tanto quanto possível, um amor extático numa separação completa.

128 MORTE E REVOLUÇÃO

Vestes negras

Porque estou eu de luto? Pus luto pelas famílias pela loucura nunca pus Mas agora permito-me pela perda do amor no rnundo p-,los respectivos destin,,@s dos meus pais j@@elo amor mais intenso que soube ter destruido. Sobretudo estou de luto em relação à minha própria morte que precisamente é a morte que teimosamente vivo E estou de luto pela morte do amor no mundo E pela não-distinção entre morte e amor Estou de luto pela não-distinção mas também por um excesso de distinções Estou de luto pela minha incapacidade de acabar com todas as diferenciações no mundo para assim transformar o cosmos numa actividade Estou de luto pela aparente distância

129 das estrelas e galáxias Porque não posso encontrá-las todas num lugar que é o meu coração que é o coração do mundo. Estou de luto porque os anos de luz entre nós e a Andrómeda são um mito em que as pessoas acreditam. Andrómeda está em nós e nós

nela. Estou de luto pela falta de uma verdadeira violência que se liberta por meio da destruição da morte - uma violência que ternamente deposita unia

bomba no coração da morte. Mas sobretudo estou de luto pela minha própria morte Mas talvez seja outra mentira Talvez eu só esteja de luto Talvez só esteja Talvez eu só seja um ser que só existe Mas talvez eu só esteja de luto.

Addendum: Pode haver uma certa alegria secreta no luto, que reside na pureza quase platónica na Ideia de «só luto» e que na hierarquização das Ideias equípara-se algures ao Amor.

Penso que se quisermos compreender o luto, temos de imergir em reinos de experiência que não são apenas de pré-nascimento, mas também anteriores à concepção. Também temos de considerar a experiência de pós-morte na medida em que a pudermos ter durante o nosso período de vida.

Existe um luto particularizado, sobre o qual estamos bem informados através da obra de Karl Abraham e Melanie Klein. Isto envolve a introdução em nós dos pais, que destruímos em imaginaçao por meio dos ataques sádicos que lhes fazíamos, com o

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consequente trabalho de reparação. Além desta forma de luto, que está muito dentro da nossa vida, existe um luto que vai além da duração da vida.

130 Acho que a Geworfenheit de Heidegger é fenomenologicamente verdadeira, verdadeira como experiênc@a de ser «lançado ao mundo» por ninguém e por nenhuma razão; mas esta não é toda a verdade e nem por sombras a verdade divina.

Eu alargaria a noção de responsabilidade pessoal às condições que orecedem a concepção e às condições que surgem após a nossa morte. O luto, por conseguinte, pode ser por toda a nossa vida rodeada pela experiência responsável, experiência pela qual temos de responder antes e depois da vida que visivelmente vivemos. De facto, pode haver urna pura vida de luto, que não é inteligível em ermos de análise redutiva - isto é, a análise que se refere a experiências anteriores depois do nascimento com vista a constr'uir um modelo útil do ;3onto de vista prático. Este é um luto que, de uma maneira constante, tinge toda a vida de negro - mas sabemos, pois, pelas ciências naturais, que o negro encerra realmente todas a- cores e todas as cores do mundo emergem desta negrura - da negrura do luto por toda a existência pessoal.

As experiências de pré-concepção recordam-se sempre. Transformamo-nos em macacos primitivos, (flnossauros, nas primeiras formas amébicas e, em se- ,,@jida, formas inorgânicas, serripre sem sabermos aquilo em que nos estamos a transformar. Este facto não é imaginação mas recordação verdadeira do passado no presente. Fazemo-lo, apenas, sem vermos nem nos lembrarmos do que estamos a fazer. Apenas está lá tal como os lugares primitivos donde viemos. Através de um futuro acto de recordação, poderemos mergulhar um pouco atrás na origem do cosmos (que é o nosso eu). Não precisamos de LSD para lá chegarmos, porque- se ao menos o soubéssemos - estamos lá. Uma das principais funções da terapêutica é lançar um raio de luz a estas presenças arcaicas. Por exerriplo, certos movimentos que fazemos, podem distinguir-se nitidamente como sendo semianos ou de réptil ou de peixe. A uma

131 certa altura, podemos ser muito mais verdadeiramente macacos do que homens. Contudo, isto está tão retirado da consciência quotidiana que através da disciplina terapêutica temos de adquirir uma nova forma de apercebermo-nos disso, porque é prec@samente desta região de complexo arcaico de presenças que começamos a distinguir a integridade da vida. Mas, para atingir realmente esta integridade de auto-visão - que, como é evidente, não substancializa o eu, mas permite-nos ver através «dele» de uma maneira mais verdadeíra -temos deteruma vísãodo «outro lado», o lado de pós-r-norte.

Tenho de pôr entre parênteses qualquer experiência que adquiramos após a morte biológica do nosso corpo e deixar-vos reflectir sobre o Livro dos Mortos Tibetano e o Livro dos Mortos Egípcio, o De Ar-te Moríendi e outros escritos medievais sobre a arte de morrer.

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Mas deverei concentrar-me em experiências de pós-morte dentro da duração biológica da vida. Estas ocorrem na chamada psicose, nas chamadas experiências místicas, em sonhos e em certos estados provocados pela droga. Raramente também podem ocorrer quando o indivíduo está acordado, sem, no entanto, estar ocupado em algum dos quatro tipos de experiência acima mencionados numa detestável linguagern de categorias.

Em certas formas de experiência «psicótica», existe, à altura da experiência, uma nóia pura, em que o «exterior» se torna contínuo consigo próprio através do «interior», de modo que se perde todo o sentido do eu. Não devo insistir neste assunto, pois foi já suficientemente bem descrito anteriormente, em especial na obra de R. D. Laing.

Com respeito a sonhos relativos à experiência de pós-morte, temos de considerar a forma como normalmente os sonhos terminam ou o seu conteúdo é suprimido, antes do momento da morte. Por outro lado, podemos ter sonhos que prosseguem a experiência de pós-morte durante o sonho, como acontece com raros

132 indivíduos. Um médico-círurgião, sonhou que estava a explicar a anatomia do crânio a um grupo de estudantes de medicina. No sonho, ele cortou a sua cabeça, pô-la no chão e cortoWa ao meio, ficando o muco a escorrer, das narinas. Em seguida, mostrou em pormenor, a configuração do cérebro (a sua mente) com fascínio e uma sensação de conhecimento total. Depois, calmamente, deu um pontapé na cabeça, a brincar, e dirigiu-se para a morte,@ lançando um olhar retrospectivo por toda a sua vida terminada.

Noutro sonho, um médico, numa outra vez, sonhou que ele, médico, estava a «efectuar» uma autópsia de um cadáver que era o seu com a idade, pelo menos, de trinta anos. O que fez, no sonho, foi estripar o cadáver pouco a pouco e dissecar cuidadosamente cada órgão e, depois, reunir nas mãos todos os pedaços dissecados e depositá-los novamente no espaço intra-abdominal vazio e., a seguir, coser grosseiramente a grande incisão da autópsia, que ia da garganta ao púbis. Em seguida apareceu uma bonità'enfermeira que tocou cuidadosamente no morto reconstruido, fazendo o cadáver sentar-se, vivificado, pronto a deslocar-se para uma futura cena de pós-morte, com uma simples gratidão e um olhar fugaz mas retrospectivo a toda a sua vida.

Sonhos como este aproximam-se da experiência acordada xamanista de desmembramento do corpo, seguido de ascensão à região espiritual e, depois, de descida para um corpo reconstituído testemunhado pela tribo. Tudo isto são formas de morte real durante a vida biológica, e a partir das posições de morte revemos a integridade da vida.

A seguir aos sonhos, as drogas. Um indivíduo, numa viagem de LSD, viveu uma experiência de crucificação completa. A uma dada altura, caiu numa cadeira com os braços estendidos que se iam tornar a cruz a que ele (assim como todos nós) estava pregado. O seu rosto ficou azul, depois negro e não se sabia, ao certo, se o coração ainda batia. Colocado nos braços do seu com-

133

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panheiro, começou gradualmente a reviver. Na experiência da morte, tivera uma visão completa de toda a sua vida - sendo o futuro urna pura esterilidade, assim como o passado. Dois anos mais tarde, realizou com enorryie sucesso uma exposição de pintura que me pareceu ser totalmente antitética ao seu anterior estilo de vida. Contudo, esta transformação foi inteíramen,e con-

dicionada pelo facto de que ele teve o acompanhamento humano «cento», e que viajara suti ci entem ente longe através do terreno inesperadamente p@esente da rnorte.

Numa experiência com LSD, que eu próprio fi,_@ morri relativamente à existência de David Cooper, que, até então, estivera vivo, de saúde, a trabalhar em Londres, e transformei-me num sábio mongol de cerca da rnetade do século dezanove. Os olhos transformaram-se em olhos mongólicos, fiquei com um grande bigode pontiagudo aos lados, os cabelos pretos compridos amarrados atrás, e os fatos modificaram-se apropriadamente em rriantos forrados a pele. Estava a comer um petisco muito bom da Ásia Central, com macarronetes compridos (quer os macarronetes compridos figurem, de facto, ou não, nas ementas da Ásia Central). A refeicão que ele me viu saborear, penso que era boeuf à Ia @ou9uignonne, transformou-se em pequenas serpentes venenosas e, com compaixão, ele viu-me morrer e observou o meu cadáver com perfeita indiferença. E testemunhou a sua decomposição. Dentro da experiência, o testemunho pareceu importante. Senti que nunca devíamos ser enterrados, e muito menos, incinerados, mas expostos num ataúde, numa árvore, para que a nossa

decomposição fosse testemunhada pela Nova Tribo.

A ocorrência de experiências de pós-morte na cons-

ciência acordada do dia a dia é mais difícil de definir. Esta noite, depois do jantar, quando estava a escrever, r-@ o@re-r de @@-na discussão com quatro indivíduos muito inteligentE @ e simpáticos, pediram-me para expor algumas das minhas ideias. A uma certa altura de confusão, a conversa desviou-se para questões de problemas

134 de trabalho institucional, em que estes indivíduos estavam ocupados, e a reunião transformou-se numa tagarelice defensiva que se tornou cada vez menos significativa para mim, à medida que a noite avançava. Senti-me ficar cada vez mais gelado cinesicamente e mal podia pensar - e muito menos concentrar-me - a menos que me distraísse à maneira de diversão pascaliana. Portanto, sem recurso a esta distracção, morri na situação. Senti um processo gangrenoso crescente, sobre o qual ainda tinha algum controlo, apoderar-se de mim até à ponta dos dedos dos pés e das mãos, até que cheguei a um ponto de putrefacção total do corpo, que mal podia cheirar, mas a cujo odor acabei, realmente, por me habituar. Durante todo o tempo, a minha postura social externa esteve normal, mas a um ponto pré-final, senti uma chama nas extremidades que me recuperou toda a vida; e depois, enquanto mantinha a postura normal, morri momentaneamente. Em seguida, anunciei que ia para a cama, pois estava a sentir-me «mal disposto» e os indivíduos resolveram ir-se embora, devido às obrigações do trabalho habitual no dia seguinte. No decorrer da cena, estive devidamente composto exteriormente, mas a culminante putrefacção era-me, em experiência, mais real do que a manifestação externa do comportamento, porque nessa experiência presente, todo o

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papel passado e futuro que desempenhei em vida foi encarado etotalizado do lado opostoaoqueé usual.

Esta foi, certamente, uma experiência positiva, mas também há maneiras de penetrar num estado de morte em vida - negativa, no sentido em que não é possível passar pelo estado de morte nem reemergir para a vida. Esta situação é bem demonstrada pela relação de controlo verdadeiro (disciplina) e controlo falso. Conheço -homens de negócios que bebem em excesso e, contudo, têm a seu cargo um trabalho «responsável». Isto é controlo falso, porque suprime a realidade das sensações de hostilidade, mas, mais profundamente, suprime sensações de amor. Em si, é normalmente uma agres-

135 são indirecta contra a principal pessoa na vida desse indivíduo. O efeito, todavia, é produzir um estado de morte em vida, que é equivalente a um ódio subterrâneo imenso ao mundo, que, muitas vezes, é exibido sob a forma de amor e benevolência, confiança e eficiência e, este facto, pode enlouquecer qualquer indivíduo, porque as racionalizações não têm fim. Normalmente, a única saída para este caso é através de uma crise espiritual que pode envolver o indivíduo nuni estado próximo da morte biológica, por exemplo, um acidente de automóvel quase fatal ou uma experiência severa de reti@o com súbitos ataques epilépticos e defiríum tremens, etc. A menos que esta crise seja suficientemente radical, o indivíduo fica tão cativado pela segurança do estado de morte em vida, quase semelhante à que se tem no útero materno, que ele reconstituiu o mesmo padrão, reforçado colusoriamente por alguns outros, dos quais consegue que o tratem essencialmente como um objecto -

«um alcoólico,,. O traçado da gênese deste padrão de oralidade no começo da vida é nitidamente uma questão de trabalho psicanalítico, mas terei de pôr este âmbito entre parênteses e passar a fazer referência à natureza da relação do controlo secundário (falso) com o controlo primário (verdadeiro).

Suponho que a maior parte das pessoas nem se aproxima da escolha entre controlo primário e secundário corno problemas básicos da vida, porque quase todo o tempo são símpiesmente controladas do exterior. Acho porém que temos de definir a natureza do controlo primário verdadeiro ou disciplina. Parece-me a mim que, essencialmente, isto toma a forma de promessa -

uma promessa que passa por todas as foirmas de partida, todas as viagens de morte e renascimento, a promessa de ficar completa e santamente no mundo num spntidc> redefinido do sacerdotal. A disciplina, portanto, é uma maneira d9 ficar activamente )cupado no mundo, correndo todos os riscos da alegria extática e desespero de maior alcance. Todavia, a promessa que define a dís-

136 ciplina deve ser feita a outros, não só internamente, mas também, pelo menos, implicitamente. A dor da promessa é imensa, é uma agonia derradeira que sofremos para vermos a vida e o mundo do outro lado de uma certa morte. Neste sentido, é mais do que auto-controlo e não deve ser confundida com auto-controio, pois pode envolver momentos de derrame por cima do bordo da chávena do eu - mas a promessa deve ser,

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de certa forma, registada no mundo com uma recusa simultaneamente prometida da possibilidade de retraí-Ia, ou quebrá-la.

Mais do que isto, a disciplina é uma espécie de anti-termostato. A maioria das pessoas liga e, depois, desliga automaticamente, isto é, de uma maneira ritualista que se espera delas. O Homem da Disciplina liga e desliga inteiramente por uma opção que está condicionada ao seu sentido de rectidão e franqueza do contexto humano e ao seu sentido do momento exacto relativo à acção recíproca do seu sistema de tempo com o dos outros. A disciplina também não deve ser confundida como controlo meta-nível do controlo (falso) demonstrado por indivíduos que não entraram na região de controlo primário - por mais impressionante que pareça ser este controlo do controlo.

Portanto, a disciplina é uma afirmação da vida, na medida em que condiciona a possibilidade de boas experiências de pós-morte durante a vida, experiências que renovam mais o indivíduo do que o deixam perdido no limbo do estado, semelhante à morte, e estático do indivíduo, que é capturado em sistemas de falso controlo. Muitos indivíduos, que se diz estarem loucos ou esquizofrénicos, aspiram, de facto, a uma disciplina neste sentido, mas traem-se com complicações colusórias com a família e instituições psiquiátricas, porque não sabem como poderão encontrar outras pessoas que conhecem a disciplina, que eles estão a tentar alcançar; e, com certeza, há uma escassez objectiva de outras pessoas como estas. Penso que para criar estas possibi-

137 lidades humanas, isso implicaria fundamentalmente nada menos do que uma revolução social em massa e a destruição das estruturas de poder burguesas.

Mas apesar disso, mesmo numa sociedade revolucionária como Cuba, o conluio psiqu iátrico-fa mil iar tende a persistir, erribora existam, agora, condições humanas para abolir quaisquer formas de unidade psiquiátricas. Quando estive em Cuba, em 1968, propus um esquema piloto para uma região durante dois anos, em que qualquer indivíduo que mostrasse comportamento anormal (tal como despir-se e sentar-se no meio da rua) seria levado para casa de alguém na comunidade e cuidado simplesmente por pessoas que se sentariam com ele, sob a vigilância de um superior da Comissão local de Defesa da Revolução ou da Federação Feminina. Se os indivíduos pudessem ser tratados desta maneira, sem hospitalização, poderia esperar-se uma extensão do plano por toda a nação, que evitaria qualquer acção psiquiátrica dos indivíduos por cinco anos. Todavia, um

núcleo restante de psiquiatras treinados dos Estados Unidos parece estar longe, em imaginação, de um tal modelo. Só podemos esperar que, em breve, o «Homem Novo» penetre um dia na frente psiquiátrica, mas

parece-me ser uma boa ocasião para a vanguarda da psiquiatria (isto é, anti-psiquiatria) do primeiro mundo entrar neste plano, sob a forma de verdadeiro país so-

cialista, ou seja, des-hierarquizante.

Referi-me a estes assuntos, uma vez que a prática convencional da psiquiatria clínica aspira a produzir a

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estase especial da morte em vida, onde quer que, bastante indiscretamente, se mostre um impulso para a verdadeira disciplina. Por outras palavras, a psiquiatria é a operação policial maciça, que se estenderia sem limítes - daqui o desenvolvimento cada vez maior de policlínicas e facilidades de «tratarriento em comunidades», que simplesmente objectivam e classificam as vítimas e multiplicam interminavelmente receitas de pí lulas para encerrar as pessoas. Uma verdadeira experiên-

138 cia de morte e pós-morte acordada e não classificada só requer que, à volta do indivíduo estejam as pessoas exactas. Depois podemos fazer uma visão retrospectiva de toda a nossa vida, passado, presente e futuro, por meio de um acto de morrer nela, vendo-a com os olhos da morte e, a seguir, regressando à maneira de renascimento, à maneira de abrir uns olhos novos.

Entretanto, em todo o mundo, as pessoas morrem de fome, ou em lutas de guerrilha, por causa do assalto muito mais directo e óbvio do Imperialismo. Neste livro, disse anteriormente que deveria concentrar-me na situação do primeiro mundo e nas formas de actividade revolucionária possíveis nesse contexto, mas se tenho de falar sobre Morte e Revolução, parece ser nitidamente necessária uma extensão de limites.

É ingénuo e psicologístico falar da morte do terceiro mundo como uma exteriorização da morte não morta do primeiro mundo, portanto, tentemos tornar esta situação mais fenomenologica mente verdadeira, isto é, mais verdadeira na experiência directa. Claro que é verdade que o primeiro mundo está a morrer da sua própria morte pela auto-destruição ecológica, tornando o ambiente insuportável por um mergulho cego e tecnológico em Gadarene. Mas isto não é o bastante para explicar a mudança de locus da verdadeira morte violenta. Aproximamo-nos um pouco mais da verdade, se considerarmos como o primeiro mundo realmente se destitui da morte neste sentido: a morte nos países do primeiro mundo está convencionalizada e ritualizada a um nível notável. Temos uma classificação de «causas de morte» estatisticamente possíveis, por onde «escolher» e existe uma certa determinação de categorias destas doenças. Por exemplo, o pequeno burguês estabelecido, que sofre uma trombose das coronárias, provavelmente morrerá dela muito depressa, porque não pode enfrentar as consequências da perda de rendimento e do que lhe parece ser a pobreza intolerável. O empresário com grandes reservas de capital pode ser capaz de resistir-

139 -lhe facilmente e viver muitos anos com uma «perturbação cardíaca» ocasional, tal como (na Grã-Bretanha) o operário que foi condicionado a restringir-se aos magros benefícios da Assistência Nacional e às facilidades do Serviço Nacional de Saúde.

Assim, morremos da nossa morte eleita corri total anonimidade da @categoria que escolhemos ou em que estamos eleitos. A morte não é pública e é encoberta -

principalmente não tem testernunhas e não é lamentada. De facto, não parece mesmo nada que isto possa acontecer. Uma mulher de meia-idade da classe trabalhadora disse-

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me que quando a mãe morreu, tinha havido uma reunião familiar em grande escala, para decidir a questão do enterro ou incineração (em Novembro, na

Inglaterra). O membro «chefe» da família acabou por decidir, muito sinceramente, o problema nestes termos: «Se ela for enterrada, é muito provável que apanhemos uma constipação ficando ali de pé em volta do túmulo -

ela não quereria isso. Se for incinerada, pelo menos, estaremos todos quentes». Resolveram optar pelo calor.

Mas o completo significado da morte de uma dada pessoa para outras dadas pessoas foi submerso numa inconsciente piada defensiva.1 Quando consideramos as reacções à morte nas classes médias, os horrores são muito maiores, porque estão muito mais tortuosamente disfarçados. É tudo muito respeitável. Numa família que conheço perfeitamente, a avó, após a morte do marido, esperou até à idade de noventa e quatro anos que os seus três filhos morressem, um a seguir ao outro; agora, três anos mais tarde, está à espera da morte dos dois netos; depois disso tem ainda um bisneto para perecer. Pode ficar à espera por algum tempo. Entretanto, os outros membros da família servem-na, voltam-na na cama após cada ataque sucessivo para evitar a formação de chagas, lavam-na, dão-lhe de corner e lamentam-se interminavelmente sobre quão difícil ela é de tratar. Ninguém porá luto por ela e

todos fingirão secretamente que não estão contentes

140 por,ela ter rnorrid o ---apenas a I iv ia dos por « a rn o r dela ». Há certos hospitais neste país, para onde vão morrer indivíduos «incuráveis». Ora, talvez a clínica da morte pudesse relacionar-se com a «clínica da vida», se este não é um termo demasiado ridículo para a unidade abstétrica convencional. E talvez a clínica de morte-vida pudesse estar aberta a qualquer indivíduo que quisesse entrar e testemunhar, ajudar e ser elucidado sobre a morte, morrendo - como se o morrer soubesse o que eles sabem,

Em muitas aldeias francesas, a carroça ou camião que transporta o lixo é disfarçada, em ocasiões de morte, de carro funerário local. Ou talvez seja o contrário. Pelo menos, existe uma honestidade incipiente nesta arTibiguidade particular.

Todas as mortes no primeiro mundo são assassínios disfarçados de suicíclios, disfarçados por sua vez de curso da Natureza.

No terceiro mundo, todas as mortes, mais simplesmente, são assassínios. Não é necessário nenhum disfarce. Como é que matamos compassivamente os assassinos, ou melhor, como matamos o assassinato dos assassinos? Talvez mostrando-lhes a natureza do seu próprio suicídio com uma contra-violência indispensável. Mas isso significa um acto de auto-exposição, em que o eu que expomos é um eu morto, é a nossa própria morte. Primeiramente, não nos expomos uns aos outros, porque a auto-exposição significa exposição do nosso eu ao nosso eu. O homem que rapta uma criança para depois matá-la (ele ou efa), encontra-se normal- mente nesta revelação a si próprio da realidade da sua morte que, depois, se lhe torna tão aterradora que tem de evacuá-la rapidamente na morte da criança. O rapto é perfunctório e a morte da criança não é

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assassínio, mas unia extensão decalcável da morte subitamente apercebida e imed;atamente recusada do quase-raptor/quase-assassin@). Nesta história, não acontece nada corporeamente real, até que toda a sociedade (que

141 -lhe facilmente e viver muitos anos com uma «perturbação cardíaca» ocasional, tal como (na Grã-Bretanha) o operário que foi condicionado a restringir-se aos rnagros benefícios da Assistência Nacional e às facilidades do Serviço Nacional de Saúde.

Assirri, morremos da nossa morte eleita corri total anonimidade da @categoria que escolhernos ou em que estamos eleitos. A morte não e pública e é encoberta -

principalmente não tem testemunhas e não é lamentada. De facto, não parece mesmo nada que isto po---ssa acontecer. Uma mulher de meia-idade da classe trabalhadora disse-me que quando a mãe morreu, tinha havido urna reunião familiar em grande escala, para decidir a questão do enterro ou incineração (em Novembro, na ingiaterra). O membro «chefe» da família acabou por decidir, muito sinceramente, o problema nestes termos: «Se ela for enterrada, é muito provável que apanhemos uma constipação ficando ali de pé em volta do túrnulo -

ela não quereria isso. Se for incinerada, pelo menos, estare@r-nos todos quentes». Resolveram optar pelo calor.

Mas o completo significado da morte de uma dada pessoa para outras dadas pessoas foi submerso numa inconsciente piada defensiva.

Quando consideramos as reacções à morte nas classes médias, os horrores são muito maiores, porque estão muito mais tortuosamente disfarçados. É tudo muito respeitável. Numa família que conheço perfeitamente, a avo, após a morte do marido, esperou até à idade de noventa e quatro anos que os seus três filhos morressem, um a seguir ao outro; agora, três anos mais tarde, está à espera da morte dos dois netos; depois disso tem ainda um bisneto para perecer. Pode ficar à espera por algum tempo. Entretanto, os outros membros da família servem-na, voltam-na na cama após cada ataque sucessivo para evitar a formação de chagas, lavam-na, clão-lhe de corrier e iamentam-se interminavelmente sobre quão difícil ela é de tratar. Ninguém porá luto por ela e todos fingirão secretamente que não estão contentes

140 por,ela ter rn o rri do --apenas a I ivi a dos Po r « a mordel a». Há -certos hospitais neste pais, para, onde vao morrer indivíduos «incuráveis». Ora, talvez a clínica da morte pudesse relacionar-se com a «clínica da vida», se este não é um termo demasiado ridículo para a unidade abstétrica convencional. E talvez a clínica de morte-vida pudesse estar aberta a qualquer indivíduo que quisesse entrar e testemunhar, ajudar e ser elucidado sobre a morte, morrendo - como se o morrer soubesse o que eles sabem.

Em muitas aldeias francesas, a carroça ou camião que transporta o lixo é disfarçada, em ocasiões de morte, de carro funerário local. Ou talvez seja o contrário. Pelo menos, existe uma honestidade incipiente nesta am,biguidade particular.

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Todas as mortes no primeiro mundo são assassínios disfarçados de suicídios, disfarçados por sua vez de curso da Natureza.

No terceiro mundo, todas as mortes, mais simplesmente, são assassínios. Não é necessário nenhum disfarce. Como é que matamos compassivamente os assassinos, ou melhor, como matamos o assassinato dos assassinos? Talvez mostrando-lhes a natureza do seu próprio suicídio com uma contra-violência indispensável. Mas isso significa um acto de auto-exposição, em que o eu que expomos é um eu morto, é a nossa própria morte. Primeiramente, não nos expomos uns aos ou-

tros, porque a auto~exposição significa exposição do nosso eu ao nosso eu. O homem que rapta uma criança para depois matá-la (ele ou ela), encontra-se normalmente nesta revelação a si próprio da realidade da sua morte que, depois, se lhe torna tão aterradora que tem de evacuá-la rapidamente na morte da criança. O rapto é perfunctório e a morte da criança não é assassínio, mas unia extensão decalcável da morte subitarnente apercebida e i rnedi ata mente recusada do quase-raptor/quase-assassino. Nesta história, não acontece nada corporeamente real, até que toda a sociedade (que

141 somos «nós») exija a oferta sacrificial do corpo mutilado da crianç@@ vítima.

Como poderemos virar ao contrário os sinais da entrada de uma prisão psiquiátrica, de modo a ver-nos como os internados de um silo muito maior, atingidos por perturbação violenta? «Eles» ferem ou matam uma ou duas pessoas, se tanto. «Nós», pessoas normais, assassinamo-los não só a eles, mas milhares de pessoas sem conta em todo o mundo. O modo de comportamento «deles» e o «nosso» é idêntico. A extensão da destruição no «nosso» caso, envolvendo todas as racionalizações do imperialismo por todo o mundo, é incomparável à «deles» - e tanto maior ou tanto menor à luz do dia.

O teste ácido quanto a esta identidade de padrão ser ou não equivalente ao «psicologismo» - o que significa a redução de uma realidade social complexa às manobras verdadeiras e inferidas do espírito de um dado indivíduo - reside inteiramente no domínio da verdadeira experiência do observador. Para mim, as ressonâncias experienciaís do sentimento identificam os dois níveis de acontecimento, sem a necessidade de recurso a estruturas medianeiras, que ficam a meio e, por isso, em nenhum destes dois níveis. A mediação reside, precisamente, no aumento de sentimento-inspector no referido observador. O Imperialismo é o assassino-raptor (que já não aparece normal, como acontece com a maior parte dos assassínios-raptores), que finalmente ficou louco. Para se aguentar, a sociedade burguesa imagina várias categorias de loucura. A verdadeira direcção das setas do diagnóstico que apontam para certas vítimas devia ser invertida para a sua origem, que são os corações ausentes e a distracção de cada um de nós, que suportam as estruturas desta sociedade.

Seria absurdo pretender ser prescritivo de um modo unificador, quando notamos que as várias cisões e separações entre grupos activistas radicais não só são inevitáveis, mas também, de facto, enriquecedoras para a

142

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causa da @-evolução do primeiro mundo. Será somente quando a burocratização hierarquizante passar um certo limite, corno é o caso da maioria dos partidos comun;stas do primeiro mundo, que a actividade revolucionária de comum acordo se tornará limitada nos seus efeitos, através de manobras colusórias com as estruturas de poder burguesas. No seu único sentido corrente e viável, a revolução inclui tanto um divórcio externo e social em massa, como um divórcio interno, pessoal e privado, de todas as intrigas da sociedade capitalista- _imperializante. Significa, por assim dizer, mais do que uma infiltração reformista da classe média em massa ou um reformismo estrategicamente planeado, mas transparentemente, não genuíno e não ingénuo, no campo estudantil. Significa uma clara legalização dos nossos desejos que pode pôr em risco a nossa vida, se não pudermos arriscar-nos a encontrar a morte.

O Situacionista «Teses sobre a Comuna» refere-se à Comuna como o maior carnaval do século dezanove; mas tentar incendiar o Louvre é apenas simbólico.. A ac-

tividade revolucionária tem de deslocar-se além do simbólico e entrar numa fase de literalização da estase de instituições «trabalhadoras» na sociedade burguesa. Se estas instituições são roubadas objectivamente (porque podemos vê-Ias como estando a subsistir de uma maneira que meramerite aparente crescimento), o que podemos fazer, agora, é travar a paragem de qualquer reconhecimento em relação aos indivíduos, que travariam outros, terem travado a sua própria concepção de violência passiva, que destrói activamente o resto do mundo, assim corno obscurece a fonte de violência do prirTieíro mundo.

Todas as estratégias tornam-se evasão, no sentido de falsa procura pela solidariedade reconfortante. A solidariedade nunca pode ser atingida, antes da sua verdadeira imaginação no trabalho e luta. Esse trabalho e luta são as emanacoes au-@Iónomas de individuais, e os pequenos grupos imp!icam não uma fragmentação do

143 esforço revolucioriário, mas simplesmente urna afirmação da piirc-za do esforço na sua única forma restante e

historicamente verdadeira.

A maioria das estratégias radicais equivalem, infelizmente, a um jogar retrospectivo de jogos, que evita o rigor e tremores do mundo exterior ao pequeno grupo de dez a cento e dez indivíduos.

No terceiro mundo, as estratégias são necessárias e o capitão tem de ser o último a abandonar o navio, que vai afundar. No primeiro mundo, o capitão, salta em primeiro lugar para o bote salva-vidas, porque é isto que, de qualquer maneira, ele pretende fazer e, se tiver o peso suficiente, manterá por mais tempo o barco a flutuar marginalmente. Mas não por demasiado tempo, espero. O navio afunclar-se-á e nós teremos de nadar até à outra margem pela rota escolhida por nós próprios. Nesse momento, embarcámos todos no mesmo barco, mas em viagens diferentes. Em certo sentido, quanto mais diferentes, melhor; mas quanta diferença poderemos pessoalmente conter? Se deixarmos o navio afundar, poderemos encontrar o nosso próprio carninho, ou podemos afogar-nos

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- o que pode ser o nosso próprio caminho - ou poderemos encontrar duas milhas quadradas, em cuja margem possamos descansar, antes de nos levantarmos para ir à procura da nossa subsistência totalmente real e totalmente invisível. . O bom alimento, que depois seremos, excederá cer-

tamente a oralidade e pode ser, de facto, um seixo que aguentamos na face. Isto é um pouco melhor do que prender a língua na face, quando se solta um grito ur-

gente, além de qualquer expressão pessoal, para alguém dizer a verdade. Neste caso, a estrutura lógica de «clizer», no seu desdobramento total em linguagem, é ambígua. «Dizer», nas origens liguísticas desta palavra, significa qualquer coisa entre contar números de entidades de qualquer gênero e narrar, que é um acto poético de violência contra a aritmética. Narrar significa contar um conto verdadeiro, que urina inexoravelmente na

144 face da tabuada de multiplicar e, bastante compassivamente, diz piadas a respeito do absurdo, com as quais alguns indivíduos pensam estar a ensinar outros indivíduos em relação a dois e dois não serem cinco, nem seis, nem três. Para tornar o quatro possível, temos de proscrevê-lo como uma possibilidade até que fiquemos prontos a aceitá-lo ou negá-lo. O mergulho empedocliano é simplesmente o local onde estamos todos a cair -

no nosso próprio Monte Etnas. A tragédia da encosta de Gadarene reside na cura espúria do homem possuído, que se despojou da sua loucura e lançou-a aos porcos. Não há milagre na recusa do ânus do suíno, que tão queixosamente convida à bestialidade,

Dizer a verdade não é, de modo algum, o contrário de dizer a mentira. Há verdades mentirosas e mentiras verdadeiras. A verdade caotalizada (a «Verdade») é a visão desta ambiguidade e o seu emprego sistemático e irónico no mundo, de uma maneira que recusa não só os jogos na pequena escala social, mas também as estratégias nas escalas sociais rnaiores.

A verdade aceita a sua comicidade, ao passo que recusa o conforto cómico e espúrio de qualquer espécie de humor. Ao mesmo tempo, é algo humorística, por- ,lue o parâmetro comicidade/não-comicidade não tem relação com as suas operações no mundo.

A verdade é uma loucura inexprimível A verdade é um despertar letal A verdade é o revólver da revolução. A revolução equiparou-se ao ponteiro de um relógio perscrutando à volta da sua face atingindo sempre o mesmo ponto numa linha histórica. A verdade é a visão da face que é a sua própria Luz Clara já atingida como meta no presente que já não pode estar à frente do presente.

145 A verdade é a morte tornada viável A verdade, com um avanço ilusório em simplicidade, é o que vamos fazer -

Agora, pois de vez em quando não é depois, Mas provavelmente agora. A moral desta história é que a morte já não deve ser aceite de modo submisso, mas antes deve ser

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ternida com intensidade crescente. Deve-se, com certeza, conter o medo, rnas a morte deve começar a viver a partir do momento em que a demos à h)z. Quando corileçamos a entrar nas dores do parto, que não é bem a mesma coisa que começar com as dores do parto, podemos achar que um lindo bebé cai do nosso regaço para as nossas próprias mãos de coveíro, um bebé com a expressão discernível da nossa morte.

Conheci, uma vez, um homem, que sentia que estar deitado, muito menos a dormir, significaria a sua morte. Se se deitasse, a sua cama pulsaria com a sua pulsação, sempre um pouco avançada em relação ao seu próprio pulso. Portanto, permaneceu de pé, muito correctamente, até que caiu numa exaustação apropriada. Qualquer um de nós pode ter um aneuri ‘sma de Berry, um dilatamento de uma artéria no cérebro, que pode ser mesmo impossível de diagnosticar, que pode explodir a qualquer momento e matar-nos em segundos. Antes de acabar de escrever esta frase e antes de acabardes de lê-Ia, vós ou eu podemos cair mortos. E, evidentemente, qualquer um de nós pode morrer de noite, enquanto estamos a dormir. Tudo o que sabemos é que havemos de conhecer essas formas de morte na devida altura para além dos escassos segundos reconhecidos. Estando devidamente atentos, podemos conhecer a nossa morte agora e saber que todas as mortes totalmente testemunhadas são mortes revolucionárias. Por meio de uma integração compassiva da nossa morte, protegemos esta parte da vida, mas a amizade significa um terror máximo que é equivalente a pouco mais que amor,

146 em termos de pura obrigação. A amizade é um pouco mais difícil do que o amor, porque a opção de separação que considerei como cen-

tralmente definitiva no amor é, neste caso, não facultativa mas já seleccionada.

«Fui a uma manifestação sozinho com alguns amigos». Se um número suficiente de pessoas visse isto, a

Praça de Grosvenor acabaria por incendiar-se.

A morte é o fim da solidariedade elucidada através da descoberta de uma solidariedade completamente nâo-substancial.

Não estou a contar adivinhas porque a adivinha

diz o meu nome.e chama-me a ela. Aadivinha pelo menos sabe exactamente o meu nome

e diz-me o que ele é.

Mas eu ainda não posso ouvir, porque as ressonâncias da apelação são demasiado profundas e demasiado suaves para os meus ouvidos - ouvidos que se colam persistentemente a um alcance acústico humano interminável, mas paradoxalmente limitado, para além do qual esqueci a maior parte dos sons e, certamente, os sons mais importantes, a menos que se tornem num .-arulho agradavelmente intruso. O barulho é benvindo, em virtude do caso da sua recusa.

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A morte é a liberdade de grítar e de gorgolejar o

nosso último suspiro em vida - mas há poucos lugares, onde possamos fazer isto de urTi@ modo suficiente seguro. Acho que temos de criar regiões desérticas na metrópole, onde as pessoas possam gritar sem interferência.

Há uma consolação em tudo isto: a nossa morte esperará por nós, se nós pudermos esperar por ela.

O silêncio e a espera são sempre difíceis, mas a espera e o silêncio circunscrevem o âmago da revolução. Se esperarmos um pouco mais, o silêncio pode tornar-se esse âmago.

147 A MINHA úLTIMA VONTADE E TESTAMENTO

Diz o Talmude: «Antes de Deus fazer o mundo, mostrou um espelho às criaturas, para que nele pudessem ver os sofrimentos de espírito e os arrebatamentos que daí resultam. Algumas delas aceitaram o fardo do sofrimento. Mas outras recusaram, e essas Deus excluiu do Livro da Vida.»

O Deus indistinto e implacável, que se supõe injustificadamente mas com justiça ter dito isto, é uma criatura totalmente falsa e totalmente arrogante, expulsa do espírito das pessoas que recusam qualquer reconhecimento da sua arrogância no interesse de uma humilhação exigida socialmente, que comprime, disforma e é disformada por qualquer aurora de humildade.

Mas consideremos estas palavras lexicologicamente, isto é, de uma maneira muito mais simples. A última vontade é a última coisa no mundo que cada pessoa pretende desejar ou pretende desejar escolher, uma vez que a Vontade será um reflexo da falta de reiações, que nos leva a converter-nos de pessoas, que somos, em personificações de qualquer pessoa que, a qualquer momento, podíamos ser. A última «vontade»,

149 muito precisamente, é o desejo perdido. Portanto, talvez nunca mais ditaremos a nossa última vontade, mas antes queiramos desejar estar dispostos a reunir os nossos desejos fora da rpgião de sonho impossível cla.fantasia e dá lacu4ia-~-re@aliz-ável de mm desejo recusado, de modo que perderemos a última vontade perdida e, depois, escreveremos uma forma devidamente legal, que parecerá um poema ou uma canção ou, talvez, m&is desenhada do que redigída, uma últirria vontade que traduzirá o meu desejo de tirar o que quero do mundo, antes de vás lerdes o que estou a dizer - vós, as outras pessoas.

A palavra testamento faz-nos mergulhar no visual. Se isto for devidamente efectuado, significa que verificamos nunca termos sido vistos. De modo que, abandonados na vacuidade do convívio social habitual (convívio, isto é, uma espécie de estar a correr entre outras pessoas, o que se supõe querer dizer que passamos pelos trilhos prescritos pelo mundo normal corrupto e profano, que aparenta ser não cicatrizável), começamos

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nós próprios a testemunhar pela primeira vez nesta deposição testamentária especial. Examinamos o nosso corpo, sentimos o endurecimento do pênis, as tensões flutuantes da vagina e, com um espelho na posição correcta, convertemos uma porção de excrementos completamente confirmada, no nosso nascímento, o qual será condenado pela nossa última vontade e testamento, a menos que desejemos que não seja assim.

Como converteremos o testamento convencional em algum tipo de dádiva, para que nunca inais se ponham flores nos túmulos, mas antes que elas cresçam como uma erva benigna a partir do bonito e beatífico estrume, que será a putrefacção encorajante do nosso corpo devidamente morto? Se for para fazermos um testam£n'Lú renovado que ilud@. os perfeitos» do Antigo e Novo Testar entos, precisamos de saber um pouco mais acerca do significado de uma dádiva. Neste caso, o testamento tem de pôr de parte o cuidado do acto de

150 testemunho e ingerir uma enorme cachimbada de coisas absurdas, de modo a tornar-se suficientemente estúpido para deixar de testemunhar e para dar e receber. Mas a ambiguidade da dádiva deve ser completamente registada, se não perpetuarmos as formas estabelecidas de violência social, de que tenho estado a falar neste livro.

Desde o nórdico primitivo e dos povos germânicos da Antiguidade ao actual holandês e alemão, achamos que geralmente «dádiva», no caso feminino, significa uma doação resultante de um sentimento de generosidade. No caso neutro, «dádiva» significa veneno. Quanto ao que dádiva significa no caso masculino, nunca foi linguisticamente determinado: talvez historicamente tenha sido colocada demasiado afastada de qualquer â mbito de escolha social.

Homens são homens. Um dia tornar-se-ão pessoas, mas temos de continuar o testemunho estúpido do nosso testamento para conseguirmos todo o tacto da cavidade do corpo-e-espírito, que os homens não possuem.

Os homens dos países do primeiro mundo perseguem o terceiro mundo, assim como uma minoria dentro do primeiro mundo, incluindo a «minoria» maior chamada mulheres, como uma base claramente visível na sua inveja pela negrura, que tem cor, e na procriação, que é viva. Há milhares de espermatozóides em cada ejaculação, mas há apenas um óvulo na mulher, que salvará um certo espermatozóide do destino habitual de todos os espermatozóides. Neste sentido, as ejaculações são grandemente contingentes e indiferentes. Os homens são tão senhores de si, que talvez o orgasmo seja realmente menos comum nos homens que nas mulheres.

Em termos físicos e científicos, a negrura, como já disse, representa todas as cores numa concentração fantástica. O homem branco perdeu a cor, porque está aterrorizado pela sua inveja. O seu sangue secou fora do tecido facial, devido a um medo irreconhecível perpétuo

151 e perpetuado. A interpretação clássica do medo do homem branco pela sua potência é mais irrelevante do que ridículo. O homem branco, muito simplesmente, inveja a cor do

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homem negro. A guerra de genocídio contra os homens negros é a defesa padrão desta inveja, e há uma relação distinta, embora não uma equação, entre o assassínio duma raça e a subjugação das mulheres.

Creio que a revolução não se tornará uma malidade social suficientemente total, no momento ‘em que os homens brancos possam assumir todas as cores da negrura , epois, terem bebés também.

A doutrina guevarista do Homem Novo, em Cuba, aproxima-se muito do sentido alargado de revolução a que me tenho referido nestas páginas. O Homem Novo é o revolucionário pragmático que, efectivamente, aniquila as estruturas de poder do estado burguês feudal e dssume todo o poder de que necessita para manter uma cornunidade autónoma, a qual aprendeu a defender com armas, mas, ao mesmo tempo, utiliza a teoria marxista como técnica de estar no mundo, de uma tal maneira que as relações de exploração nunca possam ser reconstruídas e, se a hierarquização burocrática começar a emergir, possa ser muito rapidamente destruída. É evidente que, em Cuba, as tendências burocráticas ainda persistem, apenas onze anos após a Libertação, mas não verifiquei que as pessoas de lá estivessem dispostas a tolerar por muito mais tempo a imposição sobre elas de escierosas formas de não-vida.

A razão deste sucesso revolucionário original no caso cubano reside noutras características do Homem Novo, que tentarei delinear. As dos revol t.,cíoná rios originais com um passado burguês espanhol católico irromperam deste passado num salto poético-visionário, que l-nou possivel uma conjugação do esforco revolucionário com os ,obres camponese,@, que se supunha serem supersticiosos, e principalmente com o espírito voclu no povo afro-americano - um espírito que, por

152 mais escondido e implícito que esteja, define em experiência a perpétua possibilidade de regeneração. Assim, se examinarmos a ideologia do Homem Novo, encontramos um curioso sincretismo que se prolonga das origens xamanistas do vodu à proto-cristandade (a ideia do Homem Novo em São Paulo), antes da Cristandade se ter tornado institucionalizada e co ntra-revol ucioná ria e, em seguida, a completa integração destas linhas de luz de passado remoto na presente iluminação de um Marxismo perpetuamente renovado que, de facto, é completamente oposto ao revisionismo.

Penso que, agora, podemos começar a definir um elo de união entre as formas de revolu ção do terceiro mundo e o que deve estar no coração da transformação .revolucionária do primeiro mundo. Uma vez, quando falei numa reunião para celebrar o aniversário da Revolução Cubana, perguntei às pessoas que lá se encontravam, quantas dentre delas, nessa altura, estavam preparadas para morrer pela causa da revolução. Um jovem disse-me, depois, que pensava estar. A pergunta era tão irónica como directa. Acho que, de um modo directo, temos agora, certamente, de ser capazes de arriscar a nossa vida nas ruas, numa guerrilha urbana - levei trinta e seis anos para chegar a este ponto, mas alguns de nós estão a atingi1o muito mais depressa. Mas para penetrarmos, mais tarde, na total ambiguidade de «arriscar a nossa vida», creio que temos de ver este facto como uma atitude de coragem desprovida de qualquer forma de estase social, na qual nos podemos ter enredado confortavelmente. Refiro-me, por exemplo, à existência da vida em família dentro de formas monógamas estabelecidas, a qual limita o nosso trabalho e

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relaçõ es amorosas e cria um impacto destrutivo na vida de cada indivíduo que entra em contacto connosco. Já abordei este assunto atrás como a Ilusã o da Quantifiabilidade do Amor.

Também temos de ter a coragem de sair, num momento necessário, de situações de trabalho institu-

153 cional, que nos destruiriam com a sua falsa segurança semelhante à da família e, depois, encontrar outros meios de sobreviver cooperativamente no Ocidente pré-revolucionário. Na verdade, aonde quero chegar, agora, é ao facto de que, dado um certo desespero luminoso, «arriscar a nossa vida» torna-se sinónimo de arriscar a nossa vida para salvá-la. Não existe generosidade nos suicídios convencionais que escolhemos para nós próprios em termos de família e trabalho. Nisto, com certeza, também não há amor próprio e, por conseguinte,.nenhuma possibilidade de dádiva verdadeiramente inequívoca para os outros.

Philippe Ariès, num estudo sobre o significado social dos testamentos*, demonstrou como a família antes da segunda metade do século dezoito penetrou na vida do indivíduo em ocasiões de crise durante a vida ou pós-morte. Só a partir da segunda metade do século dezoito é que a família invadiu a vida quotidiana dos seus membros até um ponto em que a existência quotidiana dos indivíduos se torna um território quase totalmente ocupado pela família: o território, concretamente, de crime mais violento incluindo assassínio (muitas vezes disfarçado de «bebés maltiratados» na nossa sociedade). Todos os assassínios são assassínios familiares, quer dentro de uma família literal, quer em situações de réplica de famílias.

A forma familiar de existência social que caracteriza todas as nossas instituições destrói, ‘essencialmente, a

iniciativa autónoma, devido ao seu não-reconhecimento daquilo a que chamei a dialéctica própria da solidão e de estar com outras pessoas. Durante os últimos dois séculos, a família interpôs uma invasão na vida dos indivíduos que é essencial para a continuação da operação do capitalismo imperializante. Por definição, a família nunca pode deixar um indivíduo sozinho, pois é a hiposta-

*«Testamentos, Túmulos e Famílias», New Society, 25 de Setembro de 1969, No. 356, pp. 473-5.

154 siação do meio em massa finalmente perfeito. A família é o caixilho da televisão cheia de cor, contacto, e efeitos de sabor-e-cheiro, à qual se ensinou a esquecer como desligar. Nenhuma droga psicadélica nos ligará, a menos que possamos começar a desligar os botões certos deste caixilho familiar. Desligar deve ser em termos de uma evacuação ou, pelo menos, neutralização parcial das presenças familiares e modos de funcionamento da família (ainda mais importantes que os «objectos» familiares interiorizados), que existem na nossa cabeça. A família, como sistema que a cada momento sobrepomos em

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o tras pessoas com uma violência inconsciente, que convida à sua violação inconsciente da fonte de violência - que é onde penetrámos.

A altura de escrever a nossa última Vontade e Testamento chegou agora, e urna cláusula, apenas, é essencial e urgente. Não se deve deixar nada à Família. Mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas, maridos e mulheres, morreram todos antes de nós. Não estão aqui como pessoas a quem se deixe algo de nós ou que se deixem ficar dentro de nós. O sangue da consaguinidade já se escoou pelas goteiras das estradas suburbanas familiares.

A época dos parentes terminou, porque o parente invade o centro absoluto de nós próprios tal como nós invadimos o dele, a menos que redijamos este Testamento correctamente.

Esperemos que, no fim da vida, tenhamos um amor imenso, embora maltratado, P” deixar, e também um desespero, finalmente vencido. E depois deixemo-los a homens, a mulheres e a crianças.

Eu hei-de fazê-lo.

155 DÁDIVAS GNóMICAS

Há, provavelmente, seis ou oito maneiras castrar um homem, mas as duas primeiras maneiras, que não recorrem à faca esculpida, são provavelmente muito importantes. Podemos, quer tirar o pênis ao homem, quer retirar o homem do pênis.

De Ana.

Tiz, um psicólogo, contou-me acerca de um rapaz numa prisão psiquiátrica, que tinha cortado a cabeça da mãe e que depois a assara no forno. Os meus comentários a esta história foram que talvez ele estivesse com fome.

Billie, de oito anos, após uma visita à casa dos avós em Nova lorque, disse-me: «Eles torturam-me com cornida».

157 FELIZ PRÉ-ANIVERSÁRIO PARA VOCÊ

Porque não acrescentamos um ano à nossa vida no aniversário do nosso nascimento e celebramos o estado de coisas com um ano de avanço sobre o dia do nascimento. Nessa fase, havia dois grupos de substâncias químicas, cada uma das quais no corpo dos nossos pais- um óvulo que se estava a formar num dos ovários da nossa mãe e um espermatozóide ainda por formar num

dos testículos do nosso pai. Se pudermos então sentir bastante profundamente esta cisão química, podemos -

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ou não podemos, claro - aguardar com antecipado prazer o casamento químico iminente, porque podemos estar certos de que este é o único tipo de casamento considerado um puro acontecimento no mundo - um

acontecimento que mostra a compulsividade social assustada do «casamento» no verdadeiro esplendor do seu sentido vulgarmente aceite.

Tem de haver, com certeza, uma decisão tomada sobre os limites do que é compreensível no comportamento social dos indivíduos conseguido por meio da «psicanálise» e «psicoterapia analítica». A inteligibilidade da conduta humana pode ser alcan'cada pela con-

159 sideração «exist, nciai» da possibilidade de transcenciêne;a de @orJo o condicionamento micro-social através de determinados actos críticos de escolha, que nos conduzem a novos tipos de condicionamento que, de igual modo, podem ser recusados pela escolha radical.

Além disso, estamos mergulhados em regiões de mistério que têm de ser apreendidas, isto é, alcançadas conscientemente e, pelo menos, seguras temporariamente, porque não podem ser vistas à estranha luz da escuridão de um certo gênero de visão, que passa entre as espadas da mistificação habilmente dispostas, que consiste na multiplicidade de jogos defensivamente auto-vendados, os quais continuam entre indivíduos que, de várias maneiras, estão comprometidos pessoal e directamente uns com os outros. A mistificação é um modo mutuamente escolhido e engendrado de não-visão, que se define como um plano social, que é um

monte coordenado (recusando a síntese) de estratégias e tácticas, cujo objectivo é a destruição da visão, ou seja, a conjunção de luz e escuridão num dado todo social. Este todo social mencionado podem ser os pedintes de Calcutá, que realmente vivem e não se sentei-ri bem nas quettos brancas de Nova lorque e Chicago nem nas comunas de São Francisco e Notting Hill Gate, ou pode ser o povo genocidalmente violado do Sudeste asiático e África do Sul, que, como bem sabemos, vivem confortavelmente e bem e ainda votam, convencidos, nos seus cadavéricos assassinos, os quais vivem numa aparência de poder globalmente destrutiva nas melhores partes da aldeia de Greenwich, Neuiliy-sur-Seíne e Weiwyn Garden City. Ou pode ser qualquer família, amizade ou rede de pessoas que conhecemos pessoalmente ou que podemos imaginar.

Esta chegada ao mundo, através de qualquer indivíduo, do mistério desmistificado é revolucionária, no momento que se segue à sua deformação institucional em sistemas oscilantes de suicídio-assassínio.

160 Houw@ tin,, que, te. a

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fànc@, até aos nov,@% anos, pai o castigasse, Um di@@, o, p@@i mente a nião com a intencão de lhe bater. Ao fazer este movimento, o pai dei: um'a bofetada na face da sua esposa que rnanifesteva unia tendência de «voyeur@>.

Heidí, de q1jG@ro anos, dep.,jis de @)u lhe. @er ers:m;iad,) a linguagem das a forma correcta dr lhes ape@, tar a mão e, a esc,.-itar as suas díferent,@S respostas, a ouvir a árvore dizer olá e a vencer o silêr!cI@@ re-@raído de outi-@@., detc,@r,,@@i nadas árvwes, «Acho que é- DEDICATóRIA

Penso que as dedicatórias são declarações pessoais importantes e não meras formalidades. Por isso, não dedicarei este livro a Ronald Laing, a quem devo mais do que a qualquer outro homem no mundo ou sob ele, ou a Juliet Mitcheli, com quem vivi e a quem amei enquanto o escrevi. De qualquer modo, eles conhecem os meus sentimentos.

Quando estava quase a acabar de escrever este livro contra a família, sofri uma crise profundamente espiritual e física que se igualou à experiê ncia de renovação de morte e renascimento de que falo nestas páginas. As pessoas que, nos piores momentos desta crise, me fizeram companhia e me trataram com extrema amabilidade e interesse, foram o meu irmão Peter, a minha cunhada Caroi e as suas filhinhas. Como devia fazer uma verdadeira família. Ensinei a Heidi, de quatro anos, a linguagem da água e como apertar a mão ao ramo de um

carvalho e a dizer-lhe olá e, depois, a ouvir as respostas surpreendentemente diferentes que as árvores dão. O que ela me ensinou foi muito mais profundo ainda.

163 íNDICE

Introdução ................................................................. 7 A Topografia do Amor ................................. ............. 33 As Duas Faces da Revolução ............ ... ..................... 49 O Fim da Educação - Um Começo .................... ....... 71 Deplora a Tua Carne de Porco ............. .. ................... 87 A Outra Margem da Terapêutica ................ .............. 95 A Revolução do Amor e da Loucura... ..................... 105 Morte e Revolução... ....................................... .......... 129 A Minha última Vontade e Testamento .................. 149 Dádivas Gnómicas..... .............. ................................. 157 Feliz Pré-aniversário para Você.. ........................... ... 159 Dedicatória ... . ......... .............................. ........ -... 163 Coleccão PS2COLOG'/X =_ PF.DAG0@@IA

Volumes publicados:

1- A Criança

Maria Montessori, 5. edição

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2 -As Prodigiosas Vitórias da Psicologia Modema-I

Pierre Daco, 3. edição3- As Prodigiosas Vitórias da Psicologia Moderná-ll

Pierre Daco, 3.1 edição4- O Filho único e o seu Ambiente Familiar

Natividade Correia5- Psicologia Recreativa

C. Platónov6- Os Triunfos da Psicanálise - 1

Pierre Daco7- Os Triunfos da Psicanálise - 11

Píerre Daco8- Parapsicologia - Novos Aspectos de Velhos Enig-

mas (antologia)9- A Mente da Criança

Maria Montessori10 - Introdução à Psicologia - 1

Abraham Sperlig11 - Introdução à Psicologia - 11

Abraham Sperling12 - Higiene Mental

Herbert A. Carroll13 - A Política da Família

R. D. Laing -14 - O Primeiro Sexo

Jean Duché15 - A Decadência da Famílig

David Cooper

Extra colecçâo:

O Seu Filho (cartonado e ilustrado) Richard Kohn Educacão Sexual (ilustrado)