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1 Convivência e Segurança Cidadã: reflexões por uma nova abordagem de segurança pública

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Convivência e Segurança Cidadã: reflexões por uma nova abordagem de segurança pública

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convivência e segurança cidadã

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NIKY FABIANCICRepresentante-Residente

DIDIER TREBUCQDiretor de País - PNUD Brasil

MARISTELA MARQUES BAIONIRepresentante Residente Assistente

Coordenação | Érica Mássimo MachadoAnalista de Programa - PNUD Brasil

Apoio | Carime Soares GuiottiAssistente de Programa - PNUD Brasil

Coordenação dos Cursos | Bruna Pegna Hercog, Cíntia Yoshihara, Gabriela Dutra, JulianaMattedi Dalvi, Marialina Côgo Antolini, Natasha Leite

Publicado em 2016 pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento.

© PNUD 2016

Esta publicação está disponível em acesso livre ao abrigo da licença Atribuição-Uso Não-Comercial-Partilha 3.0 IGO (CC-BY-NC-SA 3.0 IGO) (http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o conteúdo da presente publicação, os usuários aceitam os termos de uso do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Ensaios | Alinne Pedra, Bruna Pegna Hercog, Cíntia Yoshihara, Claudia Ocelli Costa, Eduardo Cerqueira Batitucci, Eduardo Pazinato, Fabiano Dias Monteiro, Gabriela Dutra, Gislene Moreira, Haydée Caruso, Ismar de Oliveira Soares, João José Barbosa Sana, Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha, Juliana Mattedi Dalvi, Letícia Godinho, Marcelle Figueira, Marcos Rolim, Marialina Côgo Antolini, Matheus Albergaria Paulino de Almeida, Moema Dutra Freire, Natasha Leite, Paloma Padilha de Siqueira, Paulo Ricardo de Paiva e Souza, Pedro Strozenberg, Riccardo Cappi, Roberta de Mello Corrêa, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, Tânia Cordeiro, Tânia Pinc, Valentina Garcia, Vera Leonelli

Edição | Bruna Pegna Hercog e Marialina Côgo Antolini

Projeto gráfi co e editoração | Valentina Garcia

Revisão Ortográfi ca | Wilce Prota

Para elaboração dos textos desta Coletânea, optou-se pelo uso de linguagem não discriminatória em relação a gênero, raça, etnia ou classe social. Em muitos casos foi necessário o uso do genérico do masculino, a exemplo do termo “ator social”, ou de termos neutros como “crianças, adolescentes e jovens”. Mesmo nesses casos, entende-se que o genérico do masculino refere-se a todos os gêneros e que os termos neutros reúnem as especifi cidades e direitos adquiridos de cada cidadão e cidadã aqui representados.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - BRASIL

Convivência e segurança cidadã: reflexões por uma nova abordagem de segurança pública. -- Brasília : PNUD, Conviva, 2016. 152 p.

Incl. bibl. ISBN: 978-85-88201-34-7 1. Segurança 2. Cidadania 3. Cultura de Paz 4. Comportamento Social 5. Participação Social 6. Gestão Territorial I. PNUD II. Conviva: Convivência e Segurança Cidadã III. Série CDD 350.78

Esclarecimento: o PNUD mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as suas atividades e ações. Devido à especifi cidade da língua portuguesa, adotam-se, nesta publicação, os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam escritos no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino.

Impresso no Brasil

Esta Coletânea segue as novas regras do Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa.

As informações e opiniões emitidas nos ensaios assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não refl etindo necessariamente a opinião do PNUD.

As ilustrações que aparecem na publicação foram feitas a partir de fotografi as de ações realizadas pelo PNUD em municípios brasileiros.

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ERRADICAÇÃODA POBREZA

REDUÇÃO DASDESIGUALDADES

CIDADES ECOMUNIDADESSUSTENTÁVEIS

CONSUMO EPRODUÇÃORESPONSÁVEIS

AÇÃO CONTRA AMUDANÇA GLOBALDO CLIMA

VIDA NAÁGUA

VIDATERRESTRE PAZ, JUSTIÇA E

INSTITUIÇÕESEFICAZES

PARCERIAS E MEIOSDE IMPLEMENTAÇÃO

FOME ZEROE AGRICULTURASUSTENTÁVEL

SAÚDE EBEM-ESTAR

QUALIDADEEDUCAÇÃO DE

DE GÊNEROIGUALDADE

E SANEAMENTOÁGUA POTÁVEL ENERGIA LIMPA

E ACESSÍVEL

TRABALHO DECENTEE CRESCIMENTOECONÔMICO

INDÚSTRIA, INOVAÇÃOE INFRAESTRUTURA

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Em setembro de 2015, chefes de Estado, de Governo e altos representantes da Organi-zação das Nações Unidas reuniram-se em Nova York e adotaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual inclui os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A nova Agenda de desenvolvimento propõe uma ação mundial coordenada entre os governos, as empresas, a academia e a sociedade civil para alcançar os 17 ODS e suas 169 metas, de forma a erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos limites do planeta. As informações apresentadas esclarecem as principais dúvidas que surgem quando falamos dos ODS: o processo de formatação dos novos Objetivos, a necessidade de continuar o trabalho iniciado pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e as formas de implementação e acompanhamento dos novos Objetivos. Ao oferecer uma melhor compreensão dos ODS, o PNUD Brasil reforça que o desenvolvimento sustentável só será alcançado mediante o envolvimento, compromisso e ação de todos.

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Prefácio PNUDPrefácio PNUDO tema segurança pública, que nos reúne nesta publi-cação, é de extrema importância e relevância para o país, seus cidadãos e cidadãs, e também para a Amé-rica Latina, que conta com países entre os dez primei-ros com as maiores taxas de homicídios no mundo. O PNUD apoia intensamente os países da região, ora mediante o desenvolvimento de políticas integrais nacionais de segurança, ora por meio da implantação de observatórios de violência, ou mesmo subsidiando reformas legislativas para o controle de armas.

A temática segurança e gestão de conflito é estra-tégica para o PNUD, não só pela questão do bem-estar e da segurança dos cidadãos, mas também pelos cus-tos financeiros impostos pela violência na promoção do desenvolvimento humano. Desta forma, o PNUD trabalha na América Latina e, em especial, no Brasil, com a abordagem da Convivência e Segurança Cidadã, acreditando que a segurança não é responsabilidade apenas das instituições policiais, mas é uma política que trabalha com a perspectiva integrada de políticas públicas, com foco na governança local e nos proces-sos participativos de formulação e controle social.

No Brasil, observamos taxas crescentes de ho-micídio, em que pesem todos os esforços realizados pela União, estados e municípios para a redução dos crimes e a prevenção à violência. Várias medidas pre-cisam ser adotadas para que os cidadãos brasileiros possam ter maior segurança no seu dia a dia, tais como reformas institucionais, nova pactuação entre os entes federativos, fortalecimento dos sistemas de informação e, fundamentalmente, vontade política.

Aprovada em setembro de 2015 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a agenda de desenvolvimento, definida a partir dos Ob-jetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), esta-

belece um plano de ação para que os 17 ODS formula-dos possam ser mundialmente alcançados até 2030. Essa agenda está estruturada em cinco grandes áre-as, quais sejam: pessoas, paz, prosperidade, planeta e parceria, entre as quais os ODS estão distribuídos e articulam-se entre si, agregando as dimensões social, ambiental e econômica, buscando, assim, maior equi-líbrio entre estas no alcance dos ODS previstos.

O tema segurança está inserido em um ODS es-pecífico, o ODS 16: “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, pro-porcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. O ODS 16 conta com 12 metas e vá-rios indicadores a partir dos quais os próprios ODS serão monitorados.

Nesse contexto, a temática segurança assume destacada relevância e está totalmente alinhada aos mandatos da ONU e do PNUD; e a iniciativa desta pu-blicação corrobora a necessidade de o Brasil pensar a respeito e se repensar no sentido de promover so-ciedades mais pacíficas, a partir de um paradigma de segurança mais cidadã e mais justa.

Aproveito a oportunidade para agradecer o com-prometimento de nossos parceiros, especialmente à Secretaria Nacional de Segurança Pública do Minis-tério da Justiça (Senasp-MJ), e a todos os colabora-dores aqui identificados. Esperamos que esta publi-cação contribua para as reflexões sobre a segurança pública no Brasil e para o mapeamento e a definição de formas para se consolidar uma cultura de paz en-tre cidadãos e instituições, em toda a sua complexi-dade e dimensões.

Desejo a todos e todas uma boa leitura e profícuas discussões.

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil

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Prefácio SENASP (MJ)Na última década, de forma mais intensa, a segu-rança pública se tornou uma das pautas prioritá-rias das agendas governamentais, sendo uma das principais reivindicações da sociedade. Diante da complexidade do fenômeno criminal, é preciso ampliar o olhar, os atores responsáveis, bem como as possibilidades de intervenção e enfrentamento das mais diversas dinâmicas da violência e crimi-nalidade. Intervenções meramente reativas e frag-mentadas não são suficientes para a reversão das taxas criminais, muito menos para o provimento de segurança para toda a população. Nesse senti-do, dentre as competências da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça (MJ), destacamos o necessário estímulo às ações de prevenção social ao crime, bem como o incentivo aos órgãos estaduais e municipais para a elaboração de planos e programas integrados de segurança pública.

Visando ao alcance desse resultado, a Senasp, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), buscou capacitar ges-tores municipais, estaduais, secretários executivos dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGI), policiais militares, policiais civis, guardas municipais, coor-denadores de polícia comunitária, coordenadores dos programas Juventude Viva e Brasil Mais Seguro, além de representantes da sociedade civil em temá-ticas direcionadas ao desenvolvimento de ações e projetos voltados para a perspectiva da segurança cidadã e prevenção à violência.

Durante o ano de 2014, foram ministrados 13 cur-sos, em diferentes regiões do Brasil. A escolha dos mu-nicípios para a realização dos cursos foi subsidiada por demandas apresentadas pelos entes federados e pelas boas práticas em segurança pública já desenvolvidas. Para tanto, foram convidados para cada curso 70 parti-cipantes de diversos municípios, visando aproximar as distintas realidades existentes em todo o país, as práti-cas exitosas e a implementação de parcerias.

A realização dos cursos de Convivência e Seguran-ça Cidadã tem tido um papel relevante na retomada da discussão sobre um novo modelo de segurança pú-blica, que busca compreender o fenômeno da violên-cia a partir de suas múltiplas dimensões e as possibi-lidades de intervenção para além da atuação policial, envolvendo e corresponsabilizando outros atores e políticas públicas.

Os avanços necessários na área da segurança pú-blica não se darão de forma abrupta, mas temos cons-ciência de que é preciso avançar com ações concretas, pedagógicas, integrando e formando redes em prol de uma segurança mais cidadã. É justamente sobre essa perspectiva de troca de saberes entre profissionais que já atuam e respondem pelas ações tradicionais de segurança pública, somando esforços com atores ad-vindos de outras políticas públicas, academia e socie-dade civil que pretendemos avançar na construção de políticas que busquem a prevenção como um cami-nho possível, que qualifiquem as ações de repressão e que, acima de tudo, mantenham o foco no desenvol-vimento de uma Cultura de Paz.

Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp – Ministério da Justiça

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ApresentaçãoSistematizar os conhecimentos compartilhados e construídos entre especialistas da área da segu-rança pública e os diversos atores sociais (policiais militares e civis, guardas municipais, estudantes, li-deranças comunitárias, técnicos e gestores públicos dos âmbitos municipal e estadual) que participaram dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã pro-movidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no Brasil, em 2014. Este é o principal objetivo desta publicação que visa, tam-bém, contribuir com a produção acadêmica e am-pliar o debate sobre o tema Convivência e Segurança Cidadã, propondo uma abordagem multidisciplinar no trato acerca do fenômeno social da violência.

É objetivo do PNUD, portanto, oferecer a gover-nos, universidades, organizações e movimentos sociais materiais de referência para a reflexão e a atuação local na construção de uma cultura de pre-venção à violência. Intitulada Curso de Convivência e Segurança Cidadã: reflexões por uma nova abor-

dagem de segurança pública, esta publicação reúne 27 ensaios opinativos sobre os temas abordados na programação dos cursos de Convivência e Seguran-ça Cidadã promovidos pelo PNUD em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Minis-tério da Justiça (Senasp-MJ).

Nas próximas páginas, será possível fazer um passeio pelo marco conceitual da Convivência e Se-gurança Cidadã, que, ao compreender a violência como fenômeno surgido a partir de diferentes fato-res – sociais, culturais, econômicos, institucionais, familiares, pessoais e globais –, propõe uma estra-tégia interdisciplinar e participativa de prevenção e enfrentamento do problema e de construção de uma cultura de paz. Este passeio será oferecido pelos es-pecialistas que assinam os ensaios e que partilha-ram conosco os seus olhares, experiências e aborda-gens sobre o tema durante os cursos de Convivência e Segurança Cidadã.

Desejamos a todos e todas uma boa leitura!

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A construção de uma agenda emergencial para a se-gurança pública no Brasil tem sido tema de muitas discussões, articulações e formulações, vis-à-vis as crescentes taxas de homicídio do país, apuradas em diferentes fontes. Fazem parte dessa agenda alguns temas, como a revisão do Pacto Federativo, do Fun-do Nacional de Segurança Pública, a consolidação de um sistema de informações integrado, ciclos e integração das polícias, entre outros não menos im-portantes.

A multicausalidade das violências e crimes já faz parte do discurso comum e é utilizada como base para planos de segurança e como plataforma para gestão. No entanto, o que se continua a observar é o esgotamento do modelo de segurança pública atual, que considera o controle e as intervenções policiais como a única ou principal solução para a redução da violência e a promoção da paz. Os efeitos esperados por essas ações, porém, não têm sido concretizados e as alternativas para a construção de uma cultura de paz necessitarão passar, obrigatoriamente, pela desconstrução da práxis e pela adoção de princípios e valores com enfoque na prevenção, no empodera-mento local, na participação social e na convivência. Não se trata de romantizar a segurança e nem mes-mo a política, mas de consolidar a busca por alter-nativas que trabalhem em um momentum anterior à prática da violência, com novos atores, recursos e arranjos institucionais.

Essa abordagem busca conferir ferramentas mul-tidimensionais para o entendimento da dinâmica da violência e aponta, em um primeiro momento, para a necessidade de rever protagonismos já consolida-dos e incluir novos atores no processo de discussão sobre segurança, em que pesem os esforços já resul-tantes dos movimentos recentes de abertura de es-paços mais democráticos para as discussões sobre o tema. A presença de novos atores e suas diferentes perspectivas de problematização e busca por solu-

ções contribuem para o entendimento de que ações de prevenção que promovam melhorias nas regras e nos padrões de convivência social ou comunitária po-dem ser capazes de reduzir conflitos, especialmente aqueles que acabam por gerar vítimas fatais.

Ainda nesse sentido, as necessidades de novas e ampliadas interações também podem gerar outros efeitos que contribuam para a qualidade da segu-rança pública, como a consolidação de ferramentas de mobilização e comunicação não só entre pares comunitários, mas também entre cidadãos e insti-tuições públicas e privadas. Mecanismos de parti-cipação social e o desenvolvimento de capacidades para a participação devem agregar maior compro-metimento e controle social desde o início das dis-cussões sobre ações de prevenção, fortalecendo as interações decorrentes e os valores transversais emergentes, na busca de uma cultura de paz.

Apesar da responsabilidade dos estados pela segurança pública, os municípios e seus territórios assim constituídos assumem cada vez mais desta-que no combate à violência. A proximidade com as ocorrências, o conhecimento e a identificação com a realidade dos cidadãos exigem uma capacidade de análise mais direcionada para a compreensão dos fe-nômenos locais de violência e a busca por soluções, ao mesmo tempo que viabilizam maior corresponsa-bilização dos diversos atores envolvidos. A dinâmica do conflito pode, assim, ser mais bem trabalhada; e as construções coletivas podem ser fortalecidas, tor-nando-se mais sustentáveis.

Reforço, mesmo correndo o risco de tornar a ar-gumentação repetitiva, que desenhos de novos ar-ranjos institucionais para a busca por soluções efeti-vas na área de segurança pública só fazem sentido a partir da apreensão de uma abordagem de seguran-ça mais cidadã em suas dimensões multicausais, de participação social e instituições formais fortaleci-das, para que não se formulem estratégias idealistas.

Prólogo

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Na construção desse novo paradigma da segurança cidadã, o trabalho integrado entre os diversos atores formais e informais é fundamental para maximizar recursos escassos e efeitos sustentáveis. Indo além das questões institucionais, ressalto a capacidade de coordenação como ponto estratégico na garantia do sucesso da integração das diversas políticas, pro-gramas, projetos e ações. Essas não são construções imediatas e os resultados provavelmente não serão vistos em um prazo curto. Por isso, as expectativas de gestores e cidadãos devem ser permanentemente alinhadas, para que os ganhos incrementais possam se consolidar e gerar condições para transformações comportamentais e estruturais.

Nesse sentido, os cursos de Convivência e Segu-rança Cidadã do PNUD buscam traduzir um primeiro passo para o desenho de novas possibilidades – quem sabe, nem tão novas assim – mas que permitam a construção de alicerces para ações integradas e com foco, cada vez mais, em públicos específicos e efeitos direcionados. A condição de imersão em que o curso deve ser desenvolvido permite uma troca imediata

de experiências entre os participantes e também a construção de redes, maximizando a experiência de entendimento de novas possibilidades para a segu-rança. Paralelamente, a diversidade de temas e ato-res envolvidos contribui para a efusão de angústias e questionamentos, provocando uma dinâmica de maior realismo na arquitetura de perspectivas glo-bais em contextos locais.

Em ambientes com tantas ansiedades e expec-tativas, também os colaboradores ou professores acabam por compartilhar seus próprios questiona-mentos e essa intensidade de trocas provoca reações e a necessidade de registro das vivências. Esta foi a principal razão para a decisão de conferir concre-tude à experiência de se participar dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã. A busca por expli-cações e soluções inovadoras e tradicionais permeia a totalidade dos ensaios aqui apresentados e reflete o comprometimento de todos aqueles que participa-ram desse processo, para os diversos desafios que se colocam na realidade atual e para a construção de uma cultura de paz.

Érica Mássimo MachadoAnalista de Programa

Governança Democrática e Segurança CidadãPrograma das Nações Unidas para

o Desenvolvimento – Brasil

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Parte I - Entendendo o conceitoCursos de Convivência e Segurança Cidadã: a segurança vista por múltiplos olhares | Bruna Pegna

Hercog, Cintia Yoshihara, Juliana Mattedi Dalvi, Marialina Côgo Antolini

Segurança Cidadã e Direitos Humanos: quando ser pessoa é o que importa | Joselita Frutuoso de Araújo

Macêdo Filha (Nena)

Direitos Humanos e Segurança Cidadã | Matheus

Albergaria e Vera Leonelli

Segurança Cidadã é coisa nossa! | Alline Pedra

A Segurança Cidadã no contexto latino-americano | Paulo Ricardo de Paiva e Souza

O Brasil frente à América Latina por uma melhor Segurança Cidadã | Gabriela Dutra e Natasha Leite

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e Segurança Cidadã: uma nova agenda global para promoção da paz e acesso à Justiça | Moema Dutra Freire

Jogo Fica Seguro: ferramenta de integração e disseminação de conceitos | Bruna Pegna Hercog,

Cintia Yoshihara, Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha (Nena),

Juliana Mattedi Dalvi, Marialina Côgo Antolini, Valentina Garcia

Parte II – Convivência e Segurança Cidadã em temasGestão e desenvolvimento de capacidades institucionais: a integração como fator essencial nas políticas de segurança pública | Cláudia Ocelli Costa

Desenvolvendo capacidades institucionais no âmbito da Segurança Cidadã | João José Barbosa Sana

Gestão e desenvolvimento de capacidades institucionais: o lugar dos GGIs na segurança pública | Eduardo Pazinato

Gestão da política pública de segurança: dilemas e desafi os para o exercício da cidadania | Roberta de Mello Corrêa

Comunicação e violência!? - conexões e desafi os | Gislene Moreira

Comunicação e mobilização social: outros olhares e possibilidades no enfrentamento à violência | Bruna Pegna Hercog e Marialina Côgo Antolini

Educomunicação, convivência cidadã e segurança pública | Ismar de Oliveira Soares

Participação e Segurança Cidadã | Letícia Godinho

Mediação comunitária e segurança pública no Brasil: agendas convergentes | Pedro Strozenberg

Quando a juventude é pouca e não dá para todo mundo | Tânia Cordeiro

Prevenção a violências: sem fórmula, com formas | Riccardo Cappi

O paradigma dos fatores de risco | Marcos Rolim

Em busca de um “lugar” para a prevenção da violência | Haydée Caruso

Espaços Urbanos Seguros - Relações entre arquitetura e criminologia no contexto urbano e a importância do planejamento participativo | Paloma Padilha de Siqueira

Espaços Urbanos Seguros: teorias, abordagens e metodologias | Marcelle Figueira

Atuação Policial: Formação e modernização | Eduardo Cerqueira Batittucci

Formação e Modernização da atuação policial | Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Formação policial, polícia e Direitos Humanos | Fabiano Dias Monteiro

Atuação Policial e Convivência e Segurança Cidadã: desafi os do novo paradigma | Tânia Pinc

Sumário

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PARTE 1

ENTENDENDO O CONCEITO

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O curso de Convivência e Segurança Cidadã tem como principal objetivo difundir entre os atores dos diferentes setores da sociedade o conceito tra-balhado pelo PNUD que entende a violência como um fenômeno que acontece por diferentes motivos. Assim, deve ser tratada de maneira diversificada, in-tersetorial, com ações tanto de controle e repressão qualificada quanto, principalmente, de prevenção, por meio de políticas públicas integradas no âmbi-to local. Para que isso ocorra, são necessárias ações que fortaleçam a Governança Democrática por meio do desenvolvimento de capacidades dos atores locais que atuam na segurança, assim como a participação social nas diferentes etapas de planejamento, execu-ção e monitoramento das ações (PNUD, 2015).

Desta forma, o curso de Convivência e Seguran-ça Cidadã procura apresentar um instrumental aos participantes que os capacite para atuar na sensibi-lização, planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas relacionadas à segurança. Seus objetivos são:

• Contribuir para a compreensão das causas da violência;

• Analisar a magnitude do fenômeno da violência e dos conflitos urbanos das cidades;

• Debater sobre as ferramentas e metodologias para a gestão local da Convivência e Segurança Cidadã, criadas a partir de experiências bem-sucedidas;

• Explorar as problemáticas relacionadas à Convivência e Segurança Cidadã, nos territórios representados no curso;

• Conhecer boas práticas para a gestão da Convivência e Segurança Cidadã desenvolvidas

em diferentes localidades, especialmente em municípios ou estados brasileiros;

• Criar redes de contatos entre os participantes, para potencializar a troca de experiências e a continuidade das ações de Convivência e Segurança Cidadã.

O formato mais difundido do curso, porém não o único disponível, apresenta uma carga horária entre 44 e 48 horas, distribuída ao longo de uma semana de encontros. Dentre as temáticas fundamentais de-batidas, estão as sessões de Convivência e Segurança Cidadã, Direitos Humanos, Participação Social, Inte-gração de Políticas Públicas, Mediação de Conflitos, Espaços Urbanos Seguros, Prevenção Social ao Crime e às Violências, Redução de Fatores de Risco, Comu-nicação e Mobilização Social, entre outras. A partir da compreensão das especificidades locais, outras temá-ticas são incluídas no debate, tais como: Formação e Modernização da Atuação Policial; Política Criminal; Juventudes e Segurança Cidadã; Elaboração de Pro-jetos, entre outras. Para conduzir as diferentes ses-sões, são convidados professores com conhecimento teórico e prático e reconhecidos, nacionalmente, no meio em que atuam. Os professores são orientados a buscar informações sobre a realidade local, para que tragam exemplos de boas práticas condizentes com o território de atuação dos participantes.

Todos os cursos possuem uma coordenação pe-dagógica responsável por organizar as atividades, avaliar os resultados, acompanhar as metodologias de trabalho e recursos didáticos e pedagógicos, além de criar um alinhamento entre as diferentes temáticas abordadas.

Cursos de Convivência e Segurança Cidadã:Entendendo a segurança a partir de múltiplos olhares

Bruna Pegna Hercog, Cintia Yoshihara,

Juliana Mattedi Dalvi, Marialina Côgo Antolini

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HISTÓRICO

Há quase 20, anos o PNUD realiza o curso de Convi-vência e Segurança Cidadã, em vários países da Amé-rica Latina. No Brasil, os primeiros cursos foram em 2007, por meio de uma parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Jus-tiça (Senasp-MJ). Na ocasião, foram realizados quatro cursos dirigidos a 160 policiais militares, durante a criação do marco da estratégia de Segurança Cidadã dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro.

Em 2009, o PNUD, novamente em parceria com a Senasp-MJ, desenvolveu a segunda rodada, com seis cursos regionais: Canoas (RS); Brasília (DF); Vitória (ES); Aracaju (SE); Campinas (SP); Manaus (AM); e Cuiabá (MT); e um curso nacional, em Aracaju (SE). Nestes, cerca de 540 gestores, trabalhadores da área de segurança e representantes da sociedade civil, fo-ram capacitados. Os cursos tiveram como objetivos: preparar os membros das Comissões Organizadoras Estaduais; qualificar o debate; e empoderar os par-ticipantes para desenvolverem propostas para a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), que foi realizada em agosto de 2009, em Brasília (DF).

Como parte das ações do Programa Interagen-cial da ONU “Segurança com Cidadania: Prevenindo a Violência e Fortalecendo a Cidadania, com Foco em Crianças, Adolescentes e Jovens em Condições Vulneráveis em Comunidades Brasileiras”, o PNUD realizou, em 2011, três Cursos de Convivência e Se-gurança Cidadã, nas cidades integrantes do Progra-ma: Contagem (MG); Lauro de Freitas (BA); e Vitória (ES). Nessa terceira edição, ocorreu uma revisão pe-dagógica, buscando-se adaptar o foco da capacitação para o âmbito local. Com isso, o público do curso foi ampliado, passando a integrá-lo, além dos opera-dores de segurança pública, gestores municipais e estaduais, representantes de organizações não go-vernamentais e de instituições de ensino; bem como outros responsáveis pelo desenvolvimento de políti-cas para Segurança Cidadã, entre eles representantes do poder legislativo, das áreas de segurança, justiça,

educação, saúde, habitação, transporte, direitos hu-manos, direitos das mulheres, direitos LGBT, igualda-de racial, assistência social, esporte, cultura, saúde, desenvolvimento econômico, infraestrutura, juven-tude e representantes das comunidades mais forte-mente afetadas pela violência. No total, 210 pessoas participaram dessas capacitações.

A quarta edição de cursos de Convivência e Se-gurança Cidadã foi realizada entre maio e setembro, em 2014. A partir de nova parceria firmada com a Senasp-MJ, o PNUD promoveu um ciclo de seis capa-citações, nas cinco regiões do Brasil, com a presença de representantes de todos os estados do país. Essa rodada reuniu quase 500 participantes de mais de 236 municípios. O público foi composto por secre-tários municipais de segurança e demais gestores municipais e estaduais, guardas municipais, policiais militares e civis, representantes de Conselhos Muni-cipais de Segurança, Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGIM), lideranças comunitárias e Socie-dade Civil Organizada. Esses cursos tiveram como objetivo a capacitação dos participantes para a me-lhoria de políticas públicas locais de segurança, além de discutir como monitorar e contribuir para o for-talecimento dessas políticas. Um marco dessa edição foi a introdução do Jogo Fica Seguro – Coletânea Con-vivência e Segurança Cidadã, material pedagógico desenvolvido pelo PNUD a partir de experiências de implantação do conceito de Convivência e Seguran-ça Cidadã em territórios brasileiros. O Fica Seguro é um jogo de tabuleiro que envolve – de forma lúdica – raciocínio e cooperação, no sentido de desenvol-ver práticas coletivas de segurança pública, além de promover discussões sobre temas complexos, como formas de diagnosticar, planejar e agir para a prevenção à violência, e promover territórios mais seguros. O Jogo é parte da Coletânea Convivência e Segurança Cidadã: Guias de Gestão Territorial Parti-cipativa, que conta com guias metodológicos sobre as diferentes etapas que envolvem um Programa de Convivência e Segurança Cidadã.

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A partir do sucesso da rodada inicial de 2014, e em parceria com a Senasp-MJ e o Governo do Estado do Rio de Janeiro, o PNUD realizou, entre novembro e dezembro do mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, a quinta edição de cursos de Convivência e Segurança Cidadã. Foram oferecidas seis capacitações, que con-taram com a participação de cerca de 400 policiais militares e civis das 38 Unidades de Polícia Pacifica-dora (UPPs), guardas municipais, representantes dos conselhos comunitários de segurança e associações de moradores, gestores públicos estaduais e munici-pais das áreas de educação, saúde e infraestrutura, integrantes do terceiro setor com trabalhos em áreas de UPP e pesquisadores atuantes nas comunidades cariocas. Entre os territórios contemplados estavam várias comunidades, dentre as quais: Complexo do Alemão, Rocinha, Jacarezinho, Manguinhos, Manguei-ra, São Carlos, Providência, Santo Amaro, Salgueiro, Formiga, Borel, Macacos, São João e Maré. Os cursos tiveram como objetivo a sensibilização dos gestores públicos, agentes de segurança e membros das comu-nidades sobre a importância da prevenção e da abor-dagem à Segurança Cidadã.

CONCEITOS-CHAVES

O curso de Convivência e Segurança Cidadã parte dessa perspectiva para trabalhar diversos conceitos e ferramentas essenciais no processo de construção de territórios mais seguros. A integração é um de-les. Sabe-se que, tradicionalmente, o modelo brasi-leiro prevê estados e União como responsáveis pelo tema segurança pública. No entanto, é claro que os impactos gerados pela violência são sentidos, prima-riamente, de maneira local, por meio da elevação do índice de homicídios, em determinado bairro; do to-que de recolher, em regiões específicas; no número de assaltos em áreas comerciais etc. Por isso, quando essas questões começam a ser percebidas também a partir da perspectiva local, em que os atos violen-tos são sentidos primordialmente, passa-se a ter uma análise mais profunda e completa da questão.

Por isso, os cursos de Convivência buscam incorpo-rar os diferentes setores da sociedade (governos, sociedade civil, setor privado), os diferentes níveis de governos (municipal, estadual e federal), os dife-rentes poderes (legislativo, executivo e judiciário), as diversas representações dentro de um mesmo órgão (por exemplo, as secretarias de uma prefeitura) etc., para refletir e pensar sobre segurança, incentivando e apresentando ferramentas para o trabalho integra-do no desenvolvimento de planos e projetos na área.

A participação social é outra temática debatida durante os cursos, uma vez que se entende que para, de fato, conhecer determinado problema e traba-lhar pela solução dele é preciso escutar ativamen-te aqueles que, no cotidiano, lidam com a questão. A partir desse processo, gera-se um sentimento de corresponsabilidade e empoderamento, estimulan-do um número maior e mais representativo de pes-soas a trabalhar no sentido de diagnosticar e criar estratégias e ações para enfrentar as causas dos atos violentos.

Nesse sentido, o curso de Convivência e Segu-rança Cidadã trabalha ainda a importância de se executarem ações em completude, ou seja, a par-tir do esclarecimento de que é mais eficaz pensar com ações que sejam planejadas a partir de diag-nósticos locais, executadas com acompanhamento e a realização de adaptações ao longo do processo, caso isso seja necessário, e um trabalho constan-te de monitoramento e avaliação; e realizar todas essas etapas contando com uma mobilização e a participação dos diferentes segmentos sociais. Os cursos, dessa maneira, apresentam, para os partici-pantes, metodologias de realização de diagnósticos e planos integrais e participativos, monitoramento e avaliação de projetos, comunicação e mobiliza-ção para ações de Convivência e Segurança Cidadã, entre outros métodos e ferramentas, com base na Coletânea Guias de Gestão Territorial Participativa. Quando há interesse na realização de um progra-ma completo, na área de Convivência e Segurança

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Cidadã, o curso funciona, portanto, com uma fer-ramenta de introdução a todos esses conceitos e métodos, além de ser o pontapé inicial do processo de criação de uma rede de atores que passarão a se articular em torno do conceito para ações diretas no território.

Em um contexto diferente, o curso de Convivên-cia e Segurança Cidadã também pode atuar de ma-neira mais pontual, buscando atender a demandas específicas de determinados territórios. Sem fugir aos objetivos e conceitos supracitados, nessas situa-ções funciona como uma ferramenta de sensibiliza-ção para estimular os participantes a pensar sobre segurança pública de maneira mais integrada, a par-tir da perspectiva da Convivência e Segurança Cida-dã. Este foi o caso, por exemplo, da segunda rodada de cursos 2014, que teve como público moradores e profissionais da área de segurança e gestão atu-antes nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do município do Rio de Janeiro. A realidade local apresentava especificidades que demandavam uma adaptação de algumas sessões e o objetivo princi-pal dos seis cursos realizados na ocasião foi, além de difundir o conceito de Convivência e Segurança Cidadã, despertar para a necessidade de integração no trabalho relacionado à segurança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre as lições aprendidas com a série de cursos de Convivência e Segurança Cidadã promovida pelo PNUD, destaca-se a importância de envolver nas ca-pacitações um público o mais diverso possível. Ape-nas com esta multiplicidade de atores sociais é pos-sível garantir o debate entre os diferentes olhares sobre a segurança pública. Durante os cursos, em muitos casos, os participantes não chegaram a um consenso sobre as estratégias mais adequadas para a prevenção e enfrentamento à violência. Enquanto policiais militares e civis, por exemplo, apontavam para uma direção, lideranças comunitárias aponta-vam para outra.

No entanto, foi justamente essa diferença de perspectivas – natural, pois os lugares de fala, atu-ações e atribuições são distintas – que possibilitou a reflexão crítica por parte de todos. Nas avaliações feitas pelos presentes no fim dos cursos, o grande destaque foi, justamente, esta oportunidade de “se colocar no lugar do outro”, o que contribuiu para que a segurança pública começasse a ser vista a par-tir de outros ângulos.

Esse processo foi estimulado pela coordenação pedagógica dos cursos em todo o processo de esco-lha dos temas a serem trabalhados; na organização da sequência entre eles; a seleção dos especialistas que conduziriam as aulas; a produção dos materiais didáticos e pedagógicos etc. Nesse sentido, todos os professores que ficaram à frente da condução das sessões priorizaram um formato de aula que esti-mulou o confronto das ideias, o debate, a constru-ção coletiva. Para além, portanto, de um processo de transmissão de informações, dados atualizados, con-ceitos teóricos, priorizou-se a reflexão a respeito das especificidades do território e sobre a possibilidade de se aplicar o conhecimento construído nas práticas profissionais. Um exemplo disso foi a Sessão de Ela-boração de Projetos, que integrou uma das séries de cursos realizados, com objetivo de estimular os par-ticipantes a pensarem sobre projetos de Convivência e Segurança Cidadã valorizando a integração e a par-ticipação social.

Assim, os cursos de Convivência e Segurança Ci-dadã podem ser compreendidos para além de uma ferramenta metodológica, mas em sua dimensão transformadora, como ilustra o depoimento de um dos policiais militares que participaram dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã promovidos pelo PNUD no Rio de Janeiro, com foco nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS): “A partir do curso, passei a olhar a segurança a partir da prevenção, da imple-mentação de políticas intersetoriais, garantindo uma rede de ação na busca da garantia de direitos e uma convivência de paz”.

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REFERÊNCIASPNUD. Guia do marco conceitual em convivência e segurança cidadã. Coletânea Guias de Gestão Territorial Participativa. 2. ed. Brasília, 2015.

PNUD. Guia do curso de convivência e segurança cidadã. Coletânea Guias de Gestão Territorial Participativa. 2. ed. Brasília, 2015.

SERRATO, H. R. Rumo a uma política integral de convivência e segurança cidadã na América Latina: Marco conceitual de interpretação-ação, PNUD. Projeto Regional de Governabilidade Local para a América Latina, 2007.Disponível em:<http://www.pnud.org.br/publicacoes/marcoconceitualpnud_segurancacidada.pdf>. Acesso em: 2 de jan. 2013.

Juliana Mattedi Dalvi

Mestre em Psicologia Institucional, especialista em Gestão de Políticas de Segurança Pública e Assistente Social pela Universidade

Federal do Espírito Santo (Ufes). É gestora de Implementação do projeto Jovem de Futuro, no Instituto Unibanco, e Consultora do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Centro Regional para a América Latina e Caribe em Convivência

e Segurança Cidadã. Atuou como consultora do PNUD na coordenação dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã, realizados

em parceria com o MJ; na elaboração de publicações na temática de Convivência e Segurança Cidadã e na realização de Diagnóstico

e Plano Local de Convivência e Segurança Cidadã em Vitória (ES). Atuou em pesquisas no Futura Instituto de Pesquisa e como

consultora para elaboração e implantação de um Modelo de Diálogo Social para a Vale. Foi professora do curso de Serviço Social da

Ufes e possui experiência em gerenciamento de projetos na área de Segurança Urbana, Prevenção à Violência e Direitos Humanos.

Marialina Côgo Antolini

Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e jornalista graduada pela mesma

instituição. Pesquisadora do Observatório da Mídia: Direitos Humanos, Políticas, Sistemas e Transparência. Integra o quadro

de consultores associados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina e Caribe,

prestando consultoria nas áreas de mobilização e comunicação em Convivência e Segurança Cidadã. Já trabalhou como repórter

de televisão e de jornalismo impresso, bem como desenvolvendo projetos de comunicação, audiovisual e meio ambiente, em

instituições não governamentais.

Cíntia Yoshihara

Foi coordenadora dos cursos de Segurança Cidadã, realizados em 2014 pelo PNUD, em parceria com a Senasp-MJ. É psicóloga

formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em

Psicologia pela UFMG. É professora do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras em Belo Horizonte. Possui experiência como

consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do International Centre for Migration Policy

Development (ICMPD). Suas áreas de interesse são: segurança cidadã, direitos humanos, mobilização comunitária, gestão pública

participativa, mediação de confl itos e prevenção à violência.

Bruna Pegna Hercog

Nasceu em Salvador, Bahia. É jornalista e mestra em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua como

consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Centro Regional para América Latina e Caribe

em projetos de Convivência e Segurança Cidadã. Em 2014, coordenou os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, realizados

pelo PNUD em parceria com a Senasp-MJ. Já trabalhou em algumas organizações não governamentais baianas, como a Cipó

– Comunicação Interativa e a Associação Vida Brasil. Possui experiência, também, em jornalismo impresso e assessoria de

imprensa, nas áreas social e cultural e produção editorial. No Jornal A Tarde, trabalhou como repórter em diferentes editorias.

Atua, principalmente, nos seguintes temas: comunicação comunitária, mobilização social e educomunicação.

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O que ainda é importante ser dito sobre Direitos Hu-manos e Segurança Pública, para que se compreenda que os Direitos Humanos estão além de mera opinião ou vontade de se colocar ao lado dos fracos e opri-midos (ou, para muitos, a vontade de se colocar ao lado dos bandidos)? Sim, muitos autores já o disse-ram, mas ainda se faz necessário compreender como é imprescindível que a humanidade assuma, para a sua própria sobrevivência, como rota de viagem nes-te planeta, os valores da dignidade, da liberdade e da solidariedade.

Qual o nosso projeto civilizatório? Qual socieda-de buscamos construir? Essas perguntas são funda-mentais para orientar nossa reflexão. Vivemos uma crise civilizatória em que parece que tudo é possí-vel para o homem, mas, ao mesmo tempo, temos a sensação de um aprofundamento ou renascimento de posturas e atitudes que nos coloca em cheque quanto à nossa capacidade humanitária de olhar o outro e nos relacionarmos com o outro como pes-soa, com todas as implicações que isso traz. Fica-mos estarrecidos, cotidianamente, com os métodos do Estado Islâmico, com a situação dos refugiados sírios, com o martírio cotidiano das mulheres mul-çumanas, com situação dos homossexuais na Rús-sia, mas também com as mortes de indígenas no Brasil, com a naturalização do racismo, do sexismo, da homofobia…

Qual sociedade estamos construindo? É preciso pensar, é preciso se perguntar, é preciso insistir em saber para onde se pretende ir. E o que os Direitos Humanos têm a ver com um projeto civilizatório?

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS E TORTOS – QUANDO TODO HOMEM TEM O DIREITO DE SER RECONHECIDO COMO PESSOA

Um artigo da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos sempre me intrigou: “Toda pessoa tem o di-reito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”, Artigo VI.1

Porque ainda é preciso colocar, destacar, reafirmar que toda pessoa deve ser considerada como pessoa? Ser humano é ser pessoa? Ser cidadão/cidadã é ser pessoa? Onde começa a distinção entre ser homem (e aqui se fala de homem espécie) e ser pessoa? Quem de-fine o homem que é apenas homem, que está localiza-do na sua condição de vertebrado, mamífero, bípede, que possui polegar opositor, é racional e o coloca no topo do reino animal, do homem que é pessoa; e, ain-da, do homem-pessoa que passa a ser cidadão, cidadã?

No Dicionário de Direitos Humanos (2002) acha--se a seguinte distinção para os verbetes:

HOMEM | Etimologicamente, significa húmus, nas-cido da terra. Ser humano; pessoa do sexo mas-culino. Além de ser caracterizado como animal bípede, mamífero, racional, o homem cria cultura, ou seja, promove acréscimos aos bens produzidos pela natureza (LEONELLI, 2002, p. 50).PESSOA | Homem ou mulher: indivíduo; no sentido gramatical: ser real ou imaginário a quem se atribui uma ação ou estado. Para o Direito, pessoa é o ser, o sujeito ao qual se atribui direitos e obrigações, podendo ser física (individual, ser humano) ou jurídica (organização, empresa, entidade) (LEO-NELLI, 2002, p. 79).

Segurança Cidadã e Direitos Humanos: quando ser pessoa é o que importa

Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha

(Nena)

1. CESE. Coordenadoria Ecumênica de Serviço. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 6. ed. Salvador: Cese, ano do seu 30º aniversário, 2003.

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CIDADANIA | Expressa a igualdade dos indiví-duos perante a lei, o pertencimento a uma socie-dade organizada. Qualidade do cidadão de poder exercer o conjunto de direitos e liberdades políti-cos, socioeconômicos do seu país, estando sujeito aos deveres que lhe são impostos. Relaciona-se, portanto, com situação jurídica de uma pessoa em relação a determinado Estado. Implica em re-conhecer-se como membro de uma comunidade e, ao mesmo tempo, ser reconhecido. Cidadania pode ser entendida ainda como a participação consciente e responsável do indivíduo na socieda-de, zelando para que seus direitos não sejam vio-lados (LEONELLI, 2002, p. 23).

Se há essa necessidade de garantir que todo ho-mem seja considerado pessoa, isso implica que há uma condição culturalmente construída que é adi-cionada ao homem-animal, que o coloca em situa-ção especial como pessoa. Conforme a afirmação de Barbosa, ao citar Tasca (2009), o conteúdo do refe-rido Artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a princípio, pode parecer estranho:

Pois, no presente, a ideia de ser humano está indis-sociavelmente ligada à ideia de pessoa. Todavia, a história do homem comprova que nem sempre foi assim. A escravidão é um exemplo claro de que o ser humano nem sempre foi pessoa. Referido ins-tituto legitimou durante séculos a coisificação do homem enquanto ser passível de ser comerciali-zado, explorado e destruído por outros homens. Daí a necessidade de afirmação permanente dos direitos do homem, além de sua efetiva proteção ou efetivação (BARBOSA, 2011, p.3).

Sociologicamente, pessoa relaciona-se direta-mente com a identidade de cada um/uma e carrega a individualidade e a subjetividade. A identidade faz com que cada ser humano tenha um lugar no mun-do que, ao mesmo tempo que o distingue de todos, o

faz se reconhecer no outro, que é, ao mesmo tempo, igual e diferente. Igual, por pertencer à mesma es-pécie animal; e diferente, por preservar característi-cas sócio-histórico-culturais-fenotípicas que lhe são próprias e que, portanto, o distinguem de qualquer outro ser humano. Quando se observa a identidade, cada pessoa precisa ser considerada dentro do gru-po ao qual pertence, sem que haja intenção de um enquadramento em outros valores identitários pre-dominantes. A opção ou expressão religiosa, a noção de raça, o gênero e a orientação sexual, o jeito de se expressar e de se vestir, até mesmo as deficiências que possuem compõem a identidade de cada pessoa e devem ser respeitadas e garantidas para além de posturas ou condutas que contenham qualquer tipo de discriminação ou preconceito.

Almeida [s.d.] apresenta o processo de desuma-nização que afeta os operadores de segurança pú-blica, tanto na sua ação voltada à população cidadã, quanto na sua condição de cidadania, inclusive na instituição a que pertencem. Os policiais, guardas municipais e demais agentes públicos que compõem o sistema de segurança pública são parte da socie-dade na qual estão inseridos, sendo, ao mesmo tem-po, produto e produtores dessa mesma sociedade.

Para Almeida [s.d.], a sociedade é o resultado de uma soma perversa que deriva de um processo de coisificação das pessoas (que incluem os operadores da segurança pública), em que é preciso parecer (e não ser) – os problemas se resolvem por elimina-ção; é melhor ser pensado do que pensar a respeito. Desse modo, o homem é transformado em um banco de dados que recebe informações e comandos de to-das as ordens, sem discernimento do porquê e para quê obedece e, pior ainda, se deve obedecer de fato, se aquilo responde ao que se chama de sua própria consciência. Embora seja um animal sensível, o ho-mem é levado a não sentir ou “congelar”, ou ainda a não reconhecer o que sente, como uma estratégia de evitar vínculos e relações que o façam sair do pró-prio lugar de segurança. Assim, o não sentir favorece

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que aquele ser não pensante possa ser devidamente obediente. Como reforço disso tudo, não sabe o que o orienta no mundo, assumindo valores que lhe são impostos como seus, pois, caso não os assumisse, po-deriam fazer com que se questionasse o agir de modo obediente. Se não pensa, se não sente, não há outro recurso de mediação diante dos problemas que não seja a eliminação. Eliminar os questionamentos dos/as filhos/as, calando-lhes a boca, eliminar os relacio-namentos que exigem algum tipo de reflexão ou mu-dança, eliminar aquele que age ou pensa diferente de nós; eliminar, eliminar, eliminar… que outro caminho resta, senão a repressão? Em que situação, nessa lógi-ca social, cabem atitudes e posturas preventivas?

O processo de coisificação assume várias formas na sociedade e se manifesta pelo Estado na falta de políticas públicas, na falta de atenção às condições propiciadoras de violência, nas ausências todas, como: falta de cultura, arte e lazer; desemprego; baixa qualidade de saúde; educação… Na família, a coisificação se manifesta em falta de amor, ausência de limites e incompreensão do “não” como proteção; falta de adultos como modelos adequados aos mais jovens; filhos sem vontade sobre si mesmos e atuan-do no desejo dos pais...

É justamente nesse processo de coisificação que o ciclo de violência se instala e que tem nas insti-tuições de segurança pública um elemento para sua reprodução, bem como quando há falência da famí-lia, da educação, do Estado na garantia dos direitos e, também, como responsável em investigar, julgar e punir. A ação policial, muitas vezes, assume papéis que não lhe compete, julgando e executando, refor-çando, assim, um ciclo de violência sem fim, como retrata a música Criminalidade.

As pessoas se trancam em suas casasPois não há segurança nas vias públicasE nem mesmo a polícia pode impedirÀs vezes a polícia entra no jogo (GOMES, 1991).

Se, por um lado, a coisificação do homem refle-te processos de desumanização, os valores trazidos pelos Direitos Humanos propõem justamente o con-trário e não surgem do nada – eles vêm de todo um processo civilizatório que busca romper com a opres-são e a desumanidade. Assim, os operadores dos Di-reitos Humanos devem atuar no rompimento do ciclo de violência com a difusão de valores de liberdade, igualdade e solidariedade, união que “não impede as diferenças, mas sim organiza a convivência fraterna entre os homens” (PEÑA-RUIZ, 2000, p.2).

O que a Declaração Universal dos Direitos Huma-nos sistematiza em seus artigos no pós-guerra, em 1948, é o resultado de longa reflexão da humanidade para responder àquelas nossas perguntas orientado-ras: Qual o nosso projeto civilizatório? Qual a socie-dade que buscamos construir?2

Por isso os Direitos Humanos são considerados universais, indivisíveis, inalienáveis, interdependen-tes e indisponíveis, abrangendo, assim, todas as di-mensões da existência das pessoas e das coletivida-des humanas:

• Universais | por serem defendidos para todos os povos e pessoas do planeta como imprescindíveis a uma vida digna;

• Indivisíveis | porque devem ser respeitados e efe-tivados, sem que se precise abrir mão de qualquer um deles somente porque algum desses direitos já está garantido. Não se pode deixar de ter onde dor-mir, porque já se come ou estuda; nem tampouco “suprimir uns e garantir outros, interditando os di-reitos individuais e políticos sob pretexto de garan-tir os sociais, como fizeram os Estados autoritários nas últimas décadas, no Brasil e na América Latina” (JELVEZ, [s.d.]). Os direitos de comer, andar, vestir, aprender, dormir, ter proteção, morar, ter saúde, ser cuidado, crer, desenvolver-se plenamente, pen-sar livremente, sonhar, amar, conviver com os seus ou ser parte de um grupo integram um conjunto complexo e integrado e não podem ser separados.

2. Muitos autores trazem a história dos direitos humanos relacionando-os a vários momentos históricos que vêm desde o Código de Hamurabi (1700 A.C.) até a Declaração dos direitos do homem e do cidadão; França, 1789 (LEONELLI, 2002).

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Também não podem ser garantidos parcialmente, pois, por exemplo, não se pode dar “meia” educa-ção; além do acesso à educação, é necessário ga-rantir que esta tenha boa qualidade;

• Inalienáveis | pois ninguém, em nenhum lugar, pode abrir mão de seus direitos delegando-os a outrem; não se pode abrir mão da alimentação, para que outro estude – como ocorre de mães dei-xarem de comer, para que o filho possa ir à esco-la–, sendo, desse modo, todos os seres humanos de todos os territórios e continentes seus titula-res definitivos;

• Interdependentes | porque a ausência de um di-reito pode implicar na ausência de outros. Isso significa que, exemplificando: se não houver mora-dia, se não houver água e saneamento garantidos, a saúde da pessoa é afetada, o desenvolvimento e a aprendizagem ficam comprometidos; não há se-gurança e tampouco condições para convivência adequada. O “conjunto de direitos e deveres huma-nos depende entre si para possibilitar as condições necessárias de uma vida digna a todos e cada um dos seus titulares” (JELVEZ, [s.d.]).

• Indisponíveis | porque “nenhum Estado, Institui-ção, autoridade ou dispositivo legal pode atropelar, negar ou suspendê-los por quaisquer motivos, em quaisquer situações” (JELVEZ, [s.d.]).

O Brasil tem o compromisso perante a comunidade internacional de ser um estado democrático e garanti-dor dos Direitos Humanos. A Constituição Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 é uma resposta a esse compromisso e é o principal instrumento para a aplica-ção desses direitos. É uma das poucas constituições do mundo que são totalmente orientadas pelo escopo da Declaração Universal dos Direitos Humanos3, fazendo do Brasil não só um signatário que assume compromis-so com um pacto internacional, mas, além disso, um país que ratifica e se compromete a exercer plenamente os Direitos Humanos.

A Constituição Federal consubstancia e se cons-titui nos direitos e deveres humanos proclama-dos na Declaração Universal de 1948. Em razão disso, podemos afirmar que os direitos e deve-res humanos são constitucionais e, portanto, devem orientar a definição de todas as leis esta-duais, códigos específicos, regulamentos e esta-tutos nas suas dimensões horizontais, verticais e transversais da institucionalidade nacional (JELVEZ, [s.d.], grifo nosso).

Portanto, não é exagero nem força de expressão afirmar que policiais militares e civis e guardas mu-nicipais, além dos demais operadores da segurança pública, são, no Brasil, os maiores protetores dos Direitos Humanos, pois trazem em sua missão ins-titucional preservar e garantir os pactos nacionais, o que significa fazer valer a Constituição Cidadã – Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.

Direitos Humanos, portanto, como diz Balestreri (2002), são “Coisa de Polícia”, tendo uma relação in-trínseca com a atuação das polícias, como cidadãos responsáveis por proteger a cidadania de todas as pessoas e, para que isso ocorra, a ação policial deve seguir os princípios da legalidade, da justiça e im-parcialidade, da igualdade, da proporcionalidade, da integridade.

Jelvez [s.d.] acrescenta que “a credibilidade da Polícia se constrói na competência técnica e opera-cional dos seus integrantes, na transparência ética e moral da sua atuação, na confiança institucional que inspiram nos cidadãos e cidadãs”.

Na proposição da Convivência e Segurança Cida-dã trazida pelo PNUD, sabe-se que não cabe somente à polícia e demais operadores da segurança pública estabelecer uma cultura de paz em que os direitos e deveres humanos não sejam apenas jargões filosó-ficos e sim prática comum que garanta, inclusive, o enfrentamento a toda forma de violência.

3. Ver Juízes para Democracia. Disponível em: < http://www.ajd.org.br/arquivos/publicacao/democracia12.pdf>. Acesso em: 1º nov. 2015.

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A construção cultural cidadã depende de todos e é o caminho privilegiado para a superação das desi-gualdades e situações de vulnerabilidades e riscos. Quando penso em responder àquela insistente per-gunta da sociedade que buscamos construir e penso em como poderemos transformar isso em realidade, escuto o poema de Thiago de Mello, aquele amazo-nense que, em tempos difíceis do Brasil, dizia em Ma-drugada Camponesa, no ano de 1965:

Madrugada camponesa,faz escuro ainda no chão,mas é preciso plantar.A noite já foi mais noite,a manhã já vai chegar.Não vale mais a cançãofeita de medo e arremedopara enganar solidão.Agora vale a verdadecantada simples e sempre,agora vale a alegriaque se constrói dia a dia,feita de canto e de pão.[…]Madrugada camponesa,faz escuro (já nem tanto),vale a pena trabalhar.Faz escuro, mas eu canto,porque a manhã vai chegar (MELLO, 1980).

Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha

Doutoranda em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (Ucsal), mestra em Arquitetura e Urbanismo

e Arquiteta pela UFBA. Consultora do PNUD – Centro Regional para a América Latina e Caribe em Convivência

e Segurança Cidadã. Atuou em: Comissão de Avaliação do Sistema Penitenciário do Amapá –Gov. AP; Jornadas

Formativas em Direitos Humanos – Senasp-MJ; Programa Polícia Cidadã do Estado do Amapá – Ceforh-AP;

Prêmio Dubai 2000 – ONU-Habitat, Programa Educar – erradicação do trabalho infantil nas piores formas de

narcoplantio e exploração sexual comercial – Instituto Companheiros das Américas; Centro de Educação em

Direitos Humanos e Assuntos Penais – SJCDH-BA (Direção). Recebeu o Certificado de Excelência por serviços

prestados à Segurança Pública – 2010 – Senasp-Pronasci-MJ. Possui artigos e livros publicados: arquitetura e

urbanismo, direitos humanos, segurança pública e educação social.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, R. M. G. O processo de desumanização e o papel pedagógico dos operadores de segurança pública. [s.d.]. Disponível em: <http://palavracoes.com/portal/artigos/rosa_maria_almeida1.pdf>. Acesso em: 3 nov. 2015.

BALESTRERI, R.B. Direitos Humanos: coisa de polícia. Passo Fundo: Capec, 2002.

BARBOSA, E. S. O conceito de homem, pessoa e ser humano sob as perspectivas da antropologia filosófica e do direito. Revista Âmbito Jurídico, v. 90, p. 1-6, 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9837>.Acesso em: 3 nov.2015.

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Neste ensaio, a proposta é de construção de nexos entre a Segurança Cidadã e os Direitos Humanos, re-conhecendo que o sucesso de tal tarefa exigiria fôle-go extraordinário para alcançar a profundidade que as duas expressões carregam.

São temas de extrema relevância para a contempo-raneidade, que se desdobram em muitas reflexões refe-rentes à vida, ao ser humano e ao viver em sociedade.

Inaugura, assim, esta proposta, a indagação so-bre o que há de comum entre Segurança Cidadã e Direitos Humanos, cabendo atentar para essas ex-pressões às quais têm sido atribuídos significados quase sempre distorcidos.

Embora insustentáveis, se fossem confrontadas com as análises das ciências sociais, as distorções de significados estão, em grande medida, no senso co-mum, sugerindo, equivocada e injustamente, que os-Direitos Humanos se constituem em práticas de pes-soas e organizações voltadas para proteger o crime e defender a impunidade.

DIREITOS HUMANOS

Adotamos aqui a simplificada compreensão de que os Direitos Humanos correspondem à satisfação das necessidades da pessoa humana, em suas múltiplas dimensões, e que a luta pela sua afirmação na histó-ria parte sempre das carências, das desigualdades, da opressão e do sofrimento, e perseguem as condições indispensáveis ao reconhecimento e à garantia da dignidade de todas as pessoas.

Nesse percurso, para a afirmação dos direitos, são identificadas e fundamentadas as necessidades,

providenciados os compromissos e os meios para seu reconhecimento, nos planos político e normati-vo e, o mais importante, buscadas as condições para sua realização.

Noberto Bobbio, uma das maiores referências do pensamento moderno a respeito dos Direitos Huma-nos, considerando o que já se alcançou em compro-missos formais (declarações, convenções, tratados etc.) e normas jurídicas (constituições, leis, decretos etc.) observa e alerta que: “Os direitos humanos são coisas desejáveis, fins que merecem ser perseguidos e que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles por toda a parte e em igual medida reco-nhecidos” (BOBBIO, 1992, p. 16). Afirma, ainda, que “não se trata de saber quais e quantos são esses direi-tos, qual é a sua natureza e seu fundamento, mas sim, qual é o modo mais seguro para garanti-los” (BOB-BIO, 1992, p. 25).

A garantia dos Direitos Humanos está numa or-dem social em que sejam respeitados os princípios da universalidade, como possibilidade de alcance do direito por todos; da indivisibilidade, como reconhe-cimento de que são indispensáveis e interdependen-tes os direitos individuais, sociais, culturais e políti-cos; e da igualdade com respeito às diferenças, como garantia contra toda forma de exclusão e discrimina-ção que inferiorizem.

SEGURANÇA COMO DIREITO HUMANO

De acordo com a compreensão de direitos aqui ado-tada, a segurança constitui-se numa necessidade hu-mana. E a origem dessa necessidade, segundo Freud

Direitos Humanos e Segurança CidadãMatheus Albergaria e

Vera Leonelli Se as coisas são inatingíveis,

Ora, não é motivo para não querê-las,Que tristes os caminhos se não fora,

A presença distante das estrelas.Mário Quintana

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(1997), estaria: no sofrimento humano diante da superioridade da natureza e da fragilidade do nosso corpo; e na inadequação das normas que regulam a convivência na família, na sociedade e nas relações com o Estado.

A segurança, como direito, refere-se: à proteção contra o retrocesso (em relação aos avanços civiliza-tórios já alcançados); à previsibilidade e à confiança na ordem jurídica, nas leis; à efetividade dos direitos individuais de liberdade de crença, de consciência, de exercício religioso, de expressão, de opção política, de orientação sexual, de privacidade, de intimidade, de honra e imagem, de locomoção, de reunião e orga-nização; aos direitos sociais de educação, saúde, ali-mentação, trabalho, moradia, lazer, segurança; e pre-vidência e assistência, incluindo os mínimos sociais para a garantia da dignidade humana.

A necessidade de segurança se amplia, se aprofun-da e se torna cada vez mais complexa, e inalcançável em sua plenitude, nas sociedades modernas, sobre-tudo naquelas em que os laços de solidariedade vêm sendo crescentemente substituídos pelas relações de exclusão e competição. Aí, a hipertrofia do medo gera reações violentas que se retroalimentam, tanto nas relações entre os cidadãos, quanto nas relações destes com o Estado.

A SEGURANÇA CIDADÃ

Diante do agravamento da insegurança, principalmen-te nos países da América Latina, a Organização das Na-ções Unidas (ONU) defendeu, em 1994, o conceito de Segurança Humana, inserido no princípio do “desen-volvimento humano sustentável”.

É a partir desse conceito de segurança, centrado na pessoa, no ser social, no cidadão, que se desen-volve a compreensão sobre Segurança Cidadã, impli-cando o reconhecimento da cidadania como perten-cimento e requerendo, para se constituir e se firmar, uma ordem verdadeiramente democrática, em que os direitos postos no conjunto de normas do país sejam, de fato, garantidos.

Segundo Pedro Demo (1995), a cidadania, aqui identificada como pressuposto da Segurança Cidadã, é a competência humana de fazer-se sujeito, para fa-zer história própria e coletivamente organizada, “é a raiz dos direitos humanos”.

A cidadania traduz-se, também, na possibilidade de participação política e do controle social da coi-sa pública (res publica), condições que só um regime verdadeiramente democrático assegura, já que um regime de cunho apenas liberal compreende a cida-dania tão somente via partido político e manifestação nos processos eleitorais.

A configuração da Segurança Cidadã está, por-tanto, inteiramente associada à garantia dos Direitos Humanos, ultrapassando a vinculação exclusiva da segurança pública e respectivas instituições policiais, e comprometendo Estado e sociedade com sua efeti-vação. Significa dizer que, no Brasil, União, estados e municípios devem assumir políticas econômicas e so-ciais interligadas e voltadas para a promoção de uma convivência social justa, segura e sustentável.

Essa concepção de segurança difere, radicalmen-te, do conceito e da prática estabelecidos no Brasil, durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985), com o objetivo declarado de defesa do Estado e manutenção da ordem política e social.

Na ditadura, contrariamente ao que se pretende com a construção de uma política de Segurança Ci-dadã, houve supressão de direitos constitucionais, tortura, desaparecimentos, censura, perseguição po-lítica e repressão a qualquer manifestação contrária ao regime militar. Esse período representou, assim, uma violenta ruptura dos princípios da democracia e promoveu a insegurança individual e social.

Lamentavelmente, muitos paradigmas da ditadu-ra ainda não foram inteiramente superados nem pela sociedade nem pelo Estado: a lógica persiste em ex-pectativas sociais relativas à segurança e, em grande medida, em comportamentos policiais.

Por um lado, nossa sociedade elege a violência como forma privilegiada de “resolver” seus conflitos

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e ainda se orienta pela vingança, como método de aplicar a “justiça” aos que cometeram ilícitos penais. Como aponta Marilena Chauí (2007), a sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, na medida em que faz da violência a regra da vida social e cultural.

Em outra vertente, o Estado brasileiro, a despeito de ser formalmente Democrático de Direito e de ter avançado na realização de programas sociais de in-clusão e redução da miséria, ainda mantém práticas patrimonialistas, elitistas, clientelistas, nepotistas e violentas no uso da força, além da elevada corrupção.

Na Constituição Federal (BRASIL, 1988), o caráter de “democrático” e “de direito” já aparece no preâm-bulo do texto, como compromisso de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liber-dade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

Logo em seguida, no Artigo 1º, estão consagrados os fundamentos do Estado, dentre eles, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. E dentre os objetivos, inscritos no Artigo 3º, estão os de construir uma so-ciedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização, promover o bem de todos, sem pre-conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) (2014), formulado pela interação do Es-tado com a sociedade civil, dedica um dos seus ei-xos orientadores às questões da segurança, acesso à justiça e combate à violência, definindo diretrizes, objetivos e ações programáticas. Destacam-se aí: a desvinculação das polícias militares do Exército; a criação de ouvidorias independentes; a promoção dos Direitos Humanos dos profissionais de seguran-ça; a formação continuada em Direitos Humanos dos profissionais de segurança; a consolidação de meca-nismos de participação popular na elaboração das políticas de segurança; a ampliação do controle de armas de fogo e combate à violência institucional; e erradicação da tortura.

Vê-se, assim, que há avanços, alguns nas políticas públicas, mas, principalmente, nos planos normativo e teórico que estabelecem condições para reverter esse cenário de desigualdades e insegurança, a partir dos pilares cidadania e democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A efetivação da Segurança Cidadã, como Direito Hu-mano de todos, é o desafio que se põe. Para o con-junto da sociedade, esse desafio consiste numa re-construção cultural para valorização das relações democráticas, do diálogo, das mediações como for-mas sustentáveis de solução dos conflitos, da tole-rância e pela rejeição das violências nas suas diversas manifestações.

Para o Estado, o desafio é também de recons-trução da cultura institucional, para a realização de políticas públicas socioeconômicas que reduzam a imensa distância entre os direitos previstos na Cons-tituição e a realidade de grande parte da sociedade.

Quando o direito é a segurança, o desafio da re-construção da cultura das instituições policiais re-quer a superação da lógica da segurança nacional que, tomando a sociedade como potencial inimiga, admite a eliminação como mecanismo de defesa. Além disso, a cultura da Segurança Cidadã requer a assunção da legalidade e dos princípios da necessidade e propor-cionalidade no uso da força, tão distanciados das prá-ticas cotidianas.

Sabemos o quão distante ainda estamos da efe-tivação desse modelo democrático de convivência e de organização social. Mas, ainda que esteja no campo da teoria (acadêmica, por vezes), nos com-promissos formais e nos ideais dos segmentos com-prometidos com os Direitos Humanos, novos atores entram na cena política e pressionam para que as mudanças ocorram na área da segurança, conside-rada termômetro para medir o grau civilizatório da sociedade.

Afinal, como, como afirma Baumman (2009), “tudo o que foi feito pelo homem pode ser refeito”.

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REFERÊNCIAS

BAUMMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009.

BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

BOBBIO, N. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira.Rio de Janeiro:Editora Paz e Terra, 1987.

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CHAUÍ, M. Cultura e democracia. Salvador: Secretaria da Cultura, 2007.

DEMO, P. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas: Autores Associados, 1995.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS – PNDH 3. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Edição Especial. Brasília: SEDH-PR, 2014.

Matheus Albergaria Paulino de Almeida

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia

(UNEB). Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade

Baiana de Direito. Advogado do Centro de Referência

em Direitos Humanos de Salvador – BA (Programa

da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da

República, executado pela Associação Fábrica Cultural).

Ex-coordenador de Projetos do Juspopuli – Escritório de

Direitos Humanos. Facilitador de cursos e formações

livres sobre temáticas correlatas aos Direitos Humanos

e Mediação de Confl itos. Mediador de confl itos em

comunidades de Salvador – BA. Advogado com atuação

preponderante na área cível (especialmente Direito das

Famílias e Direito do Consumidor).

Vera Leonelli

Advogada, milita na área dos direitos humanos. Fundou e

coordena o Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos. Integra,

na condição de vice-coordenadora, a Comissão Estadual

da Verdade. Tem atuado em projetos de educação para os

direitos humanos, coordenando cursos e ministrando aulas

e palestras.Tem publicadas, em coautoria, as obras: ABC dos

Direitos Humanos (minidicionário); Guia de Mediação Popular;

Mediação Popular, uma alternativa para a construção da justiça;

além de artigos em publicações especializadas em direitos

humanos e mediação de confl itos. Integrou a Comissão de

Direitos Humanos da OAB-Bahia; atuou como servidora pública

na Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e no

Ministério Público do Estado da Bahia; e, no âmbito da sociedade

civil, trabalhou, dentre outras organizações, no Centro Projeto

Axé de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Matheus Albergaria Paulino de Almeida

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia

(UNEB). Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade

Baiana de Direito. Advogado do Centro de Referência

em Direitos Humanos de Salvador – BA (Programa

da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da

República, executado pela Associação Fábrica Cultural).

Ex-coordenador de Projetos do Juspopuli – Escritório de

Direitos Humanos. Facilitador de cursos e formações

livres sobre temáticas correlatas aos Direitos Humanos

e Mediação de Confl itos. Mediador de confl itos em

comunidades de Salvador – BA. Advogado com atuação

preponderante na área cível (especialmente Direito das

Famílias e Direito do Consumidor).

Vera Leonelli

Advogada, milita na área dos direitos humanos. Fundou e

coordena o Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos. Integra,

na condição de vice-coordenadora, a Comissão Estadual

da Verdade. Tem atuado em projetos de educação para os

direitos humanos, coordenando cursos e ministrando aulas

e palestras.Tem publicadas, em coautoria, as obras: ABC dos

Direitos Humanos (minidicionário); Guia de Mediação Popular;

Mediação Popular, uma alternativa para a construção da justiça;

além de artigos em publicações especializadas em direitos

humanos e mediação de confl itos. Integrou a Comissão de

Direitos Humanos da OAB-Bahia; atuou como servidora pública

na Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e no

Ministério Público do Estado da Bahia; e, no âmbito da sociedade

civil, trabalhou, dentre outras organizações, no Centro Projeto

Axé de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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O foco da política criminal das últimas décadas, nos países em desenvolvimento, tem sido, exclusivamen-te, o de apagar o fogo: aumentar as penas, endurecer sua execução, construir mais presídios, transferir os líderes das organizações criminosas para prisões fe-derais de segurança máxima, reduzir a maioridade penal, preparar reformas processuais, estabelecer políticas de tolerância zero. Ações que, em nome da segurança pública, atacam as consequências e não as causas do fenômeno do crime.

O enfrentamento à violência é um dos desafios do nosso tempo, assim como a garantia de respeito aos direitos humanos. Coincidentemente, o combate à miséria e à fome, e a busca pelo desenvolvimento humano também se apresentam como desafios em um mundo em que a distribuição de riquezas é desi-gual, tanto entre pessoas, quanto em cidades, países e continentes.

Nessa seara, o conceito de segurança humana, que traz a aliança e o necessário balanço entre desenvol-vimento, respeito aos direitos humanos e segurança, é o mais adequado para descrever o cenário no qual estamos inseridos e para apresentar soluções em busca de um mundo mais harmônico. Mas, é também um desafio esclarecer para os representantes do Es-tado e para a sociedade civil a necessária relação en-tre esses três conceitos, em busca de uma “segurança humana”. Mais difícil ainda é convencê-los de que, para o alcance da “segurança humana”, unir esforços de todos os setores que compõem o nosso Estado e, além disso, trabalhar numa perspectiva integrada é essencial, sem esquecer o fator tempo, pois os resul-tados de qualquer intervenção, nas áreas da seguran-ça, direitos humanos e desenvolvimento são colhidos em longo prazo.

SEGURANÇA HUMANA & SEGURANÇA CIDADÃ, DESENVOLVIMENTO HUMANO & DIREITOS HUMANOS

Desde 1994, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) tem questionado o con-ceito de segurança pública como defesa do estado e repressão policial, promovido sua relação direta com desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e tem difundido o conceito de segurança humana. São cerca de 20 anos divulgando um conceito que poderá trazer para os cidadãos do nosso país os três pilares de uma convivência pacífica e harmônica, em direção a uma noção de proteção aos indivíduos e às comuni-dades, no seu cotidiano.

Segundo o conceito de segurança humana, esta não é somente defesa de fronteiras ou segurança pú-blica. Violência e insegurança tomam diversas formas e saem dos seus conceitos tradicionais para englobar diferentes fontes de ameaças, sejam elas econômicas, políticas, e criminais, sejam de diferentes setores, como o meio ambiente, e aquelas relativas às ques-tões sanitárias e alimentares.

A segurança deve ser, portanto, alimentar, am-biental, pessoal, comunitária, econômica e política. Com as mudanças geopolíticas que ocorreram no fim da guerra fria, tais como o avanço do capitalis-mo, a globalização, a intensificação dos conflitos e das batalhas internas entre atores políticos e civis e a prevalência do poder econômico, que passa a ser maior que o poder militar, questões de segurança ou defesa nacional perderam sua importância. As ameaças de origem interna, que não são somente à segurança física dos indivíduos, mas também à sub-sistência e às condições mínimas de sobrevivência, passaram a ser mais importantes do que qualquer ameaça externa ou desafio à segurança das fronteiras.

Segurança Cidadã é coisa nossa!

Alline Pedra

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As “guerras” que aconteciam entre as nações foram substituídas por conflitos e batalhas internas entre atores políticos e civis (MATLARY, 2008). Inclusive, com a globalização, o próprio conceito de fronteiras como divisão entre dois estados “alienígenas” e de “fortaleza”, dilui-se e permeia-se, tendo em vista a facilidade de deslocamento da informação e das pes-soas.

A segurança passa a ser vista, portanto, como a percepção de estar protegido das constantes amea-ças de fome, de doenças, de crime e repressão; prote-ção ao infortúnio, às rupturas dolorosas no cotidiano das pessoas, seja em sua casa, trabalho, comunidade, seja no meio ambiente. Em seu relatório In Larger Freedom (2005), Kofi Annan descreve muito bem a relação entre segurança, desenvolvimento e direitos humanos, quando exemplifica:

Mesmo que possa votar para escolher seus re-presentantes, um jovem adulto com HIV, que não saiba ler ou escrever e sobreviva na pobre-za, não é livre. Igualmente, ainda que receba o suficiente para sobreviver, uma mulher que vive sob ameaça de violência e não pode se ex-pressar em seu próprio país, não é livre. “Ampla liberdade” implica que homens e mulheres em todos os lugares tenham o direito de ser gover-nados/as com o seu consentimento, de acordo com a lei, numa sociedade em que indivíduos possam, sem discriminação ou represálias, fa-lar, adorar e se associar livremente. Eles devem também estar livres das necessidades – de for-ma que a pena de morte imposta pela extrema pobreza e pelas doenças infecciosas seja banida de suas vidas – e livres do medo – de forma que suas vidas não sejam tiradas pela violência e pela guerra (ANNAN, 2005).

Segurança humana, portanto, não é uma preocu-pação com armas, mas com a vida humana e a digni-dade. É a preocupação sobre como vivem e respiram

as pessoas, que liberdade elas têm para exercer suas escolhas, que acesso elas têm ao mercado e às opor-tunidades sociais e se elas vivem em paz ou em con-flito. “Assim, não se desfrutará do desenvolvimento sem segurança, não se desfrutará da segurança sem desenvolvimento, e não se desfrutará nem de um nem de outro sem respeito pelos Direitos Humanos” (ANNAN, 2005)1. Ou seja, o desenvolvimento huma-no, assim como o respeito aos direitos humanos são componentes necessários à segurança humana e vi-ce-versa. É uma tríade necessária (PEDRA; MEDEI-ROS, 2013).

São, portanto, atributos essenciais da seguran-ça humana: o foco no indivíduo; na universalidade dos direitos, na interdependência dos seus compo-nentes ou na interdisciplinaridade e na preferência por prevenção sobre a intervenção. Desta forma, as intervenções e ações políticas e públicas mais varia-das de segurança devem ter o enfoque na segurança do cidadão, como algo que vai além da repressão, mas que inclua principalmente o desenvolvimento e a prevenção.

É nessa seara que surge o conceito de Segurança Cidadã, que é entendido como parte fundamental da segurança humana, pois se refere a uma ordem cida-dã democrática que elimina as ameaças de violência na população e permite a convivência segura e pací-fica (SERRATO, 2007). É a segurança vista sob duas perspectivas: proteção à vida (das ameaças, da vio-lência) e proteção ou prevenção às vulnerabilidades dos autores e vítimas.

O conceito de Segurança Cidadã traz, de forma prá-tica e eficaz – para a agenda do estado como um todo, não somente do estado “segurança”, e da sociedade civil, incluindo o setor privado – a implementação dos direitos humanos e os problemas de desenvol-vimento como pontos prioritários para a segurança das pessoas e da segurança pública, reforçam Khong (2001) e Sorj [s.d.]. Sob este prisma, segurança “pú-blica” não é mais vista como um problema, mas sim como uma solução, e de todos os cidadãos.

1. Trecho original: “Accordingly, we will not enjoy development without security, we will not enjoy security without development, and we will not enjoy either without respect for human rights”.

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Dessa forma, segurança cidadã é complementar à segurança pública e ambos os conceitos se reforçam, mutuamente. “Dar novo conceito à segurança pres-supõe considerar que o centro [dela] é o cidadão. As-sim, a segurança cidadã é uma parte vital da seguran-ça humana” (VELÁSQUEZ, 2007). A segurança cidadã se refere, portanto, a uma ordem cidadã democrática que elimina as ameaças de violência na população e permite a convivência segura e pacífica.

DIVERSAS FORMAS E FONTES DIVERSAS DE VIOLÊNCIA: A MULTICAUSALIDADE E O CONCEITO DE SEGURANÇA CIDADÃ

Pois bem, visto o conceito de segurança cidadã, há que se refletir sobre a sua implementação prática, ou seja, que aspectos abordar ou o que fazer, efeti-vamente, para se chegar à segurança humana, e, por-tanto, cidadã, em determinado território. Significa observar os aspectos multicausais da violência.

É provável fonte de violência a ausência ou o dé-ficit de coesão social. Coesão social é o conjunto de normas de confiança mútua, redes de cooperação, os mecanismos de sanção e regras de comportamento que podem melhorar a eficácia da sociedade na so-lução de problemas que exigem ação coletiva. A au-sência dessas redes de cooperação tanto por parte do estado quanto da sociedade civil, e entre eles, é o que dificulta ou até mesmo impossibilita a forma-ção de capital social num determinado local, permi-tindo a violência. Há, também, os chamados fatores de risco, que são elementos individuais, domésticos ou sociais que, a partir de um efeito cumulativo, co-locam as pessoas em condições e situações vulnerá-veis, aumentando suas chances de se tornarem ou vítimas ou agentes da violência. A violência contra a mulher, a criança, o adolescente e o idoso, seja ela física, sexual, seja psicológica, perpetrada no âm-bito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal; na comunidade e cometida por qualquer pessoa ou até mesmo perpetrada ou tole-rada pelo próprio Estado, é uma forma de violência

per se mas é também causa de outras formas de vio-lência e de insegurança, em dada sociedade. A inse-gurança de determinados espaços sociourbanos, de uso público e de circulação (praças, parques, ruas, becos etc.), que apresentam características como: falta de manutenção, falta de iluminação e vigilância e ausência de estética urbana, faz com que esses es-paços fiquem inabitados, inutilizados, inutilizáveis ou mal-utilizados, diminuindo o sentimento de per-tencimento de determinada comunidade ao espaço e oportunizando o crime. A insuficiência da polícia e da justiça é, também, uma das causas da violência. E, finalmente, o crime organizado ou organização criminosa é também causa de violência, definido nos termos da Lei n° 12.850, de 2 de agosto de 2013, § 1º do Art. 1º, como:

[...] associação de 4 (quatro) ou mais pessoas es-truturalmente ordenada e caracterizada pela di-visão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, van-tagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de ca-ráter transnacional.

Esses seis fatores, somados às falhas da capacidade institucional, sejam eles por parte do governo federal, sejam por parte do estado ou do município, contri-buem para a disseminação da violência e do crime.

À GUISA DE CONCLUSÃO... E AINDA EM BUSCA DE EXPLICAÇÕES PARA A VIOLÊNCIA E SOLUÇÕES DE SEGURANÇA

A violência, ou o crime, é uma reação à anomia ou a um vazio ou as diversas e diferentes carências pre-sentes em dada sociedade (DURKHEIM, 2000; MER-TON, 1957). Conforme os elementos apresentados, as fontes dessas carências podem ser as mais variadas. Desta maneira, as ações necessárias para controlá--las ou reduzi-las também deverão ser abrangentes,

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indo da prevenção – a partir do desenvolvimento humano e da integração entre as diversas políticas públicas – ao controle, exercido, eminentemente, pela justiça criminal. Ou seja, violência não é coisa só de polícia. É coisa nossa. E segurança, portanto, não deve ser uma questão de ordem pública, quebrando o paradigma da defesa das fronteiras e partindo para a proteção aos indivíduos, das mais variadas formas de violências.

Alinne Pedra

Advogada, pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); doutora e mestre em Criminologia

pela Université de Lausanne (Suíça), mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); graduada em

Direito pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Trabalha no desenvolvimento e execução de projetos, na coordenação

de pesquisas e de projetos; atua em cooperação técnica com Organizações Internacionais, como o ICMPD, o UNODC, o PNUD

e o governo federal. É expert em Vitimologia. Seus interesses de pesquisa são: justiça restaurativa, justiça criminal, direitos

humanos, segurança humana, segurança pública, migração, tráfi co de pessoas, violência contra mulheres, prevenção ao crime

e crime organizado.

Alinne Pedra

Isso posto, a dimensão do conceito de seguran-ça cidadã é a que melhor abrange tanto as causas quanto as soluções para as diversas formas de vio-lência. O conceito de segurança cidadã quebra o pa-radigma da segurança como “coisa de polícia” para “responsabilidade de todos nós” e nos força a ava-liar nossas responsabilidades como promotores de uma sociedade mais harmônica e pacífica, e de uma sociedade mais igual.

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REFERÊNCIAS

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Se fosse feita uma pergunta nas ruas de qualquer país latino-americano, sobre o que seria a América Lati-na, provavelmente seriam obtidas respostas diversas e, na maioria das vezes, desconectadas da realidade. Grosso modo, a América Latina compreende aqueles países que foram colonizados por países latinos (Por-tugal, Espanha e França), não representando uma re-gião geográfica oficial. Esses países estão espalhados pelas Américas do Norte, Central e do Sul e no Ca-ribe. Este último, por sua vez, abriga também países não latinos, muitos deles considerados membros da Commonwealth1, mas que apresentam uma condição socioeconômica e uma proximidade geográfica que justificam incorporá-los nesse universo de América Latina, ao menos para fins de estudos.

Neste ensaio, é apresentada uma reflexão sobre essa região, sob o enfoque da segurança. Especifica-mente, será abordado o tema da segurança cidadã, no contexto e nas especificidades dessa região.

O CONTEXTO LATINO-AMERICANO E O CARIBENHO

Os 42 países localizados na região concentram cerca de 630 milhões de habitantes segundo a Divisão de população do Departamento de Assuntos Econômi-cos e Sociais (ESA), Organização das Nações Unidas (ONU)2. De forma genérica, a região apresenta um elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)3,

segundo apresenta o Relatório de Desenvolvimento Humano de 20144 .

O mesmo relatório também afirma que, apesar dos avanços experimentados na região, temas como desigualdade e segurança dos cidadãos e cidadãs ain-da são desafios a serem enfrentados, principalmente-entre os países que apresentam alguns dos melhores IDH na região – Chile (0,822), Argentina (0,808), Mé-xico (0,756) e Brasil (0,744), todos com IDH muito elevado ou elevado, são exemplos disso.

Sobre a violência, pode-se destacar o fato de se-rem encontradas na região taxas criminais alarman-tes. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), entre 2000 e 2010, as ta-xas de homicídios cresceram 11%, enquanto a maio-ria das regiões do mundo apresentou diminuição. Dados do PNUD apontam ainda que, em um dia típi-co, 460 pessoas, principalmente mulheres, são víti-mas de violência sexual na região5.

De acordo com um relatório conjunto da Organiza-ção Mundial da Saúde (OMS), o Escritório das nações Unidas sobre Crimes e Drogas (UNODC) e o PNUD6, a região da América Latina e Caribe apresentam o maior número de homicídios no mundo. Dos 474.931 ho-micídios registrados globalmente, em 2012, 168.617 ocorreram na região das Américas, entres os países de média e baixa renda – exatamente os países da Amé-rica Latina e Caribe. Uma comparação que pode dar

A Segurança Cidadã no contexto latino-americano

Paulo Ricardo de Paiva e Souza

1. Associação voluntária de estados soberanos, na sua maioria, ex-colônias britânicas. 2. Disponíveis em:<http://esa.un.org/unpd/wpp/DVD/> e foram publicados no World Population Prospects, the 2015 revision. Acesso em: 12 nov. 2015.3. Na média, o IDH da América Latina e Caribe aferido em 2013 foi de 0,740, o que é considerado um índice elevado pela metodologia aplicada pelo PNUD, embora alguns países da região apresentem um IDH considerado médio ou baixo. O Haiti é um exemplo disso, sendo o único país da região a apresentar um IDH baixo (0,471). Outros exemplos são Paraguai (0,676), Bolívia (0,667), El Salvador (0,662), Guiana (0,638), Guatemala (0,628), Honduras (0,617) e Nicarágua (0,614), todos com um IDH considerado médio (abaixo de 0,735). 4. Documento publicado, anualmente, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 5. Disponível em: <http://www.latinamerica.undp.org/content/rblac/es/home/regioninfo/>. Acesso em: 12 nov. 2015. 6. Informe sobre la situación mundial de la prevención de la violencia 2014: resumen de orientación. Disponível em:<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/145089/1/WHO_NMH_NVI_14.2_spa.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2015.

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uma noção da seriedade desses números é quando se trazem os dados dos países de baixa e média renda da Europa, com 10.277 homicídios, em 2012. Olhando para as taxas de homicídios, que oferecem uma com-paração mais precisa, nota-se que a América Latina e Caribe apresentam 28,5 homicídios por 100.000 habi-tantes, enquanto a Europa – países de baixa e média renda – apresenta 3,8; e na região do sudeste asiático – países de baixa e média renda –, ocorrem 2,1 homicí-dios por 100.000 habitantes.

O Brasil, por exemplo, com 50.108 homicídios, em 2012, segundo os registros reportados ao UNODC pela justiça do país7, é quem apresenta o maior número absoluto desse tipo de crime, no mundo, embora com uma taxa de 28,5 para cada 100.000 habitantes, ele fique, na região, atrás de Honduras (90,4), Venezuela (53,7), Belize (44,7), El Salvador (41,2), Guatemala (39,9), Jamaica (39,3), São Cristóvão e Neves (33,6), Colômbia (30,8), Bahamas (29,8), Trinidad e Tobago (28,3) e São Vicente e Granadinas (25,6)8. Fora da re-gião, apenas a África do Sul (31) apresenta taxas que a colocariam nesse grupo.

Outro dado preocupante são os índices de desi-gualdade9 encontrados na região: dos dez países com piores índices de desigualdade no mundo, sete estão na região da América Latina e Caribe, sendo seis lati-nos (Honduras, Bolívia, Colômbia, Guatemala, Brasil e Panamá. Todos com Coeficiente de Gini acima de 0,5)10.

CONVIVÊNCIA E SEGURANÇA CIDADÃ NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO

A violência entre os cidadãos na América Latina tem tomado proporções difíceis de gerenciar. As manifestações de agressão mútua vêm deixando sequelas cada vez mais evidentes. Inúmeros são os estudos que buscam especificar as causas para essa situação. Em comum, os estudos sugerem que esse fenômeno é multicausal e está disperso em todas as camadas sociais, embora se materialize de forma mais evidente nas camadas menos estabelecidas economicamente.

Se no âmbito da violência doméstica as mulheres lideram as estatísticas como principais vítimas11, são os números da violência nas ruas relativos a homens jovens12 que aparecem de forma contundente – com destaque para a violência armada e organizada – como principais vítimas e vitimadores letais13.

A insegurança, ou a sensação dela, constitui um entrave nas expectativas de desenvolvimento de qual-quer país. Na América Latina, políticas de segurança, tradicionalmente, elegiam as ações policiais como principal fator de investimento e desconsideravam qualquer outro tipo de abordagem no enfretamento à crescente violência. Contudo, a repressão policial e o endurecimento de algumas atitudes por parte de au-toridades nacionais ou locais não surtiram – e ainda não surtem – o efeito esperado ou desejado14. Quando

7. O relatório também apresenta números e taxas segundo a área da saúde (índices da OMS). A opção foi trabalhar com números e índices do UNOCD, mesmo estando abaixo das estatísticas da OMS. 8. Taxas apresentadas pelo Global status report on violence prevention 2014. Disponível em:<http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/status_report/2014/es/>. Alguns países não apresentam números para alguns índices. Acesso em: 12 nov. 2015. 9. A referência aqui é o índice ou Coeficiente de Gini (ele vai de 0 a 1. Quanto mais próximo a 1, mas desigual é o país/região/localidade. Zero seria o estado perfeito de igualdade). 10. Os piores índices de desigualdade apresentados no relatório da OMS/UNODC/PNUD (Op. cit.) é de: 0,657, na República das Seicheles; 0,631, na África do Sul; e 0,575, em Zâmbia. 11. É difícil citar um único documento que demonstre tal afirmativa já que inúmeros estudos ao redor do mundo chegaram ao mesmo resultado. Entretanto, isso pode ser visto em documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) – ou WHO, por sua sigla em inglês, tais como: Violenceagainstwomen: anurgentpublichealthpriority, 2011 (<http://www.who.int/bulletin/volumes/89/1/10-085217/en/index.html>); e Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, 2002; bem como em publicações como Crianças do Tráfico. Um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro (DOWDNEY, 2003). 12. Esclarece-se que a categoria “homens jovens” concentra jovens maiores de 18 anos. As informações foram baseadas em dados como os do Ministério da Justiça do Brasil, os quais afirmam que dos homicídios ou tentativa de homicídios no país apenas 0,5% é cometido por menores de 18 anos (disponível em:<http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/06/menores-cometem-0-9-dos-crimes-no-brasil>. Acesso em: 12 nov. 2015). 13. Novamente, é difícil apontar um único estudo que mostre esses dados, mas, para manter uma referência, o Mapa da Violência de 2011 aponta, claramente, essa tendência.

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muito, reduziram, momentaneamente, algumas esta-tísticas que tornaram a aparecer, quase sempre de forma preocupante, em momentos posteriores, com-provando, tão somente, que metodologias baseadas em ações repressivas isoladas ou de cunho meramen-te punitivo urgiam uma revisão.

Com o Relatório sobre Desenvolvimento Humano (PNUD) de 1994, quando o conceito de Segurança Humana foi apresentado, esse conceito, a partir de uma perspectiva de Segurança Cidadã, foi estendido a outros aspectos que não só o da ação policial ou o relativo ao enfrentamento a criminosos. Proteção à vida, à integridade física e ao patrimônio, e a promo-ção de um ambiente de convivência pacífica, tendo as pessoas como focos de atuação passam, então, a ser vistos como elementos desse novo conceito.

O PNUD, assim, com ênfase na necessidade de en-frentar o tema da violência de maneira integral – com outras agências do sistema ONU, com organizações da sociedade civil e com setores técnicos e políticos de di-versos países, num trabalho conjunto –, inicia sua cruza-da para disseminar essa ideia, globalmente. Na América Latina e Caribe, tanto o escritório regional, baseado no Panamá, quanto os escritórios nacionais, espalhados pela região, estão empenhados em apoiar governos e sociedade civil para uma maior consciência sobre a ne-cessidade de se adotar um novo modelo para as políti-cas de segurança. Diversas iniciativas têm contribuído, ao longo das últimas décadas, para o fortalecimento e a adoção do conceito de Segurança Cidadã, na região. Des-sa maneira, organizações da sociedade civil latino-ame-ricana dedicadas ao tema da prevenção à violência e ao desarmamento, assim como organismos multilaterais atuando na região, começam a adotar o conceito, revi-sitando-o em alguns aspectos, porém mantendo aquilo que talvez seja seu princípio fundamental, o da integra-lidade das ações, além do enfoque na pessoa humana.

Em 2005, por exemplo, a Comissão Interamerica-na de Direitos Humanos (CIDH) convocou uma reu-nião de audiência sobre segurança cidadã e direitos humanos nas Américas. Organizações da sociedade civil, participantes do evento, apresentaram, em gru-po, um documento com a proposta de que aquela Co-missão elaborasse um relatório temático sobre o as-sunto. De forma geral, aquele grupo de organizações trazia a ideia de que a abordagem à segurança cidadã sob a ótica dos direitos humanos e da democracia não poderia ser um tema exclusivo do Estado, sob “o ris-co de contribuir para a crença equivocada de que os direitos humanos são um obstáculo à promoção de políticas de segurança eficazes” (CIDH, 2009, p. 1). Aquelas organizações acreditavam que a Organização dos Estados Americanos (OEA), pela ação da CIDH, poderia contribuir, fortemente, para dissolver a “falsa dicotomia entre direitos humanos contra a seguran-ça” na região, incorporando o tema segurança cidadã a sua agenda15.

Em 2007, a CIDH deu início às atividades que cul-minariam com o lançamento do documento do relató-rio, em dezembro de 2009; documento este que traz uma série de recomendações aos Estados-membros sobre a necessidade de se adotar uma agenda de se-gurança cidadã na perspectiva dos Direitos Humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar dos esforços de todos esses atores, alguns desafios permanecem vivos na região. A implementa-ção de um novo modelo de segurança que contemple metodologias participativas, ações integradas e, prio-ritariamente, preventivas e atitudes que privilegiem menos a força ainda estão longe de serem consoli-dadas, embora sejam cada vez mais frequentes nos discursos dos gestores públicos. As próprias estru-turas tradicionais de segurança formam a principal

14. Um bom exemplo disso são as políticas conhecidas como “Mano Dura” e “Supermano Dura” adotadas por El Salvador e que foram avaliadas como ineficientes no enfrentamento ao fenômeno das maras (grupo violentos organizados, encontrados, principalmente, na América central), naquele país. 15. Parte do documento apresentado pelo grupo de organizações da sociedade civil está no Relatório sobre segurança cidadã e direitos humanos da CIDH, disponível em:<http://cidh.oas.org/pdf%20files/SEGURIDAD%20CIUDADANA%202009%20PORT.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2015.

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resistência para esse câmbio de mentalidade e atitu-de. O confronto ainda é a principal metodologia na maioria dos países latino-americanos; as ações coor-denadas ainda são exceções, embora já se possa vis-lumbrar a vontade, por parte de técnicos e intelectu-ais que assessoram governos, em garantir esse passo adiante na gestão da segurança, no âmbito do poder público, o que viria ao encontro das propostas dos modelos emergentes da administração pública, as

quais têm apresentado preocupação com a dimensão participativa do governo, com ênfase nos resultados.

O investimento em formação e em iniciativas de incidência política – por meio de ações coletivas e ar-ticuladas entre atores tanto da sociedade civil quanto de organismos internacionais e multilaterais – pa-rece ainda ser a principal estratégia para o fortale-cimento de uma proposta para um novo modelo de segurança, na região.

Paulo Ricardo de Paiva e Souza

Doutorando em Sociologia; mestre em Administração Rural e Comunicação Rural; bacharel em Ciências Sociais; consultor

do PNUD, desde 2011, nos temas Segurança Cidadã e Gestão de Riscos de Desastres. Foi assessor de Emergências e

coordenador de Programas da SavetheChildren Suécia para os temas relativos a Desastres e Confl itos Armados na América

Latina e Caribe; atuou em institutos empresariais com voluntariado corporativo e desenvolvimento de organizações da

sociedade civil; é especialista nos temas: Direitos Humanos da infância e da adolescência; violência afetando a infância,

adolescência e juventude; Educação; Sociologia dos Desastres; e Estudos de Redes.

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Segurança Cidadã é, sem sombra de dúvida, uma das principais prioridades políticas para a América Latina e o Caribe. O tema é tão forte que a maioria das pessoas na região considera a proteção contra o crime e a segurança física como os direitos básicos mais ameaçados e crê que a delinquência e a falta de segurança pública são os problemas mais graves no país onde vivem (LATINOBARÓMETRO, 2013). Essa percepção de insegurança não é infundada. Somos a região com os índices mais altos de homicídio do mundo (UNODC, 2014), os países com os maiores ín-dices de feminicídio (SMALL ARMS SURVEY, 2012) e as forças policiais com as medidas mais repressivas.

Esse cenário contribuiu para transformar a Amé-rica Latina e o Caribe em um grande laboratório de experiências em Segurança Cidadã, trazendo práticas inovadoras, novas metodologias e comprovando (ou não) muitas teses sobre as dinâmicas de violência e criminalidade. A região, mais que nenhuma outra, con-seguiu criar, aplicar, testar e colocar à prova diversas políticas, programas e projetos de segurança cidadã.

Um exemplo é o impacto devastador das políticas de mano dura1, implementadas frequentemente, no passado, por muitos governos. Em sua maioria, são políticas de criminalização da juventude que fazem os países sofrerem em termos econômicos e produti-vos com a perda de gerações de jovens. Já se sabe que elas não funcionam (OAS, 2015), mas alguns países, como El Salvador, continuam pagando um alto preço ao aplicá-las. Há, também, experiências com resul-

tado positivo nas quais foram priorizadas políticas públicas de prevenção à violência com foco na juven-tude vulnerável. Um exemplo é o trabalho da parce-ria do PNUD com os municípios brasileiros de Vitória (ES), Lauro de Freitas (BA) e Contagem (MG), que conseguiu reduzir, significativamente, os homicídios entre os jovens e também contribuir para uma me-lhor coesão social nas comunidades (PNUD, 2014).

A região também possui exemplos que mostra-ram como o nexo de causalidade entre pobreza e vio-lência é bastante limitado. Depois da última crise fi-nanceira global, muitos dos países latino-americanos demonstraram uma melhor capacidade de resistên-cia e uma menor vulnerabilidade financeira que no passado (QUENAN, 2013). Alguns desses países fo-ram “promovidos de categoria” e classificados como de “renda média” (CEPAL, 2012). Porém, essas con-quistas não representaram a grande mudança (redu-ção) esperada nos seus índices de criminalidade. Os índices de violência de alguns dos países mais pobres da região, como Nicarágua e Bolívia, são considera-velmente menores do que as de potências regionais, como Brasil e México2.

Por outro lado, deve-se ressaltar que a desigualda-de econômica impacta, direta e indiretamente, a crimi-nalidade. As taxas de homicídios tendem a ser maio-res em países com desigualdade econômica extrema (OXFAM, 2014) o que é compatível com o fato de que a América Latina continua sendo a região mais desigual do planeta3. Vivenciam-se, diariamente, contrastes

O Brasil frente à América Latina por uma melhor Segurança Cidadã

Gabriela Dutra e

Natasha Leite

1. As políticas de mano dura focam no uso pesado da força para combater as ameaças à segurança e são quase sempre marcadas pela brutalidade policial, desrespeito aos direitos humanos, altas taxas de encarceramento e endurecimento da legislação penal. 2. De acordo com o Global Study on Homicide 2013 do Unodc, as taxas de homicídio, em 2012, são: Nicarágua 11.3; Bolívia 12.1; Brasil 25.2; México 21.5. 3. De acordo com dados do Banco Mundial. Ver análise sobre a desigualdade em: <http://blogs.worldbank.org/developmenttalk/monitoring-inequality>. Acesso em: 18 dez. 2015.

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extremos entre ricos e pobres nos países, estados, ci-dades e até mesmo bairros que a compõem. O cresci-mento econômico alcançado em muitos países ocorreu sem a distribuição dos dividendos de forma equitativa para a população, contribuindo para a exclusão social.

Outra reconhecida experiência da região foi o for-talecimento do papel dos governos locais (municípios, distritos, comunidades) na prevenção à violência. A Colômbia, pioneira na prática, consolidou o potencial positivo de seus municípios no esforço por uma melhor Segurança Cidadã, uma que fosse próxima das pessoas e de suas necessidades. El Salvador, Brasil, Chile e Panamá mostram casos positivos de valorização do espaço local e dos atores locais na prevenção à violência. Esses casos mostraram que participação cidadã, apropriação comu-nitária de espaços coletivos de convivência e programas focados nos problemas locais têm um grande potencial e contribuem para a segurança de todos.

Além dos elementos já abordados, é importante ressaltar o papel paradigmático de marcos legais e programas de vanguarda na garantia de direitos hu-manos e na construção de políticas de segurança pre-ocupadas não só com a proteção dos seus cidadãos, mas, também, com sua participação e seu empode-ramento. Marcos legais como o Estatuto do Desar-mamento no Brasil, que teve um papel fundamental em uma mudança normativa regional, apoiando uma redução considerável de mortes por armas de fogo no país e servindo de referência a todos os vizinhos do Mercosul (WAISELFISZ, 2015). Outro exemplo é a Política de Segurança e Paz da Costa Rica (Polsepaz), que, por meio de um processo de consulta amplo e inclusivo, assegurou que as prioridades sobre segu-rança cidadã e paz de todos os grupos populacionais do país fossem nela refletidas.

ENTENDENDO CONCEITOS... AFINAL, O QUE É SEGURANÇA CIDADÃ?

A realidade que se vivencia hoje não é a mesma da-quela na qual os Estados lutavam entre si, majorita-riamente conflitos tradicionais com regras claras e delimitadas. Atualmente, vive-se em um mundo de

globalização acelerada, de desenvolvimento e uso de novas tecnologias de informação e de internaciona-lização dos mercados e dos sistemas financeiros. Da mesma forma que o mundo mudou, também muda-ram as características das violências que afligem a população (principalmente na América Latina). Hoje, a violência cotidiana cobra mais vidas de cidadãos do que as guerras matam soldados. Nas cidades, o crime se organizou, se armou e se fragmentou, exigindo das estruturas estatais uma reinvenção das suas fórmulas tradicionais de imposição da “ordem”.

Nossas fronteiras, que sempre foram porosas, tornaram-se mais acessíveis ao mesmo tempo que as lucrativas redes de tráfico internacional (como as de drogas, armas e pessoas) puderam se modernizar expandir. Os países urbanizaram-se e as cidades cres-ceram de forma desordenada e sem planejamento. Centros urbanos abrigam territórios desprovidos dos serviços públicos mais básicos e tornam-se vulnerá-veis às atividades ilegais que sobrevivem à margem do Estado e alimentam-se da exclusão social. Todas essas características (e muitas outras) ocorrem e, com elas, uma importante mudança, que será o ponto de partida para explicar o conceito de Segurança Ci-dadã: o indivíduo passa a ter um papel mais protago-nista e relevante.

Muitos autores referem-se à concepção de Segu-rança como um conceito essencialmente contestável (GALLIE, 1956; BUZAN, 1985). Isso ocorre porque ele sofreu diversas transformações em relação ao seu objeto e aos atores envolvidos em sua construção e manutenção. No mundo de antes, o conceito de segu-rança era centrado no Estado como único ator e único foco da segurança. A segurança nacional era baseada na defesa e na proteção às fronteiras, e os cidadãos eram potenciais desestabilizadores da ordem.

Em 1994, com as mudanças do mundo pós-Guer-ra Fria e o incremento de regimes democráticos pelo mundo, o conceito de Segurança Humana é consoli-dado. Sua base é nos direitos humanos, ressaltando a importância dos seres humanos, argumentando que a segurança principal é a que garante que todos e todas

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possam desenvolver todo seu potencial e suas capaci-dades de forma livre e segura. A preservação da vida já não é suficiente, ela deve ser complementada com outros direitos que garantam a segurança da vida com dignidade e com a garantia de suas potenciais li-berdades. Portanto, de uma única segurança passou--se a falar de seguranças, no plural: segurança polí-tica, ambiental, social, laboral, econômica, alimentar, entre outras.

No início da década de 90, também se consolida o conceito de Desenvolvimento Humano, contribuição de estudiosos que não se contentavam com o desen-volvimento econômico dos países – como o cresci-mento do Produto Interno Bruto (PIB) – como um fim em si mesmo, mas que viam o desenvolvimento como algo mais holístico e integral. Aumenta-se a impor-tância de outros temas como a diminuição da desi-gualdade, a garantia das liberdades individuais e co-letivas e a melhora da qualidade de vida das pessoas de forma muito mais ampla. Isso pode ser resumido assim: “desenvolvimento das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas” (PNUD, 2010a, p. 13).

Ambos os conceitos de Desenvolvimento Huma-no e Segurança Humana ganharam alcance global com a incidência dos Relatórios de Desenvolvimen-to Humano do PNUD. Posteriormente, esses mesmos documentos foram importantes para a consolidação do conceito de Segurança Cidadã, que pode ser visto como uma forma mais específica, derivada dos dois primeiros.

A Segurança Cidadã junta o componente de “viver sem temor”, com um componente de coexistência pa-cífica e convivência comunitária. A Segurança Cidadã é a proteção da vida, da integridade (física, psicoló-gica e emocional) e dos bens das pessoas. É a garan-tia de vidas livres da violência e do medo para poder exercer sua liberdade e capacidades protegidas dos riscos e das vulnerabilidades que a violência impõe.

Sendo um bem público, a Segurança Cidadã in-clui, entre outras garantias, a ordem e a segurança pública e só terá sucesso quando fizer parte de um Estado de Direito que garanta a Governança Demo-

crática. É essencial contar com uma justiça acessível e imparcial, que combata a impunidade e que tenha a capacidade de rápida resposta às vítimas. O uso da força deve ser mantido nas mãos do Estado e sempre aplicado dentro da lei do respeito aos direitos huma-nos. É importante que sejam priorizadas as políticas de segurança, em sua agenda, e que essas políticas sejam desenhadas e implementadas com a participa-ção das comunidades afetadas, das organizações da sociedade civil, das minorias e dos grupos invisibili-zados (como indígenas, LGBTI, mulheres e crianças). Essa participação permite uma maior apropriação, transparência e controle social das ações do Estado, aumentando as chances de resultados positivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muitos anos a segurança foi vista como um as-sunto unicamente penal, uma responsabilidade ex-clusiva da polícia (às vezes, até das forças armadas) e do judiciário (este, com função apenas punitiva). Felizmente, no Brasil e em quase toda a América La-tina, essa visão se flexibilizou, abrindo espaço para conceitos e políticas que fossem mais próximos das pessoas e das comunidades. O problema da insegu-rança afeta as vítimas e os agressores de forma in-dividual, mas, também, a toda a sociedade, gerando custos e impactos sociais, econômicos, psicológicos e institucionais. Em essência, o Estado continua sendo o maior responsável pela segurança de seus cidadãos, mas há o entendimento que a responsa-bilidade pode e deve ser compartilhada entre todos e com cada um de nós. Por esta razão, a garantia da Segurança Cidadã não está apenas na redução dos crimes e delitos, está também em ações que visam garantir a convivência pacífica, o diálogo, o acesso à justiça, a coesão social e outros.

Parte do rico aprendizado adquirido na América Latina vem do seu histórico e de suas experiências bem e mal-sucedidas de trabalhos pela Segurança Cidadã. Aprende-se, com a prática, que as insegu-ranças são muitas e as violências são diversas, pois o fenômeno possui múltiplas causas e consequên-

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cias. Por essa razão, uma fórmula única e congelada jamais funcionará para lugares ou contextos dife-rentes. O que funciona na Colômbia não, necessa-riamente, funcionará no Brasil e, inclusive, o que pode funcionar em um município capixaba pode não ser a melhor solução para um município baia-no... Mas, é necessário ter em mente as dificuldades e os acertos dessas experiências para não precisar “reinventar a roda”.

Finalmente, é importante contar com um equilí-brio entre prevenção, controle, repressão e repara-ção – talvez este seja o maior aprendizado da prática

em segurança cidadã. As ações devem conter aspec-tos imediatos, mas, também, visar o longo prazo e a sustentabilidade de seus resultados. É preciso que haja conscientização, para não se cair em lugares co-muns, exigindo medidas superficiais e momentâne-as que, ao invés de resolver o problema de forma es-trutural, cede à exceção e não à regra, ao sentimento de vingança e não de justiça, a ganhos políticos e não coletivos... Deve-se exigir dos representantes espa-ços de participação, debates construtivos e informa-ção de qualidade para, democraticamente, melhorar nossas políticas, programas e projetos de segurança.

Gabriela Dutra

Brasileira, graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio e com mestrado em Políticas de Desenvolvimento pelo Centro

Europeu de Pesquisa Internacional e Estratégica (Ceris), na Bélgica. Trabalha há mais de sete anos com segurança pública;

é especialista em gestão local da segurança cidadã, programas acadêmicos de segurança e convivência cidadã e prevenção

à violência juvenil. Já prestou assistência técnica para Nações Unidas, organizações internacionais e ONGs, em países como

Brasil, Bolívia, Panamá, Uganda e Trinidad e Tobago. Atualmente, é consultora de segurança cidadã para o Centro Regional

do PNUD para a América Latina e o Caribe. Trabalha em português, inglês e espanhol, fl uentemente.

Natasha Leite

Trabalha há dez anos com Segurança Cidadã na América Latina, Caribe, África Subsaariana e Pacífi co. Sua formação é Relações

Internacionais (PUC-Rio) e Direito (UFRJ-FND); tem mestrado em Confl ito, Segurança e Desenvolvimento (Universidade de

Sussex). Já trabalhou para a Cruz Vermelha, Viva Rio, Fundación Arias por la Paz, Saferworld, Unlirec, Unfpa, Unicef e PNUD em

temas de prevenção à violência e participação, além de ter prestado assessoria técnica para os governos do Brasil, Venezuela,

Costa Rica, Angola, Maldivas, Barbados, Equador, Bolívia, El Salvador, Guatemala e Panamá.Trabalhou por quatro anos nos

cursos de Segurança Cidadã e Convivência do PNUD e, atualmente, trabalha como Assessora no Programa de Segurança

Pública do Centro das Nações Unidas para o Desarmamento, Paz e Desenvolvimento na América Latina e o Caribe (Unlirec).

REFERÊNCIAS

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Qual a relação entre desenvolvimento humano e segu-rança cidadã? Como a nova agenda de desenvolvimen-to sustentável pode interagir com as políticas públicas de segurança e acesso à Justiça? A partir do marco da nova agenda de desenvolvimento pactuada nas Na-ções Unidas, em 2015, este artigo explora a relação entre as perspectivas de desenvolvimento humano e de segurança cidadã, propondo uma reflexão sobre oportunidades de interação dessa nova agenda com a formulação e a implementação de políticas públicas de segurança e acesso à Justiça que promovam e valorizem os princípios do desenvolvimento humano sustentável.

Nesse contexto, o artigo traz uma breve apresen-tação da nova agenda global de desenvolvimento, com destaque para uma análise de sua interação com os te-mas de promoção da paz e acesso à Justiça. Em segui-da, é feito um resgate de elementos conceituais relacio-nados às perspectivas de desenvolvimento humano e de segurança cidadã, buscando ilustrar a convergência entre esses conceitos. Por fim, é realizada uma reflexão sobre oportunidades de fortalecimento da interação entre a nova agenda global de desenvolvimento e o ci-clo de políticas públicas de segurança e acesso à Justi-ça, promovendo a apropriação dos Objetivos de Desen-volvimento Sustentável (ODS), no contexto nacional.

UMA NOVA AGENDA GLOBAL PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO SUSTENTÁVEL: A AGENDA 2030

Em setembro de 2015, as Nações Unidas adotaram uma nova agenda de desenvolvimento para o perío-do 2015-2030. Depois de mais de três anos de dis-cussão, os líderes de governo e de estado aprovaram,

por consenso, o documento “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sus-tentável”. A Agenda consiste em uma Declaração, 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as 169 metas correspondentes, uma seção sobre meios de implementação e de parcerias globais, e um arca-bouço para acompanhamento e revisão.

Os 17 Objetivos são integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento humano sustentável: a econô-mica, a social e a ambiental (ONU, 2015). Estes es-timulam, ainda, a ação em cinco áreas consideradas fundamentais para a humanidade nos próximos 15 anos: (i) Pessoas – garantindo que todos os seres hu-manos possam realizar o seu potencial em matéria de dignidade e igualdade, em um ambiente saudável; (ii) Planeta – protegendo o planeta da degradação e combatendo a mudança do clima, de forma a atender às necessidades das gerações presentes e futuras; (iii) Prosperidade – assegurando que todos os seres humanos possam desfrutar de uma vida próspera e de plena realização pessoal, e que o progresso econô-mico, social e tecnológico ocorra em harmonia com a natureza; (iv) Paz – promovendo sociedades pacífi-cas, justas e inclusivas, livres do medo e da violência; e (v) Parcerias – mobilizando os meios necessários para implementar a Agenda (ONU, 2015).

A Agenda 2030 dá continuidade e aprofunda, como forma de responder a novos desafios, o traba-lho de pactuação pela promoção do desenvolvimen-to humano já realizado, no período de 2000 a 2015, com os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milê-nio (ODM). Dá continuidade ao trabalho, pois celebra

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e Segurança Cidadã: uma nova agenda global para promoção da paz e acesso à Justiça

Moema Dutra Freire

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os avanços já realizados e propõe o fortalecimento dos esforços rumo ao desenvolvimento humano. E, ao mesmo tempo, aprofunda e amplia os esforços ao incluir novos elementos importantes para o atual ce-nário mundial.

Dentre os novos elementos propostos nessa nova agenda, está a inclusão, dentre os 17 ODS, de um obje-tivo voltado à superação dos desafios à garantia da paz e acesso à Justiça em todas as sociedades. O 16º ODS – “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, res-ponsáveis e inclusivas em todos os níveis” (ONU, 2015, p. 29) – é acompanhado por metas com foco na promo-ção do Estado de Direito, garantia de igualdade no aces-so à Justiça e redução da violência e da criminalidade.

A inclusão de um ODS relacionado à temática de promoção da paz e do acesso à Justiça foi uma ino-vação importante, uma vez que esses elementos não estavam presentes de maneira direta na agenda ante-rior, a agenda dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Ao apresentar, de maneira explícita, elemen-

tos relacionados à promoção da segurança e acesso à Justiça como parte do conjunto de objetivos a serem buscados como essenciais ao alcance do desenvolvi-mento humano sustentável, a Agenda 2030 formaliza e consolida a premissa de que a paz e o acesso à Justi-ça são elementos essenciais para a garantia do desen-volvimento humano sustentável.

MAS, AFINAL, O QUE É DESENVOLVIMENTO HUMANO?

Durante muito tempo, o crescimento econômico foi percebido como estratégia única para a promoção do desenvolvimento. Nessa perspectiva, renda e desen-volvimento passaram a ser sinônimos e grande par-te das políticas públicas privilegiava o crescimento econômico em detrimento de outras dimensões es-senciais à vida das pessoas. Em contraponto a essa perspectiva, surge o paradigma de Desenvolvimento Humano, adotado e disseminado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) a partir de seu primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano (UNDP, 1990).

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1. Como exemplo dessa estreita relação entre desenvolvimento humano e violência, pode-se mencionar: uma região pode apresentar uma ampla oferta de ensino. No entanto, a violência pode impedir que as crianças cheguem às escolas.

O Desenvolvimento Humano (SEN, 2000) é defini-do como um processo de ampliação das escolhas hu-manas, que possui duas dimensões: (i) a construção das capacidades dos indivíduos; e (ii) o uso que os indivíduos estão dispostos, habilitados e podem fazer dessas capacidades. Dessa forma, o objetivo do desen-volvimento, segundo a perspectiva do desenvolvimen-to humano, é criar um ambiente que permita às pesso-as usufruírem uma vida longa, saudável e criativa.

Ainda na atualidade, a meta do crescimento eco-nômico tem estado à frente da agenda política de muitos países. Essa constante ênfase no aumento da renda e da riqueza muitas vezes leva a uma confusão quanto ao papel do crescimento econômico no desen-volvimento humano. Dessa forma, é importante apro-fundar a distinção entre os conceitos de desenvolvi-mento humano e de crescimento econômico.

Para explicar melhor essa distinção, é importante distinguir entre os meios e o fim do desenvolvimento. O crescimento econômico foi perseguido, durante mui-to tempo, como um fim em si mesmo. Na abordagem do desenvolvimento humano, o ponto principal desse processo e sua finalidade última são as pessoas. Nesse contexto, o crescimento econômico desempenha um papel importante no processo de desenvolvimento humano, mas como um dos meios (de grande impor-tância) para a ampliação das escolhas dos indivíduos.

O paradigma do desenvolvimento humano não desconsidera a importância do crescimento econô-mico. Este questiona, entretanto, a pressuposta rela-ção automática entre expansão da renda e expansão de alternativas humanas: ressalta-se que essa relação não é automática, mas depende da qualidade e da dis-tribuição do crescimento econômico e não apenas do crescimento em termos quantitativos. Dessa forma, o elo entre crescimento e vidas humanas tem que ser criado conscientemente, por meio de políticas públi-cas deliberadas. Assim, como não existe uma relação automática entre crescimento econômico e progres-

so humano, o paradigma do desenvolvimento huma-no destaca, como uma das questões políticas mais importantes, o processo que permite ao crescimento traduzir-se, ou não, em desenvolvimento humano, sob condições diferentes de desenvolvimento.

Em suma, o conceito de desenvolvimento humano pode ser definido como um processo de expansão das escolhas dos indivíduos. Em outras palavras, o desen-volvimento humano envolve a busca do desenvolvi-mento de capacidades dos indivíduos e a garantia das oportunidades, para que essas capacidades sejam aplicadas na prática.

É importante mencionar, ainda, que a Agenda 2030 enfatiza também a dimensão da sustentabilida-de, aliada à perspectiva de desenvolvimento. Nesse sentido, o documento integra as três dimensões do desenvolvimento sustentável – a econômica, a social e a ambiental –, buscando um desenvolvimento que seja pelas pessoas e para as pessoas, de forma inclu-siva e sustentável (ONU, 2015).

ODS E SEGURANÇA CIDADÃ: UMA AGENDA CONVERGENTE

A perspectiva de desenvolvimento humano valoriza o desenvolvimento centrado nas pessoas, promo-vendo as capacidades e oportunidades para que es-tas possam realizar plenamente sua vida. Mas, qual a relação dessa perspectiva com a temática da segu-rança? Quando se examinam as bases do conceito de desenvolvimento humano, percebe-se que as conse-quências da violência têm inter-relação direta com os esforços de promoção do desenvolvimento: o aumen-to da criminalidade e da violência pode impedir o al-cance de determinadas metas de desenvolvimento e mesmo gerar o retrocesso em algumas conquistas já alcançadas. A vida em um contexto de violência pode refletir, negativamente, no desenvolvimento de capa-cidades e, principalmente, nas oportunidades para que o indivíduo as aplique na prática1.

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Nesse sentido, além de destacar a relevância da prevenção e controle da violência para o desenvolvi-mento humano, é importante uma reflexão sobre as estratégias de políticas públicas adotadas para pre-venção à violência e promoção do acesso à Justiça. Condições plenas de segurança para a promoção do desenvolvimento humano só poderão ser alcançadas com o desenvolvimento e a implantação de ações de prevenção e controle à violência que estejam alinha-das com as metas de desenvolvimento humano alme-jadas por um país e, mais ainda, que possuam uma estreita articulação com outras políticas públicas vol-tadas à melhoria de fatores associados a causas es-truturais da violência. Em outras palavras, ao se falar de estratégias para a promoção do desenvolvimento humano, quais seriam as estratégias de políticas pú-blicas de Segurança e acesso à Justiça que poderiam se somar a esse contexto, criando sinergias com foco na promoção da paz?

Uma análise interessante pode ser feita a partir das diretrizes propostas pela perspectiva conceitual da Segurança Cidadã, que surgiu na América Latina, a partir da segunda metade da década de 90, e tem como princípio a implementação integrada de políticas seto-riais no nível local. O conceito de Segurança Cidadã co-meçou a ser aplicado em Bogotá, em 1995 e, seguindo o êxito alcançado naquela localidade na prevenção e controle da criminalidade, passou a ser adotado, en-tão, por outros países da região (FREIRE, 2009).

O conceito de Segurança Cidadã parte da nature-za multicausal da violência e, nesse sentido, defende a atuação tanto no espectro do controle quanto na esfera da prevenção, por meio de políticas públicas integradas no âmbito local. Dessa forma, uma política pública de Segurança Cidadã envolve várias dimen-sões, reconhecendo a multicausalidade da violência e a heterogeneidade de suas manifestações. Uma in-tervenção baseada no conceito de Segurança Cidadã tem, necessariamente, de envolver as várias institui-ções públicas e a sociedade civil, na implementação de ações planejadas a partir dos problemas identifi-

cados como prioritários para a diminuição dos índi-ces de violência e delinquência em um território.

Segundo esse modelo, definem-se, então, cinco ca-tegorias principais de intervenção (PNUD, 2005, p. 9): (i) as dirigidas ao cumprimento voluntário de normas; (ii) as que buscam a inclusão social e a diminuição dos fatores de risco; (iii) as que têm como propósito a me-lhoria dos contextos urbanos associados ao medo e ao perigo real (recuperação de espaços públicos); (iv) as que facilitam o acesso dos cidadãos a mecanismos ins-titucionais e/ou alternativos de resolução de conflitos; e (v) as que possuem foco na construção de capacida-des institucionais, melhoria da eficácia policial e das autoridades executivas ou judiciais e da confiança dos cidadãos nessas instituições.

Com relação aos cinco pilares de atuação de uma política estruturada a partir do conceito de Segu-rança Cidadã, cabe uma reflexão adicional sobre o quarto eixo mencionado acima – as ações voltadas à promoção do acesso à Justiça. É importante destacar que o acesso à Justiça é aqui apresentado não apenas como o acesso e a efetividade de solução de conflitos no âmbito do Poder Judiciário, mas, também, como a possibilidade de administração de conflitos por meio de mecanismos alternativos de resolução de conflitos (PRUDENTE, 2012).

Nesse sentido, o acesso à Justiça é considerado um direito humano e um caminho para a redução da pobreza, por meio da promoção da equidade econô-mica e social. Onde não há amplo acesso a uma Justiça efetiva e transparente, a democracia está em risco e o desenvolvimento humano não é possível. Assim, a promoção de políticas de fomento ao acesso à Justiça é uma contribuição certeira no sentido da ampliação do espaço público, do exercício da cidadania e do for-talecimento da democracia – e, consequentemente, de promoção do desenvolvimento humano.

Uma análise comparada das características das perspectivas de Segurança Cidadã e do Desenvol-vimento Humano permite a identificação de princí-pios comuns entre os dois marcos conceituais, com

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destaque para: (i) foco nas pessoas; (ii) desenvolvi-mento de capacidades, empoderamento e participa-ção; (iii) abordagem multidimensional; (iv) adaptação das políticas ao contexto local. Esses são princípios--chave do paradigma de Desenvolvimento Humano.

Nesse sentido, a análise aqui realizada denota uma forte convergência entre as perspectivas de desenvol-vimento humano e de segurança cidadã. Em outras pa-lavras, as estratégias de promoção de desenvolvimen-to humano podem se beneficiar da adoção de políticas públicas de segurança calcadas nos princípios de segu-rança cidadã. Na mesma medida, políticas públicas de segurança que valorizem esses princípios contribuem para a promoção de uma agenda de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Não pode haver desenvolvimento sustentável sem paz, e não há paz sem desenvolvimento sustentável (ONU, 2015, p. 2)”, destaca o documento-síntese da

nova agenda global de desenvolvimento. Mas, como trabalhar para a construção da paz, em uma perspec-tiva convergente com os esforços de promoção do de-senvolvimento?

A análise realizada neste artigo indica que uma política de segurança voltada ao desenvolvimento não pode deixar de considerar os eixos estruturan-tes da perspectiva conceitual do desenvolvimento humano. Ao mesmo tempo, destaca que os elementos centrais do paradigma da Segurança Cidadã (FREIRE, 2009), guardam estreito alinhamento com os pilares do desenvolvimento humano. Com a inclusão dos ei-xos de promoção da Paz e acesso à Justiça na nova pactuação global em benefício do desenvolvimento humano, é criada uma importante janela de oportu-nidade – nos contextos nacionais – para o desenvol-vimento (ou fortalecimento) de uma nova geração de políticas públicas de segurança e acesso à Justiça, em convergência com a nova agenda global.

Moema Dutra Freire

É bacharel em Relações Internacionais, mestre em Ciência Política e doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília

e especialista em Desenvolvimento Humano pela PUC-MG, com produção acadêmica nas áreas de Segurança Pública e

Justiça. Atualmente, é Ofi cial de Programa para as áreas de Justiça, Direitos Humanos e Gestão de Riscos de Desastres

do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com experiência profi ssional de 13 anos no campo da

cooperação técnica internacional.

Justiça. Atualmente, é Ofi cial de Programa para as áreas de Justiça, Direitos Humanos e Gestão de Riscos de Desastres

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REFERÊNCIAS

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PRUDENTE, M. Pensar e fazer justiça: a administração alternativa de conflitos no Brasil. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2012.

SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

UNDP. Human Development Report 1990. New York: Oxford University Press, 1990.

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De maneira interativa, divertida e lúdica, começar a entender a abordagem da Convivência e Segurança Cidadã – esse é o principal objetivo do Jogo Fica Se-guro, ferramenta que passou a ser utilizada nos cur-sos de Convivência e Segurança Cidadã a partir da rodada de formações de 2014. O Jogo sistematiza, de forma colaborativa, a abordagem de Convivên-cia e Segurança Cidadã. Ao jogar, os participantes descobrem quais são as estratégias, etapas, papéis dos diferentes atores sociais envolvidos (represen-tantes do poder público, da sociedade civil, do setor privado etc.) e como se dá o processo participati-vo de gestão territorial para a construção de uma cultura de paz no território. O Fica Seguro integra a coletânea Convivência e Segurança Cidadã: Guias de Gestão Territorial Participativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Nos cursos, além de funcionar como um momento inicial de contato com o conceito e com a metodolo-gia, o Jogo Fica Seguro foi uma ferramenta de inte-ração entre os participantes, “quebrando o gelo” do início e fazendo com eles começassem um processo de troca e conhecimento mútuo em relação à proble-mática da violência vivenciada cotidianamente. Este ensaio traz um pouco de como se deu a concepção desse material, sua relação com os conceitos traba-lhados e a recepção percebida durante os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, bem como as lições aprendidas a partir de sua utilização nos cursos.

FICA SEGURO: CONCEPÇÃO, CONSTRUÇÃO, VALIDAÇÃOO Fica Seguro expressa a metodologia de desen-volvimento de uma política pública voltada à Con-vivência e Segurança Cidadã, a partir de uma visão sistêmica. A construção de uma cultura de paz e o enfrentamento à violência é o grande desafio do jogo, e, para isso, foram considerados todos os con-textos relacionados aos eixos de análise para a pre-venção e controle dos fenômenos de violências inci-dental e instrumental trabalhados pelo PNUD.

A ideia é que os jogadores consigam experien-ciar a metodologia trabalhada para a construção de uma Cultura de Paz. Nesse sentido, buscou-se asso-ciar flexibilidade de atuação com escala de inter-venção, a partir das condições específicas de cada território, pensando-se em âmbitos de gestão que variam desde a governabilidade de uma nação, pas-sando pela governabilidade de um estado até a ges-tão de um município ou bairro ou, ainda, comuni-dade. Como referências, foram utilizados contextos já trabalhados pelo PNUD para o desenvolvimento da Convivência e Segurança Cidadã, especialmente o brasileiro.

Desse modo, o jogo se desdobra à medida que cada território avança com sua equipe de jogadores no atendimento às demandas identificadas no cená-rio inicial para a mudança do contexto de violência em cada eixo, conforme diagrama a seguir:

Jogo Fica Seguro: ferramenta de integração e disseminação de conceitos

Bruna Pegna Hercog, Cintia Yoshihara, Joselita Frutuoso Araújo de Macêdo

Filha (Nena), Juliana Mattedi Dalvi, Marialina Côgo Antolini, Valentina Garcia

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O jogo desenvolve-se considerando seis cenários iniciais descritos nas cartas-território – locais fictí-cios para implementação das experiências de Con-vivência e Segurança Cidadã. Articula, ainda, a tem-poralidade na relação com o desenvolvimento das etapas preparação, diagnóstico, plano e execução, tendo o monitoramento, a avaliação e a comunica-ção e mobilização social como etapas transversais. A descrição dos territórios privilegia as temáticas cor-respondentes aos eixos do diagrama da violência, ao mesmo tempo que destaca as questões relativas aos eixos que, transversalmente, interfere nas dinâmicas locais, principalmente quando se refere à governan-ça e à governabilidade. Assim, um determinado ter-ritório pode ter suas demandas centrais por possuir espaços urbanos extremamente inseguros, mas que também possui resistência à participação social, e es-sas devem ser as principais questões a serem resol-vidas e trazidas nas cartas de problemas e respostas.

O tabuleiro foi planejado em formato de uma mandala de seis gomos. De acordo com a Wikipédia (2015), “mandala é a palavra sânscrita que significa círculo, uma representação geométrica da dinâmi-ca relação entre o homem e o cosmo”. De fato, toda mandala é a exposição plástica e visual do retorno à unidade pela delimitação de um espaço sagrado e atualização de um tempo divino.

A mandala, como simbolismo do centro do mundo, dá forma não apenas às cidades, aos templos e aos palácios reais, mas também à mais modesta habi-tação humana. A morada das populações primiti-vas é comumente edificada a partir de um poste central e coloca seus habitantes em contato com os três níveis da existência: inferior, médio e superior. A habitação para ele não é apenas um abrigo, mas a criação do mundo que ele, imitando os gestos di-vinos, deve manter e renovar (WIKIPÉDIA, 2015).

Para o jogo, a mandala foi subdividida em faixas que correspondem às etapas de execução. As faixas

atravessadas por linhas diagonais formam “nós”. Den-tro de cada faixa, há “nós” destacados para os proces-sos de monitoramento e avaliação, comunicação e mobilização social e capacidade institucional. A for-ma de mandala foi escolhida por permitir expressar uma dinâmica que pulsa a partir de diversas variáveis em interação. Tem o objetivo de traduzir a realidade de uma maneira complexa, bem como de traduzir a necessidade de resolução da realidade por meio de uma abordagem sistêmica.

O jogo desenvolve-se do centro para fora da mandala, sendo iniciado com o sorteio do território onde vai ser implantada a ação de Convivência e Se-gurança Cidadã por meio da elaboração e execução de um Plano Integral e Participativo. Evolui a par-tir da superação dos fenômenos da violência, que aparecem nas faixas e vão desde a preparação do

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território para a experiência de Convivência e Se-gurança Cidadã até a execução do Plano, passando pelo Diagnóstico.

Os personagens são os atores sociais que com-põem a dinâmica dos Guias de Gestão Territorial e aparecem durante a trajetória e na retirada das cartas – chefe do legislativo; gestores governamentais; téc-nicos do governo; representações sociais; ONGs; lide-ranças comunitárias; crianças, adolescentes e jovens; consultores, entre outros. Eles compõem a problemá-tica encontrada em cada território, as possibilidades de solução e o enfrentamento criativo das condições de violência, dando a dimensão de diversidade huma-na e técnica que é preciso para se ter uma atuação sincronizada a partir das diferentes características territoriais e, portanto, efetividade nos objetivos de construção de uma Cultura de Paz.

O jogo foi concebido de modo colaborativo, ou seja, não há perdedores. No momento de sua elaboração, no entanto, por causa desse aspecto, o maior desafio foi torná-lo dinâmico e instigante para quem o joga. Des-se modo, apresenta-se um cenário de vivência de um processo que se desenvolve cronologicamente em tor-no de um dado território, onde uma única pessoa não poderá ganhar sozinha: todos são corresponsáveis pe-las transformações e pelas conquistas de pacificação alcançadas. Um ganha, quando todos ganham.

DESIGN E ELABORAÇÃO GRÁFICA

O Jogo Fica Seguro é composto por um tabuleiro em formato de mandala da violência; seis fatias coloridas destacáveis, que, unidas, formam a mandala da paz; seis pinos coloridos, seis cartas-território; e 60 car-tas-problema. Por causa dessa grande variedade de peças, o primeiro desafio ao pensar na arte gráfica foi o de conceber uma embalagem que referenciasse um jogo de tabuleiro contemplando todas as partes do kit-coletânea de forma eficiente, com facilidade no manuseio e transporte.

Nesse sentido, nesta primeira etapa, foram iden-tificados vários aspectos a serem contemplados por

meio de elementos e soluções gráficas, entre eles: identidade gráfica que estabelecesse conexão visual com cada elemento que compõe o todo; planejamen-to visual com resultado atraente e leve para um tema de difícil abordagem; funcionalidade na dinâmica e mecânica do jogo; e facilidade no manuseio das pe-ças que compõem o kit. Buscou-se, ainda, um plane-jamento visual que tornasse o Jogo uma ferramenta atraente e que facilitasse o entendimento da metodo-logia, despertando o interesse do participante.

A criação do tabuleiro foi a etapa central nesse pro-cesso – tendo a mandala como elemento chave carre-gado de significado, ali seria o lugar onde todo o jogo aconteceria. Dessa maneira, o design precisaria tra-duzir, visualmente, a mecânica do jogo, bem como um símbolo que apoia o conceito de integração e harmonia.

Trabalhar design e planejamento visual com o con-ceito, objeto semântico, tendo como aliada a integra-ção da equipe (sendo o designer parte dela no proces-so projetual) favoreceu o percurso de compreensão e envolvimento com o programa, resultando em maior fluidez no alcance (também da equipe) de soluções em que a forma e o conteúdo se apresentam com harmo-nia, funcionalidade e clareza no seu entendimento.

JOGO FICA SEGURO E A DIFUSÃO DO CONCEITO DE CONVIVÊNCIA E SEGURANÇA CIDADÃ

Por ser um instrumento lúdico, o Fica Seguro promo-ve a assimilação do conhecimento por meio do en-laçamento emocional que o indivíduo cria à medida que se envolve com o jogo. Ele torna familiar etapas e conceitos que, muitas vezes, podem ser sentidos pe-los participantes como de difícil compreensão quan-do são apresentados de forma tradicional, em aula. Jogando, as pessoas refletem sobre a sua realidade local e podem vivenciar o processo de Diagnóstico, a construção do Plano e desenvolvimento das ações, mesmo sem nunca terem tido contato anterior com ações de Convivência e Segurança Cidadã. Os jogado-res as experienciam de forma lúdica, quando simulam

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a transformação de um território com altos índices de violência em um território de paz. Isso possibilita a internalização dos pressupostos do conceito de Con-vivência e Segurança Cidadã, possibilitando, assim, a criação de um significado individual e coletivo.

A ação educativa do jogo ocorre a partir da apro-priação do conceito de Convivência e Segurança Cida-dã, de seus pressupostos de integralidade, interseto-rialidade e de participação social e da desconstrução de que a violência é “problema de polícia”. Os parti-cipantes refletem acerca da sua responsabilidade no desenvolvimento de ações e projetos de prevenção à violência. Isso se reflete na fala de alunos dos cursos, que utilizaram o Fica Seguro como ferramenta: “O jogo foi uma interação muito importante. Tudo o que aprendemos aqui vamos colocar em prática dentro do nosso município, na formação dos nossos guardas mu-nicipais, para que eles aprimorem seus conhecimentos nas questões que são tratadas neste tabuleiro”, relatou Jules Gerson, participante do curso de Convivência e Segurança Cidadã realizado em Formosa (2014) e co-mandante da guarda municipal de Novo Gama (DF).

O Jogo pode ser utilizado também como um instru-mento de disseminação do conceito de Convivência e Segurança Cidadã para além de espaços promovidos pelo PNUD. Foi o que aconteceu na Oficina de Forma-ção em Participação Política da ONG CIPÓ – Comuni-cação Interativa com adolescentes de Salvador, em agosto de 2014. A recepção positiva dos jovens pode ser sentida no relato dos participantes: “Foi muito le-gal! Pudemos ter conhecimento sobre assuntos que não são discutidos nas comunidades” (Joseane Reis, 19 anos). “De início é um pouco estranho, mas no de-correr conseguimos nos conectar, entender e apren-der sobre o jogo. O fato mais interessante é que no jogo todos ganham e também um ajuda o outro, pois é dessa forma que temos que levar a vida, nossas opi-niões e atitudes” (Beatriz Santana, 18 anos).

Dessa maneira, o Jogo configura-se também em um instrumento político potencializador do tema da Convivência e Segurança Cidadã na agenda política

local. Um exemplo foi a apresentação do Fica Segu-ro no evento Citizen Security in Brazil: Progress and Challenges (no português, Segurança Cidadã no Bra-sil: Progresso e Desafios) realizado no Wilson Center, em Washington, Estados Unidos, em 2014.

COOPERAÇÃO, EMPIRIA E INTEGRAÇÃO

A partir da experiência didática de jogar o Fica Seguro com diferentes públicos durante os cursos de Convivên-cia e Segurança Cidadã, foi possível compreendê-lo como uma importante ferramenta a partir de três aspectos:

1. Cooperação | Uma das regras do jogo é ser colabora-tivo, por isso o Fica Seguro não foi proposto como um jogo individual, mas sim coletivo, podendo ser joga-do em grupos de cinco a seis pessoas. Essa estratégia propicia aos jogadores se conhecerem melhor e tro-carem informações e percepções sobre o território, atitude necessária para a construção do diagnóstico e do planejamento das ações de segurança cidadã.

2. Conhecimento empírico | Ao jogar, o participante torna palpáveis os conceitos, ou seja, ele experimen-ta, na prática, as etapas e ações para o desenvolvi-mento de políticas locais de Convivência e Segurança Cidadã. O Jogo torna os conceitos acessíveis à medi-da que são vivenciados, pois o jogador, para respon-der às perguntas, muitas vezes precisa de se colocar no lugar de um implementador da ação (policial, gestor, comunidade, entre outros), o que propicia a construção de sentido, assimilação do conceito e re-lação com sua prática profissional.

3. Integração | Busca estimular os participantes a pla-nejar projetos de Convivência e Segurança Cidadã nos territórios, de forma integrada e intersetorial. Ao jogar, o participante é convidado a refletir sobre sua corresponsabilidade no desenvolvimento de políticas na área e a desconstruir a visão restrita de segurança. O jogo possibilita que qualquer pessoa discuta e se envolva com ações de Segurança Cida-dã, a partir do momento em que passa a se perceber como parte do problema e também da solução.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma importante ferramenta política e metodológica na prevenção e enfrentamento à violência – é desta forma que o Jogo Fica Seguro é apontado pelos atores sociais locais que tiveram a oportunidade de utilizar o jogo no âmbito dos programas e capacitações de-senvolvidas pelo PNUD. Ao jogarem, policiais milita-res, guardas municipais, jovens, técnicos das diversas secretarias (educação, saúde, cultura etc.), entre ou-tros atores sociais conseguiram se ver no conteúdo do jogo, se sentiram parte do que estava ali exposto nas cartas e no tabuleiro.

Dessa forma, o Jogo desponta como uma ferra-menta capaz de contribuir com a sustentabilidade das ações, à medida que fortalece redes e conse-gue multiplicar a metodologia PNUD de trabalhar a Convivência e Segurança Cidadã em territórios marcados por ausências de diversos âmbitos (so-ciais, econômicas, afetivas) e com elevadas taxas de criminalidade. É uma ferramenta importante, por exemplo, em processos de mudança de gestão nos municípios e estados, pois pode funcionar como ins-

trumento para capacitação dos novos gestores e téc-nicos e, com isso, multiplicar e garantir que as ações de Convivência e Segurança Cidadã continuem a ser desenvolvidas no território.

O Jogo, por se tratar de um processo colaborativo, também estimula a participação e a integração entre os diferentes atores, bem como revela a importância da participação comunitária nas ações de Convivên-cia e Segurança Cidadã. É importante destacar, ainda, que se trata de uma ferramenta metodológica capaz de dialogar – e estimular o diálogo – entre diferentes públicos. A linguagem utilizada e a proposta gráfica alinhadas com o conteúdo textual têm como objetivo ser acessível para pessoas de diferentes idades, com diferentes níveis de escolaridade e com atuações dis-tintas no território.

Assim sendo, ao jogar, os participantes desco-brem como se dá o processo participativo de gestão territorial. É um jogo colaborativo: a equipe ganhará quando conseguir superar um cenário de violência e insegurança para um cenário de paz. O jogo pode ser usado como primeiro contato com o conceito e as eta-

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Bruna Pegna Hercog

Nasceu em Salvador, Bahia. É jornalista e mestra em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua como

consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Centro Regional para América Latina e Caribe em

projetos de Convivência e Segurança Cidadã.

Em 2014, coordenou os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, realizados pelo PNUD em parceria com a Senasp-MJ. Já

trabalhou em algumas organizações não governamentais baianas, como a Cipó – Comunicação Interativa e a Associação Vida Brasil.

Possui experiência, também, em jornalismo impresso e assessoria de imprensa, nas áreas social e cultural e produção editorial.

No Jornal A Tarde, trabalhou como repórter em diferentes editorias.

Atua, principalmente, nos seguintes temas: comunicação comunitária, mobilização social e educomunicação.

Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha

Doutoranda em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (Ucsal), mestra em Arquitetura e Urbanismo e Arquiteta

pela UFBA. Consultora doPNUD – Centro Regional para a América Latina e Caribe em Convivência e Segurança Cidadã.

Atuou em: Comissão de Avaliação do Sistema Penitenciário do Amapá –Gov. AP; Jornadas Formativas em Direitos Humanos –

Senasp-MJ; Programa Polícia Cidadã do Estado do Amapá – Ceforh-AP; Prêmio Dubai 2000 – ONU-Habitat; Programa Educar

– erradicação do trabalho infantil nas piores formas de narcoplantio e exploração sexual comercial – Instituto Companheiros

das Américas; Centro de Educação em Direitos Humanos e Assuntos Penais – SJCDH-BA (Direção). Recebeu o Certifi cado

de Excelência por serviços prestados à Segurança Pública – 2010 – Senasp-Pronasci-MJ. Possui artigos e livros publicados:

arquitetura e urbanismo, direitos humanos, segurança pública e educação social.

Cíntia Yoshihara

Foi coordenadora dos cursos de Segurança Cidadã, realizados em 2014 pelo PNUD, em parceria com a Senasp-MJ. É

psicóloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista pela Universidade de São Paulo (USP) e

mestre em Psicologia pela UFMG. É professora do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras em Belo Horizonte. Possui

experiência como consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do International Centre

for Migration Policy Development (ICMPD). Suas áreas de interesse são: segurança cidadã, direitos humanos, mobilização

comunitária, gestão pública participativa, mediação de confl itos e prevenção à violência.

Joselita Frutuoso de Araújo Macêdo Filha

pas de uma ação de Convivência e Segurança Cidadã. Com ele, os participantes começam a se familiarizar com os termos e a abordagem utilizada. Podem ser promovidas rodadas de jogos em escolas, unidades de saúde, Centros de Referência da Assistência So-cial (Cras), unidades de polícia, entre outros espaços (PNUD, 2015).

A Coletânea Convivência e Segurança Cidadã: Guias e Gestão Territorial Participativa, composta por nove Guias Metodológicos e pelo Jogo Fica Seguro, foi uti-lizada com boa resposta como material didático de referência para o desenvolvimento dos cursos. Nessas oportunidades, todas as turmas, ao fazer uso do Jogo

como ferramenta pedagógica, puderam dar sugestões de como melhorar seu desempenho, resultando em ajustes que contribuíram para uma apropriação mais eficaz dos conceitos relativos à Convivência e Seguran-ça Cidadã pelos jogadores, ao favorecer uma melhor dinâmica no jogo, fazendo-o mais atrativo e interativo.

Muitos foram os aspectos destacados pelos alunos no uso do jogo; chama atenção o fato de que ele pos-sibilita o diálogo de modo lúdico entre diversos ato-res sociais, mas, também, o de compreender o papel social que cada um tem na realidade concreta de en-frentamento à violência, observando possibilidades de articulação e ação cooperativa.

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Marialina Côgo Antolini

Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e jornalista graduada pela

mesma instituição. Pesquisadora do Observatório da Mídia: Direitos Humanos, Políticas, Sistemas e Transparência. Integra

o quadro de consultores associados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina

e Caribe, prestando consultoria nas áreas de mobilização e comunicação em Convivência e Segurança Cidadã. Já trabalhou

como repórter de televisão e de jornalismo impresso, bem como desenvolvendo projetos de comunicação, audiovisual e meio

ambiente, em instituições não governamentais.

Valentina Garcia

Tem formação em Design Gráfico pela Universidade Salvador (Unifacs) e pós-graduação em Design Estratégico, também

pela Unifacs; trabalhou na SRV Programação Visual e nas editorias de arte de jornais como Bahia Hoje, Gazeta Mercantil

Nordeste e A Tarde. Com experiência em gestão, design gráfico e editorial, atua como consultora do Programadas Nações

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e ONU Mulheres, além de ter tido clientes como Braskem, Seplan, Secult e Editora

Corrupio. É autora de projetos gráficos de livros, como a biografia de Elsimar Coutinho e Vitor Gradin, de Ana Theresa

Baptista, e trilogia Terceira Diáspora, de Goli Guerreiro, entre outros. Recebeu o prêmio de excelência no 30º e 31º The Best

of News Design SND e de Melhor Identidade Visual no ExpoCone Design.

Juliana Mattedi Dalvi

Mestra em Psicologia Institucional, especialista em Gestão de Políticas de Segurança Pública e Assistente Social pela

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É gestora de Implementação do projeto Jovem de Futuro, no Instituto

Unibanco, e Consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Centro Regional para a América

Latina e Caribe em Convivência e Segurança Cidadã. Atuou como consultora do PNUD na coordenação dos cursos de

Convivência e Segurança Cidadã, realizados em parceria com o MJ; na elaboração de publicações na temática de Convivência

e Segurança Cidadã e na realização de Diagnóstico e Plano Local de Convivência e Segurança Cidadã em Vitória (ES). Atuou

em pesquisas no Futura Instituto de Pesquisa e como consultora para elaboração e implantação de um Modelo de Diálogo

Social para a Vale. Foi professora do curso de Serviço Social da Ufes e possui experiência em gerenciamento de projetos na

área de Segurança Urbana, Prevenção à Violência e Direitos Humanos.

o quadro de consultores associados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina

e Caribe, prestando consultoria nas áreas de mobilização e comunicação em Convivência e Segurança Cidadã. Já trabalhou

como repórter de televisão e de jornalismo impresso, bem como desenvolvendo projetos de comunicação, audiovisual e meio

ambiente, em instituições não governamentais.

Juliana Mattedi Dalvi

REFERÊNCIAS

PNUD. Guia de Comunicação e Mobilização Social em Convivência e Segurança Cidadã. Coletânea Guias de Gestão Territorial Participativa. 2. ed. Brasília, 2015. WIKIPEDIA. Mandala. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mandala>. Acesso em: 30 out. 2010.

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PARTE 2

CONVIVÊNCIA E SEGURANÇA CIDADÃ EM TEMAS

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DESENVOLVIMENTO DAS CAPACIDADES INSTITUCIONAIS

Gestão e desenvolvimento de capacidades institucionais: a integração como fator essencial nas políticas de segurança pública

Cláudia Ocelli Costa

Inicio este ensaio apontando algumas inquietações que nortearão a interlocução proposta aqui e que me instigaram à reflexão, ao longo de minha traje-tória profissional e vivência comunitária, especial-mente no âmbito da gestão pública e na atuação em movimentos sociais. Nos tempos atuais, profunda-mente demarcados pelas desigualdades sociais e pela exacerbação do consumismo e individualismo, é possível uma convivência democrática? Os mode-los institucionais que conhecemos e construímos, historicamente, favorecem essa convivência? Que estratégias de gestão institucional podem influen-ciar esses processos? Existem fronteiras e limites a serem reconhecidos? Mas, o que é convivência democrática e quais os seus contornos com a se-gurança pública?

VIVER EM COMPANHIA DE OUTROS

Parece simples, mas essa definição básica de convi-vência implica no reconhecimento do outro, na diver-sidade de interesses individuais e coletivos, na exis-tência de conflito. Para serem democráticas, essas relações cotidianas, interpessoais e sociais, exigem regras de comportamento delineadas pela ausência

de violência, pela administração construtiva dos con-flitos na busca de harmonização dos interesses indi-viduais com os coletivos.

Em nossas sociedades contemporâneas, caracteri-zadas pela heterogeneidade e pelo multiculturalismo, a dimensão “viver em meio à diferença” adquire rele-vância, assim como a noção de Segurança Cidadã, que se refere a uma ordem cidadã democrática, que elimi-na as ameaças de violência na população e permite a convivência segura e pacífica. Como salienta Serrato (2007), essas ameaças são provenientes da violência cotidiana que se origina no interior da família ou da comunidade ou da qual padecem os cidadãos, como resultado de situações de risco ou de atividades de organizações criminosas envolvidas com delitos de maior vulto, que podem ser prevenidas ou enfrenta-das com políticas locais.

É pelo exercício da política, aqui entendida como um “conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos” (RUA, 1997 apud MENICUCCI, 2006, p. 3), que a socie-dade busca resolver a necessidade de convivência de interesses diversos, frequentemente contraditórios,

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que possam ser acomodados por meio de processos institucionalizados e pacíficos.

Assim, quando falamos de uma política públi-ca, como a de segurança, nos referimos à ação das autoridades públicas na sociedade – aquilo que os governos produzem para alcançar determinados re-sultados utilizando-se de alguns meios. Essa política remete a um conjunto de decisões mais um conjunto de ações para implementar aquelas decisões – que afetam todos, pois são públicas, sendo, então, uma política sobre coisas públicas. A sua dimensão “pú-blica” é dada pelo seu caráter “imperativo”, uma vez que são decisões e ações revestidas da autoridade soberana do poder público. Telma Menicucci (2006) também alerta no sentido de que as políticas públi-cas são os atos, mas também os “não atos” das auto-ridades públicas frente a um problema ou um setor da sociedade.

A mediação da política e seus processos de insti-tucionalização trazem novos contornos para a esfera pública, redefinindo a noção de convivência social e introduzindo o governo e a gestão pública como im-portantes atores dessa relação. Ampliada, a esfera pública “deve identificar, compreender, problemati-zar e propor as soluções aos problemas da sociedade, a ponto de serem assumidas como políticas públicas pelo contexto parlamentar e executadas pelo aparato administrativo de governo” (TENÓRIO, 2011, p. 688). Como espaço de intermediação entre Estado, socie-dade e mercado, a esfera pública exige a “cidadania deliberativa”; ou seja, um processo participativo de deliberação baseado, essencialmente, no entendi-mento entre as partes e seu procedimento prático é a participação.

Neste ponto, indaga-se: quais os impactos da mediação das políticas públicas na construção da convivência social e democrática? O alargamento da esfera pública tem produzido, contraditoria-mente, um distanciamento do “bem comum”? Como promover a participação nos processos deliberati-vos da gestão social?

VIVER EM COMUNIDADE, EM UM TERRITÓRIO

Em vários escritos, Boaventura Santos (1998) ressalta que o espaço da comunidade é constituído pelas rela-ções sociais desenvolvidas em torno da produção e re-produção dos territórios físicos e simbólicos, de iden-tidade e identificações com referências às origens e destinos comuns. Nesses territórios, é construída nos-sa referência de identidade, a partir do vivido. Como diria Milton Santos (1994), o território, base do traba-lho, da residência, das trocas materiais e espirituais da vida, não é apenas um espaço físico, é o chão mais a população. Nele, se produz a ideia de pertencimento e a de cidadania, numa relação entre o lugar e o cidadão.

Refletindo sobre a cultura política, Marilena Chauí (1989, p. 2) observa que a marca de uma comunidade é a “indivisão interna, o sentimento de uma unidade de destino, ou de um destino comum, a definição de um bem comum e a encarnação em determinadas fi-guras do espírito da comunidade”. Por outro lado, a marca de uma sociedade é a percepção do isolamen-to, dos indivíduos isolados terem feito um contrato, um pacto social, para viver juntos. Outra característi-ca fundante da sociedade é sua divisão interna.

Pode-se inferir que nas comunidades e nos ter-ritórios aprendemos, produzimos e reproduzimos nossa identidade individual e coletiva, mediadas pe-las instituições da sociedade. É nesse lugar onde se concretizam as relações sociais, de vizinhança e so-lidariedade e de poder, que o direito é expresso ou negado, abnegado ou reivindicado.

Em sociedades, não se enfrentam problemas sim-ples, uma vez que os fatos são multicausais e multide-pendentes entre si. Para enfrentá-los, busca-se formu-lar soluções que se transformam em políticas públicas, como já foi referido. No entanto, historicamente, as po-líticas que institucionalizamos também trouxeram as marcas da sociedade: o isolamento e a setorialização. Seus resultados, especialmente no que diz respeito à se-gurança pública, também evidenciam a dificuldade que há no estabelecimento de uma convivência democrática.

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Paradoxalmente, os atuais modelos de gestão pública evocam para a importância do trabalho em rede e territorial, no intuito de resgatar o interes-se comum, rompendo com a fragmentação e o dis-tanciamento dos diferentes atores sociais. Em bus-ca de inter-relações e conexões, outras estratégias são adotadas, como a criação de mecanismos e ins-tâncias de controle público, a descentralização das ações sociais e a intersetorialidade, objetivando a convergência de políticas sociais.

A intersetorialidade se constitui, então, uma nova maneira de abordar os problemas sociais, “enxergando o cidadão em sua totalidade e estabelecendo uma nova lógica para a gestão da cidade” (MENICUCCI, 2006, p.5). Seu objetivo é superar a forma segmentada e desarticu-lada como, em geral, são executadas as diversas ações públicas “encapsuladas nos vários nichos setoriais que se sobrepõem às subdivisões profissionais ou disciplinares” (MENICUCCI, 2006, p.5).

No contexto desses deslocamentos, as políticas de Segurança Cidadã, construídas como uma questão co-letiva e integral, não se referem a um único ator (go-verno) ou a determinados setores do governo e são coletivamente enfrentadas pelo conjunto das políticas e pelo conjunto dos diversos atores e setores sociais. São, assim, intersetoriais e/ou transversais – o que nos remete ao desenvolvimento da capacidade insti-tucional necessária na busca de soluções coletivas e implementação de ações multidimensionais de segu-rança que potencializem a convivência democrática.

POSSIBILIDADES E LIMITES DA AÇÃO INSTITUCIONAL

O enfrentamento, em rede, dos problemas complexos de nossa sociedade exige, dentre outras ações, o re-conhecimento da tensão entre especialização e inte-gralidade. A primeira é necessária para atender a de-mandas diferenciadas e a segunda, para possibilitar

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uma visão global sobre as pessoas atendidas e seus problemas. Nessa direção, Carla Bronzo (2007) des-taca que algumas experiências de gestão social apos-tam na valorização da proximidade, do âmbito local, como campo de possibilidades para o desenvolvimen-to de novas dinâmicas de participação nos processos de governo.

No entanto, algumas dimensões da interseto-rialidade precisam ser levadas em consideração. No âmbito da decisão política, para enfrentar a ex-cessiva setorialização e departamentalização da estrutura administrativa, é necessário construir e legitimar consensos e pactuações. No âmbito insti-tucional, para dar materialidade aos desdobramen-tos da decisão política, é imperativo transformar as estruturas e os mecanismos e processos existentes do aparato administrativo. As mudanças também devem ocorrer nos processos de trabalho, uma vez que é na esfera operativa que poderão ser adotadas posturas mais cooperativas e compartilhadas, res-tabelecendo fluxos e reorientando a provisão dos serviços públicos.

Um dos caminhos intersetoriais é a elaboração de diagnósticos comuns ou pactuados dos problemas e a formulação compartilhada de planos integrais; o que reafirma a importância das relações sociais de-mocráticas nas quais a política opera com o conflito e com a criação de direitos e é exercida não apenas por um setor específico da sociedade, mas por todas

as instituições da vida social. Para isso, é fundamen-tal desvelar as fronteiras, contradições e limites da divisão social e da própria base comunitária de exis-tência coletiva.

É necessário considerar, ainda, a relevância das práticas estratégicas que priorizem os ele-mentos que permitam debilitar os fatores que ge-ram precariedade e marginalização, as práticas de prevenção e inserção e as práticas inovadoras (GOMA, 2004). Estes movimentos implicam reco-nhecimento de práticas não institucionalizadas e a abertura para configurações institucionais que ampliem as fronteiras entre o instituído, o insti-tuinte e o que não se conforma nos desenhos insti-tucionais conhecidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se que o campo da convivência social per-manece aberto e revela os tensionamentos da ordem político-social que se constrói. Esta tensão pode ser criativa e levar à construção de novos pactos sociais que passam, como foi destacado, pelas transforma-ções na cultura institucional e nas relações de po-der que se estabelecem no território. Revela, ainda, alguns percursos necessários à construção de práti-cas coletivas que nos vincule e nos identifique como iguais na diversidade. Esta é a força mobilizadora do princípio de comunidade e do nosso desejo inesgotá-vel de fazermos escolhas livres e pacíficas.

Cláudia Ocelli Costa

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997). Atualmente, é professora da Faculdade de Políticas

Públicas da Universidade do Estado de Minas Gerais e do UNIBH. Atua, principalmente, nos seguintes temas: gestão,

planejamento e elaboração de projetos; políticas públicas; políticas educacionais e projetos político-pedagógicos. Coordenou o

Observatório dos Direitos da Criança e Adolescente e o Programa Institucional Direitos da Criança e Adolescente da UEMG (2013-

2014). Possui experiência na gestão municipal, atuando como secretária adjunta nas áreas de educação e políticas sociais, no

município de Contagem – MG. Entre 2010 e 2012, foi ponto focal do município de Contagem, no Programa Conjunto Segurança

com cidadania: prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania, com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições

vulneráveis nas comunidades brasileiras, estabelecido entre seis agências da Organização das Nações Unidas (ONU), a Agência

Brasileira de Cooperação (ABC) e o Ministério da Justiça.

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REFERÊNCIAS

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Desenvolvendo capacidades institucionais no âmbito da Segurança Cidadã

João José Barbosa Sana

No período compreendido entre 2005 e 2012, par-ticipamos da Administração Municipal de Vitória1. Desafiados a colaborar na área de Segurança Públi-ca, no processo de constituição da Secretaria Mu-nicipal de Segurança Urbana compusemos a equipe que estava estruturando a pasta naquela gestão2, e que desenvolveu o programa de segurança mu-nicipal denominado Vitória da Paz3. Desta forma, a equipe que trabalhava naquele momento propu-nha-se, sempre, o propósito do desenvolvimento das capacidades teórico-práticas da gestão.

Partindo dessa experiência, mais do que nunca, consideramos que o desafio que se coloca é refle-tir sobre o desenvolvimento das capacidades ins-titucionais do campo da segurança cidadã. É um desafio para inúmeras administrações municipais por este país afora. Afinal, existe uma questão pre-liminar que, durante muito tempo, tem mobilizado muitos estudiosos: É pertinente a discussão sobre Gestão Local da Segurança? Os municípios teriam, de fato, algum papel a desempenhar nessa área?

O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA GESTÃO LOCAL DA SEGURANÇA

Revendo a literatura disponível, constata-se que a maioria das Constituições Brasileiras4 só se preocu-pou em tratar da Segurança do Estado, da Repúbli-ca e a Segurança Nacional, não reservando nenhum

tratamento sobre a segurança pública no âmbito lo-cal. A única exceção é a Constituição de 1988, que explicita a segurança pública como direito e respon-sabilidade de todos, como instrumento de proteção de direitos individuais, que assegura a cidadania. Também estabelece, no Art. 144, as funções para as diversas polícias e, em relação aos municípios, no parágrafo 8º, estabelece que estes poderão consti-tuir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações; e, conforme o Art. 23, poderão estabelecer e implantar política de edu-cação para a segurança do trânsito (BRASIL, 1988).

Mesmo existindo essas referências explícitas so-bre o tema, na Constituição, muitos gestores conti-nuaram fazendo uma interpretação limitada do Art. 144 – que afirma que a segurança é tarefa do Estado–, entendendo, portanto, que não caberia ao ente muni-cípio qualquer responsabilidade sobre a questão.

Na contramão dessas interpretações, diversos estudiosos sinalizam a relevância do papel que a gestão local pode desempenhar no campo da se-gurança. Para Khan e Zanetic (2009), a segurança deixa de ser problema dos governos estaduais; dei-xa de ser, também, um problema exclusivamente policial e deve ser tratada como uma questão mul-tidisciplinar, envolvendo diversas instâncias. Ace-ro (2002) enfatiza que as autoridades locais, por estarem mais próximas dos cidadãos, devem ter a

1. 2005-2006 – Subsecretário Municipal de Segurança Urbana; 2006-2010 – Secretário Municipal de Segurança Urbana; 2011-2012 – Secretário Municipal de Cidadania e Direitos Humanos. 2. Gestão do prefeito João Carlos Coser; e a coordenadora da equipe que estruturava a gestão era a professora Dra. Vanda de Aguiar Valadão, da Universidade Federal do Espírito Santo. 3. Programa Prioritário de Governo – que tinha como objetivo a desconstrução da violência e a construção da cultura de paz – a partir de premissas como: integração federativa; integração intersetorial; abordagem multissetorial e multicausal da violência, com foco de atuação prioritária no campo da prevenção e compromissada em promover a participação social. 4. COSTA JUNIOR (2014).

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prerrogativa de dar resposta em relação às deman-das de segurança. Benedito Mariano (2004) desta-ca que os municípios estão mais preparados para atuar na prevenção, por meio de políticas públicas; e Miraglia (2006) lembra que, pelo fato de as prefei-turas terem condições de conhecer os problemas e conflitos das comunidades, elas reúnem condições para fazer a mobilização e a articulação social no tratamento das questões relacionadas à segurança.

Registra-se, por outro lado, que muitos municí-pios, ao longo dos anos 1980, foram constituindo suas Guardas Municipais e, de alguma forma, se envolvendo no tema da segurança. A literatura dis-ponível aponta diversas experiências de gestão lo-cal da segurança que são avaliadas positivamente. A título de exemplos, destacam-se duas: Diadema (SP)5; e Canoas (RS)6. Nesse sentido, se constata que o Governo Federal, particularmente a partir dos anos 2000, tem incentivado a participação dos mu-nicípios por meio da discussão do Sistema Único de Segurança Pública, do Programa Nacional de Segu-rança com Cidadania (Pronasci) e do lançamento de editais, para que os municípios possam apresentar projetos. Destaca-se que, no âmbito da mobilização da Conferência Nacional de Segurança Pública, ocor-rida em agosto de 2009, muito se discutiu sobre o papel da gestão local na segurança e, inclusive, o Go-verno Federal apoiou a criação do Conselho Nacional de Secretários e Gestores Municipais de Segurança (Consems). Deve-se lembrar, também, que, na es-teira dessas discussões, recentemente, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014, que versa sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, ampliando o papel dos municípios a par-tir da atuação das guardas (BRASIL, 2014).

A ampliação da presença dos municípios no cam-po da segurança coloca, portanto, o desafio do de-senvolvimento das capacidades institucionais em relação à questão. Torna-se necessário investir para

que os municípios estejam qualificados, visando a sua atuação nessa área. Afinal, é necessário planejar as ações. Para que haja planejamento, é importante que se desenvolva a capacidade de realizar diagnós-ticos, pesquisas e estudos para uma compreensão adequada das peculiaridades de cada localidade. Por outro lado, é necessário assegurar a participação so-cial, definir políticas públicas e definir recursos or-çamentários e elaborar projetos de captação de re-cursos para desenvolvimento das políticas públicas, para além dos recursos próprios registrados nos or-çamentos municipais. Isto é um grande desafio.

SEGURANÇA CIDADÃ E A EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA (ES)

Destaca-se que, em muitas cidades, estão sendo de-senvolvidas experiências positivas de segurança que foram precedidas de adequados programas de planejamento, monitoramento e avaliação das ações realizadas. Aqui, será relatada a experiência viven-ciada pelo município de Vitória (ES), com as ações desenvolvidas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Por meio do processo da organização da Confe-rência Nacional de Segurança Pública, que ocorreu em agosto de 2009 e foi precedida por conferências municipais e estaduais, o Ministério da Justiça, em parceria com o PNUD, realizou diversos cursos de Segurança Cidadã, nos quais os gestores (munici-pais, estaduais e federais), assim como representan-tes da sociedade civil tiveram oportunidade de se debruçar sobre o tema.

A Administração Municipal de Vitória (ES) (pe-ríodo 2005-2012) ampliou sua relação institucional com o PNUD, por intermédio do Programa Segurança com Cidadania: prevenindo a violência e fortalecen-do a cidadania com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições vulneráveis em comunidades brasileiras. Sua duração foi do segundo semestre de

5. SILVA FILHO (2002); GUIDANI (2005). 6. PAZINATO (2012).

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2010 ao primeiro semestre de 2013. O processo foi acompanhado até dezembro de 2012.

Esse programa foi realizado em parceria com o Ministério da Justiça e beneficiou, também, os mu-nicípios de Contagem (MG) e Lauro de Freitas (BA). Foi uma experiência inovadora, uma vez que envol-veu outras cinco agências da ONU7. Foi eleita uma re-gião da cidade de Vitória (a grande São Pedro) para se desenvolver a proposta. Foram realizadas diver-sas atividades com o objetivo de elaborar um Plano Integral de Convivência e Segurança Cidadã. Para o alcance desse objetivo, efetivou-se um diagnóstico situacional e das capacidades institucionais.

Dessa forma, assimilaram-se mecanismos de avaliação das capacidades institucionais; verifica-ram-se os problemas relacionados à convivência cidadã; constatou-se a existência de espaços urba-nos inseguros e formas conflituosas de resolução de conflito; identificaram-se o uso abusivo de álcool, drogas, e a ampla circulação de armas de fogo como fatores de risco; e percebeu-se a fragilidade das re-lações sociais.

Isso posto, formulou-se um plano que teve como objetivos: o fortalecimento institucional da gestão da segurança cidadã; a promoção da convivência e segurança cidadã; a promoção de espaços urbanos seguros; a resolução pacífica de conflitos; a redução dos fatores de risco, em particular, a redução da pre-sença de álcool, drogas e armas; e o fortalecimento do capital social.

Destaca-se que a realização desse Programa de-safiou a administração municipal a pensar sobre a melhor formar de assegurar a participação social. A partir de inúmeras tentativas, ensaios e erros, foi constituído um Comitê Gestor composto por repre-sentantes de diversas secretarias da Prefeitura, re-presentantes do Governo do Estado (Secretaria de Estado da Segurança; e Secretaria de Ações Estra-

tégicas, Polícia Militar e Polícia Civil). Esse Comitê era também composto por representantes do Minis-tério da Justiça, do PNUD e das demais agências da ONU. Mereceria um capítulo à parte a participação dos moradores de São Pedro. Contudo, não sendo possível, no âmbito deste texto, cumpre registrar a necessidade de que os gestores municipais invis-tam, cuidadosamente, para assegurar a participação e para, acima de tudo, garantir que o Plano esteja, efetivamente, sintonizado com a demanda e com as necessidades sociais.

A participação nesse processo permitiu a cons-tatação, por um lado, que, de fato, os governos lo-cais têm uma grande contribuição a dar no campo da segurança cidadã e, por outro, perceber o desa-fio que é preparar as gestões municipais para que a questão seja tratada. Afinal, o tema em pauta não pode ser abordado numa única perspectiva, posto que a violência é multicausal. Sendo assim, torna-se necessária uma abordagem multidisciplinar e inte-gral: que envolva estado e sociedade; que abarque os diversos setores da administração municipal; e que articule sempre os múltiplos profissionais que atuam na gestão. Ao gestor municipal, por fim, será necessário articular não somente dentro da própria gestão, mas articular-se, também, com ou-tros níveis de governo (Estadual e Federal) e com a sociedade.

Aprendeu-se, ainda, que não basta um diagnós-tico integral e um plano integral. Isto é, não basta conhecer a realidade e saber o que fazer. É preci-so garantir o compromisso de todos os envolvidos na elaboração do Plano; assegurar um processo de monitoramento e avaliação; e garantir a efetivida-de dos recursos para que se possam alcançar as metas estabelecidas.

Ao realizar um programa dessa natureza, foi pos-sível identificar as debilidades da gestão. Percebeu-se

7. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc); Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UM-Habitat); Organização Internacional do Trabalho (OIT); Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

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o quanto é difícil cada um sair “da sua ilha”, como é difícil não lançar um olhar “esquartejado” sobre a realidade. Aprendeu-se que o desafio de pensar sobre a convivência e segurança cidadã não per-mite um olhar limitado pela perspectiva de uma secretaria de governo. Ao contrário, é necessária a implicação de toda a administração. O programa, dessa forma, permitiu maior conhecimento sobre diversos problemas que afligiam a cidade de Vitó-ria naquele momento. Destacaram-se: a violência contra mulheres; a violência contra a juventude, particularmente a juventude negra; a violência contra crianças e adolescentes; os altos índices de homicídios/feminicídios; e o tráfico de drogas e de armas.

Ampliando-se o conhecimento sobre essas rea-lidades, ocorreu o aprendizado de que enfrentar os problemas evidenciados não poderia ser uma tarefa apenas dos/das profissionais que atuam nas polí-cias, nas Guardas Municipais. Implicaria, outrossim, a integralidade dos governos em todos os níveis, incluindo, naturalmente, todos os setores da admi-nistração local, combinando ações de prevenção e ações de controle; combinando ações de educação e ações afirmativas dos direitos humanos, na sua integralidade. O conjunto dessas ações é um instru-mento indispensável para a desconstrução da vio-lência e a construção da cultura de paz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas experiências e as reflexões delas decorrentes serviram para reafirmar o que já se tornou lugar- -comum no pensamento de muitos estudiosos. Mais do que nunca, é imperativo que a administração

João José Barbosa Sana

Especialista em Segurança Pública; Especialista em Gênero e Raça e Mestre em Educação pela Universidade Federal do

Espirito Santo; Membro do Fórum de Homens Capixabas pelo fi m da violência contra as Mulheres e membro do Laboratório

de Gênero, Poder e Violência da Universidade Federal do Espirito Santo. Vice-Presidente da Comissão de Justiça e Paz da

Arquidiocese de Vitória (ES).

pública desenvolva suas capacidades institucionais para atender, adequadamente, às demandas que lhe são apresentadas. E, sem dúvida, sendo o município a instância de poder mais próxima dos cidadãos e cidadãs, torna-se necessário que sejam feitos sem-pre mais investimentos na qualificação dos gestores que atuam em todos os campos administrativos e, particularmente, os que se preocupam com as ques-tões da segurança cidadã.

Afinal, aos poucos, supera-se a ideia de que se-gurança seja assunto somente de polícia. Aos pou-cos, aprende-se que, para ter boas políticas públicas e bons planos de ação, é necessária a utilização de ferramentas adequadas que favoreçam a compreen-são adequada da realidade e permita o diagnóstico mais aproximado possível dessa realidade, visando à definição de boas soluções e ao desenvolvimento de boas práticas.

Por fim, restaria uma pergunta muito simples: será que é fácil fazer isto? Considera-se que não. E a pergunta seguinte seria: se a tarefa não é fácil, pode-se afirmar que é tarefa impossível? Imediata-mente, dir-se-ia que não é impossível. É um desafio a ser enfrentado. É uma construção de todo dia. É não deixar por menos, se todos nós temos direito a muito mais. Essa tarefa deve ser colocada no campo da Utopia, conforme propõe o grande pensador lati-no-americano Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcan-çarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (BIRRI, 1925, apud GALEANO, 1994).

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GALEANO, Eduardo. Leer Porque Sí. Utopía (Fernando Birri). Lunes, 15 abr. 2013. Disponível em: <http://leerporquesi-1007.blogspot.com.br/2012/12/galeano-eduardo-utopia.html>.

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Gestão e desenvolvimento de capacidades institucionais: o lugar dos GGIs na Segurança Pública1

Eduardo Pazinato

A gestão integrada constitui um princípio estruturan-te e diretriz norteadora que a torna fundamental para a formulação, implementação, avaliação e institucio-nalização de políticas de segurança pública em quais-quer níveis federativos do país – da União, passando pelos estados e chegando aos municípios.

Partindo desse pressuposto, os Gabinetes de Ges-tão Integrada (GGIs) ocupam (ou deveriam ocupar) papel destacado como instrumentos de pactuação estratégica e gestão tático-operacional dos recursos materiais e das capacidades humanas e institucionais necessárias para a consecução de políticas de segu-rança pública, ultimando, nessa medida, uma atuação mais sinérgica, articulada e coordenada entre os dife-rentes entes federados e suas respectivas instituições de segurança (e justiça).

Destarte, os GGIs consistem em fóruns delibera-tivos e executivos, que operam por consenso, sendo responsáveis pela definição de políticas públicas de segurança em prol da proteção e promoção de direi-tos, da prevenção social e situacional de violências, aliadas a políticas de segurança pública de repressão qualificada da criminalidade e, ainda, de regulação e fiscalização administrativa.

A atuação dos referidos gabinetes deve estar pau-tada pelo incremento qualitativo e sistêmico da inte-gração entre os órgãos e agências de segurança (e jus-tiça), pela implantação do planejamento estratégico como ferramenta gerencial dos programas, projetos

e ações a serem empreendidos e pela incorporação da gestão da informação e da participação social na segurança dos direitos2 da população.

GESTÃO INTEGRADA: FORÇA MOTRIZ DA POLÍTICA NACIONAL

O percurso sócio-histórico da assunção da gestão integrada como forçamotriz da política nacional de segurança pública consubstancia-se no processo político-institucional mais amplo de criação e forta-lecimento organizacional da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), no âmbito do Ministério da Justiça (MJ), como, também, na edição de Planos Nacionais de Segurança Pública (PNSP) e do então Programa Nacional de Segurança Pública com Cida-dania (Pronasci).

Todavia, somente a partir dos anos 2000, durante o segundo mandato do presidente Fernando Henri-que Cardoso, nos auspícios do trágico episódio co-nhecido como “sequestro do ônibus 174”, no Rio de Janeiro, que a integração, por meio do I Plano Nacio-nal de Segurança Pública (PNSP), adquire status de ideia-força do ainda incipiente sistema nacional de segurança pública, pautada no reconhecimento por parte do governo federal da necessidade premente de indução e de coordenação federativa da política nacional de segurança pública.

Em 2003, no primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), a proposição do II

1. Este artigo dialoga com a consultoria técnica realizada pelo autor para o PNUD-Senasp-MJ, em 2013, com vistas à elaboração de um novo marco teórico-prático para os GGIs no Brasil, assim como com a experiência de palestrante no curso de Convivência e Segurança Cidadã de 2014, promovido por aqueles em parceria com o Estado do Rio de Janeiro. 2. Sobre o conceito de segurança dos direitos, veja: PAZINATO, Eduardo. Do direito à segurança à segurança dos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

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PNSP, baseado no estabelecimento de um novo de-senho institucional denominado Sistema Único de Segurança Pública (Susp), avança na conformação da gestão integrada como cerne epistêmico da política nacional de segurança pública.

O II PNSP tem nos Gabinetes de Gestão Integrada da Segurança Pública (GGIs) o amálgama, em termos operativos, para a delimitação de novos parâmetros e padrões de integração, fundados na busca da su-peração da lógica tradicional, reativa, fragmentária e atomizada da atuação das polícias, no Brasil, em direção à sua desejável, embora ainda inconclusa, gestão interinstitucional, intersetorial e interagen-cial focada em resultados.

Posteriormente, já nos primórdios do segundo mandato do presidente Lula, em 2007, o governo federal lança o Programa Nacional de Segurança Pú-blica com Cidadania (Pronasci)3, que incorpora parte substantiva, do ponto de vista programático, dos dois primeiros Planos (2000 e 2003) e potencializa-se pela previsão orçamentário-financeira de destinação de R$ 6,707 bilhões, até o fim de 2012, para a conse-cução de 94 projetos e ações, envolvendo 19 minis-térios, em regime de cooperação federativa entre a União, os estados e os municípios4.

O conceito de gestão integrada ganha corpo e es-cala durante a execução do Pronasci, no país. Além do repasse de vultosos recursos para dinamizar e dar ensejo à execução de um grande número de pro-jetos e ações nos estados e, de forma inédita, em se tratando de capilaridade e abrangência de tamanha monta, aos municípios, a obrigatoriedade da cria-ção de GGIs pelos entes federados em questão (com abrangência estadual e municipal), por força das Leis nº 11.530, de 24 de outubro de 2007, e nº 11.707, de 19 de junho de 2008, redunda na instituição de inúmeras experiências, sobretudo locais, de gestão integrada da segurança pública.

Segundo dados extraídos do Relatório Final de Atividades do Termo de Parceria nº 752962/2010, firmado entre a União, por intermédio da Senasp-MJ, e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os anos de 2008 e 2010, o aporte de recursos federais implicou a criação de 104 Gabinetes de Gestão Inte-grada Municipal (GGI-Ms), no Brasil, sendo 53, em 2008; 23, em 2009; e 28, em 2010. Ao todo, segundo informações do Departamento de Pesquisa e Aná-lise da Informação (Depaid) da Senasp-MJ, existem 131 GGIs no país, entre GGI-Es, em âmbito estadu-al, e GGI-Ms, na esfera municipal; ou seja, 79,4% na modalidade GGI-M, concentrados na capital dos es-tados (11,5%), e espraiados em cidades no interior do país (67,9%).

A incorporação dos Gabinetes de Gestão Inte-grada Estadual (GGI-Es) e, sobretudo, dos GGI-Ms, no arcabouço político-institucional do Pronasci, pretendia, a um só tempo, ampliar a concepção de segurança pública vigente, ao compreender a in-dissociabilidade de ações estritamente policiais (e de justiça) com ações alargadas de caráter social, como também fomentar novas práticas gerenciais com potencial de promover mudanças qualitativas na cultura organizacional das agências municipais, estaduais e federais responsáveis pelo provimento da segurança e da justiça em nível nacional.

Nesse diapasão, ações de repressão qualificada, tipicamente afetas aos órgãos policiais e de justiça, deveriam integrar-se a ações sociais de prevenção às violências e crimes, e vice-versa, a partir da inclusão de novos atores, a exemplo dos municípios e da socie-dade civil organizada.

A gestão integrada da segurança pública tornou--se um símbolo da política nacional, ao passo que os GGIs, gradativa e processualmente, foram incorpo-rados entre os equipamentos públicos e recursos institucionais que compõem o sistema de segurança

3. O Pronasci foi criado, originalmente, por meio de Medida de Provisória e, posteriormente, aprovado por unanimidade no Congresso Nacional, com a edição das Leis Federais nº 11.530, de 24 de outubro de 2007, e nº 11.707, de 19 de junho de 2008. 4. Para uma análise do impacto no Pronasci, com foco nos municípios do Estado do Rio Grande do Sul, verifique: PAZINATO, Eduardo; KERBER, Aline. Dossiê do 1º censo sobre ações municipais de segurança pública. Curitiba: Multideia, 2013, bem como, dos mesmos autores, Atlas da municipalização da segurança do Rio Grande do Sul. Curitiba: Multideia, 2015.

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pública e justiça criminal brasileiro, mormente no âmbito municipal.

Igualmente, ao longo do ano de 2009, a edição da I Conferência Nacional de Segurança Pública (Con-seg), com o apoio institucional e financeiro do Pro-nasci, por meio da Senasp-MJ, inscreveu entre as diretrizes nacionais de segurança pública (23ª dire-triz) os GGIs como instrumentos de promoção e co-ordenação da política de segurança, nos três níveis da Federação5.

Desde 2011, já na administração da presidenta Dilma Rousseff, a gestão integrada passou a ser es-timulada mediante o fortalecimento de espaços de integração das políticas públicas de segurança em âmbito municipal, por meio do repasse de recursos do FNSP para projetos voltados à estruturação e ao fortalecimento dos GGI-Ms.

Não obstante, depois de mais de uma década da concepção e da implantação das primeiras experi-ências de GGIs, ainda restritas aos entes federados União, estados e Distrito Federal, o Brasil ainda padece de eficiência, efetividade e eficácia das po-líticas de segurança, como demonstram as recentes

estatísticas criminais sistematizadas e divulgadas pelo 9º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança de 2015, notadamente no que se refere ao controle da letalidade policial, à redução dos crimes violen-tos contra a vida resultando em morte (homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e encontros de cadáver com causa externa violenta) e aos crimes violentos em geral (como roubos de veí-culos, a pedestres, a residências e a estabelecimen-tos comerciais).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Decerto, o acolhimento da diversidade sociocultural e da multiplicidade político-institucional de experi-ências de gestão integrada no país reforça a impor-tância estratégica de assegurar e promover uma nova gramática de gerenciamento tático-operacio-nal das políticas de segurança pública, nos planos federal, estaduais e municipais, de que os GGIs cons-tituem instâncias de formulação, implementação e avaliação fundamentais.

Mais do que meramente a emulação de instâncias de gestão, fica evidente, ao longo do tempo, que os

5. Para obter mais informações nesse particular, consulte: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório Final da I Conferência Nacional de Segurança Pública. Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça: Brasília, 2009.

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esforços federais devem ser canalizados para qua-lificar e aperfeiçoar o método de trabalho dos GGIs, visando à sua institucionalização como parte do desenho institucional de uma política de segurança pública de novo tipo, focada no incremento da ca-pacidade institucional de gestão dos estados e dos municípios, e da própria União, na promoção dos direitos, na prevenção às violências, na repressão qualificada da criminalidade e na regulação e fisca-lização administrativa do e no espaço urbano.

A complexidade demanda dos gestores e das lide-ranças das agências municipais, estaduais e federais imbricadas habilidades e competências singulares, tanto em termos exógenos da capacidade de relacio-namento interpessoal e interinstitucional, quanto em termos endógenos da capacidade técnica de gestão.

Espera-se, no entanto, que, em médio prazo, os GGIs contribuam para uma viragem paradigmática

de uma integração meramente instrumental ou per-formática para uma integração sistêmica ou sinérgica entre os órgãos estaduais e federais de segurança (e justiça, incluindo aqui aqueles do sistema prisional e de medidas socioeducativas) e entre aqueles e as guardas municipais e demais agências municipais em prol da segurança dos direitos da cidadania brasileira.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001. Institui o Fundo Nacional de Segurança Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 16 fev. 2001.

BRASIL. Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 25 out.2007.

BRASIL. Lei nº 11.707, de 19 de junho de 2008. Altera a Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania –Pronasci. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 20 jun. 2008.

CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório Final da I Conferência Nacional de Segurança Pública. Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, 2009. Anais... Brasília, 2009.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório Final de Atividades. Termo de Parceria 752962/2010 – Gestão e Disseminação de Dados na Política Nacional de Segurança Pública, 2013. Anais... São Paulo, 2013.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário, 2015. Anais... São Paulo, 2015.

PAZINATO, E. Do direito à segurança à segurança dos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

PAZINATO, E. ; KERBER, A. Dossiê do 1º censo sobre ações municipais de segurança pública. Curitiba: Multideia, 2013.

PAZINATO, E.; KERBER, A. Atlas da municipalização da segurança do Rio Grande do Sul. Curitiba: Multideia, 2015.

Eduardo Pazinato

Advogado, mestre em Direito pela UFSC e doutorando

em Políticas Públicas pela UFRGS; diretor de Inovação

do Instituto Fidedigna e coordenador do Núcleo de

Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria

(FADISMA). Consultor do Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) e do Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID). Autor do livro Do Direito à Segurança

à Segurança dos Direitos, entre obras especializadas no

campo da gestão de políticas públicas de segurança.

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Gestão da política pública de segurança: dilemas e desafios para o exercício da cidadania

Roberta de Mello Corrêa

Este breve ensaio busca realizar uma reflexão analíti-ca sobre a criação e a implementação dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, a partir de 19991; e, mais recentemente, do Gabinete de Gestão Integrada municipal (GGI-M), a partir de 2008, como políticas públicas que visam promover um diálogo entre operadores dos sistemas de segurança pública e justiça criminal e represen-tantes da sociedade civil.

Podemos observar que no contexto de redemocra-tização, em que a participação popular é estimulada por meio da criação de conselhos em diferentes áre-as, os Conselhos Comunitários de Segurança surgem como responsáveis por criar condições que possibili-tem que a população e os gestores de segurança pos-sam manter um diálogo permanente; e que permitam a sintonia das políticas da área de segurança com as necessidades da população.

Os Conselhos Comunitários de Segurança Públi-ca (CCSP) foram criados no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de reformular o atual modelo de ges-tão das organizações envolvidas com a questão da se-gurança pública, a fim de melhorar a atuação policial frente às novas demandas por segurança.

Indo na mesma direção, no ano de 2007, o gover-no federal instituiu o Programa Nacional de Seguran-ça Pública com Cidadania (Pronasci), que tinha como objetivo, conforme a Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007, “a prevenção, controle e repressão da crimi-nalidade, atuando em suas raízes socioculturais, ar-ticulando ações de segurança pública e das políticas sociais” (BRASIL, 2007). Uma das ações desse pro-

grama foi a criação do Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M), que tinha por objetivo funcionar como estrutura gerencial do Pronasci nos municí-pios, de maneira a implementar políticas públicas na área da segurança pública.

O GGI-M, dessa maneira, reúne diversas insti-tuições, tais como: operadores da justiça criminal e segurança pública; guardas municipais; secretarias municipais, entre outros que atuam na política de se-gurança no município. A reunião dessas instituições no GGI-M tem como finalidade promover ações con-juntas e sistêmicas de prevenção e enfrentamento à violência e à criminalidade, tendo em vista o aumento da percepção de segurança por parte da população e a valorização dos servidores públicos que atuam na área de segurança, em todas as esferas.

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

A partir da literatura pesquisada sobre o tema, obser-vamos que, no Brasil, a partir da década de 80, com a redemocratização do país, os conselhos gestores de caráter interinstitucional passaram a ser inscritos na constituição de 1988. Esses conselhos têm o papel de mediadores entre a sociedade e o Estado. Para mui-tos autores, entre eles Corrêa (2010), Gonh (2000), Fuks; Perissinotto (2006), os conselhos são um dos principais meios de participação popular em esferas de atuação estatal.

No mesmo sentido, Arendt (1973) acredita que os conselhos são a única forma possível de governo que tem como principais condições de existência a partici-pação e a cidadania. No entanto, pesquisas realizadas

1. Para melhor compreensão desse tema, consultar: CORREA, R. Conselhos Comunitários de Segurança: Dilemas e desafios para o exercício da cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Cadernos de Segurança Pública, ano 2, nº 1, ago. 2010.

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em conselhos gestores na área da saúde e educação (FUKS; PERISSINOTTO, 2006) demonstraram que, apesar de inscritos na constituição e se apresentarem como canal privilegiado de diálogo entre Estado e so-ciedade civil na garantia de seus direitos, esta última ainda não se apropriou plenamente desse espaço, para, com o Estado, atuar na promoção de políticas públicas. Como Arendt (1973) explicita em sua aná-lise, não basta que instituições participativas sejam criadas para que a disposição e o aumento da partici-pação ocorram.

Sendo assim, pode-se observar que, apesar dos problemas enfrentados para a institucionalização dos conselhos como arenas de participação popular – isto é, a resistência à adesão na participação pela sociedade civil – não se pode deixar de observar que a introdução desses novos atores políticos nas toma-das de decisão estatal produziu efeitos na democracia brasileira. Nas palavras de Fuks; Perissinotto (2006):

Os constrangimentos socioeconômicos, simbóli-cos e políticos podem funcionar como um pode-roso obstáculo à participação ou até mesmo apro-fundar a desigualdade política. Por outro lado, é verdade que a simples existência dessas insti-tuições, ela própria o resultado da luta política, permitiu a incorporação de determinados atores políticos no processo de tomada de decisão públi-ca, antes monopolizado pela burocracia estatal, incorporação esta que pode produzir efeitos não antecipados por uma análise puramente estrutu-ral (FUKS; PERISSINOTTO, 2006, p. 79).

Sob a perspectiva em tela, a falta de representati-vidade da sociedade civil nos conselhos é, muitas ve-zes, atribuída ao processo da construção da cidadania no Brasil. A noção de cidadania no país depende da admissão de uma noção de cidadania que inclua não apenas o exercício de direitos políticos, mas, também, da aceitação de ideias de divergência, conflitos; e, por que não, de disputa pelo poder, questão apresentada

por Carvalho (2001) e Chauí (1994); e por Ribeiro; Alves (2003) quando refletem sobre a relação entre cidade e cidadania, na sociedade brasileira.

Esta concepção de democracia encontra na so-ciedade brasileira obstáculos intelectuais e ideo-lógicos para o seu reconhecimento como o ponto de vista a partir do qual podemos identificar os nossos os dilemas políticos. Com efeito, ela im-plica a admissão de uma noção de cidadania que incorpore não apenas o exercício de direitos, mas na aceitação das ideias de divergências, conflitos e, por que não, disputa pelo poder. Constatamos a permanência entre nós da dificuldade da incor-poração do conflito como categoria legítima no imaginário social e político brasileiro (CARVALHO, 2001; CHAUÍ, 1994).

Em outras palavras, não tem sido possível no Bra-sil a junção dos dois lados da concepção de cidadania: convivência igualitária e solidária e afirmação autô-noma dos interesses ou objetivos de qualquer natu-reza (SANTOS, 1998; RIBEIRO; ALVES, 2003, p. 82).

Para DaMatta (1997), essa dificuldade em aceitar como regra do jogo de poder a possibilidade de alian-ça e conflito encontra uma base explicativa na ques-tão de que a sociedade brasileira é avessa ao conflito por ter, ao mesmo tempo, duas lógicas operando – uma igualitária e individualizante, e outra particula-rista e hierarquizante. As primeiras estão no registro das regras formais, as leis que devem ser cumpridas, universalmente, por todos; e a segunda se inscreven as relações pessoais, assim como nas moralidades:

E sabemos que o conflito aberto e marcado pela representatividade de opiniões é, sem dúvida alguma, um traço revelador de um igualitaris-mo individualista que, entre nós, quase sem-pre se choca de modo violento com o esqueleto hierarquizante de nossa sociedade (DaMATTA, 1997, p. 184).

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Apesar das dificuldades de nossa sociedade em lidar com o conflito, dificilmente se pode dizer – concordando com Kant de Lima (1995) – que há uma cidadania plena. O Estado, por ações interven-cionistas, tem criado, cada vez mais, espaços para a participação popular, implantados em diversas áre-as, como: saúde, educação, meio ambiente, seguran-ça pública, ou seja, diversificando-se em áreas onde havia uma grande preocupação e demanda por solu-ções da sociedade como um todo.

Sendo assim, no país e na esteira do processo apontado acima e com o aumento da sensação da insegurança na sociedade brasileira frente ao au-mento da criminalidade e da violência, surgiu a ne-cessidade de mudanças nas políticas de segurança pública. Desta forma, o governo federal, a partir do Pronasci, implementou medidas como a criação do GGI-M; e o governo do Estado do Rio de Janeiro, a

partir do plano estadual para segurança pública, implementou ações nesta área, como a reforma da polícia judiciária e a criação dos Conselhos Comu-nitários de Segurança Pública.

Os Conselhos Comunitários de Segurança Pú-blica (CCSP) foram criados no Estado do Rio de Janeiro, em 1999, como parte de um processo de reformulação das polícias estaduais. O objetivo era reformular o atual modelo de gestão das organiza-ções envolvidas com a questão da segurança públi-ca, com foco em duas frentes de atuação, conforme cita Corrêa (2010): “I) integração das ações das polícias (Civil e Militar) e destas com a sociedade civil; II) construção conjunta de políticas públicas para a área da Segurança Pública”.

Teixeira (2006), em sua exposição sobre a im-plementação dos Conselhos de Segurança Pública e sobre qual demanda da sociedade estes viriam a atender, afirma que:

Essa ação estava inserida na implantação de uma política pública de segurança, que se fundamen-tou num entendimento mais amplo do conceito de ordem, tornando possível a existência de ou-tros tipos de mediação para o gerenciamento de seus diversos conflitos e a redução da criminali-dade (TEIXEIRA, 2006, p. 205).

Identificou-se que existem obstáculos para a ins-tauração de um modelo como o de governança demo-crática, no Brasil. Pode-se destacar, por exemplo, o alto grau de desigualdades sociais que implicam de-sigualdades de poder, a fragilidade dos mecanismos que garantem os direitos de cidadania e um oscilante padrão de cultura cívica que comprometem a forma-ção de canais de participação da sociedade. Isolada-mente, esses obstáculos não impedem a mudança, mas conjugados eles diminuem ou freiam seu ritmo.

Nesse sentido, uma reflexão sobre o CCSP e GGI-M se transforma num lócus privilegiado para tentar compreender as representações políticas, as práticas

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REFERÊNCIAS

ARENDT, H. Crises da República. Perspectiva, São Paulo, 1973.

BECKER, H. S. De que lado estamos? In: Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: ZAHAR Ed, 1976.

BRASIL. Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 24 out. 2007 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11530.htm>Acesso em:25 out 2010.

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CHAUÍ, M. De alianças, atrasos e intelectuais. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 24 abr. 1994, p. 8-9.

CORRÊA, R. M. Conselhos Comunitários de Segurança: Dilemas e desafios para o exercício da cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Cadernos de Segurança Pública, ano 2, nº 1, ago. 2010

DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rocco, Rio de Janeiro, 1997.

EILBAUM, L. La policía alservicio de lacomunidad: tradición policial y vientos de cambio.2006. Trabalho apresentado na Universidade Federal Fluminense. Rio de janeiro, 2006.

FUKS, M.; PERISSINOTTO, R. Recursos, decisão e poder: Conselhos gestores de políticas públicas de Curitiba. Revista Brasileira Ciências Sociais, v. 21, nº 60. São Paulo, 2006.

GOHN, M. G. O Papel dos conselhos gestores na gestão urbana, In: RIBEIRO, Ana Clara Torres. Repensando a experiência urbana na América Latina: questões, conceitos e valores. CLACSO. Ed. Buenos Aires, 2000.

KANT DE LIMA, R. A polícia da cidade do Rio de janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS JUNIOR, O. A. Democracia e segregação urbana: reflexões sobre a relação entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. EURE, vol.29, nº 88. Santiago, 2003, p.79-95.

SANTOS, W. G. Poliarquia em 3D. Dados – Revista de Ciências Sociais, 41, 2,1998.

TEIXEIRA, P. A. S. Os conselhos comunitários de segurança no Rio de Janeiro. Comum. Faculdades Integradas Hélio Alonso, v.11, nº26, jan./jun. 2006.

policiais e o alargamento do processo democrático no Brasil; e a compreensão dos problemas dos espa-ços urbanos da cidade do Rio de Janeiro, a criminali-dade violenta e a resolução institucional de conflitos no espaço público, colaborando, dessa forma, para o aprofundamento das reflexões nos campos do saber antropológico e da sociologia empreendidas por dis-tintos autores destacados neste trabalho.

Roberta de Mello Corrêa

Doutoranda em Antropologia da Universidade Federal

Fluminense, bolsista Capes, e pesquisadora do Instituto

Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos Comparados em

Administração Institucional de Confl itos (InEAC-UFF) e do

Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Nufep-UFF).

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COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E COESÃO SOCIAL

Comunicação e violência!? Conexões e desafios

Gislene Moreira

COMEÇO DE CONVERSA

Para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, o Go-verno Federal1 anunciou câmeras e redes virtuais de monitoramento como o principal investimento na segurança do evento. Mas, desde quando as tecnolo-gias da informação tornaram-se uma arma poderosa no combate ao crime? Se você acha que a relação en-tre mídia e violência é a inovação do milênio, vai se surpreender.

Este texto traz um panorama das interfaces entre comunicação e conflito, apostando que compreen-der um pouco da trajetória dessa relação, tão anti-ga quanto a história da humanidade, pode ajudar a redefinir os rumos desse jogo que, no século XXI, também conhecido como Idade Mídia, assumiu uma relevância ainda maior. A Meme War – ou guerra de imagens, que todos os dias se trava na internet – é só um dos apelos cotidianos para entender os limites e possibilidades dos enlaces entre novos meios e ce-nários de confronto, na sociedade contemporânea. No centro desse tiroteio, está a construção de uma cultura de paz que parece só encontrar guarida na comunicação comunitária.

GRITOS E SUSSURROS

Pesquisadores apontam que a ligação entre comuni-cação e conflito é tão antiga quanto a história da hu-manidade. Para o espanhol Martín-Serrano (2004)2, ela remete à saída das cavernas. Quando o homem gerou a linguagem, superou o instinto animal de do-minação pela força e apostou na “palavra” como es-tratégia de mediação dos conflitos. Desde então, a humanidade aprendeu que dominar a comunicação é uma questão de sobrevivência.

Não é por acaso que os telégrafos, o rádio e a inter-net, por exemplo, foram inventados (ou aprimorados) em contextos de guerra e as principais tecnologias da informação sempre foram encaradas como assunto de segurança nacional.

As primeiras teorias da comunicação também tentaram dar conta dessa relação. A escola norte--americana criou, nos anos 30, o conceito de Magic Bullet, ou Bala Mágica, para se referir a esse poder de disseminação dos meios de comunicação em al-cançar uma grande quantidade de pessoas. Para essa corrente gerada entre duas guerras mundiais, a mídia foi a grande arma que garantiu a vitória dos Aliados.

1. Dados da Secretaria Especial de Segurança para grandes eventos, segundo nota publicada. Disponível em:<http://www2.planalto.gov.br/noticias/2015/05/governo-divide-com-iniciativa-privada-estado-e-cidade-do-rio-os-investimentos-para-os-jogos-olimpicos>. Acesso em: 10 nov. 2015.2. No livro A produção Social da Comunicação (2004), o autor aponta como os usos sociais da comunicação foram fundamentais em permitir o desenvolvimento das sociedades humanas. Mais recentemente, em Violências Sociais (2015), o autor catalão discute como as mudanças nas estruturas familiares geraram ruídos comunicativos transmutados em situações de violência juvenil.

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Nesse modelo de comunicação vertical, conhecida como Teoria Hipodérmica, a comunicação ocorre quando um emissor envia uma mensagem para um receptor. E num cenário de conflito quem consegue dominar o meio capaz de emitir sua mensagem para o maior número de pessoas, seguramente, vai fazer prevalecer a sua versão dos fatos e vencer a guerra.

Essa aposta influenciou várias políticas de segu-rança, como quando Getúlio Vargas investiu pesado na criação do programa de rádio A Voz do Brasil, para unir o país. Outro bom exemplo foi o incentivo dos Estados Unidos para que os vizinhos latino-americanos consu-missem os filmes de Hollywood e da Disney no contex-to da Guerra Fria e, assim, prevalecesse a hegemonia norte-americana sobre o comunismo russo. Ou seria mera coincidência a bandeira dos Estudos Unidos apa-recer sempre vitoriosa nas batalhas cinematográficas?

A questão é que nem sempre os receptores con-cordam ou entendem a mensagem do mesmo modo que o emissor gostaria. E, talvez, seja por isso que a mesma bandeira norte-americana é queimada em re-voltas no Oriente Médio, como símbolo da rebeldia de receptores não tão passivos.

Para o pernambucano Paulo Freire (1989; 2006), essa confusão não é apenas um ruído. Ela apresenta as deficiências desse sistema de comunicação verti-cal. Para entender melhor o problema, pode-se ima-ginar o sistema comunicativo em uma escola tradi-cional: o diretor envia ordens a um coordenador, que as distribui aos professores, que as retransmitem aos alunos. A resposta dos estudantes pode ser a aceita-ção da ordem, mas também pode ser a inconformida-de disfarçada de silêncio, de desinteresse pelas aulas, ou manifestada nas portas do banheiro, ou, ainda, nos gritos insubordinados.

Freire aponta que no modelo anterior, também co-nhecido como funcionalista, não há comunicação, por-que a relação vertical é baseada apenas em transmitir

comunicados. Para ele, essa imposição comunicativa, historicamente, gerou uma sociedade de mudos, que foi obrigada a silenciar desde a época das ordens da Coroa Portuguesa. Os códigos que prevaleceram na transmissão das elites para a maioria da população foram os da violência, os quais se reproduzem ainda hoje como heranças de uma sociedade autoritária.

As ruas do Centro Histórico de Salvador, por exemplo, guardam a memória desse aprendizado. Os que ousaram expressar sua inconformidade su-biram, angustiados, a Ladeira dos Aflitos. Depois, puderam mostrar seu arrependimento público na Praça da Piedade, onde os poderosos exibiram, pu-blicamente, sua generosidade (ou não). Por fim, os condenados foram levados à Rua da Forca, para o cumprimento da pena, e na Rua do Cabeça foram exibidos o que restou dos corpos mutilados.

Mas, quem acha que este assunto está ultrapassa-do está convidado a observar as páginas virtuais de jovens de comunidades periféricas. Em geral, a mo-çada usa expressões como “bombar”, “brocar”, “estar toda metralhada”, para exibir os códigos da violência cotidiana incorporados ao seu vocabulário mais bá-sico. Esse modo de falar (e de agir) revela como eles vivenciam, interpretam e reelaboram os altos índices de criminalidade de suas comunidades.

As manchetes dos jornais são outra vitrine de como a sociedade percebe e gerencia o conflito. Al-guns autores usam o termo midiatização da violência3 para se referir à relevância que a mídia tem assumido ao pautar a criminalidade como um tema constante. Já observou quantos noticiários têm a violência como prioridade jornalística?

O problema é que a cobertura dos meios não é tão imparcial como ela pretende ser. Estudos sobre os pro-gramas policialescos (aqueles que têm a criminalida-de como tema principal) indicam que estes tendem a explorar, reproduzir e reforçar as marcas da violência.

3. O autor Marcondes Filho (1989) entende que a notícia é uma informação transformada em mercadoria. E para garantir a venda desse “produto”, a mídia usa cada vez mais recursos sensacionalistas e emocionais na sua apresentação, priorizando a lógica mercadológica em detrimento da relevância e a qualidade da informação.

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Por exemplo, quando crianças e adolescentes são autores de um ato infracional grave, somos bombar-deados com manchetes sensacionalistas que fazem do ocorrido um grande espetáculo. No entanto, pou-cas reportagens refletem que, na grande maioria dos crimes envolvendo meninos e meninas, os jovens são as vítimas e não os culpados. O resultado é a sensação distorcida dos fatos, gerando insegurança e pânico, quando os papéis da mídia deveriam ser levar infor-mação qualificada e ajudar a sociedade a tomar de-cisões mais conscientes. A espetacularização da vio-lência é o retrato mais ilustrativo e perverso de uma guerra que disputa audiências e verbas publicitárias, na qual perdemos todos.

Dados como esse evidenciam que a mídia, apesar da pretensa imparcialidade, está vinculada com o ponto de vista e os interesses dos seus proprietários. E esses donos são muito poucos. Segundo o Intervo-zes (2009)4, 11 famílias controlam mais de 90% do mercado nacional dos meios de comunicação tradi-cionais. São eles os que decidem, diariamente, que informações e fatos são “verdades jornalísticas”.

Para o filósofo alemão Jugen Habermas (1988; 2002), essa verdade é um ponto de vista compartilha-

do, definido quando nos comunicamos. Em uma so-ciedade cada vez mais midiática, a verdade escolhida pelos donos dos meios de comunicação acaba sendo a expressão de muito poucas vozes, tornando ainda mais difícil o desafio de construir uma sociedade mais plural. Por isso, a aposta de Habermas e da sua Teoria do “Agir Comunicativo” é que as democracias saem for-talecidas onde há maior diversidade de meios e vozes.

NOVOS TEMPOS, NOVAS VOZES

A rádio Guajira, situada na fronteira entre Venezuela e Colômbia, conhece, na prática, os tensos caminhos do diálogo. Os exércitos rivais têm bases militares a poucos quilômetros da emissora, que se situa na zona conhecida como “terra de ninguém”. Todos os dias, a rádio recebe a visita de refugiados atacados por grupos paramilitares ou do narcotráfico, e os mi-crofones estão sempre abertos para denunciar as in-justiças. Mas, porque ninguém ataca a rádio? Porque a música chega ao coração de todos. Além disso, os programas de maior audiência são feitos pelas crian-ças indígenas da comunidade. São elas que expres-sam os muitos pontos de vista de uma zona em con-flito permanente. E, para garantir a frágil sensação

4. Para saber mais, assista ao documentário do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social Levante a Sua Voz. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=KgCX2ONf6BU>. Acesso em: 15 mar. 2015.

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de alívio, os tensos acordos de paz são sempre assi-nados nessa rádio-escola.

Experiências como essa são tão importantes que as Comissões de Direitos Humanos da ONU e da OEA, assim como a Unesco, defendem que a liberdade de expressão – entendida como a capacidade de todos os cidadãos de manifestarem a pluralidade de pen-samentos e crenças, em múltiplos meios – é o grande direito a ser garantido pelas democracias, no século XXI. Em uma sociedade pautada pelos meios de co-municação, é fundamental o incentivo à criação de uma mídia mais plural, porque ela permite exibir va-riados pontos de vista e a acessar outros direitos.

O grupo de jovens jornalistas independentes Indy-media, da Bolívia, usa as redes sociais para garantir que o ex-presidente Sánchez de Lozada seja julgado e condenado por crimes contra a humanidade. São eles os principais responsáveis por levar a público as atro-cidades e assassinatos cometidos por ordem do ex--mandatário. Eles transmitem todos os depoimentos judiciais ao vivo. Sem esse ativismo midiático, muitos depoimentos e testemunhas seriam perdidos e não te-riam repercussão. Assim, eles garantem o acesso à in-formação, além da defesa do direito à vida e à justiça.

No Brasil, ONGs têm orientado sobre como fazer vídeos de celular durante abordagens policiais. A ideia é usar as novas ferramentas de proteção para evitar abusos, em uma relação que, historicamente, é marcada por situações de conflito assimétrico. Mas, antes de considerar que esse tipo de técnica alimen-ta uma triste rivalidade entre os efetivos policiais e a população, você deve saber que essas medidas têm sido incentivadas pelas próprias corporações, cada vez mais preocupadas com sua imagem perante a so-ciedade. Outra aposta têm sido os Conselhos e Fóruns de Segurança Pública, que reúnem gestores, agentes de segurança e líderes comunitários.

PARA CONTINUAR A CONVERSA

Qual é a grande inovação desse cenário? Não, não é a tecnologia. A grande reviravolta está na mudança de

perspectiva da segurança como repressão e na busca por uma relação mais harmônica com as comunida-des, baseada na construção coletiva de decisões. E o que isso tem a ver com comunicação?

Essas experiências inovadoras estão pautadas em um modelo de comunicação horizontal baseado no diálogo, no poder compartilhado, construído com es-cuta e participação dos atores locais. Essa perspecti-va vem sendo experimentada por corporações, orga-nizações da sociedade civil e universidades de várias partes do mundo. Elas estão provando que mais diá-logo gera mais canais de informação, menos ruídos e mais vínculos de confiança. Esse projeto é marcado pelo uso de uma linguagem contextualizada capaz de envolver todos na criação e manutenção de uma cul-tura de paz.

Nos cursos de Convivência e Segurança Cidadã, com a presença de várias representações dos peritos em violência, pôde-se chegar à conclusão de que a me-lhor palavra é sempre aquela que surge da construção coletiva, e não das ordens do comandante. Com base nesse modelo, é possível afirmar que “Comunicar-se é dialogar, escutar, pensar, sentir, falar, organizar e trans-mitir ideias. Como a própria palavra sugere, comuni-cação é uma ação comum, é partilhar” (PNUD, 2013, p. 10). Esse conceito é fruto de amplos debates e ex-periências que garantem que, mesmo em tempos de convergência midiática, quando as plataformas tecno-lógicas parecem assumir cada vez mais relevância, co-municação boa é a interação baseada no esforço cole-tivo e cotidiano do diálogo e do respeito às diferenças.

Gislene Moreira

É doutora em Ciências Sociais e Políticas pela Flacso-

México e há quinze anos atua na área da comunicação

popular. Como pesquisadora, investiga temas da

interface entre comunicação, juventude e movimentos

sociais, com ênfase em mídias comunitárias.

Atualmente, coordena o curso de Jornalismo em

Multimeios da Chapada Diamantina, na Uneb-Seabra.

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REFERÊNCIAS

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Comunicação e Mobilização Social: outros olhares e possibilidades no enfrentamento à violência

Bruna Pegna Hercog e

Marialina Côgo Antolini

O que comunicação e mobilização social têm a ver com segurança? Essa pergunta, feita em diversas turmas dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã, invariavelmente, recebia como respostas expressões de interrogação dos participantes. À medida que a sessão avançava, no entanto, os deba-tes cresciam, os argumentos se fortaleciam e fica-va mais claro o entendimento da importância dos processos comunicacionais na construção de terri-tórios seguros.

Durante os cursos, foram trabalhadas a comu-nicação e a mobilização social, sob a perspectiva da criação de relações mais horizontais, a partir da socialização de informações públicas sobre cultu-ra de paz e segurança cidadã e da mobilização de diferentes atores sociais para a prevenção e en-frentamento à violência. Tendo em vista que: “[...] o que a verdadeira comunicação põe em jogo não é a enganosa demagogia com a qual se conservam as pessoas em sua ignorância ou provincianismo, mas a palavra que mobiliza as diferentes formas e capacidades de apropriar-se do mundo e de dar-lhe sentido (BARBERO, 2012, p. 69-70)”. E, entendendo que a comunicação e a mobilização social são fun-damentais no processo de conquista da cidadania, o PNUD inseriu a seção Comunicação e Mobilização Social na programação dos cursos de Convivência e Segurança Cidadã.

COMUNICAÇÃO, MOBILIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO: PEÇAS-CHAVE DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

“Mobilizar é despertar o olhar de possibilidade no outro”. Esta frase foi dita por um jovem de dezoito anos, negro, morador de um bairro pobre da Região Metropolitana de Vitória (ES) e integrante do movi-mento hip hop local, enquanto participava de uma ação coordenada pelo PNUD. Esse jovem tem nome, endereço, sonhos e história. Não entrou para as es-tatísticas que fazem do Brasil o quinto país que mais assassina seus jovens, em todo o mundo, e que tem uma vitimização da juventude negra que só cresce. Para cada jovem branco assassinado no país, mor-rem 2,7 jovens negros1. Ele também não está entre os adolescentes que cometem crimes (0,5%) consi-derados graves no Brasil2.

Ao contrário, está entre uma grande parcela de jovens moradores de bairros periféricos que busca caminhos para se desatar da espiral da violência que perpassa suas vidas, desde o nascimento. E, nessa busca, os processos de comunicação e mobilização social são importantes aliados. Despertar o olhar de possibilidade pode, portanto, ser o primeiro passo para sensibilizar diferentes atores sociais – opera-dores de segurança pública (guardas municipais, policiais militares e civis), lideranças comunitárias, professores, técnicos e gestores públicos das mais diversas áreas (saúde, cultura, educação, assistência social etc.) – para a importância da corresponsabili-zação nas ações e políticas com foco na Convivência

1. MAPA da Violência Mapa da Violência 2014: Homicídios e Juventude no Brasil. Disponível em: <www.mapadaviolencia.org.br>. Acesso em: 13 nov. 2015. 2. De acordo com estudos recentes, a exemplo do realizado pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), apenas 0,5% dos adolescentes envolve-se em crimes considerados graves, no Brasil.

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e Segurança Cidadã, em territórios marcados por uma série de violências e exclusões sociais, econô-micas, estruturais, afetivas e simbólicas.

Isso ocorre porque se parte da premissa de que a mobilização de ideias, sentidos, diferenças, pes-soas, lugares, interesses e processos é capaz de es-timular mudanças nas estratégias de prevenção e enfrentamento à violência e à criminalidade. E essa mobilização só se torna efetiva por meio de uma co-municação clara, informativa e que estimule o diá-logo. É, portanto, um ato de comunicação que não se confunde com propaganda ou divulgação, mas exige ações de comunicação no seu sentido amplo, como processo de compartilhamento de discurso, visões e informações (TORO; WERNECK; 2004).

Quando a comunicação e a mobilização ocorrem de forma efetiva, elas geram vínculos entre os inte-grantes da ação, fortalecem e empoderam os partici-pantes e ampliam vozes, muitas vezes, não escutadas, aumentando, assim, a capacidade desses atores de exercerem sua cidadania. Em ações de Convivência e Segurança Cidadã, esse processo está relacionado

com a possibilidade de os diferentes atores sociais envolvidos nas iniciativas participarem, efetivamen-te, das ações, tornando-se corresponsáveis pela bus-ca de soluções para o enfrentamento às violências e promoção de uma cultura de paz no território. Os processos de comunicação e mobilização social, des-sa forma, potencializam a Governança Democrática, conceito intrinsecamente ligado a todas as ações pla-nejadas e desenvolvidas no âmbito da Convivência e Segurança Cidadã.

A mobilização é, assim, um processo comunica-tivo de interlocução e de interação entre os sujeitos que agem, coletivamente, em prol da segurança pú-blica (HENRIQUES, 2010). Nesse sentido, a mobiliza-ção social pode ser definida como

[...] uma reunião de sujeitos que definem objeti-vos e compartilham sentimentos, conhecimentos e responsabilidades para a transformação de uma dada realidade, movidos por um acordo em relação à determinada causa de interesse público (BRAGA; HENRIQUES; MAFRA, 2004, p.36).

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É preciso mobilização para garantir uma comu-nicação eficaz e é necessária a comunicação, para que a mobilização ocorra de forma estratégica. Os processos de comunicação e mobilização social, por-tanto, são indissociáveis e complementares.

A construção conjunta de projetos de Convivên-cia e Segurança Cidadã é um exercício de cidadania que contribui para a garantia dos Direitos Funda-mentais à Informação e à Liberdade de Expressão e, de forma mais abrangente, para a garantia do Direi-to Humano à Comunicação. Um dos pilares centrais para a construção de uma sociedade democrática, o Direito Humano à Comunicação está diretamente relacionado à efetiva participação social e contribui, também, para que outros direitos (saúde, educação, moradia etc.) sejam assegurados. Nesse contexto, no âmbito da ação local, investir na criação e/ou fortalecimento de iniciativas de comunicação comu-nitária e em ações voltadas para a qualificação da cobertura da imprensa desponta como um caminho possível que contribuirá para que o direito a se co-municar seja, de fato, exercido por todos os cidadãos (PNUD, 2013).

Assim, as diretrizes de comunicação e mobiliza-ção social trabalhadas pelo PNUD preveem práticas que buscam potencializar a escuta das diferentes vozes que se expressam nas comunidades, incenti-var a criação de redes de comunicação e instâncias de participação social, bem como fortalecer as po-tencialidades locais; e acionar a imprensa, com o in-tuito de qualificar a cobertura sobre temas relativos à violência, incentivando os meios de comunicação a promoverem uma cultura de paz e de convivência cidadã (PNUD, 2013).

INSTÂNCIAS, AÇÕES E ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

É possível “tomar parte” nas políticas de segurança? Acreditamos que sim, à medida que são fortalecidos os processos comunicacionais e meios locais de co-municação, incentivando a participação qualificada

na tomada de decisões. Nessa busca, a criação de conselhos, comitês ou comissões de comunicação locais é uma alternativa. De acordo com Cicilia Pe-ruzzo (2004), em grandes cidades existem espaços para a criação de instâncias ainda mais focadas nas comunidades, os Comitês Locais de Comunicação. “Estes seriam autônomos, ligados às organizações populares, e constituídos em localidades específicas de acordo com as configurações de cada região” (PE-RUZZO, 2004, p.39).

É o caso da Comissão de Comunicação e Mobili-zação Social, instância criada no âmbito das ações do PNUD, em três municípios brasileiros, seleciona-dos por seu potencial local de mobilização – o que permite maior sustentabilidade das ações – e pelos seus elevados índices de homicídios contra jovens de 15 a 29 anos. Em uma dessas comissões, uma ação de destaque foi a realização de Rodas de Di-álogo sobre a temática da Convivência e Segurança Cidadã. Pensadas por lideranças jovens, as rodas funcionaram como um importante instrumento de sensibilização dos meninos e meninas para parti-ciparem das ações e para difundirem os conhe-cimentos acerca da abordagem da Convivência e Segurança Cidadã nos seus espaços de circulação. As rodas foram o primeiro passo para os jovens se aproximarem do Programa e de sua instância participativa de gestão, à medida que funcionaram como um canal de compartilhamento de informa-ções. Por intermédio delas, os jovens locais aces-saram informações sobre políticas de segurança pública, estratégias e abordagens de prevenção à violência, bem como informações sobre as possi-bilidades de participação efetiva nos processos de implementação de uma política de segurança, em sua comunidade.

O debate desses temas em espaços formativos, como os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, é outra estratégia de mobilização de diferentes ato-res. Policiais militares e guardas municipais revela-ram, ao longo do curso, por exemplo, a importância

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de dialogar e desconstruir, em seu imaginário, a “cultura da violência”, recorrentemente reforçada em matérias sensacionalistas que desrespeitam os direitos individuais e coletivos dos cidadãos, por uma veiculação da “cultura da guerra”, do sangue, da vingança. Por meio dos conteúdos trazidos pelas facilitadoras e, principalmente, dos debates surgi-dos durante a atividade, eles expuseram a impor-tância de refletir, criticamente, sobre as informa-ções que consomem e o quanto elas interferem em suas práticas profissionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do trabalho nos cursos de Convivência e Se-gurança Cidadã e de outras ações do PNUD, em terri-tórios marcados por altos índices de criminalidade, foi possível compreender e ver, na prática, que a co-municação e a mobilização social, quando trabalha-das com foco no fortalecimento das potencialidades locais, transformam-se em um meio de conquista da cidadania. A partir do incentivo à participação so-

cial nas diversas instâncias – formais e informais – gera-se o empoderamento de pessoas e tem início o processo de corresponsabilização pela cultura de paz, no território.

Nessa busca, é preciso incentivar as relações horizontais, o diálogo, e ampliar as vozes que, fre-quentemente, não são escutadas; voz como a da costureira, do dono da padaria, que vivem no seu cotidiano e conhecem melhor do que ninguém os problemas da região; como a do policial que faz a ronda no território e sabe as ruas escuras, onde, frequentemente, casos de violência são registra-dos; como a da enfermeira do posto de saúde, que conversa, diariamente, com dezenas de pessoas e sabe dos perigos de uma avenida mal sinalizada que corta a região; como da professora da creche, que escuta das crianças casos de violência familiar; ou voz como a do jovem negro do movimento hip hop de Vitória, que entende que “despertar o olhar de possibilidade no outro” significa contribuir para que ele se torne um cidadão, de fato.

Bruna Pegna Hercog

Nasceu em Salvador, Bahia. É jornalista e mestra em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua como

consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Centro Regional para América Latina e Caribe

em projetos de Convivência e Segurança Cidadã. Em 2014, coordenou os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, realizados

pelo PNUD em parceria com a Senasp-MJ. Já trabalhou em algumas organizações não governamentais baianas, como a Cipó –

Comunicação Interativa e a Associação Vida Brasil. Possui experiência, também, em jornalismo impresso e assessoria de imprensa,

nas áreas social e cultural e produção editorial. No Jornal A Tarde, trabalhou como repórter em diferentes editorias. A tua,

principalmente, nos seguintes temas: comunicação comunitária, mobilização social e educomunicação.

Marialina Côgo Antolini

Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e jornalista graduada pela mesma

instituição. Pesquisadora do Observatório da Mídia: Direitos Humanos, Políticas, Sistemas e Transparência. Integra o quadro de

consultores associados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina e Caribe,

prestando consultoria nas áreas de mobilização e comunicação em Convivência e Segurança Cidadã. Já trabalhou como repórter

de televisão e de jornalismo impresso, bem como desenvolvendo projetos de comunicação, audiovisual e meio ambiente, em

instituições não governamentais.

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REFERÊNCIAS

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Educomunicação, Convivência Cidadã e Segurança Pública

Ismar de Oliveira Soares

A Educomunicação vem sendo apresentada aos pro-fissionais da segurança pública desde que teve início o curso sobre Convivência e Segurança Cidadã, ofe-recido, no Brasil, a partir de uma parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen-to (PNUD) e o Ministério da Justiça (MJ).

O paradigma educomunicativo foi introduzido, inicialmente, no material de apoio ao curso, denomi-nado Guia de Comunicação e Mobilização Social em Convivência e Segurança Cidadã (PNUD 2013), como um possível caminho para se obter a melhoria das políticas públicas locais de segurança; especialmen-te, no que diz respeito ao acesso à Justiça, à resolu-ção pacífica de conflitos, à prevenção social ao crime e à intervenção em lugares de alto risco.

O Núcleo de Comunicação e Educação da Universi-dade de São Paulo (NCE-USP) aprofundou o debate, ao oferecer palestras sobre o tema1 nos cursos desenvol-vidos em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belém, em agosto de 2014. Nas palestras do NCE-USP, assim como na assessoria oferecida pela Cipó – Comunicação Inte-rativa, em Salvador, os participantes contaram com a intervenção da comunidade, por meio da presença e da fala de jovens vinculados a práticas educomunicativas.

Neste artigo, serão destacadas algumas especi-ficações do ideário da Educomunicação, relatando experiências de projetos, no Brasil e no exterior, de forma a permitir uma visão mais efetiva das possibi-lidades de se trabalhar com o conceito nos projetos voltados à segurança cidadã.

PARTICIPAÇÃO, MOBILIZAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Desde seu início, o curso sobre Convivência e Se-gurança Cidadã foi concebido como o primeiro mo-mento de integração entre os atores envolvidos nas ações do PNUD acerca da temática da segurança. A premissa adotada é a de que a participação da co-munidade na própria formação dos profissionais da área representa uma condição indispensável para romper com a ideia de que a segurança advém so-mente da ação da polícia. Nesse sentido, a própria comunidade é chamada a fazer parte dessa mudan-ça conceitual.

Ao prever a presença efetiva da comunidade como condição de êxito para sua proposta de inter-venção social na área da segurança, o curso endos-sa a participação de sujeitos externos à corporação policial como decorrência legítima e necessária de ações de mobilização, por meio de uma prática co-municativa adequada a esse propósito.

Nesse contexto, explica a publicação: “Quando falamos em comunicação, estamos falando, neces-sariamente, de troca, [pois] comunicar-se é dialogar, escutar, pensar, sentir, falar, organizar e transmitir ideias” (PNUD, 2013, p. 10). Ainda segundo o Guia, quando nos comunicamos na perspectiva acima des-crita, estamos, simultaneamente, mobilizando pes-soas, ideias, sentidos, diferenças, lugares, interesses e processos:

1. O Núcleo de Comunicação e Educação contou, para essa atividade, com a colaboração de dois de seus membros: os professores doutores Ismar de Oliveira Soares e Claudemir Viana, coordenador do NCE-USP e professor da Licenciatura em Educomunicação da ECA-USP.

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As políticas e práticas de Comunicação e Mobi-lização Social desempenham papel fundamental no processo de fortalecimento da identidade social, à medida que contribuem para estimular atores sociais a exercerem o controle democrá-tico e o desempenho de novos papéis nas comu-nidades onde vivem e atuam. Principalmente, quando aplicadas em projetos de Convivência e Segurança Cidadã, que pressupõem o fortaleci-mento de pessoas, relações, instituições e gover-nos para o desenvolvimento de um ambiente se-guro que incentive a convivência dos diferentes atores sociais e a resolução pacífica dos conflitos (PNUD, 2013, idem).

UMA COMUNICAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO

Os conceitos de Participação e Mobilização já vi-nham sendo integrados, desde os meados da década de 1990, na definição do que a ONU passava a deno-minar como Comunicação para o Desenvolvimento: “Uma comunicação multidirecional que possibilite o diálogo e permita às comunidades manifestar-se, expressar as suas aspirações e preocupações e par-ticipar das decisões relacionadas com o seu desen-volvimento” (PNUD, 2013, p. 12).

Na concepção das Nações Unidas, a Comunicação para o Desenvolvimento encoraja a mobilização so-cial por meio da promoção do diálogo entre a comu-nidade e diversos atores responsáveis pelas toma-das de decisão, nos diferentes níveis: local, regional e nacional, buscando, dessa forma, a execução de po-líticas e programas que tragam benefícios e melhore a qualidade de vida de todos.

Comunicação para o Desenvolvimento significa, em consequência: primeiro, uma comunicação para a mudança de comportamento (individual e coleti-vo); segundo, uma comunicação para a mudança so-cial (indivíduos encontram soluções e são capazes de quebrar paradigmas e promover mudanças sociais e o diálogo entre o público, o privado e a comunidade

em geral); terceiro, uma mobilização por mudanças de políticas, regras e normas (Advocacy); e quarto, a criação do ambiente de comunicação com inclusão digital, acesso à informação, transparência e res-ponsabilidade social dos indivíduos e instituições.

A Comunicação para o Desenvolvimento necessi-ta, contudo, de uma prática educativa que a acompa-nhe, permitindo sua disseminação e legitimação pe-las lideranças do setor de segurança pública e pelos membros das comunidades envolvidas. Para tanto, a proposta do PNUD relativa à formação para a se-gurança cidadã convoca o pensamento educomuni-cativo. Na verdade, termos como Educomunicação, Comunicação para o Desenvolvimento Comunitário e Mobilização Social são indissociáveis e comple-mentares: “É preciso mobilização para se garantir uma comunicação efetiva e é necessária a comuni-cação para que a tal mobilização aconteça de forma estratégica e eficaz” (PNUD, 2013, p. 10).

EDUCOMUNICAÇÃO

Educomunicação é o título que se dá a uma prática comunicativa mobilizadora em condições de articu-lar lideranças comunitárias, organizações não go-vernamentais e grupos populares. O conceito foi sis-tematizado pelo Núcleo de Comunicação e Educação da USP (SOARES, 1999) ao estudar como se deu, em toda a América Latina, a partir da segunda metade do século XX, a relação do exercício universal do direito à expressão com o processo de democratização polí-tica dos países, na luta pela melhoria das condições de vida das populações. O Guia de Comunicação e Mo-bilização Social em Convivência e Segurança Cidadã apresenta o conceito como um processo de comuni-cação que adota – como método de trabalho – proce-dimentos democráticos na produção e gestão da in-formação. A Educomunicação pode ser aplicada tanto em espaços de ensino formal (escolas) quanto em espaços não formais de educação (ONGs, movimen-tos sociais etc.). É apontada como um caminho para envolver crianças, adolescentes, jovens e adultos,

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estimulando-os a se posicionarem criticamente e a desenvolverem um olhar aprofundado para o contex-to social no qual estão inseridos. Desse modo, essa nova prática, ao contribuir para a democratização da comunicação, colabora, com eficácia, para a preven-ção à violência, por meio da reconfiguração dos espa-ços simbólicos.

COMBATEMOS TODO TIPO DE VIOLÊNCIA!

A partir do ano 2000, a prática educomunicativa espalhou-se muito rapidamente, alcançando im-portantes segmentos sociais, como redes públicas de educação (ensino formal) e âmbitos de ação edu-cativa, como o da educomunicação socioambien-tal (educação não formal). Como resultado desse esforço, quando alguém pergunta para alguma criança, adolescente ou mesmo jovem, em qualquer parte do Brasil, por quais motivos continua parti-cipando de projetos educomunicativos, a resposta vem rápida:

– Aqui, nós aprendemos a falar e a expressar o que sentimos!– Eu era tímido. Aprendi a me relacionar, a me co-municar!– Temos nossos direitos e, nesse projeto, aprende-mos como fazer para defendê-los!– Somos respeitados e aprendemos a respeitar os outros, nossos professores, nossos colegas!– Falamos dos direitos das pessoas diferentes de nós, falamos sobre como preservar o meio ambiente!– Combatemos todo tipo de violência!– A gente aprende como os meios de comunicação funcionam. Ficamos atentos quando querem nos manipular!

São expressões encontradas com muita frequên-cia em avaliações de programas desenvolvidos por organizações não governamentais, assim como em projetos implementados em escolas destinados a fa-cilitar a participação das novas gerações em ações comunicativas, em que lhes é facultado o exercício do protagonismo na defesa de causas de interesse comum. É o caso da vivência dos jovens da ONG Vi-ração2. A Educomunicação se configura, para essas instituições, como um paradigma, uma orientação de natureza política e ética. Em algumas delas, são os adolescentes e jovens que definem as regras de convivência e os procedimentos, de forma a garantir uma coerência entre a teoria e a prática. A carta de princípios da ONG Viração, por exemplo, é discutida e revisada, periodicamente, numa parceria entre os jovens e os coordenadores da organização.

Em 12 anos, essa organização conseguiu cons-truir uma metodologia própria de trabalho com eficiência comprovada em seus processos, projetos e produtos de mobilização social juvenil. A base des-sa visão é o entendimento de que o adolescente e o jovem são sujeitos de direitos e que precisam ser considerados em suas condições peculiares como pessoas em desenvolvimento, com vulnerabilidades, potencialidades e obrigações específicas.

A organização leva em conta que a nova geração representa uma grande oportunidade de desenvol-vimento não apenas para si própria, mas, especial-mente, para sua família, comunidades, escolas, bem como para o próprio país. Além de trabalhar para o desenvolvimento integral dos adolescentes, a Viração também atua na implementação de uma comunicação integral e integradora, não entendida, circunstancial-mente, sob o ponto de vista tecnológico e instrumen-tal, mas, sobretudo, sob o ponto de vista humano3.

2. Sobre a ONG Viração Educomunicação, ver o site: www.viracao.org. 3. É o que pode ser constatado no “Guia da Educomunicação”, disponível em: <http://issuu.com/portfolio_viracao/docs/guia_educomunicacao>, um manual com a sistematização de ideias, métodos, definições e valores que orientam as atividades da Viração. Além do Guia, o site da entidade disponibiliza o “Mão na Roda”, manual de redação da Revista Viração e da Agência Jovem de Notícias, com dicas sobre como estruturar textos para revistas e sites, além de ensinar como estabelecer e organizar um conselho jovem (Virajovem), em qualquer cidade brasileira.

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A Viração articulou coletivos de jovens em cinco estados brasileiros para participar da ação promo-vida pelo PNUD. Durante os cursos de Convivência e Segurança Cidadã, jovens da Viração realizaram o que denominam “cobertura educomunicativa”, que significa a produção jornalística elaborada e divul-gada pelos jovens, a partir de seus pontos de vista4.

A EDUCOMUNICAÇÃO PARA UMA CULTURA DE PAZ

E foi justamente o potencial do conceito em natu-ralizar, envolvendo crianças, adolescentes e jovens, as práticas relativas à cidadania, que levou a Edu-comunicação a ser aceita como uma opção na esfera das políticas públicas de educação, no Brasil. O fato ocorreu com o projeto intitulado “Educomunicação pelas ondas do rádio” ou, simplesmente, Educom.rá-dio, implementado pelo NCE-USP, em 450 escolas do ensino fundamental, na rede municipal de educação da cidade de São Paulo, entre 2001 e 2004. Seu ob-jetivo: combater a violência nas escolas por meio de ações comunicativas voltadas à cultura da paz.

A opção por trabalhar com o rádio e não exa-tamente com uma tecnologia “mais avançada”, apontava para uma estratégia fundamental: o im-portante era que crianças, adolescentes e jovens – além dos adultos (gestores, professores e colabora-dores) – descobrissem, por meio dos exercícios que realizavam juntos e em igualdade de condições, a riqueza de uma comunicação franca, aberta e, es-sencialmente, dialógica. No caso, a linguagem ra-diofônica, produzida em equipe, com revezamento de funções entre os integrantes dos grupos, simbo-lizava o tipo de relações que se pretendia vivenciar como o mais adequado para superar possíveis con-flitos. Não era, na verdade, de meios de informação

que se estava falando, mas das formas como os membros das comunidades educativas poderiam estar se relacionando, num dado espaço, como um centro comunitário ou uma escola5. Importante: o que caracterizava a ação era o comportamento co-laborativo (de professores e alunos, trabalhando juntos, sempre!) e a gestão democrática de todo o processo de produção midiática (professores, alu-nos e membros da comunidade – não importando a idade e a posição hierárquica, na escola – revezan-do-se na liderança dos trabalhos).

Em 2015 – celebrando-se, na Câmara Municipal de São Paulo, os 14 anos do início da formação – um grupo de adolescentes participantes do projeto, já – em média – com seus 25-26 anos de idade, quando foi perguntado sobre o que o Educom.rádio representou para eles, referiram-se, unanimemente, aos exercí-cios de práticas cidadãs que os fizeram superar seus ímpetos de domínio de uns sobre os outros e a refletir sobre os possíveis usos das tecnologias da comunica-ção para finalidades coletivas e colaborativas.

EDUCOMUNICAÇÃO, PARA CUIDAR DAS PESSOAS E DO PLANETA

No âmbito da articulação do combate à violência, especialmente contra o meio ambiente, a Educo-municação já é reconhecida mesmo fora do Brasil. No momento, norteia a campanha europeia “Vamos Cuidar do Planeta”6, projeto iniciado no Brasil e que, desde 2011, passou a mobilizar centenas de escolas do Ensino Fundamental e Médio, em 16 países do Velho Continente. Nessa linha de atuação, é interes-sante recordar a presença de 30 jovens de 12 países acompanhando os debates da Conferência Mundial da ONU sobre as mudanças climáticas, ocorrida em Paris, em novembro de 2015, por intermédio de uma

4. As matérias e vídeos foram publicados no blog <http://cursosegurancacidadabrasil2014.blogspot.com.br/>. 5. Foram necessários sete semestres sequenciados e 1.008 encontros, de oito horas cada um, para que 11 mil pessoas vinculadas a todas as 450 escolas pudessem passar pelo Educom.rádio, em igualdade de condições! Para isso, 400 mediadores se revezaram para atender aos inscritos, todos municiados por uma mesma orientação, no sentido de garantir coerência ao processo de formação. 6. Disponível em: <http://careplanet-europe.org/index.php?lang=fr>. Acesso em: 10 nov. 2015.

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“cobertura educomunicativa”, em cinco línguas, pro-duzindo informações e divulgando para seus pares, em todo o mundo, as discussões e resoluções em tor-no da defesa da terra7.

No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente criou um campo de atuação denominado Educomunica-ção Socioambiental, para articular as populações, mediante uma comunicação popular e participativa, em áreas que enfrentam problemas ambientais8.

A EDUCOMUNICAÇÃO, NO PLANEJAMENTO POR UMA CULTURA DE SEGURANÇA E PAZ

Como se viu, ao longo do artigo, a prática educomu-nicativa diz respeito ao combate à violência, tanto contra as pessoas quanto contra os ecossistemas, preanunciando uma cultura de justiça, de convivên-cia construtiva e de paz duradoura. Quanto à estru-tura dos projetos educomunicativos, pelos relatos trazidos a este texto, o leitor, certamente, deverá ter notado que não existem espaços para se fecharem roteiros de práticas que devam ser simplesmente reproduzidas. A criatividade é elemento constitu-tivo do ideário educomunicativo. De toda forma, o planejamento é elemento essencial para o êxito das

ações nesse campo. Para que isso ocorra, remetemos o leitor ao Guia Comunicação e Mobilização Social em Convivência e Segurança Cidadã.

Apenas tomamos a liberdade de agregar, ao que o Guia recomenda para o Planejamento Estratégico da área da Comunicação, uma sugestão específica: pre-ver a criação de uma Equipe de Educomunicação que atue em conexão com a Comissão de Comunicação, em cada território atendido pelo programa.

A realização de encontros de sensibilização para falar sobre Educomunicação e Mobilização Social em torno da segurança cidadã é a primeira tarefa a ser introduzida na agenda da equipe. É importante ter em conta, em qualquer plano de ação, a presença de lideranças significativas na área, incluindo pro-fissionais da comunicação, educadores, coordena-dores de organizações não governamentais e, até mesmo, crianças e jovens envolvidos com práticas educomunicativas.

Nada substituirá a abertura da equipe para uma constante aprendizagem na forma de fazer a gestão das ações educomunicativas, sabendo todos os seus integrantes que é pelo ensaio e erro que se alcan-ça superar o desconhecido, em benefício da meta maior, que é o bem comum.

7. Tema disponível em: <http://www.agenciajovem.org/wp/>; <http://www.redmasvos.org/> e <http://stampagiovanile.it/cop20/>. Acesso em: 10 nov. 2015. 8. O tema dos documentos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) está disponível em: <http://www.cca.eca.usp.br/politicas_publicas/ministerio_meio_ambiente>. Acesso em: 10 nov. 2015.

Ismar de Oliveira Soares

Jornalista e professor titular da USP; coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da ECA-USP; coordenador de

Licenciatura em Educomunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP. Supervisor do Projeto Educom.rádio, na Prefeitura

de São Paulo (2001- 2004); supervisor do curso a distância Mídias na Educação, do MEC, para o Estado de São Paulo (2005-

2013). Orientador de teses na área da Comunicação e Educação. Autor dos livros: Sociedade da Informaçãoou da Comunicação?

(Editora Cidade Nova, 1996); e Educomunicação, o conceito, o profi ssional, a aplicação (Paulinas, 2011). Prêmio Educare

2007, com o título de Educador do Ano no Brasil, a partir da escolha dos internautas. Presidente da Associação Brasileira de

Pesquisadores e Profi ssionais da Educomunicação (ABPEducom).

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REFERÊNCIAS

BORDENAVE, J. D.; CARVALHO, H. M. Comunicação e planejamento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

FREIRE, P. Comunicação ou extensão? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

KAPLÚN, M. El Comunicador Popular. Buenos Aires: Humanitas, 1986.

PERUZZO, C. M. K. Comunicação nos movimentos populares – a participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998.

PNUD. Guia de Comunicação e Mobilização Social em Convivência e Segurança Cidadã. Brasília: PNUD, 2013. Disponível em: <http://docplayer.com.br/355399-Comunicacao-e-mobilizacao-social-em-convivencia-e-seguranca-cidada.html>. Acesso em: 10 nov. 2015.

RAMOS, P. Tres décadas de educomunicación en América Latina. Quito, Equador, OCCLAC, 2000. Disponível em: <http://signisalc.org/redes/educomunicacion/2015/03/tres-decadas-de-educomunicacion-en-america-latina>. Acesso em: 10 nov. 2015.

SOARES, I. O. Comunicação/Educação, a emergência de um novo campo e o perfil de seus profissionais. Contato, Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação, Brasília, ano 1, nº 2, jan/mar. 1999a, p. 5-75.

SOARES, I. O. Educomunicação e Cidadania: a construção de um campo a partir da prática social. In: PERUZZO, Cicilia M. K.; ALMEIDA, Fernando (Org.). Comunicação para a Cidadania. São Paulo: Intercom; Salvador: Uneb, 2003, p. 265-286.

SOARES, I. O. Educom.rádio, na trilha de Mario Kaplún. In: MARQUES DE MELO, José et al. (Org.). Educomídia. Alavanca da cidadania: o legado utópico de Mario Kaplún. São Bernardo do Campo: Cátedra Unesco-Umesp, 2006, 2006, p. 167-188.

SOARES, I. O. Planejamento de projetos de gestão comunicativa. In: COSTA, M. Cristina. Gestão da comunicação, projetos de intervenção. São Paulo: Paulinas, 2009b, p. 27-54.

SOARES, I. O. Educomunicação, o conceito, o profissional, a aplicação. São Paulo: Paulinas, 2011.

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Participação e Segurança Cidadã

Letícia Godinho

As análises históricas das políticas públicas de se-gurança costumam identificar que, no Brasil, a su-peração de seus referenciais autoritários teria se iniciado já na década de 1980. Embora se tratasse de um processo ainda incipiente, buscava desviar-se da trajetória que havia consolidado formas tradi-cionais, e mesmo conservadoras, de se conceberem as relações entre Estado e sociedade, no âmbito da segurança. O esforço da redemocratização lançava a diferentes grupos e instituições – sociedade civil organizada, órgãos policiais, governos estaduais e governo federal, centros de pesquisa e universida-des – o desafio de constituir um novo paradigma de segurança. Assim, surgiram, em diversos estados da federação, as primeiras experiências de conselhos de segurança e de policiamento comunitário.

Nos anos mais recentes, ganhou forma a pri-meira Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg); reorganizou-se o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), assim como se torna-ram frequentes a prática da convocação e a consulta popular por meio de Audiências Públicas. Foi apro-fundado também, no âmbito das polícias estaduais, o policiamento comunitário (ou de proximidade); geralmente, acompanhado de outras práticas, como a criação de fóruns ou cafés comunitários, mesas de participação, as chamadas “redes de vizinhos”, entre outros. Esses experimentos e inovações institucio-nais buscariam conformar o que se passou a deno-minar, em nosso país, de paradigma da “Segurança Cidadã” – fomentado de modo relevante pelo gover-no federal, que se fez presente no cenário da segu-rança pública brasileira, principalmente, a partir do I Plano Nacional de Segurança Pública de 2001 e, em seguida, com o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), de 2007.

O processo de democratização das instituições de segurança – assim como nas áreas de educação, saúde e direitos humanos, entre outros – não pode ser analisado sem recurso ao amplo repertório de práticas e institucionalidades que disputam o sen-tido da vida em comum. No entanto, para compre-ender a amplitude desse processo, não basta a opo-sição entre a democracia e o autoritarismo como formas de organização de nossas instituições. Tra-ta-se de um movimento de ressignificação do que se entende por democracia, que não está restrito ao Brasil, e que responde a uma demanda de retomada do protagonismo da participação dos cidadãos e ci-dadãs na constituição da sociedade política.

Para além do rompimento com um regime po-lítico autoritário, o que esse processo mais amplo indica é que mesmo o arcabouço formal da repre-sentação política, que guardaria no momento elei-toral a participação mais substantiva da população, seria insuficiente para garantir uma democracia de alta intensidade (SANTOS; AVRITZER, 2002). A baixa identificação da população com os partidos e com os políticos e o sentimento de baixa represen-tatividade do próprio sistema político, dado o seu excessivo formalismo, fazem parte de um movimen-to de esvaziamento da esfera pública – e, portanto, de crise da própria democracia. Nesse sentido, o paradigma da participação cidadã estaria integrado a um complexo processo de reinvenção do sistema democrático.

Assim, para compreender o sentido da partici-pação cidadã na segurança, coloca-se em primeiro plano o desafio de analisar qual o lugar e o papel da participação nessa concepção alternativa (PATE-MAN, 1992).

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1. Autossustentação democrática – Diferentemente de entender a participação como uma espécie de rito autorizativo ou de legitimação de governos – no que haveria, por parte dos cidadãos, um processo de sina-lização de preferências dadas por meio do voto – essa outra abordagem da democracia defende que, por um lado, a participação tem uma “função pedagógica”, ca-paz de favorecer a autossustentação da comunidade política. Entende-se que, quando um indivíduo toma parte nos assuntos públicos, ele amplia seus horizon-tes e, no confronto com outros contextos de vida e de experiências, é capaz de se integrar e formar uma concepção de interesse público em contraste com seu interesse particular. Romper-se-ia, também, com cer-ta concepção tecnicizante da vida política: não seria necessário que os cidadãos tivessem um “determina-do grau de racionalidade” para participar das discus-sões públicas; quanto mais participam, mais se tor-nam aptos a fazê-lo.

2. Alterar as instituições de governança do Esta-do – Uma importante característica das novas institu-cionalidades participativas é que estas se diferenciam dos esforços ativistas, espontâneos ou dos movimen-

tos sociais, uma vez que esses últimos procuram in-fluenciar os resultados do Estado por meio da pres-são externa a ele. Ao fazer isso, o mais bem-sucedido desses esforços faz avançar, decerto, os princípios da participação e talvez mesmo da deliberação, em orga-nizações cívicas ou políticas, mas deixam intactas as instituições básicas de governança do Estado. Em con-traste, as instituições participativas buscam reformar as instituições oficiais em torno desses princípios.

Esse caminho, formal, aproveita-se do poder e dos recursos do Estado para a deliberação e a participa-ção popular e, portanto, para tornar essas práticas mais duráveis e mais amplamente acessíveis (FUNG; WRIGHT, 2001). É, por isso, “híbrido”, combina a par-ticipação da população com a de representantes do Estado e dos trabalhadores da área, ou mesmo outros segmentos; combina público e privado, e é contínuo aos processos de tomada de decisão formais. Espera--se, com isso, que os diferentes pontos de vista sobre a política e o serviço que dela emana possam estar contemplados em um espaço voltado seja à sua dis-cussão, sua forma de implementação, seja ao seu con-trole. Em consequência, esses esforços de reforma do sistema democrático buscam institucionalizar a par-

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ticipação dos cidadãos comuns, movendo-os de seu papel de consumidores de bens públicos para atores que determinam, ativamente, o que são esses bens e como devem ser prestados.

3. Melhorar a eficácia das políticas públicas – Ar-gumenta-se acerca de a participação possibilitar a tomada de melhores decisões sobre as intervenções públicas – ações, programas e projetos, em suma, as políticas públicas. Isto é, ao criar novos espaços e ca-nais de comunicação, as instituições e mecanismos participativos permitiriam que perspectivas diversas da estatal fossem explicitadas e consideradas ao lon-go do ciclo de políticas públicas – da sua concepção ao seu monitoramento, avaliação e reforma. Por isso, possibilitariam, também, a contínua melhora (eficá-cia e efetividade) das intervenções públicas, uma vez que integram cidadãos que, no nível local, em geral se encontram mais bem posicionados para avaliar os efeitos imediatos ou mediatos das políticas e ofe-recer feedback aos representantes e gestores. Estes podem aprender não apenas acerca das preferências e valores desses cidadãos, mas, também, sobre suas próprias operações e estratégias: o que está ou não está funcionando.

4. Maior justiça ou equidade na prestação dos serviços públicos – A valorização da participação e das institucionalidades participativas, na tradição republicana, está associada também a outros valores – como publicidade, deliberação e tolerância; e obje-tivos – para além dos já mencionados, o fomento da confiança, seja entre cidadãos, seja entre esses e as instituições do Estado. Os espaços públicos necessá-rios para alcançá-los devem, portanto, ser claramente discursivos; e focar-se na troca de opiniões e na de-liberação de questões comuns, em público e entre di-ferentes. Devem ser responsivos e as desigualdades que, porventura, criem devem ser enfrentadas. De-vem estar orientados ao objetivo de promover formas mais equânimes de participação política e que gerem

efetivos distributivos claros – ou seja, que promovam serviços mais acessíveis e mais justos, principalmente à população que mais necessita deles.

Da área da segurança pública, trabalhos recentes ressaltam a forma como os arranjos e políticas partici-pativas poderiam auxiliar no enfrentamento a alguns dos significativos limites desse campo. Conforme já foi mencionado, o modelo de policiamento comunitá-rio difundido não apenas no Brasil, mas também em outros países do mundo, esteve e está associado a um movimento de ampla reforma policial e ao fomento de políticas de participação, no âmbito da seguran-ça, que buscam promover o apoio popular e aumen-tar a legitimidade das instituições encarregadas do controle e da prevenção à criminalidade (DAMMERT, 2003). No caso nacional e latino-americano, esse mo-delo surge nos contextos de redemocratização tam-bém como uma promessa de modificar as práticas herdadas do período autoritário (FRUHLING, 2001).

Algumas das práticas ou atividades associadas ao policiamento comunitário envolvem: patrulhamento a pé; abertura de postos fixos de policiamento nos territórios (bases locais); treinamento de policiais para a identificação de problemas locais; criação de fóruns de deliberação conjunta com a população re-sidente, para a propositura de ações de intervenção para a solução dos problemas locais; e formas diver-sas de mobilização da população para ações em prol da segurança pública, entre outros. Todas essas ativi-dades, táticas ou experimentos envolvem algum nível de interface com a população, variando o nível, a pro-fundidade e o alcance da participação social.

Decerto não se pode falar em “níveis ideais” de participação social. Mas, há que se ter clareza sobre os resultados que se pretendem alcançar, sob pena de se implementarem propostas participativas fadadas ao fracasso, pouco efetivas ou que provoquem efeitos indesejados. Autores como Fung; Wright (2001) ad-vertem que, para que tais políticas constituam uma parte importante do que chamamos de Segurança Ci-dadã e contribuam para o aprofundamento da nossa

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democracia, é necessário o enfrentamento a impor-tantes impasses já apontados pelos estudos dessa te-mática. Dificuldades muito comumente encontradas envolvem desde o enviesamento do público a que se destinam os fóruns participativos, por exemplo: a fal-ta de suporte institucional e organizacional para a im-plementação das ações; a ausência de autonomia do policial da ponta (justamente quem mais terá contato com a população); e o baixo reconhecimento daqueles que trabalham com o modelo comunitário, frequen-temente considerado um “policiamento mais brando”.

Por isso, a procedimentalização de políticas par-ticipativas necessitaria atentar para três princípios básicos, segundo esses autores: manter o foco em problemas específicos e tangíveis; envolver pessoas comuns afetadas por esses problemas, além de gesto-res e servidores públicos próximos a eles (em geral, burocratas do nível de rua); e envolver o desenvolvi-mento deliberativo de soluções para esses problemas. Ou seja, esses experimentos se comprometem a colo-car em prática os valores da comunicação e da delibe-ração, da justificação e do controle públicos (FUNG; WRIGHT, 2001).

Além disso, ao analisar o policiamento comunitá-rio implantado na cidade de Chicago, Estados Unidos, os autores chegam à conclusão de que certas condi-ções institucionais parecem estabilizar e aprofundar esse tipo de experiência. Em primeiro lugar, é ne-cessário haver um processo de descentralização, de modo que seja devolvida para o nível local a “autori-dade pública”, com poderes de decisão – o que inclui agentes estatais e a população afetada. Segundo, es-sas unidades de ação local – o território, o bairro ou a circunscrição policial – não devem funcionar de for-ma completamente autônoma, mas estar interligadas entre si por níveis superiores de coordenação; estes

teriam por função garantir a alocação de recursos às bases locais e resolver problemas que atingem mais de uma unidade ao mesmo tempo, entre outros. Es-sas instâncias de supervisão e coordenação centrali-zadas seriam importantes para a criação de vínculos formais de responsabilidade, distribuição de recur-sos, comunicação e aprendizado, conectando as ba-ses entre si e a uma autoridade superior. Por fim, es-pera-se que essas institucionalidades participativas transformem as instituições de governança formais, que elas passem a operar de modo diverso, a partir de práticas participativas. Para tanto, essas institu-cionalidades não podem ser arranjos informais ou “voluntarísticos”; devem possuir poder, autoridade e autorização estatal para influenciar as ações públicas e implementar os resultados de suas deliberações1. Nesse sentido, deveriam ser marcadas pelo objetivo de empoderar os envolvidos.

Segundo Skogan (2006), o policiamento comuni-tário demanda uma compreensão mais abrangente dos problemas de segurança que afetam a popu-lação. Sua definição deve alterar o foco da ação da polícia e dos outros atores estatais, que passa a ser negociado com a “comunidade”. Para conhecer os problemas, portanto, seria necessário desenvolver espaços de deliberação e de vocalização da popula-ção, sem se estabelecerem distinções prévias quanto ao público e, consequentemente, trazendo para o centro da rotina dos agentes públicos a interação com cidadãos em comum em circunstâncias conven-cionais (SKOGAN, 2006). O foco na solução partici-pativa dos problemas buscaria uma visão ampliada do serviço policial e da própria política de seguran-ça, apontando para a sua necessidade de cooperação com a sociedade.

Por fim, outras questões têm sido levantadas,

1. Essa concepção parece vir de encontro à de Skogan, para quem o policiamento comunitário “[...] é uma estratégia organizacional que deixa, de maneira ampla, o levantamento de prioridades e meios de alcançá-las aos residentes e à polícia que serve nas vizinhanças. O policiamento comunitário seria um processo, mais do que um produto. Tem três elementos nucleares: envolvimento dos cidadãos, resolução de problemas e descentralização. Na prática, essas três dimensões tornam-se densamente inter-relacionadas e os departamentos que mudam um ou outro não adotariam um programa muito efetivo. [...] Ele envolve mudar os processos de decisão e criar novas culturas dentro dos departamentos de polícia” (SKOGAN, 2006: 26-7).

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recorrentemente, pelas análises empíricas: Por que se observam determinados perfis em fóruns e con-selhos comunitários de segurança? Quais os obstá-culos para se ampliar o público dos espaços parti-cipativos? Qual o efeito dessa seletividade sobre o conjunto das demandas apresentadas e discutidas? O processo deliberativo é capaz de assegurar iguais condições de vocalização e consideração das dife-rentes perspectivas em debate?

É, também, frequente entre policiais a queixa de que a difusão e/ou incorporação do modelo apenas al-cança o alto escalão das corporações e não os segmen-tos mais baixos de sua hierarquia – dentre os quais vigoraria o sentimento de que as reformas se limitam apenas ao “discurso oficial”. Outro ponto de atenção é a fragilidade das políticas participativas, sobretudo do ponto de vista organizacional. Outros estudos indicam o peso excessivo que a iniciativa de dirigentes governa-mentais tende a exercer sobre a abertura de processos participativos, os quais veem sua permanência com-prometida por uma tênue institucionalização.

E, finalmente, as deliberações resultantes da par-ticipação influenciam, efetivamente, as tomadas de decisão políticas? Há um canal – ou um procedimento

ou fluxo de encaminhamento – das decisões que asse-gure que elas não serão perdidas? As práticas partici-pativas logram produzir um serviço mais justo, mais acessível e equitativo?

O desafio de republicanização da segurança pública no Brasil, portanto, depende também do exercício crítico e da capacidade dos intérpretes de compreenderem os riscos da descontinuidade da trajetória e da (ainda) fragilidade das políticas públicas participativas – em geral, marcadas por re-sistências e dificuldades enfrentadas no interior das próprias organizações estatais, pelo fato de que as experiências estão condicionadas a uma mudança na metodologia de emprego operacional e na pró-pria cultura das organizações.

Letícia Godinho

Pesquisadora em Ciência e Tecnologia da Fundação João

Pinheiro; Docente e Diretora-Geral da Escola de Governo

da FJP. Possui mestrado (2005) e doutorado (2011), em

Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais;

e bacharelado em Direito pela mesma universidade (2002).

Suas publicações estão concentradas, principalmente, nas

temáticas da segurança pública e da teoria política.

REFERÊNCIAS

DAMMERT, L. Participación comunitária en prevención del delito en America Latina: de qué participación hablamos?. Centro de Estudios del Desarrollo; Santiago, 2003.

FUNG, A.; WRIGHT, E. O. Deepening democracy: innovations in empowered participatory Governance. Politics & Society, v. 29, nº 1, mar./2001, p. 5-41.

FRUHLING, H. Policía comunitária y reforma policial en America Latina: cual és su impacto?. Centro de Estudios en Seguridad Ciudadada / Universidad de Chile: Santiago, 2003.

PATEMAN, C. Participação e teoria democrática. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

SANTOS, B. S.; AVRITZER, L. Para ampliar o cânone democrático. In: Boaventura de Sousa Santos. (Org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SKOGAN, W. G. The promise of community policing. In: WEISBURD, David; BRAGA, Anthony Allan (Orgs.). Police innovation: contrasting perspectives. Cambridge studies in criminology. New York: Cambridge University Press, 2006. p. 27-43.

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Mediação Comunitária e Segurança Pública no Brasil: agendas convergentes

Pedro Strozenberg

A Mediação é um daqueles temas que produzem enor-me convergência quanto a sua relevância e imensa diversidade quanto a sua aplicabilidade e resultados esperados. Ou seja, ao mesmo tempo que cresce sua difusão conceitual, mais variada ocorre sua prática nos territórios. Tomando em conta este fator, pode-se afirmar, com pouca margem de erro, que iniciativas inspiradas na facilitação do diálogo no ambiente da Segurança Pública se proliferam em todo o país, nos anos recentes.

Esse movimento vigente é fruto da própria dinâ-mica flexível sugerida pela Mediação, associado ao processo histórico da implantação da Mediação Co-munitária no Brasil (ao menos uma de suas versões) e a agenda da Segurança Pública (marcadamente aquela impulsionada na última década). Uma efeti-va composição de fatores combinados entre proces-sos estimulados pela política pública e a essência da Mediação.

Em polo oposto, destacam-se outros dois pontos, que merecem atenção pela ausência de estímulos, e, se não forem observados com urgência, podem sig-nificar um prejuízo em relação aos investimentos e esforços acumulados:

1) a precariedade de registro/indicadores que aju-dem a compreender as distintas iniciativas de me-diação desenvolvidas por instâncias governamentais – destacadamente, municípios e polícias – no campo da Segurança Pública;

2) a inexistência de um mapeamento sistemático das ações de resolução pacífica de conflitos que ilustrem a diversidade do campo e estimulem que as iniciati-vas se complementem e inspirem.

Justamente nessa linha cabe reconhecer as rele-vantes contribuições proporcionadas pelo Curso de Convivência e Segurança Cidadã em suas diferentes edições1 no tocante ao tema da Mediação e a agenda de Segurança: primeiro, ao aportar o acúmulo inter-nacional do PNUD referendando a Mediação como eixo inerente à agenda de Prevenção à Violência e, ao referenciá-la nas agendas de Segurança Pública, trouxe uma confortável sintonia entre o Global e o local; segundo, contribuindo na qualificação do de-bate em torno da Mediação Comunitária, permitindo o encontro e a exposição de contradições e saberes acumulados na prática, mas incipientes, fracionados e pouco expostos a uma reflexão coletiva. A imersão promovida pelo curso de Convivência e Segurança Cidadã propiciou um espaço qualificado de troca de experiências pouco disponível, até hoje.

Por fim, outro destacado aporte do curso foi evi-denciar o grande número, espalhado pelo Brasil, de iniciativas que tomam como referência a Mediação. Não houve turma sem que aparecessem ao menos quatro ou cinco profissionais que indicassem a me-diação como sua principal atribuição. No Brasil, se resolvêssemos – já tardiamente – fazer um mapa das mediações identificadas no campo da Segurança Pú-blica, possivelmente o ponto de partida seria o curso de Convivência e Segurança Cidadã.

1. Em suas versões iniciais, a Mediação estava referenciada com processos de acesso à Justiça (inclusive no mesmo módulo), quando sua existência sugeria o desafogo ao sistema de Justiça e contendo poucas referências na agenda de prevenção à violência.

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CARACTERÍSTICAS IDENTITÁRIAS E HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA NO BRASIL

A prática da Mediação Comunitária, por incentivar o diálogo entre indivíduos, estimula as pessoas a de-bater não isoladamente seus conflitos interpessoais, mas contribui, essencialmente, para inseri-los dentro de um contexto coletivo e cultural. Assim, ao mesmo tempo que os indivíduos são chamados a se perce-ber como sujeitos de direitos e responsáveis por sua atitude pessoal, são identificados como parte de um coletivo que reafirma sua condição de cidadão. Neste sentido, a Mediação Comunitária assume uma forte condição pública.

A Mediação se baseia na convivência entre dife-rentes, na ideia de criar e estabelecer uma cultura do diálogo e da gestão do conflito. Em diversos cenários a Mediação serve como uma alternativa equilibrada e possível entre o mundo jurídico e o mundo real.

Sua condição democrática é afirmada na medida em que estimula a participação ativa das pessoas na solução de suas questões e propicia a inclusão social, quando permite que elas busquem as melhores alter-nativas aos seus problemas e aos de seus pares.

A Mediação se configura como uma via ajustada ao sistema político dos novos tempos, dados os fa-tores: seu caráter pluralista, pela convivência entre múltiplos mecanismos de solução de controvérsias; sua capacidade particularista, sendo capaz de res-peitar os valores e as características de indivíduos ou grupos envolvidos; a permeabilidade que exer-ce ao transitar em ambientes formais ou informais, como referência para sua conformação e motiva-ção; seu caráter eminentemente pedagógico, que estimula a reflexão e o reposicionamento das pos-turas e linguagens entre pessoas; e sua viabilidade prática, uma vez que sua existência depende de sua

concretização tanto quanto, ou mais, que seu arca-bouço teórico.

Apropriando-se de ferramentas e conceitos de diferentes matérias (comunicação, gestão, filosofia, psicologia, direito etc.) cada vez mais disponíveis em cursos e livros específicos, a Mediação exige de seu proponente, além da habilidade nos conhecimentos mencionados, postura e sentimentos colaborativos de acreditar nos conflitos como algo transformador e li-bertador.

Reconhecer e, mais do que isso, desejar entender a dinâmica dos conflitos possibilita a percepção de novas saídas para as divergências e antagonismos cotidianos, distinguindo reações impulsivas e super-ficiais, de sentimentos abafados pela incapacidade de uma comunicação fluída e suficiente.

Aliado à sua dimensão conceitual e à sensibilida-de humana de seus atores, na Mediação Comunitária o processo histórico impacta também sua prática; e assumindo divergências possíveis na sequência in-dicada, vale o registro de um ciclo possível da insti-tucionalização da Mediação Comunitária no Brasil, acreditando que seu desenvolvimento ajuda a com-preender o próprio estágio atual da Mediação, sua in-terface e desafios na temática da Segurança Pública.

Em consequência dos processos de ampliação de Direitos repercutidos pela Constituição de 1988, um conjunto de iniciativas pontuais espalhadas pelo Bra-sil ganhou densidade em meados dos anos 90, assu-mindo como um polo propulsor da Mediação comuni-tária no Brasil. As ações iniciadas na Bahia (Juspopuli Escritório de Direitos Humanos), em Minas Gerais (Polos de Cidadania), Rio Grande do Sul (Tribunos da Cidadania) e do Rio de Janeiro (Balcão de Direitos)2

foram algumas das iniciativas que, em 1999, motiva-ram o Governo Federal, por meio da Secretaria Na-cional de Direitos Humanos, a constituir o primeiro

2. Ver: <www.juspopuli.org.br; www.polosdecidadania.org.br>; BRITTO, M. G. P. Tribunos da Cidadania: a importância da extensão universitária para o ensino jurídico. Departamento de Promoção dos Direitos Humanos. Brasília: SEDH-DPDH-MJ, v. I, p. 27-34, 2001; RIBEIRO, Paulo Jorge; STROZENBERG, Pedro. (Org.). Balcão de direitos: resolução de conflitos em favelas do Rio de Janeiro – imagens e linguagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p. 125-152.

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programa de mediação comunitária do país. Estas e outras iniciativas foram apoiadas com base no estímu-lo à participação social, educação e acesso a direitos3.

A partir de 2005, o Ministério da Justiça, por in-termédio da Secretaria de Reforma do Judiciário, to-mando por referência o consistente Projeto Justiça Comunitária do TJDF4 (iniciado em 2000) adiciona novos elementos ao debate, destacando a resolução interpessoal dos conflitos e enfatiza o Acesso à Jus-tiça como elemento diferenciador da agenda, naque-le momento. Na sequência, já amoldado o Programa Justiça Comunitária, passa a figurar como uma ação do Pronasci5.

Quase simultaneamente, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justi-ça incorpora a Mediação de Conflitos como matéria constitutiva dos programas de Polícia Comunitária e expande suas diretrizes por meio do Programa Bol-sa-Formação6, destinado a operadores de segurança em todo o território nacional. Essa massificação reo-rienta a formação de guardas e policiais e partilha a responsabilidade de lidar com os conflitos entre dis-tintos entes comunitários.

Alguns estudiosos7 indicam que uma quarta onda na Mediação Comunitária se avizinha, destacando temas relacionados a alternativas penais e medidas de cumprimento de liberdade assistida, em que pro-cessos dialogados se relacionam com conceitos de

3. O Balcão de Direitos se destina a promover atividades de difusão de informações sobre direitos, por meio da orientação jurídica, educação legal e a prática de resolução de conflitos mais adequada à realidade social em favelas ou regiões periféricas.4. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/nupecon/justica-comunitaria/arquivos/uma_experiencia.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2015.5. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJE24D0EE7ITEMIDAF1131EAD238415B96108A0B8A0E7398PTBRNN.htm Acesso em: 02 nov. 2015.6. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJ6D5A37BFITEMIDE6550B91F78E48FF815C5DA77D82471DPTBRNN.htm Acesso em: 02 nov. 2015. 7. Debates ainda incipientes – especialmente estimulados no âmbito do Grupo de Trabalho, reunindo pesquisadores, gestores públicos e membros sociedade civil, vinculados à Coordenadoria-Geral de Penas Alternativas do Departamento Penitenciário (Depen) – inicialmente conduzidos por Heloisa Adário (2011-2012) e retomados, em 2014, pelo atual coordenador Victor Pimenta, tratam sobre o uso de medidas restaurativas e maior participação das vítimas, com base em processos autocompositivos e dialogais.8. A SRJ inclui a Justiça Restaurativa como uma prática com pontos convergentes e desafios comuns. Mais informações acham-se disponíveis em:<http://www.justica21.org.br/j21.php?id=25&pg=0#.VjmI1LerTIU> e nas falas de Egberto Penido e Leoberto Brancher.Ver: PENIDO Egberto; BRANCHER Leoberto. O braço da cultura de paz na justiça. Folha de São Paulo, 5 jul. 2005, pág. 3. Disponível em: <http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/o-braco-da-cultura-de-paz-na-justica>.9. O Departamento Penitenciário Nacional tem dedicado importantes esforços no sentido de desenvolver novos modelos de alternativas penais que reconheçam processos de responsabilização, participativos e horizontais.

Política de Direitos Humanos

Políticas de acesso a justiça

Política de segurança

perdão e reconciliação. Há algumas importantes ini-ciativas espalhadas pelo Brasil, porém, ainda pouco institucionalizadas no sistema de Justiça8 e no siste-ma Penitenciário9.

O quadro abaixo mostra a amplitude que a Me-diação de Conflitos Comunitária se insere na política pública, e enquanto as duas primeiras ondas (Política de Direitos Humanos e Acesso à Justiça) de alguma maneira foram registradas e estudadas, o mesmo não se pode dizer da questão Mediação e Seguran-ça, da qual muito pouco foi sistematizado e apurado. Inclusive os limites e desafios encontrados, pois nes-se tema não faltam contradições estruturantes, que precisam ser refletidas e testadas, exigindo práticas monitoradas e estudo qualificado.

• Foco na participação social• Educação para direitos • Acesso a direitos

• Foco na resolução interpessoal dos conflitos• Prevenção à violência• Acesso à justiça

• Desorientação das polícias e guardas• Responsabilidade partilhada dos conflitos• Prevenção à violência

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Pedro Strozenberg

Nascido na cidade do Rio de Janeiro, é formado em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro e especialista pela Universidade de

Burgos (Espanha), tendo como área de estudo Mediação de Confl itos Comunitários. Sua trajetória caracteriza-se pela atuação e

estudos na área dos Direitos Humanos e Segurança Pública no Brasil, desenvolvendo ações para diminuir as desigualdades sociais e

contribuir para a resiliência ambiental em cidades brasileiras. Identifi cado pela participação no campo da sociedade civil, atualmente

é secretário executivo do Instituto de Estudos da Religião (Iser), no qual coordena pesquisas e estudos orientados sobre políticas

sociais brasileiras. Nos cursos de Convivência e Segurança Cidadã do PNUD, facilitou a sessão de Mediação de Confl itos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um ponto invariavelmente surgido no curso de Convi-vência e Segurança Cidadã traz a questão da exposição do policial, ou do guarda, ao propor um encaminha-mento dialogal, em situações que acabem em desfe-chos violentos. A responsabilidade recai, em última instância, ao indivíduo que propôs a solução partilha-da, pois não existem instrumentos que normatizem os casos típicos de mediação.

Se a ausência de regulamentos protocolares é um problema para a adoção da mediação em espaços de segurança, sua existência também pode ser uma difi-culdade, dependendo dos critérios assumidos. Não há uma resposta simples e única, são tempos de mudan-ças e transitoriedade, cuja principal recomendação é seu acompanhamento e avaliação.

Somada a essa questão há muita desconfiança em relação à possibilidade de uso da mediação em espaços como delegacias, ou realizada por policiais ou qualquer autoridade constituída. Nessas condi-ções, a garantia da voluntariedade, livre expressão e autonomia das partes estarão plenamente garan-tidas? Não seria melhor uma proposta na qual os agentes de segurança fossem “apenas condutores” para espaços de Mediação conduzidos por civis?

Dúvidas justas de um tema ainda em formação.No caminho da afirmação da Mediação na agenda

de Segurança, impõem-se importantes desafios, tais como: ação articulada com outras políticas e projetos; realização de pesquisas e estudos; capacitação conti-nuada dos mediadores; rede articulada e visível (ma-peamento das práticas); e produção de indicadores e seu monitoramento.

Enfim, trata-se de um tema novo e desafiador, já in-corporado na literatura de prevenção à violência e ain-da pouco sistematizado na prática brasileira. O esforço em democratizar e ampliar a participação demanda seu aprimoramento, uma vez que a cultura punitiva, hierar-quizada e bélica, produzida pela instabilidade na sen-sação de insegurança direciona pelo caminho oposto.

Um ponto de consenso descrito nas edições do cur-so, ao longo dos vários anos, em distintas regiões do país, para muitos a Mediação representa o ideal norte-ador de um modelo de Segurança Pública desejável, no qual os processos autocompositivos e dialogais preva-lecem e estimulam ambientes colaborativos, preventi-vos e transformadores. Resta o desafio de ampliar sua institucionalidade e oportunizar maior sustentabilida-de para a Mediação Comunitária na agenda de Segu-rança Pública, mas isso está em curso, veremos.

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REFERÊNCIAS

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Quando a juventude é pouca e não dá para todo mundo

Tânia Cordeiro

O Rio de Janeiro tem assumido a condição de “posto avançado”, no que se refere à adoção de experiências que visam controlar/superar/resolver problemas relativos à violência/segurança que têm desafiado o cotidiano de seus moradores e visitantes. Em todos os experimentos levados a cabo, no fim do século pas-sado e durante os 14 anos deste início de século, é sempre destacada, impreterivelmente, nas propostas de atuação, a presença dos jovens (ou juventude) e da polícia. Ao lado disso, os ambientes que são definidos como prioritários para a atuação, normalmente são reconhecidos como áreas que apresentam múltiplas deficiências, especialmente no que concerne aos ser-viços de natureza pública, como segurança, moradia, educação, saúde, lazer, transporte e outros. Por sua vez, essa caracterização de natureza urbana permite a identificação social dos locais e de seus locatários. Ali habitam os segmentos mais pobres da população.

Foi por meio dessa espécie de percurso mental que eu comecei a esboçar uma proposta de trabalho para a seção Juventudes e Segurança Cidadã, que mi-nistrei nos cursos de Convivência e Segurança Cida-dã, em 2014, na cidade do Rio de Janeiro.

Em seguida ao primeiro estágio de demarcação de território, um dos primeiros aspectos que foram alvos de reflexão específica para a elaboração do meu trabalho diz respeito ao fato de que eu não estaria me dirigindo aos jovens moradores, pois meus alunos seriam, majoritariamente, policiais militares e civis com atuação nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Diante da caracterização dos participantes, passei a es-pecular sobre estratégias que pudessem ser úteis a um diálogo entre mim, os alunos e um ausente especial, a razão de ser daquela disciplina: o jovem do lugar.

Concebi as atividades de tal modo que pudéssemos (e aqui me coloco na primeira pessoa do plural, tendo

como pressupostos eu e a turma de alunos) tratar dos jovens que habitam em áreas ocupadas pelas UPPs ali representadas. Para isso, construí um modelo capaz de identificar algumas representações que os alunos têm dos jovens habitantes dos referidos lugares.

Próximo do início da minha atividade em sala de aula, em contato com a equipe de coordenação, fiquei sabendo que muitos dos que compõem a turma de alunos teriam reivindicado para si o status de jovens. Essa informação funcionou como um alerta impor-tante e, sobretudo, permitiu-me uma crítica a uma perspectiva que eu nem percebia que estava cultivan-do. Eu estava concebendo de modo muito substancia-lista os atores, como se cada um fosse dotado de uma substância própria e inconfundível. E isto é muito comum no tratamento das questões complexas, quando a perspectiva de solução excede as possibi-lidades de se contemplarem muitas dificuldades. As-sim, o policial fica desprovido de idade, é puramente policial e, por sua vez, o jovem é só idade. Pude me refazer antes de iniciar o encontro com seres huma-nos, adultos, a maioria do sexo masculino, muitos jo-vens e, também, gente de meia-idade, moradores do Rio de Janeiro. E tudo isto implicava a existência de muitas características comuns entre eles e os jovens ausentes. Essa percepção, se, por um lado, acarreta dificuldades no que tange à organização pedagógica, por outro lado, sugere uma aproximação mais com-patível com a “ordem dos fatores”: eles estão muito mais misturados que separados.

Eu me coloquei, então, com a maior abertura possível a propósito de quem são as pessoas com as quais eu estaria em contato, tendo como pressupos-to que ninguém é 100% jovem ou 100% policial. Foi incrivelmente estratégica e, portanto, pedagógica, aquela pequena e precisa informação que tive antes

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de iniciar as aulas. Foi-me concedida uma clareza de base empírica a respeito do próprio conceito de Segu-rança Cidadã, defendido pelo PNUD.

A perspectiva de Segurança Cidadã parte da natu-reza multicausal da violência e da criminalidade urbana. Considerando essa causalidade múltipla, o PNUD entende, portanto, que a estratégia para promover a convivência e segurança cidadã deve ser integral, deve incorporar ações em diversas áreas temáticas relacionadas aos fatores de risco da violência e ambientes, além de agregar múlti-plos atores [...] para o trabalho conjunto. A segu-rança cidadã privilegia o desenho e implantação de planos de segurança voltados à esfera local, ela-borados de forma participativa e com ações volta-das tanto para a prevenção como para o controle da criminalidade e da violência (PNUD, 2014, p. 4).

SER JOVEM: QUESTÃO DE MERECIMENTO?

Os integrantes das turmas se apresentaram contan-do uma pequena história de seu nome e, assim, fo-ram observados alguns padrões relativos ao poder de nomear, verificando-se a preponderância dos pais e, entre eles, o pai. Quanto à explicação para o nome, foram mencionadas motivações que vão desde home-nagens a pessoas da família e aos motivos estéticos (gostar do nome) até as referências de ordem religio-sa. Foi possível observar, a partir dessa pequena ex-tração de micro-histórias, uma regularidade em rela-ção aos valores correntes, momentos frequentes em todas as biografias dos seres humanos. Foi a partir desse terreno comum, experimentado como curiosas descobertas, que foram abertas as potencialidades de uma “convivência leve” e prazerosa.

Em nosso passo seguinte, chegamos diretamente ao objetivo e tínhamos um tempo curto para tratar

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das questões muito relevantes. Em pequenos grupos, foram identificadas concepções de juventude e de jo-vens. E, desta atividade, foram identificados dois tipos de jovens, nenhum deles policial, ao contrário, foram dois tipos construídos, basicamente, pelos olhos de po-liciais. Há o jovem de bem e aquele que é delinquente.

Esse enquadramento tão perfeito tornou-se obje-to de discussão a partir da seguinte problematização: quem de nós é somente bom ou somente mau? Esta discussão, por sua vez, levou a um exemplo dado por um dos participantes. Ele se referiu a uma jovem/adolescente que, pela manhã, está uniformizada, no ônibus, indo para a escola e, no fim da tarde, está na praça com um grupo de jovens que usa drogas, como é sabido por todos.

O exemplo dado parecia bem ilustrativo, porém, em torno dele renderam ponderações que lhe retira-ram o fundamento de prova, no que tange à possibi-lidade humana de viver ambiguidades e de ser am-bíguo. A adolescente que vai à escola, uniformizada, toda manhã, é um personagem, uma atriz, uma falsa que estaria ali enganando todos. Na verdade, ela é, apenas, aquela que frequenta a praça todas as tardes.

Aparece, assim, a construção de estigmas a partir dos comportamentos dos jovens. Lembrando-nos de que jovens estamos falando, fica evidente uma exi-gência quanto a uma filiação valorativa pura e radical, colocando-se o bem e o mal como níveis de aprecia-ção para a abordagem da vida desses sujeitos.

Aprofundando a concepção de juventude e de jo-vens, foi realizado um exercício individual que con-sistiu no preenchimento de lacunas numa situação em que cada aluno dispunha, apenas, de três vezes o vocábulo “jovem”, devendo escolher entre seis espa-ços a serem preenchidos:A) (...........), com 20 anos, negro, pobre e analfabeto é

responsável pelo assassinato da (...........), estudante do último semestre do curso de engenharia, morta aos 23 anos.

B) Uma das maiores promessas na área da física quântica no Brasil, com um currículo invejável,

morre aos 38 anos de mal súbito. Os colegas estão desolados diante da notícia da morte de um (...........) cientista tão promissor.

C) Ela conseguiu um trabalho temporário e está tão feliz que convidou alguns colegas para uma come-moração depois do expediente. A (...........) não cabe em si de tanta satisfação.

D) Ele fez vários procedimentos na face e no abdô-men e resgatou aquele aspecto de (...........) que havia perdido.

E) Ele tem 16 anos, mas, e daí?! Não é inocente, sabe muito mais do que quem tem 40 anos nas costas. Para mim, ele não é (...........).

As escolhas mais frequentes dos alunos foram as seguintes: a segunda opção da letra A foi a mais es-colhida, em contraste com a primeira opção, que foi a menos escolhida. A opção pela letra B ficou em se-gundo lugar e, em terceiro, ficou a letra E.

Desse modo, foram encontrados alguns sinais preocupantes e que diziam respeito a algo como uma disposição de relacionar juventude com merecimen-to. O jovem de 20 anos, que é acusado de assassinar uma jovem de 23 anos, embora tenha menos idade que ela, não recebe o rótulo de jovem que é “transfe-rido” à vítima. Do mesmo modo, ao adolescente de 16 anos não é conferido o conceito juventude.

Os questionamentos adquirem, a partir de então, tons mais próximos da ordem corporativa. Diria que esta deixou de ter interesse pelos jovens e se voltou para si. Todos os questionamentos foram oportunida-des para tratar das experiências dos profissionais de segurança pública nas UPPs.

O aspecto mais ressaltado diz respeito à incom-patibilidade das polícias de levarem adiante as ações das UPPs. Entre os participantes, houve uma concor-dância explícita de que a fase de ocupação de terri-tório deve ser feita por intermédio das polícias, mas, depois desse estágio, a presença do estado deve ser intensa, por meio de serviços qualificados de educa-ção, saúde, esporte e lazer, cultura, oportunidade de emprego e qualificação de mão de obra.

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Os posicionamentos evidenciaram que aqueles policiais não estão satisfeitos como profissionais. Do seu ponto de vista, aos jovens são dispensados tra-tamentos que, em termos práticos, desestimulam a presença deles nos shoppings, “no asfalto”. Neste sen-tido, o efeito que se espera da polícia é a contenção espacial e não a pacificação social.

Aparecem, enfim, os jovens policiais desencanta-dos e desestimulados a propósito da superação dos problemas que vivem os moradores das UPPs. Nesse âmbito, as discussões relativas às juventudes tendem a não surtir efeitos significativos, uma vez que se está pregando para pessoas que consideram pouco sus-tentáveis as próprias UPPs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São muitas as questões surgidas a partir da rica expe-riência no curso de Convivência e Segurança Cidadã. Uma delas, que merece ser debatida com urgência, diz respeito à necessidade de avaliação continuada dos projetos e programas governamentais que se destinam ao controle ou à superação de problemas, como criminalidade e insegurança. E quando o jovem cidadão é tomado como alvo prioritário das ações cabe recordar que eles são sujeitos portadores de condições plenas de participação e devem ser com-preendidos nos projetos como componentes indis-

pensáveis e não como indivíduos a serem contidos pela polícia.

Em outro plano, cabe valorizar as críticas pres-tadas pelos alunos da disciplina Juventudes e Segu-rança Cidadã. Devem ser concebidos canais aptos ao estímulo dessas críticas, afinal, eles estão lá, nos ter-ritórios, e suas experiências dão sustentação concre-ta aos projetos, programas emanados das mais altas hierarquias do Estado.

Finalmente, não se deve perder, ao se privilegiar “o desenho e a implantação de segurança voltados à esfera local”, a perspectiva de que vivemos em uma época em que prevalecem inúmeras ofertas culturais e de consumo que vão das roupas às drogas:

[...] isso gera uma grande pressão sobre jovens pobres, moradores de periferias urbanas, para obterem recursos que lhes possibilitem acessar o mundo do consumo de produtos e de lazer, por meio dos quais estabelecem relações de sociabili-dade e experimentam a construção de identidades sociais ligadas às suas culturas juvenis (PIMENTA, 2014, p. 272).

É necessário que seja atualizada a resposta à per-gunta: que jovem é esse?

REFERÊNCIAS

PIMENTA, M. M. Juventude e Violência. In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L.; AZEVEDO, R. G. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 265-276.

PNUD. Manual dos cursos de convivência e segurança cidadã. Brasília: PNUD-MJ, 2014. (documento não publicado).

Tânia Cordeiro

Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da Bahia (1980) e mestrado em Comunicação pela

Universidade de Brasília (1985). Atualmente, é coordenadora de comunicação do Fórum Comunitário de Combate à Violência e

professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação

Comunitária, atuando, principalmente, nos seguintes temas: mídia, violência, cidadania, juventude e comunicação.

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REDUÇÃO DE FATORES DE RISCO E CONTEXTOS SOCIOURBANOS SEGUROS

Prevenção a violências: sem fórmula, com formas

Riccardo Cappi

O que se pretende, via de regra, frente à violência, é uma resposta instantânea, eficaz, definitiva. Ora, é de prevenção que se quer falar aqui, ou seja, de algo di-ferente de uma resposta imediata, rápida e conclusiva, nem por isso menos eficaz. O que se propõe é um breve percurso conceitual, que pretende mostrar que a pre-venção envolve maneiras diversas e específicas de con-ceber e de intervir frente aos conflitos e à violência. Em particular, para além das formas que ela pode assumir nos casos concretos, a prevenção leva a mudar nossa forma de olhar para os problemas e seus protagonistas.

Num primeiro momento, será apresentada uma reflexão sobre as noções de conflito e violência, para procurar alguns caminhos de entendimento e de in-tervenção. Vale insistir dizendo que pensar, refletir e falar sobre essas realidades constituem uma primei-ra maneira de “tratá-las”. Mais ainda, as palavras que utilizamos condicionam fortemente nossas próprias práticas, com sensíveis e importantes repercussões éticas e políticas. Por isto acredita-se que o exercí-cio de pensar no conflito e na violência seja de fun-damental importância, numa perspectiva de inter-venção, sobretudo num momento em que, no nosso mundo da imagem, a “ação” e a “operacionalidade” tomaram conta da cena.

Parece-nos indispensável saber qual é a nossa leitura do problema, para vislumbrar caminhos de

resposta. Para isto, será utilizado o instrumental teórico da criminologia, que é uma “ciência” que contribui para essa tarefa, estudando a violência, o crime, o desvio e as formas de intervenção perante esses problemas.

Num segundo momento, será possível considerar a prevenção em suas diversas modalidades de inter-venção. Será necessário identificar em que aspectos específicos ela se diferencia das formas tradicionais de resposta e de que maneira ela pode contribuir para o enfrentamento à violência.

CONFLITOS, VIOLÊNCIAS, CRIME E INSEGURANÇA

O conflito é inerente ao ser humano. Parte-se dessa premissa para renunciar a uma proposta de total au-sência de conflitos. Os conflitos caracterizam, inexo-ravelmente, a existência individual e coletiva, “desde sempre e para sempre”. O conflito é ligado à diversi-dade, logo, à possibilidade de escolha.

Existe o conflito do indivíduo consigo mesmo. Desde a primeira infância, vivenciamos esse tipo de conflito, “o processo de maturação psicológica do in-divíduo se faz numa caminhada que vai do ato para o pensamento, cheia de contradições, de ganhos e de perdas, na qual o ingrediente necessário é sempre o conflito” (SÁ, 2007, p. 56). Nesse sentido, o conflito

1. Por exemplo, neste momento, estou com uma vontade muito grande de ir à praia. Ora, não poderei escrever este artigo e nadar no mar ao mesmo tempo...

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2. Ver: Dahrendorf, apud Baratta (1997).

jamais nos abandona: sempre teremos que fazer es-colhas, aceitar renúncias e perdas.

A probabilidade de conflito existe, já que nada garante que não haja diversidade e incompatibili-dade de opções. Em determinado momento, haverá conflito. Contudo, atrelar o conflito à diversidade permite percebê-lo não somente como problema, mas como oportunidade de crescimento, pelo qual alcançar novos patamares de existência. Se o confli-to nunca deixa de existir, ele nunca se resolve com-pletamente; no máximo, tem-se como atravessá-lo para alcançar uma situação mais benéfica do ponto de vista de seus protagonistas.

O conflito constitui, portanto, um elemento essen-cial da vida social e política, instituindo e alimentan-do sua própria dinâmica. De maneira mais produtiva, ele pode ser lido no âmbito da tríade “poder, conflito, mudança”2: o conflito é parte integrante da dinâmica social e não um simples momento de desequilíbrio temporário, numa ordem preestabelecida do conjun-to da sociedade.

Segundo essa leitura do conflito em suas diversas dimensões – intraindividual, interindividual e social – pode-se entender melhor a significação da violência. A violência é diferente do conflito: ela representa uma maneira específica de lidar com um conflito. Uma ma-neira em que o “outro”, considerado negativamente e de maneira hostil, precisa ser anulado, excluído e, se for o caso, eliminado. Daí decorre a diferença crucial entre conflito e violência. Enquanto o conflito repre-senta um elemento insuperável da condição humana, a violência constitui uma opção singular de gestão do conflito. Assim, na qualidade de abuso físico e/ou psí-quico que caracteriza relações intersubjetivas e, de-finidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror, a violência pode ser considerada como um

[...] ato de força para ir contra a natureza de algum ser, contra a espontaneidade, a vontade e a liber-

dade de alguém; violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; ato de transgressão contra aque-las coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito (CHAUÍ, 1999, p. 14).

Pode-se entender a violência em suas diversas di-mensões. A primeira é a que se refere à violência in-terpessoal, que se concretiza pelo comportamento de um ou mais indivíduos. É esta a violência que consti-tui, na maioria das vezes, o cerne das preocupações da população. Essa violência – de natureza física ou não – é, certamente, a mais visível, a que nos deixa muitas vezes impotentes, que nos faz vítimas, poli-ciais ou cidadãos.

Mas, existem outros tipos de violência, chamadas aqui de “violência institucional” e “violência estrutu-ral”. A institucional diz respeito ao fato de a própria instituição, no seu funcionamento, se caracterizar por práticas violentas. Não são unicamente os abusos de autoridade, os maus tratos ou as humilhações – por meio de constrangimento físico ou moral – infligi-dos por representantes da instituição, que poderiam, aliás, ser incluídos na discussão precedente. Referi-mo-nos às práticas das instituições que atuam, sis-tematicamente, no desrespeito aos indivíduos, à sua subjetividade, à sua expressão; enfim, a seus direitos mais elementares. A presença de práticas autoritá-rias, repressoras e agressivas, como maneira usual de as instituições funcionarem, não pode deixar de ser reconhecida, lembrando, assim, que as próprias ins-tituições atuam também como agentes da violência. As instituições – de educação, de segurança, de saúde, de ação social e outras – apresentam funcionamentos violentos, que, quando existem, devem ser explici-tados e analisados. Estes não se confundem, mesmo contribuindo para explicá-las, com as possíveis práti-cas violentas de seus representantes.

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Enfim, um terceiro e último tipo de violência, já discutido em vários fóruns, é aquele que caracteriza o conjunto das relações sociais e o funcionamento da própria sociedade: a violência estrutural. A misé-ria, o desemprego, as desigualdades sociais, a falta de oportunidades, a presença insuficiente ou inadequada do Estado, além de constituir uma possível causa de comportamentos violentos, devem ser considerados como elementos da violência em si, que se dá, nesses casos, de maneira generalizada, onipresente, embora nem sempre legível. É a violência pela qual a socieda-de organiza o próprio desenvolvimento, desconhecen-do, oprimindo ou excluindo seus componentes. Nesse sentido, a violência é dada também pelo caráter im-previsível das relações sociais, pela perda de controle sobre os destinos individuais e coletivos, pela diminui-ção das lógicas de solidariedade e pelo crescimento do individualismo. Assim, é possível dizer que a estrutura social, pela injustiça que a caracteriza, é violenta.

Pode-se, então, representar de forma sintética essa categorização das violências (Tabela 1), obser-vando que a lógica do sistema penal, por concen-trar-se unicamente nas pessoas físicas – os culpados

identificáveis – tende, essencialmente, a criminalizar as violências de tipo interpessoal, não dispondo de ferramentas para enfrentamento às demais.

Essa rápida categorização3 permite explicitar a complexidade do fenômeno. A violência existe sob várias formas, mais ou menos visíveis, em níveis dife-rentes, sendo importante caracterizar cada uma delas como manifestação da própria violência, e não como simples causa da violência mais espetacularizada. A prevenção à violência num sentido mais amplo, consequentemente, deve visar um objetivo muito mais complexo do que a simples ausência de violên-cia interpessoal – aquela mais familiarmente denun-ciada e dramatizada pela mídia.

A prevenção à violência é indissociável de outros processos, como a garantia de direitos, a participação e a democracia. O resultado esperado das ações de prevenção, portanto, não é só a limitação da violên-cia, mais sim o estabelecimento de canais de busca permanente, até conflitual, da maneira para se viver juntos. Cabe, portanto, discutir como isso pode ocor-rer nas práticas cotidianas, mostrando-se diversas formas de alcançar a prevenção à violência.

Violência Física Não física

Interpessoal Furto/estelionato Calúnia

Estupro Humilhação

Homicídio

Institucional Letalidade trabalhista Demissão arbitrária

Violência dos sistemas de educação, Exclusão institucional

segurança pública, saúde Exclusão da participação

Estrutural Desemprego Exclusão social e política

Seca Discriminação social,

Desigualdade racial, de gênero

Tabela 1 – Categorização das violências e exemplifi cações

3. Vale ressaltar que não foi aprofundada aqui a relação entre a “violência simbólica” e essas categorias de violência.

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Antes disso, cabe discutir, rapidamente, o conceito de segurança pública. Numa acepção ampla, este não designa, unicamente, as situações de ausência de crime, mas sim todas as situações de limitação da violência, no âmbito da sociedade. Assim, formular estratégias pre-ventivas capazes de produzir maior segurança significa encarar o desafio de não se recorrer somente ao sistema de justiça criminal para alcançar esse objetivo. Trata-se de romper com a hegemonia do paradigma penal na tematização dos conflitos sociais para enxergá-los em suas dimensões política, econômica, cultural e social.

Dessa forma, a política pública de segurança em um Estado Democrático deve ter caráter abrangente, transversal e integrado, considerando a complexida-de do fenômeno da convivência, os diferentes campos sociais envolvidos, os interesses diversificados da po-pulação e as características específicas de cada lugar.

AS DIVERSAS FORMAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA

A “complexificação” da leitura dos conflitos e da vio-lência, longe de ser unicamente um exercício intelec-tual, pode constituir uma ferramenta útil na hora de pensar nas formas para lidar com elas, nos diversos contextos em que aparecem, por meio de ações ou programas de prevenção. Nos parágrafos que seguem, propõe-se uma leitura das diversas formas de preven-ção às violências.

Quando se presta atenção aos ensinamentos de teo-rias criminológicas desenvolvidas nas últimas décadas sob o nome de “teorias da reação social”4, nota-se que existem diversas modalidades utilizadas pela sociedade para realizar o chamado controle ou regulação social da violência. O controle social é exercido por intermédio

de instâncias formais – leis, polícia, ministério público, tribunais, penitenciárias, outras instâncias jurídicas – e instâncias informais – família, escola, comunidade, or-ganizações da sociedade civil, mídia, costumes – por meio de uma série de articulações, nem sempre harmo-niosas, entre elas.

Por outro lado, ele se distingue entre modalidades preventivas do controle social – que ocorrem antes do evento violento acontecer – e modalidades reati-vas – exercidas, essencialmente, depois do aconteci-mento violento.

Enfim, quando se olha para as formas concretas do controle social, é possível distinguir três grandes for-mas de intervenção: a punição, a educação/terapia e a restauração. A punição constitui uma forma de reagir às condutas indesejáveis por meio de uma ação des-tinada a produzir sofrimento, como consequência da prática do ilícito. Nas palavras de Nils Christie (1998), trata-se de ministrar e distribuir, intencionalmente, uma quantia de dor relacionada a determinadas con-dutas tidas como negativas5. Note-se que a punição constitui uma resposta baseada na ideia de dissuadir o cidadão do cometimento da conduta inconveniente, pela ameaça do castigo.

Uma segunda modalidade de controle social é aquela que se dá por meio da educação ou da terapia, entendidas aqui no sentido mais amplo como formas de atendimento à pessoa. O que está em jogo, desta vez, é a possibilidade de influir sobre as causas de uma conduta violenta. No âmbito da intervenção reativa, os conceitos de educação ou de terapia tornam-se próxi-mos das noções de reintegração ou de reabilitação6. Esses dois modelos de controle social têm disputado espaço ao longo de todo século XX.

4. A criminologia, como ciência humana autônoma e multidisciplinar, estuda os fatores da ação criminosa ou desviante e as formas de uma determinada sociedade “reagir” para reprimir, controlar ou prevenir ou crime. Neste último caso fala-se em “teorias da reação social”.5. Vale lembrar que essa escolha das condutas criminalizadas não é algo que ocorre naturalmente, mas, ao contrário, depende das condições específicas de cada sociedade, das suas relações de força, dos grupos que detêm o poder, de sua cultura. O crime remete a uma maneira específica de pensar sobre a violência. O crime não é uma realidade natural, não existe por si mesmo, mas é algo socialmente construído. Isto mostra que o crime não é uma realidade em si, definida uma vez por todas, mas que a própria sociedade contribui para mudar essa definição no tempo e no espaço.6. Deixamos para outros momentos a crítica a esses conceitos, bem como do conceito de ressocialização.7. Por causa dos limites deste ensaio, essas duas modalidades não serão aprofundadas aqui.

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Modalidades do controle social Prevenção à violência Reação à violência

Punitiva Castigo familiar Pena criminal

Medida sancionatória escolar

Educativa/Terapêutica Cuidados domésticos Reintegração

Educação escolar Tratamento penal

Cura

Restaurativa/conciliatória Conciliação autônoma Ressarcimento/Mediação penal7

Mediação

Uma terceira forma de atuação é aquela centrada na ideia de restauração. Trata-se de produzir uma resposta que, envolvendo os diversos protagonistas do conflito – o autor, a vítima e a comunidade –, seja voltada para a busca de uma saída centrada na re-paração do dano, na evolução da relação entre eles, bem como nas suas respectivas contribuições para a “solução” do problema ou a restauração daquilo que foi rompido.

Dessa forma, é possível situar as diversas formas de controle social da violência, tanto no âmbito da prevenção – definida como o conjunto de ações ou projetos destinado a evitar uma situação problemá-tica – quanto da resposta a ela. A Tabela 2 oferece al-guns exemplos das categorias apresentadas.

Focando a leitura sobre a prevenção, trata-se ago-ra de formular as diversas modalidades de prevenção à violência, tal como foi definida. Assim, pode-se per-guntar: Prevenção de quê? Da violência? Interpesso-al, institucional ou estrutural? Qual, especificamente? Do crime? Qual? Da criminalização?

Reforçando, cabe deixar claro qual será o obje-tivo da ação de prevenção que se pretende traçar e implementar. Da mesma forma, vale especificar em que nível se produz a ação de prevenção, ou seja, em que nível é esperada a mudança. Em outras palavras,

a ação de prevenção pode visar transformações: (a) na estrutura social; (b) nas instituições; (c) na comu-nidade; (d) na família; (e) nas pessoas.

Ainda, é útil saber quais serão os atores encarre-gados de conduzir a ação ou o projeto de prevenção. Cabe distinguir, por exemplo, entre órgãos (1) de Se-gurança Pública, (2) de governo (outros setores), (3) da sociedade civil, (4) empresas e (5) comunidade.

Obviamente, esses atores poderão agir de forma mais ou menos integrada. Além disto, toda ação se fundamenta numa visão de mundo ou numa teoria distinta, valoriza determinados aspectos, desconsi-derando outros... Dessa forma, sustentamos que exis-tem diversos tipos de ações de prevenção, às vezes (in)compatíveis entre elas, e cada um privilegia obje-tivos, metas e metodologias distintos.

Enfim, foi feita a distinção, a título pedagógico, entre prevenção penal, prevenção situacional e pre-venção social. A prevenção penal é aquela ligada à existência da norma penal e à sua aplicação, por meio dos órgãos de repressão. Não nos alongamos sobre esse tipo de prevenção, mas cabe sinalizar que ela produz um risco de aumento da lógica do castigo e de seu caráter seletivo, com possível refor-ço da estigmatização e da visão hostil em relação a determinados grupos sociais: jovens, moradores de

Tabela 2 – Modalidades do controle social: exemplos

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“periferias”, pessoas negras etc. Da mesma forma, as práticas repressivas são aquelas que aumentam o risco de violência institucional.

Existe, também, a prevenção situacional, centra-da na ideia de redução das oportunidades por meio da adequação ou modificação técnica do espaço físi-co (telecâmeras de segurança, grades, desenho ur-bano etc.).

Enfim, existe a prevenção dita “social”, na qual o que importa é intervir nas causas das situações que se pretende prevenir. No âmbito da prevenção social, costuma-se diferenciar entre prevenção pri-mária – aquela que se destina ao conjunto da po-pulação –; prevenção secundária – aquela que se destina a grupos de risco –; e a prevenção terciária – aquela que é voltada para impedir as recaídas ou reincidências.

Em matéria de prevenção social, são apresenta-das seis modalidades de programas de prevenção, em nível local, numa lista que poderia ser amplia-da. Obviamente, seria possível tecer mais uma série de considerações sobre essas modalidades, mas, considerando os limites desta contribuição, serão apenas nomeadas, citando-se algumas característi-cas específicas.a) Prevenção à “inadaptação individual”: aquela

que se dá por meio de ações que visam aumentar as capacidades individuais de diversa ordem.

b) Prevenção ao “esgarçamento social”: ações de prevenção voltadas para o fortalecimento dos la-ços sociais na comunidade.

c) Prevenção à “exclusão cultural e reflexiva”: realizada qualificando as pessoas e os grupos em termos de aquisição de informações, troca de sa-beres e o estimulo à reflexão e ao debate.

d) Prevenção à “agudização dos conflitos”: au-mento do acesso à Justiça, sobretudo pelo incre-mento das formas alternativas de resolução de conflitos (mediação).

e) Prevenção à “exclusão política”: fortalecimento das capacidades coletivas de mobilização, organi-zação e participação.

f) Prevenção à “violência institucional”: redução da violência institucional, entendida como ele-mento importante da violência geral.

PARA NÃO CONCLUIR...

Foi possível situar a prevenção como um conjunto de estratégias de enfrentamento à violência. Tenta-mos nos afastar da lógica do castigo, que perpetua uma dinâmica social centrada na ideia de hostili-dade, que enxerga o “outro” em suas potencialida-des negativas e em sua periculosidade. A preven-ção social propõe lógicas diferentes ao centrar sua atenção na conflitualidade humana considerada problema, mas também como campo de entrelaça-mento de potenciais positivos. O “outro” não induz, unicamente, uma reação defensiva, um reflexo de medo. Aliás, “minha” própria maneira de enxergar o outro está em discussão, bem como a capacidade da autoridade de produzir uma solução sozinha, sem a contribuição daqueles diretamente envolvi-dos no conflito.

Por isso, a prevenção não constitui somente uma prática, mas um horizonte pautado na concep-ção do outro e das relações sociais, voltado para a “costura”... e não simplesmente para o “corte”. Tal horizonte torna-se crucial para a criação e a difu-são da capacidade de enfrentamento às violências institucionais e estruturais. De qualquer forma, pa-rece importante reconhecer que fazemos parte de todos esses processos, sabendo que é inútil esperar por uma medida mágica, única, externa à nossa res-ponsabilidade, que possa dar conta da redução da violência. Ou, mais ainda, que possa dar conta da nossa ansiedade frente à alteridade – representada também pelo conflito e a violência – e a inevitável dificuldade de vivê-la...

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Riccardo Cappi

Doutor pela Escola de Criminologia da Universidade Católica de Louvain, Bélgica (2011). Mestre em Ciências Econômicas

pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica (1988). Atualmente, é professor titular da Universidade Estadual de Feira de

Santana (Uefs) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb); professor colaborador do mestrado profi ssional em Segurança

Pública, Justiça e Cidadania (UFBA) e do mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

Tem experiência nas áreas de Criminologia e Sociologia Criminal, atuando principalmente com os seguintes temas: estudo do

controle social, segurança pública, justiça criminal, análise de produção legislativa, delinquência juvenil, práticas educativas e

de prevenção, medidas sócioeducativas.

REFERÊNCIAS

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BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996.

CHAUI, M. Uma ideologia perversa. Folha de S. Paulo, 14 mar. 1999.

CHRISTIE, N. A indústria do controle do delito. Tradução de Luis Leiria. O caminho dos GULAGs em estilo ocidental. São Paulo: Forense, 1998.

FAJET J. La médiation. Essai de politique pénale. Toulouse: Erès, 1997.

MOLINA, A. G. P.; GOMES, L. F. Criminología. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

ZAFFARONI, R.; PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1998.

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O paradigma dos fatores de risco

Marcos Rolim

Nas últimas décadas, a criminologia tem assistido a emergência de novas concepções a respeito do crime e da violência. Uma das abordagens mais promisso-ras é identificada como “Paradigma dos Fatores de Risco” (FARRINGTON, 2000). A ideia básica é identifi-car os fatores-chave que aumentam as chances para a prática de infrações e desenhar as iniciativas de pre-venção adequadas e específicas. A perspectiva, inspi-rada pela epidemiologia e por vários dos conceitos empregados pela Saúde Pública, lida com evidências e com raciocínios probabilísticos e exige, assim como na Medicina, diagnósticos concretos. Uma das defini-ções mais conhecidas para Fatores de Risco na crimi-nologia foi oferecida por Mrazek e Haggerty (1994)1

nos seguintes termos: “Aquelas características, vari-áveis ou perigos que, uma vez presentes na vida de um indivíduo, fazem com que seja mais provável que este indivíduo, mais do que alguém da população em geral, desenvolva desordem”.

Enquanto os fatores de risco, normalmente identi-ficados na infância e na adolescência, dizem respeito ao possível envolvimento futuro em atos disruptivos, os “fatores protetivos” exerceriam efeito inverso, construindo possibilidades de maior resiliência dian-te das dificuldades e carecimentos. Por isso, não se pode compreender os fatores de risco como determi-nação de qualquer ordem. O fato de uma criança ter sido exposta a fatores de risco não significa que ela será um adulto envolvido em atos criminais ou práti-cas violentas. Pelo contrário, o mais provável é que a

grande maioria das crianças que passou por experiên-cias traumáticas não desenvolva tais comportamen-tos na idade adulta. A relação estatisticamente signifi-cativa é um pouco mais complexa e pode ser mais bem compreendida a partir dos conceitos de prospecção e retrospecção. Do total de crianças submetidas a uma série de fatores de risco, apenas uma pequena parce-la será envolvida em dinâmicas criminais e violentas na idade adulta. Entretanto, entre aqueles adultos que manifestarão comportamentos criminais e violentos, o número dos que vivenciaram fatores de risco na infância tende a ser muito alto. Prospectivamente, os resultados criminogênicos medidos em estudos de natureza longitudinal parecem pouco importantes; retrospectivamente, entretanto, se revelam muito expressivos2. A diferenciação é fundamental para se situarem corretamente os esforços de prevenção ao crime e à violência e, ao mesmo tempo, evitar inter-pretações reducionistas e deterministas que tende-riam a legitimar abordagens estigmatizadoras.

Rutter (1987)3, por seu turno, sustenta que “fa-tores protetivos previnem a delinquência por quatro processos: reduzem riscos, reduzem reações negati-vas em cadeia, estimulam a autoestima e a confiança nas próprias capacidades e criam oportunidades”.

Em relação ao crime e à violência, sabe-se que am-bos os fenômenos estão relacionados com fatores de risco. Entretanto, raramente será encontrado um úni-co fator de risco na base de cada evento criminal e/ou violento. O impacto dos fatores de risco varia muito

1. MRAZEK, P. J.; HAGGERTY, R. J. (Ed.). Reducing risks for mental disorders: Frontiers for preventative intervention research. Washington, DC: National Academy Press, 1994. Apud Pollard et al. (1999:145)2. Uma das formas para se dimensionar este fenômeno é oferecida pelos estudos que empregam a abordagem conhecida como “História de Vida”. Pode-se, entretanto, estabelecer correlações estatisticamente significativas apenas a partir de registros e dados oficiais. Neste particular, entre os estudos pioneiros sobre fatores de risco, merece destaque o trabalho de Sheldon e Eleanor Glueck, da faculdade de direito de Harvard (EUA), Unraveling Juvenile Delinquency, 1950.3. RUTTER, M. Psychosocial resilience and protective mechanisms. American Journal of Orthopsychiatry, 57(3):316–331, 1987. Apud Shader [s.d.], p. 3.

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de acordo com o estágio de desenvolvimento dos in-divíduos. Exposição a múltiplos fatores de risco geram efeitos cumulativos. Fatores protetivos contrastam com fatores de risco e podem compensá-los. Gar-mezy (1985) e Rutter (1979)4 afirmam que “Fatores protetivos são aqueles que minimizam ou moderam os efeitos da exposição aos fatores de risco, resul-tando em redução da incidência de problemas de comportamento”.

Quando se lida com o paradigma dos fatores de ris-co, é possível desenvolver políticas públicas com foco preciso. Na ausência desta abordagem, o mais prová-

vel é que os esforços sejam desperdiçados. No Brasil, por exemplo, ainda é muito comum que os critérios de elegibilidade para iniciativas de prevenção ao cri-me e à violência sejam definidos a partir de indicado-res econômico-sociais. Assim, se costuma pensar, por exemplo, que áreas periféricas, de pobreza/miséria, devam ser alvo de políticas de prevenção. Esse olhar, que assinala já de início uma perspectiva redutora in-capaz de perceber o crime e a violência praticados pe-las camadas privilegiadas, perde também a chance de conhecer as enormes diferenças existentes nas comu-nidades mais pobres. Em verdade, os carecimentos de

4. GARMEZY, N. Stress-resistance children: the search for protective factors. In: STEVENSON, J. E. (Ed.) Recent research in developmental psychopathology (p. 213-233) New York: Pergamon Press, 1985; e RUTTER, M. Protective factors in children’s response to stress and disadvantage. In KENT, M. W.; ROLF, J. E. (Ed.) Primary prevention of psychopathology: Social competence in children (vol. 3). Hanover, NH: University Press of New England. 1979. Apud Pollard et al. (1999:145).

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ordem material constituem apenas um dos múltiplos fatores de risco que concorrem para a reprodução de dinâmicas criminais e violentas. Para que se tenha um foco preciso, será necessário levar em conta muitos outros fatores de risco, desde aqueles que dizem res-peito aos indivíduos mesmo – e que antecedem seu pertencimento a uma comunidade – até os fatores de risco de natureza familiar, escolar e comunitários. Weatherburn e Lind (1997), por exemplo, encontra-ram que a negligência dos pais era o mais importan-te fator de risco. Mais forte do que a pobreza, do que ausência de um dos pais, do que famílias numerosas e do que abuso sexual. Eles estimaram que, mantidos os demais fatores estáveis, um aumento de mil no-vas crianças negligenciadas por seus pais produziria mais 256 adolescentes envolvidos em comportamen-tos infracionais; o mesmo aumento no número de famílias pobres resultaria em mais 114 adolescentes transgressores.

Além disso, será preciso levar em conta que os mesmos fatores de risco exercem efeitos distintos, a depender do estágio de desenvolvimento das pesso-as. Determinadas situações vividas por crianças po-dem ser devastadoras e não terem o mesmo impacto na adolescência. Por isso, alguns programas de pre-venção podem ser efetivos na infância e fracassar na adolescência e vice-versa. Fatores de risco, no mais, tendem a ser muito diversos para os indivíduos que já se envolveram com a violência e a infração.

Herrenkoh et al. (2000) encontraram que uma criança de dez anos de idade exposta a seis ou mais fatores de risco possui dez vezes mais chances de co-meter um ato violento aos 18 anos do que uma crian-ça da mesma idade exposta a um único fator de risco. Evidências do tipo são decisivas para políticas públi-cas eficientes capazes de trabalhar com foco.

Para se pensar em prevenção ao crime e à violên-cia, deve-se lidar com abordagens de prevenção pri-mária, secundária e terciária. São delineadas políticas de prevenção primária quando a atenção se dirige,

indistintamente, às pessoas. Normalmente, políticas do tipo são definidas por leis e regulamentos. Assim, por exemplo, a lei que proíbe dirigir depois da inges-tão de bebidas alcoólicas tem um sentido de preven-ção primária. As políticas de prevenção secundária são aquelas que se dirigem a grupos que já enfrentam riscos especiais para o envolvimento com o crime ou para a vitimização. Uma iniciativa que busque atrair para as escolas os jovens que delas se evadiram seria um exemplo. Já as políticas de prevenção terciária são aquelas que se destinam às pessoas que se envolve-ram com o crime e a violência ou que foram vitimadas. Uma efetiva política de apoio aos egressos do sistema prisional, que assegurasse oportunidades de trabalho reduzindo fortemente os indicadores de reincidência, ilustraria bem o potencial da prevenção terciária.

O paradigma dos fatores de risco revela dinâmi-cas normalmente desconhecidas e que exercem um profundo impacto sobre as sociedades modernas. A própria experiência do encarceramento fornece mui-tos exemplos de disfuncionalidades não percebidas. Ferguson (1952), em um estudo com 1.349 meninos de Glasgow que haviam deixado a escola aos 14 anos de idade, encontrou que 12% deles foram condena-dos até os dezoito anos. Então, ele “abriu” esses dados, descobrindo que, do total de jovens condenados, 9% não possuíam um familiar previamente condenado; 15% tinham um familiar condenado; 30% tinham dois familiares condenados; e 44% tinham três ou mais familiares previamente condenados. Seu traba-lho demonstrou que ter um parente condenado era um fator de risco para a infração que operava de forma independente diante de outros fatores como pobreza, famílias numerosas ou baixa frequência escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, o paradigma dos Fatores de Risco segue sendo, como regra, desconhecido. Ao invés de evi-dências científicas que amparem políticas públicas, segue-se selecionando alternativas de forma impro-

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REFERÊNCIAS

FARRINGTON, D. P. Explaining and preventing crime: The globalization of knowledge – The American Society of Criminology 1999 presidential address. Criminology 38(1):1-24, 2000.

FERGUSON, T. The young delinquent in his social setting. London: Oxford University Press, 1952.

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WEATHERBURN, D. e LIND, B. Social and economic stress, child neglect and juvenile delinquency. Sydney: NSW Bureau of Crime Statistics and Research, 1997.

Marcos Rolim

Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (UFRGS), com graduação em Jornalismo pela

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Foi professor

visitante na Universidade de Oxford – UK, onde se especializou

em segurança pública. É professor da Cátedra de Direitos

Humanos do Centro Universitário Metodista (IPA), em Porto

Alegre, e consultor em políticas públicas. Integra o Conselho

Administrativo do Centro Internacional de Promoción de

los Derechos Humanos (CIPDH), órgão vinculado à Unesco,

sediado em Buenos Aires – AR e é membro fundador do Fórum

Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Autor, entre outros,

de A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança

pública no século XXI (Editora Zahar, 2006).

visada, sem diagnósticos minimamente delineados e sem monitoramento e avaliação de resultados. Tornou-se “normal” que nossos gestores na área re-produzam, simplesmente, as mesmas iniciativas rea-tivas e repressivas que identificam, historicamente, as abordagens do tipo “Lei e Ordem”; no que são es-timulados por políticos demagogos e por segmentos da mídia que transformam a violência em um espe-táculo e que disseminam o populismo penal. Para piorar o quadro, o Brasil se ressente de uma tradição mais robusta de pesquisas em segurança pública, especialmente de estudos longitudinais e quantitati-vos. Os resultados são conhecidos e se traduzem em uma tragédia sem fim.

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Em busca de um “lugar” para a prevenção à violência

Haydée Caruso

Este ensaio pretende trazer para o centro da conversa um tema que é bastante falado, ainda pouco compre-endido e raramente aplicado nas políticas públicas de segurança pública do país. Trata-se da Prevenção à Violência. Mais especificamente, da articulação entre o tema prevenção e os possíveis fatores de risco que podem levar a determinadas práticas e condutas con-sideradas violentas. Não se pretende, aqui, esgotar o repertório de fatores que gera riscos para a convivên-cia cidadã, mas colocar luz sobre questões que, coti-dianamente, impactam a vida em sociedade e que são pouco problematizadas e reconhecidas como gerado-ras de desordens, incivilidades, medos e violências.

Os subsídios para promover um diálogo sobre esse tema vieram das experiências com gestores e operadores da segurança pública de todo o país, com os quais tive a oportunidade de interagir como pro-fessora do curso de Convivência e Segurança Cidadã promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em parceria com o Minis-tério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp-MJ). Assim, parte das dis-cussões e dos exercícios realizados serviu de insumo para a reflexão ensaística proposta neste texto.

Um ponto parece central antes de se avançar nes-ta conversa. Cabe deixar claro para o(a) leitor(a) que o percurso argumentativo aqui adotado pretende levar a refletir sobre os limites e alcances das ações de prevenção à violência, no âmbito da segurança pú-blica. Isto porque há um senso comum ampliado de que qualquer atividade educativa, esportiva, musical e lúdica, em última instância, pode ser classificada e enquadrada como “prevenção à violência”; sobretudo,

se estiver endereçada à população jovem e pobre das periferias das cidades. Há efeitos perversos para a cidadania brasileira nessa ampliação desmedida da regulação e do controle1 – exclusivamente – sobre determinadas populações consideradas em situação de vulnerabilidade social. Qual seria? A de rotulá-las e classificá-las sempre como “suspeitos” a serem re-primidos, vigiados e até mesmo excluídos. Assim, é preciso considerar que atuar de forma preventiva em segurança pública é estar atento, constantemente, ao risco de generalizações e rotulações indevidas.

A proposta aqui é, portanto, primeiro compreen-der os contornos do tema da prevenção no contexto da segurança pública, sem desconsiderar que esses contornos são flexíveis, na medida em que não há como pensar sobre prevenção à violência e à crimi-nalidade sem a articulação necessária com outras po-líticas públicas das áreas de educação, cultura, saú-de, esporte, trabalho, assistência social, entre outras. Mas, o que, afinal, singulariza o tema da prevenção à violência? Deve-se, antes, compreender, brevemente, como essa discussão chega ao contexto brasileiro.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA NO CONTEXTO BRASILEIRO

Para entender como o tema da prevenção à violên-cia surge no contexto brasileiro, é preciso consi-derar duas questões fundamentais. A primeira diz respeito ao próprio processo de redemocratização do país, nos anos de 1980, culminando com a pro-mulgação da Constituição de 1988, na qual o tema cidadania2 ganha centralidade, por meio da garantia

1. Para um debate teórico sobre Controle Social, ver: GARLAND, David. A cultura do controle – crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2008. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.2. Ver: CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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e da ampliação constitucional de direitos individuais e coletivos. Toda literatura3 produzida, nas últimas duas décadas, aponta para a importância do Arti-go 144, por colocar luz sobre a Segurança Pública como direito social, bem como por ampliar o escopo de atores e instituições responsáveis por promover e garantir esse direito. É justamente na virada para os anos de 1990 que se inicia, no Brasil, uma impor-tante discussão sobre Segurança Pública; não mais em relação à chave exclusiva da repressão do Estado perpetrada pelas polícias sobre os cidadãos, mas a respeito da possibilidade de se atuar a partir da ideia de que essas mesmas polícias, especialmente as mi-litares, possam ser responsáveis por ações preventi-vas. Vale destacar aqui o fato de que as polícias mili-tares brasileiras, por serem, constitucionalmente, as responsáveis pelo chamado policiamento ostensivo, poderiam e deveriam garantir a ordem, também, por meio de ações que se antecipassem ao cometimento de violências e crimes. Essa foi uma decisão políti-ca marcada pela ideia de que a polícia precisava ser cidadã; de que não mais seria aquela em defesa do Estado contra os cidadãos, mas sim a peça central na construção do Estado Democrático de Direito. Essa virada paradigmática – que aparece com mais ên-fase no plano do discurso do que, efetivamente, no mundo das práticas – não pode ser desconsiderada. A despeito do muito que ainda se precisa avançar para que existam polícias efetivamente democráti-cas e respeitadoras dos direitos humanos, é inegável que a Constituição de 1988 abre as polícias para os cidadãos ao mesmo tempo que a população se sente estimulada a ser copartícipe da Segurança Pública.

Essa não é uma conquista trivial. É preciso conside-rar como um importante avanço para a democracia e a cidadania no Brasil, pois o tema Segurança Pública deixa de ser “coisa de polícia”, para ser preocupação e atuação de todos.

O segundo ponto fundamental diz respeito à agenda internacional, uma vez que a Organização das Nações Unidas, por intermédio do PNUD, traz para o centro da discussão a articulação entre segurança pública e direitos humanos, resultando numa pers-pectiva de segurança cidadã4. No caso latino-ameri-cano e no Brasil, em particular, a influência das or-ganizações internacionais se fez fortemente presente por meio do fomento a ações, projetos e programas tanto governamentais quanto não governamentais que desenvolvessem, por exemplo: programas de po-liciamento comunitário, de formação policial, de pre-venção à violência com foco nas juventudes e nas re-lações de gênero, de mediação de conflitos, de planos integrados de segurança cidadã, entre outros.

A expectativa de uma nova linguagem social que tivesse ancoragem na administração institucional dos conflitos passou a permear a agenda políti-ca brasileira5. Assim, o tema prevenção à violência tanto ganhou força política, em razão da redemo-cratização, quanto influência internacional, a partir de experiências consideradas “bem-sucedidas” em outros contextos. Todavia, a questão não está plena-mente internalizada em nossa sociedade e o apetite punitivista, marcado pela lógica da atuação a poste-riori, que resulta em mais criminalização de deter-minados grupos vulneráveis, ainda é percebido na dinâmica da gestão pública, das polícias e da própria

3. Ver: SENTO-SÉ, João Trajano. A construção de um discurso sobre segurança pública no âmbito nacional: apontamentos para um programa de pesquisa. Revista Dilemas, Rio de Janeiro, v. 4, nº 3, 2011.4. Ver: FREIRE, Moema. Paradigmas de Segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. Revista Aurora, ano 3, nº 5, 2009.5. Podem ser identificados os primeiros esforços, mesmo que tímidos, desta articulação, no Primeiro Plano Nacional de Segurança Pública do país, produzido no fim do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, que propõe o diálogo entre Segurança Pública e Direitos Humanos. Entretanto, a virada paradigmática se deu com o Plano Nacional de Segurança Pública do primeiro governo de Lula, com a proposta (não implementada) do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). No segundo governo Lula, a novidade esteve a cargo do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), que ampliou a articulação entre os entes federados e colocou na ordem do dia a temática da prevenção à violência. No atual governo Dilma, seu segundo mandato, há um esforço em se construir um Pacto Nacional de Redução de Homicídios. Para ampliar o debate sobre os planos nacionais em segurança pública, ver: Sento-Sé (2011); e Sá e Silva (2014).

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sociedade. Eis o desafio contemporâneo, quando se pensa em produzir perspectivas preventivas de ações em segurança pública.

ORDEM PÚBLICA, CONFLITO E PREVENÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO POSSÍVEL?

Em linhas gerais, pode-se afirmar que a ordem pública que se almeja democrática é dinâmica, histórica, plu-ral e conflituosa. Mas, por que se fala, aqui, em ordem pública para discutir violência e seus fatores de risco? Porque é preciso compreender, de modo mais amplia-do, que a ordem pública é marcada por seu caráter di-nâmico, resultando em um espaço plural de socializa-ção, no qual diversos grupos interagem; ora havendo convergência em seus interesses, ora tendo divergên-cia, mas todos atuando socialmente de modo a fazer valer suas reivindicações, direitos e deveres. Portanto, numa perspectiva sociológica, o conflito6, visto, por ve-zes, como algo negativo, pode sim ser compreendido como sinal positivo na medida em que se traduz na base da construção social e, por sua vez, a sua adminis-tração pode sustentar a ordem pública democrática.

Dito isso, é importante frisar que conflito não é si-nônimo de violência. Qualquer sociedade é constituída por grupos que podem ter interesses que se opõem, mas não necessariamente os conflitos nela presentes resultam em violências entendidas aqui como situa-ções que geram danos de várias ordens: físicos, psi-cológicos, sociais e simbólicos que atingem um indi-víduo ou determinados grupos. Aquilo que é definido socialmente como não aceitável, porque fere as regras sociais, as normas vigentes ou as moralidades de uma sociedade, precisa ser objeto de um olhar atento dos profissionais de segurança pública, por exemplo.

É nesse sentido que a prevenção à violência sur-ge, então, como a possibilidade de uma ação que se materializa no presente, mas é orientada para o fu-turo, à medida que pretende intervir em causas, pos-

sibilidades e oportunidades para o surgimento de eventos desordeiros, violentos e até criminosos. Essa é uma ação difícil de ser construída, aplicada, monito-rada e avaliada, por não ser compreendida como algo tangível. Por vezes, as ações preventivas são invisíveis no rol de possibilidades de atuação em segurança pública, por não possuírem os atributos rentáveis e quantificáveis que orientam a forma de medir o que a polícia faz. Isto é, quanto de coisas ela apreende e quantas pessoas ela prende. Assim, a lógica ainda pre-sente de mensuração do trabalho policial7 pautado em coisas e pessoas apreendidas acaba por colocar o tema prevenção em segundo plano. Atuar preventi-vamente não deve ser confundido com colocar a vida social em suspenso; isto é, ter a falsa ilusão de que é possível prevenir, em absoluto, comportamentos, prá-ticas, formas de estar e viver no mundo social que são consideradas indesejáveis num determinado tempo e lugar. Não se trata disso e sim da possibilidade de bus-car canais de interlocução entre os membros da socie-dade e as próprias instituições de segurança pública, no sentido de promover a convivência cidadã.

FATORES DE RISCO: O QUE SÃO E COMO REDUZIR?

Quando se parte da ideia de que é possível mapear hábitos, comportamentos, características sociocultu-rais, condições e circunstâncias que facilitam ou sus-citam – em determinado momento – a ocorrência de desordens, violências e crimes, pode-se pensar nos fatores que geram riscos para um grupo, comunidade ou para a própria sociedade.

Mas, quais seriam, por exemplo, esses fatores? Existem inúmeros e todos se referem a um determina-do contexto social, econômico e cultural, mas é possí-vel identificar alguns que, tradicionalmente, aparecem na literatura sobre o tema e que, no contexto brasilei-ro, são igualmente recorrentes. São eles: ambientes

6. A noção de conflito é aqui trabalhada na perspectiva proposta por Simmel (1955). Para ampliar o debate sobre o contexto brasileiro, ver: Kant de Lima (1996); e DaMatta (1997).7. Ver Muniz (1999) e Caruso(2004).

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fisicamente degradados; espaços públicos particulari-zados; rompimento de vínculos sociais, comunitários e familiares; contextos marcados por desigualdades de oportunidades; presença de violência doméstica e de gênero; ausência de espaços para sociabilidade ju-venil; locais marcados pelo abuso de álcool e drogas; locais com acesso facilitado a armas de fogo; ausência de diálogo entre polícia e sociedade; e ausência de po-líticas inclusivas de prevenção à violência.

Diante desse quadro, que é comum em diversos dos contextos em que vivemos ou atuamos profissio-nalmente, como é possível pensar em formas de re-duzir tais riscos?

Essa não é uma resposta simples de ser dada, tam-pouco há uma fórmula mágica para esse fim. Entretanto, uma possibilidade metodológica resultante da experi-ência de sala de aula, referida no início deste ensaio per-mite pensar na criação de Mapas Sociais8 que auxiliem na tomada de decisão de gestores públicos e policiais.

Imaginemos que seja preciso intervir em determi-nada localidade que, recorrentemente, tem aparecido como desafiadora para a segurança pública. Sabe-se apenas o que a mídia diz sobre tal local e que, por vezes, essa narrativa é impregnada de estereótipos e versões distorcidas do que, efetivamente, ocorre em determi-nado contexto. Pode-se, então, propor o seguinte per-curso para conseguir compreender as condições que levam a determinadas práticas violentas naquele local.

Pode-se pensar em mapear lugares: a) identifica-dos por seus moradores e frequentadores como os mais importantes da comunidade; b) de recreação e dispersão da comunidade (parques, quadras, áreas verdes, bares); c) para práticas religiosas de diferen-tes matrizes; d) onde estão as escolas; e) e onde está o comércio, por exemplo.

Fazer a identificação física desses lugares que re-sultem num mapa pode auxiliar os profissionais de segurança pública atentos às demandas, reclamações e sugestões da população local a passarem para um segundo e importante momento desse exercício, que é a identificação dos fatores que geram desordens, vio-

lências e crimes e que, portanto, surgem como fatores de riscos. O que poderia causar medo e insegurança, por exemplo? A lista pode ser infindável, mas algumas questões, geralmente, aparecem, tais como: a) locais com pouca iluminação pública; b) espaços marcados por poluição visual e ambiental; c) áreas que são co-nhecidas pela prática de atos violentos e criminais; d) presença de gangues (e/ou grupos armados); e) pre-sença de grupos de vendas de drogas; g) equipamen-tos públicos degradados; e h) espaços ociosos.

Atuar, preventivamente, em segurança pública a partir de elementos concretos apresentados pela população local, pelos registros policiais e pelo olhar atento de profissionais com experiência empírica pode ser um caminho interessante a seguir, uma vez que não é recomendável a importação de projetos de prevenção à violência que não respondam aos an-seios da população e às demandas locais. Igualmente, não é possível antecipar-se a eventos (ou pelo menos tentar) quando não se conhece a dinâmica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio, pretendeu-se problematizar, breve-mente, o tema prevenção à violência, à medida que há certa confusão dos limites e possibilidades de inter-venção. Enfatiza-se que qualquer projeto social não pode ser entendido como projeto de prevenção à vio-lência; isso não quer dizer que ações sociais não po-dem estar contidas em uma estratégia de prevenção. Mas, essas ações só serão preventivas à medida que responderem a problemas de violência e criminalida-de identificados e compreendidos, minimamente. É óbvio que essa é uma tarefa árdua, uma vez que a no-ção de violência é marcada por sua polissemia e mul-ticausalidade. Não se tratou aqui de propor receitas aplicáveis, indistintamente, em qualquer contexto, mas de se buscar problematizar o real, no sentido de estimular um olhar crítico e atento dos profissionais de segurança pública que precisam lidar com os desa-fios de garantir a ordem respeitando a pluralidade de atores que compõem a vida em sociedade.

8. O exercício se inspira na proposta metodológica denominada Mapas da Insegurança apresentada por Acero (2012, p. 20-22), em Estratégias Locais de Segurança Cidadã. Recife: Editora Provisual, 2012.

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REFERÊNCIAS

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CARUSO, H. Entre ruas, becos e esquinas: por uma antropologia dos processos de construção da ordem na Lapa Carioca. Tese (Doutorado, PPG em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.

COSTA, A. T. M.; LIMA, R. S. Segurança pública. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli de. (Org.). Crime, polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

DAMATTA, R. Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil. In: ______. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1997.

FREIRE, M. Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. In: Revista Aurora, ano 3, nº 5, 2009.

LIMA, R. K. A administração de conflitos no Brasil: a lógica da punição. In: ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto. (Org.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ-FGV Editora, 1996.

MUNIZ, J. O. Ser policial é sobretudo uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) – PPG em Ciência Política, Iuperj: Rio de Janeiro, 1999.

______. Despolitização da segurança pública e seus riscos. In: Sociedade em perspectiva – cultura, conflito e identidade. Ed. Gramma, 2012.

PNUD. Coletânea Convivência e segurança cidadã: guias de gestão territorial participativa. 2013.

ROLIM, M. A síndrome da rainha vermelha – policiamento e segurança pública no século XXI, Ed. Zahar, 2006.

SÁ E SILVA, F. Violência e segurança pública. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014.

SENTO-SÉ, J. T. (Org.) Prevenção da violência – o papel das cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

______. A construção de um discurso sobre segurança pública no âmbito nacional: apontamentos para um programa de pesquisa. Revista Dilemas, Rio de Janeiro, v. 4, nº 3, 2011.

SIMMEL. G. Conflict and the web of group-affiliations. New York: The free press, 1955.

Haydée Caruso

Doutora em Antropologia. Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. É pesquisadora do Núcleo de

Estudos sobre Violência e Segurança - NEVIS/UnB e do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de

Confl itos - INeAC. Atualmente é membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Espaços Urbanos Seguros – Relações entre arquitetura e criminologia no contexto urbano e a importância do planejamento participativo

Paloma Padilha de Siqueira

Pretende-se abordar, neste ensaio, a importância dos espaços públicos de qualidade no planejamento da cidade segura, o papel que o entorno físico desempe-nha no desenvolvimentodo ser humano e como tudo isso se relaciona com o atual desafio global: a susten-tabilidade urbana.

A partir desse entendimento, será enfatizada a necessidade de aproximar cidadãos e profissionais de diversas disciplinas, inclusive arquitetos e urba-nistas, implicados em processos de planejamento e melhoria dos espaços públicos.

Para isso se propõe a utilização de ferramentas de análise e diagnóstico específico que se embasam nos conceitos e teorias vivenciados nas sessões do curso de Convivência e Segurança Cidadã, a fim de encora-jar a participação ativa de diferentes atores e a iden-tificação direta de problemáticas locais por meio de exercícios práticos.

PODE O DESENHO URBANO CONTRIBUIR PARA A PREVENÇÃO DE DELITOS?

A arquitetura, o planejamento e o desenho urbano, embora tenham grande influência sobre o compor-tamento social, como será demonstrado a seguir, evidentemente, não atuam sobre as extremidades da escala de comportamentos. Logo, embora não seja possível erradicar a delinquência pela qualidade do espaço, defende-se que por meio do desenho do es-paço é possível influir sobre o desenvolvimento hu-mano e, assim, contribuir, indiretamente, para a pre-venção de vários tipos de crime.

De um modo geral, quando se fala em prevenção ao crime por meio do desenho ambiental discorre-se sobre crimes situacionais e da melhoria da segurança subjetiva, que, por sua vez, está diretamente ligada à percepção sobre o ambiente, sendo de suma im-portância para favorecer a convivência e legitimar os espaços públicos como lugares de expressão da cida-dania (BORJA; ZAIDA, 2003).

CIDADE SUSTENTÁVEL É CIDADE SEGURA

“Uma cidade sustentável se organiza de maneira que possibilite a todos os seus cidadãos satisfazer suas próprias necessidades e elevar seu bem-estar, sem danificar o entorno natural e sem colocar em perigo as condições de vida de outras pessoas, agora ou no futuro”. Esta concepção, de Herbert Girardet (2001, p. 38), sintetiza o necessário equilíbrio entre os aspec-tos sociais, econômicos, urbanísticos e ambientais que deve existir para que uma cidade seja entendida como sustentável.

Apesar da evidência de que os critérios de susten-tabilidade vão muito além das questões ambientais, defende-se que esta pode ser, realmente, a questão--chave, o ponto de união em prol de um interesse co-mum a todos os povos.

No entanto, garantir condições favoráveis à con-servação e à recuperação do meio ambiente em en-tornos nos quais persistem a discriminação, a po-breza e as desigualdades em suas diversas formas e escalas é uma tarefa pouco menos que impossível.

Em meio a essas condições, a insegurança passa a ser um catalisador da falta de liberdade e empa-tia, qualidades imprescindíveis para o desenvol-

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vimento de comunidades participativas e cooperativas.

A consequência é uma sociedade que, na-turalmente, se deixa conduzir por decisões de governos e mercados, que, sozinhos, dificilmente levarão à construção de entornos sustentáveis.

É preciso, então, transformar esse círculo vi-cioso em um ciclo virtuoso, por isso, deve-se de-ter na questão da segurança no espaço público como aspecto crucial na mudançada dinâmica vigente1.

Ao se tratar a questão da segurança desde esse ponto de vista, são construídas, tam-bém, as bases para uma recuperação com-pleta e profunda da cidadania, ingrediente fundamental para a reconversão ecológica das cidades e do planeta.

OBSTÁCULOS E ESPERANÇAS

O medo parece ser uma importante forma de comuni-cação da sociedade contemporânea, na qual cidadãos fragilizados pelos valores da sociedade de consumo acabam fechando-se em si mesmos e em seus núcleos mais próximos, recorrendo a soluções privadas de de-fesa e fugindo da convivência (TONNUCI, 1997).

Mas, de que temos medo? Entender o medo urbano e desmistificá-lo pode ser o caminho para uma mudan-ça de comportamento social desejável e necessária.

Os medos coletivos refletem-se na forma urbana e da edificação, basta que se olhe para a quantidade de condomínios fechados, centros comerciais ou clubes privados existentes nas cidades grandes e médias. Esse tipo de organização social do espaço urbano e a construção fragmentada dificultam a convivência e favorecem a deterioração e o esvaziamento do espaço público (CALDEIRA, 2000).

PERCEPÇÃO AMBIENTAL: AGRAVANTE OU ATENUANTE?

Para a psicologia ambiental, toda conduta ocorre sempre e, necessariamente, em um contexto ambien-tal. Esta afirmação pretende chamar atenção para a importância que o ambiente físico tem sobre a expe-riência e o comportamento humano. Na arquitetura e no desenho urbano, a consideração da percepção como elemento mediador entre o homem e o am-biente, fortemente influenciada pelos princípios da teoria da Gestalt2 e de Piaget3, ganhou força no fim da década de 50 e os métodos de análise e estudos de-senvolvidos desde então seguem chamando atenção para a pertinência do tema.

1. O conceito de Cidade Sustentável foi utilizado como fio condutor das sessões sobre espaços urbanos seguros, conectando sempre a questão da segurança ao amplo panorama da organização dos diversos aspectos da vida urbana e, principalmente, ao resgate necessário da inclusão dos cidadãos no planejamento e na construção da cidade segura.2. A teoria da Gestalt considera que os objetos são vistos dentro de um conjunto de relações, fato que contribui para alterar a percepção sobre estes. Sobre a relação com a arquitetura, ver GOMES FILHO, J., 2000.3. Jean Piaget foi um importante teórico do construtivismo, que aborda o espaço de um ponto de vista psicológico e epistemológico. Suas teorias consideram, entre outros aspectos, que a realidade depende de um sujeito observador. Sobre a relação com a arquitetura, ver COLIN, Silvio, 2013.

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Com esses princípios em mente, ao pensar nos aspectos físicos da cidade, nas várias escalas, deve ser levado em conta não somente o desenho de vias, largos ou praças, mas, também, considerar a relação das edificações com esses espaços, uma vez que estas também compõem a imagem da cidade.

Alguns exemplos dessa relação de cada edificação privada com a imagem do conjunto da cidade são as casas ou edifícios que dão as costas para a rua, os mu-ros altos, as cercas elétricas e as grades. Que mensa-gem esses elementos transmitem e que efeito eles têm sobre a segurança do espaço público?

Outras mensagens, talvez mais sutis, podem ser os investimentos em calçadas, comparados aos inves-timentos em asfalto, bem como a comunicação desti-nada a condutores e a pedestres que, também, pode prestar-se a uma análise dos valores em uma cidade.

De um modo geral, quando se pretende melhorar a qualidade da convivência urbana, é desejável que haja interesse em compreender a mensagem transmitida não só por nossas ações em sociedade, mas também pelo conjunto físico construído, desde distritos e bair-ros até cada praça, rua ou casa.

A percepção da segurança também se relaciona diretamente com essas mensagens e estímulos do en-torno físico e social. Autores como Jane Jacobs (2009)e Oscar Newman (1996) elaboraram conceitos a par-tir da ideia da influência do entorno físico na prática criminal, discorrendo, incisivamente, sobre as ques-tões de convivência, vigilância natural e a delimitação clara entre espaços de uso público e privado – o que não deve ser entendido como falta de relação entre eles, e sim, que essas questões estão relacionadas à apropriação e ao cuidado privado ou coletivo.

A fragmentação do território, a quantidade de es-paços privados e o esvaziamento do espaço público representam fatores-chave para a percepção da segu-rança. Um cidadão caminha mais tranquilamente ao longo de uma rua com janelas, vitrines e presença de

outras pessoas do que ao longo de dezenas de metros de muro alto de um shopping ou supermercado.

Caminhar por ruas de bairros estritamente resi-denciais com pouca gente nas ruas é tão convidativo como caminhar em entornos mais complexos, com variedade de usos e tipologias? Que sentimento esses entornos geram em seus habitantes? Sentir-se orgu-lhoso de sua casa, bairro ou cidade pode ter influência no comportamento social do sujeito?

Nos locais onde a cidade é mais hostil, não necessa-riamente pela altura dos muros, mas pela falta de acesso às principais vantagens de viver em cidades (equipa-mentos, espaços de convivência e serviços públicos), normalmente é onde a sensação de insegurança é mais notável. Cabe refletir se pode ser por acaso que a inci-dência de crimes letais costuma concentrar-se em locais de maior vulnerabilidade social, menor qualidade am-biental, oferta de equipamentos e presença de verde.

Embora a percepção ambiental seja um fator a con-siderar em todas as escalas do planejamento, desde a forma urbana até a edificação, quando se atua sobre as escalas menores é quando mais cidadãos têm opor-tunidade de compreender essa problemática e parti-cipar, assim, das transformações. A difusão do saber arquitetônico entre diferentes grupos profissionais e para toda a cidadania é desejável e benéfico para a construção da cidade segura. A transformação física de um espaço público, como a reforma de uma praça, por exemplo, pode ser a desculpa perfeita para criar ou fortalecer uma comunidade em seu entorno.

ESTADO DA QUESTÃO – TEORIA E PRÁTICA SOBRE ESPAÇOS URBANOS SEGUROS4

Diversos autores teorizaram sobre a segurança urba-na, entre eles parece importante destacar Jane Jacobs, que, no início da década de 60, inovou ao tratar a ques-tão da vitalidade urbana de maneira ampla e integrada, considerando, pela primeira vez, a segurança comparti-lhada e destacando o termo eyes on the streets (os olhos

4. Para mais detalhes, ver RICARDO C.;SIQUEIRA P.; MARQUES, R. Estudo conceitual sobre espaços urbanos seguros. Revista do Fórum Nacional de Segurança Pública, nº 12, fev./mar. 2013.

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na rua). Para ela, é o movimento de pessoas, ainda que desconhecidas, um fator positivo e proporciona-dor de segurança. Jacobs até hoje é uma importan-te referência para diversos planejadores, autores e pesquisadores contemporâneos.

Outras importantes teorias são: Defensible Spa-ces, de Oscar Newman (1972); teoria situacional do crime, de Ray Jeffery (1971), criador da expressão CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design), em sua obra Criminal Behavior and the Phy-sical Environment; Space Sintax (1996) – que a bor-da teorias e técnicas de configuração espacial sobre vários temas e que associa a segurança ao fluxo dos movimentos na cidade –, desenvolvida na Univer-sidade de Bartlett, Londres, e conduzida por Bill Hillier.

Atualmente, o CPTED vem sendo amplamente di-fundido em diversos países como ferramenta para o projeto de espaços urbanos seguros. É interessan-te ressaltar que essa teoria não consiste em aplicar uma fórmula milagrosa e universal, seu êxito reside, justamente, em considerar cada lugar como único, desenvolvendo critérios genéricos e flexíveis para a adaptação a diferentes realidades. Isso exige um diagnóstico complexo e detalhado, característica que torna imprescindível a utilização do CPTED por equipes multidisciplinares, capacitadas para fazer análises contextuais e locais sobre diversos aspec-tos do espaço, seus habitantes e tipos de crimes que ocorrem nele. Somente respeitando a individuali-dade de cada caso o planejamento das intervenções será efetivo.

Observando experiências de Espaços Urbanos Se-guros em diferentes países, como Estados Unidos, In-glaterra, Canadá, Holanda, Chile, Colômbia, Espanha e Brasil, optou-se por destacar ações de equipes mul-tidisciplinares (e não somente do departamento de polícia) que extrapolam a escala local ou do edifício de forma individual para gerar complexas conexões entre diversos aspectos do contexto urbano; exempli-ficando: o Certificado de Casas Seguras, na Holanda; a inclusão de estudos de conceitos de segurança sus-tentável em leis e planos urbanísticos, nos Estados

Unidos; os laboratórios de Medellín, na Colômbia; ou o projeto de Seguridad Ciudadana, na Espanha.

EXERCÍCIOS PRÁTICOS COM OS ALUNOS

A argumentação até agora desenvolvida foi resumi-da em alguns critérios fundamentais, afim de facilitar a reflexão e a reelaboração dos conhecimentos dos participantes do curso de Convivência e Segurança Cidadã para sua aplicação em um exercício prático de análise de um espaço público real. São eles:• Identidade: reconhecimento de valor da

comunidade local.• Imagem: elementos que facilitem a leitura das

possibilidades de uso.• Acessibilidade: favorecer o acesso a grupos

vulneráveis.• Visibilidade: iluminação, barreiras visuais, cantos

sem uso.• Vigilância natural: presença de atividade

humana, possibilidades de ver e ser visto.• Limpeza e manutenção: aspectos de cuidado e

apropriação.• Conforto ambiental: espaços que convidam à

permanência.Uma vez debatidos e assimilados os conceitos apre-

sentados, foi proposto, para algumas das turmas, um exercício em sala utilizando imagens e descrições do lu-gar; e para outras, quando as condições do local permi-tiram, o exercício foi feito no espaço público próximo.

Em ambos os casos, os participantes organiza-ram-se em grupos e foram desafiados a utilizar uma nova identidade fictícia, contendo breve descrição do personagem e tipo de uso que ele costumava fazer daquele local. Dessa forma, cada um pôde ter a expe-riência de colocar-se no lugar de outro cidadão e ver o espaço a partir da sua perspectiva, o que agregou um componente lúdico e empático à vivência.

Os grupos foram encorajados a mesclar-se em dife-rentes etapas da análise proposta, simulando, assim, o que ocorre em processos nos quais as mesmas pesso-as não estão em todas as fases. Cada grupo preencheu fichas referentes às fases de análise e, finalmente, a um plano de ação para a melhoria do local. Esse trabalho

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prático foi finalizado com uma breve apresentação de cada grupo e um debate sobre aprendizados com a atividade e replicabilidade da metodologia na prática de cada um.

Cabe ressaltar que, entre os participantes do curso, houve uma rica variedade de perfis e especialidades, como gestores públicos, policiais, trabalhadores so-ciais e lideranças comunitárias, o que contribuiu para uma valiosa troca de experiências ao longo de todo o processo. As observações da prática proposta reforça-ram a tese de que a cidade segura e sustentável precisa ser construída entre todos e que é preciso praticar o trabalho coletivo na diversidade.

Os participantes observaram, por exemplo, que em grupos em que se concentraram personagens jovens, as propostas de melhoria tiveram pouca consideração com as necessidades de idosos ou crianças. Grupos com poucos jovens ou nenhum tenderam, por vezes, a evitar atrativos para estes, sob o pretexto de evitar condutas inapropriadas. Notou-se até mesmo alguma estigmatização dos personagens, embora nos debates finais tenha havido consenso sobre a importância de incluir as necessidades desse coletivo.

Nas práticas realizadas fora de sala, também pude-ram ser observadas experiências interessantes, como alguns participantes que já conheciam o lugar de análi-se e, inicialmente, mostraram-se céticos quanto à pos-sibilidade de melhorias; porém, ao aceitarem o desafio de reavaliar sua visão sob a nova perspectiva apre-sentada, acabaram entusiasmando-se e contribuíram, enormemente, para a prática, inclusive extrapolando a proposta escrita e desenhando verdadeiros estudos arquitetônicos nas fichas de exercício.

Um debate específico que foi proposto aos profis-sionais atuantes em favelas, participantes do curso, no Rio de Janeiro, reafirmou mais uma vez a importância da prática de um novo olhar sobre a cidade. Foi mos-trada a eles, no fim da sessão, uma série de imagens de vielas, córregos, praças e largos de cidades históri-cas, em diferentes países, ao lado de imagens feitas em favelas de cidades brasileiras, deixando evidentes as

semelhanças morfológicas. Terminada a exposição, os participantes trouxeram suas reflexões sobre urbani-zação, infraestrutura, imagem, identidade, autoestima e perspectivas de futuro das comunidades. Foi interes-sante perceber que até esse momento não havia surgi-do nenhuma fala sobre aspectos positivos da estética nas favelas e, pouco a pouco, durante o debate, foram feitas observações sobre a riqueza de volumetrias, de-safios estruturais, e até mesmo preocupação com os processos de gentrificação5 que já começam a ocorrer em algumas comunidades, decorrentes do interesse tu-rístico que essas qualidades despertam. Houve consen-so sobre a necessidade de melhora da infraestrutura e salubridade nas favelas, mas houve, também, sobre a importância do reconhecimento do valor histórico, ar-quitetônico e social das comunidades na evolução ur-bana das cidades brasileiras.

Entre céticos e esperançosos, finalizamos com a cer-teza de que é preciso respeitar as especificidades desses entornos e que melhorar a segurança nas comunidades deve ser um objetivo comum para toda a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O espaço público é a expressão da cidadania” (BORJA, 2003), a falta de segurança nele prejudica a convivên-cia pacífica necessária para se alcançar a sustentabili-dade urbana. A probabilidade do surgimento de con-flitos é maior quanto menor for a cultura da empatia e do altruísmo. Assim, os principais atores de qualquer processo urbano devem ser os cidadãos e cabe aos profissionais qualificados, das diversas disciplinas, o acompanhamento do processo, oferecendo subsídio técnico para a elaboração das propostas.

Conhecer as teorias e as práticas de espaços urbanos seguros e exercitar o olhar para identificar os aspectos físicos do lugar e relacioná-los à percepção da segurança sustentável podem capacitar esses profissionais a serem agentes catalisadores de opiniões e propostas dos diferen-tes grupos de interesses, definindo processos coletivos nos quais todos tenham real oportunidade de participar.

5. Neste texto, “gentrificação” refere-se ao fenômeno de valorização de uma área da cidade, que acaba alterando as dinâmicas sociais, características do comércio e valor dos imóveis, acabando por inviabilizar a permanência da população de baixa renda que habitava o local tradicionalmente.

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REFERÊNCIAS

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Paloma Padilha de Siqueira

Arquiteta e urbanista, formada na Universidade Mackenzie, em São Paulo, Brasil, e mestre em Meio

Ambiente e Arquitetura Bioclimática pela Escola Politécnica de Madrid, Espanha. Sócia-fundadora do estúdio

Interurbano, dedicado ao planejamento urbano e arquitetura, com sede em São Paulo e Madrid. Em Madrid,

entre outros trabalhos, participou em pesquisas, deu cursos e palestras sobre espaços urbanos seguros e

reabilitação urbana sustentável. Em São Paulo, coordena, atualmente, o projeto de reurbanização de favelas

dentro do programa municipal Renova SP, na Vila Clara. Desenvolve pesquisas, projetos e cursos sobre

segurança cidadã e processos participativos na construção do espaço público.

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Espaços Urbanos Seguros: teorias, abordagens e metodologias

Marcelle Figueira

Nos últimos anos tem crescido a compreensão de que as políticas de segurança pública não podem estar única e exclusivamente restritas às ações de respon-sabilidade das instituições policiais. Segundo Muniz; Proença (1996), considerar as polícias como únicas responsáveis pela árdua tarefa de negociar e promo-ver a ordem e a segurança é um entendimento que impede a visão democrática de uma ordem pública como prestação de um serviço às comunidades.

Essa visão, durante anos, tem contaminado não apenas os olhares dos executivos e formuladores de políticas públicas, mas também dos atores da socieda-de civil, que esperam na ação policial a resolução dos problemas de crimes e desordens. O reconhecimento da pouca efetividade e dos riscos desse modelo, que restringe as ações de segurança à presença das institui-ções policiais, fez surgirem novos olhares para a ques-tão. Nesse sentido, as estratégias vêm-se modificando, voltadas para a formulação de ações que possam am-pliar o bem-estar da população, reduzindo a vulnera-bilidade ao crime e aumentando a percepção de segu-rança, sobretudo com a inclusão de novos atores e de outras áreas de intervenção da política pública.

Uma proposta de ação, que vem ganhando força nos últimos anos, relaciona a dinâmica da segurança públi-ca com as características do desenho arquitetônico e do planejamento urbano. Essa proposta de intervenção é denominada Espaços Urbanos Seguros. A definição apresentada pelo Guia Espaços Urbanos Seguros, ela-borado pelo Ministério da Justiça, em 2011, afirma que:

[...] espaços seguros são ambientes públicos, pla-nejados, projetados e administrados de forma participativa, com vistas a reduzir a incidência de delitos e da violência, aumentar a sensação

se segurança das pessoas que os utilizam, bem como a sua permanência no local e a apropriação da comunidade para atividades de convivência, melhorando, assim, a qualidade de vida da popu-lação (BRASIL, 2011).

Nesse sentido, o objetivo deste texto é apresen-tar as principais teorias e princípios que orientam a construção de espaços urbanos seguros e as princi-pais ferramentas e metodologias para a formulação de programas e projetos, com base nesses princípios.

PRINCIPAIS ABORDAGENS TEÓRICAS

A abordagem de Espaços Urbanos Seguros inscreve-se nas práticas de prevenção situacional de crimes, que são um conjunto de recomendações e ações que trata da prevenção, redução ou supressão de crimes e de-sordem, traduzindo em práticas objetivas os conceitos da criminologia ambiental e dos estudos urbanísticos.

A criminologia ambiental busca compreender como os fatores relacionados ao ambiente em que ocorrem os delitos podem estar contribuindo para criar oportunidades de incidência de crimes e desor-dens. As teorias que a criminologia ambiental desen-volveu para compreender essa relação são: Teoria da Escolha Racional; A Teoria das Atividades de Rotina; e a Teoria do Deslocamento (BRANTINGHAM; BRAN-TINGHAM, 1991).

Nos estudos urbanísticos, também se buscava compreender a relação do ambiente com a incidência de crimes e desordens; todavia, o olhar estava dire-cionado para as variáveis físico-urbanísticas. Quando se assume a delinquência como um ato que ocorre em determinado espaço físico, o objetivo torna-se, então, compreender as relações entre os determinados tipos

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de crimes que ocorrem naquele espaço, com o dese-nho arquitetônico do ambiente e das configurações físico-urbanistas.

Nessa perspectiva, as principais abordagens teóri-cas da criminologia ambiental são:Teoria da escolha racional | Esta teoria assume que

a decisão de cometer um crime resulta de uma es-colha racional do indivíduo. Ele avalia o custo do cometimento do crime e os benefícios que pode au-ferir; assim, a decisão de cometer o crime é tomada quando o risco de ser pego compensa os benefí-cios, ou lucro, que poderá obter cometendo o crime (CRAWFORD, 1998).

Teoria das atividades de rotina | A teoria tem o seu foco sobre quando e como ocorre o encontro entre o criminoso e a vítima, e propõe que, assim como os potenciais criminosos têm rotinas próprias e repetitivas para escolher suas vítimas ou alvos, as potenciais vítimas também mantenham rotinas de deslocamento. Estas rotinas podem contribuir de forma relevante para a vitimização, pela recorrência de seus comportamentos (FELSON; CLARKE, 1998).

Teoria do deslocamento | Uma das principais crí-ticas direcionadas às práticas de prevenção situa-cional diz respeito aos seus efeitos, dentre eles a possibilidade de deslocamento do crime/crimino-so para outras áreas. Quando há uma mudança nos fatores que oportunizavam a ocorrência do crime em um determinado espaço, de fato, o deslocamen-to da atividade delituosa é uma possibilidade; toda-via, estudos têm demonstrado que o deslocamento não ocorre na dimensão esperada pelos críticos dos modelos de prevenção situacional (HESSLING, 1994; FELSON; CLARKE, 1998).

As principais abordagens teóricas de enfoque ur-banístico são:“Olhos na rua” (eyes on the street) | Este é um con-

ceito desenvolvido por Jane Jacobs, em 1962, no seu livro “Vida e Morte nas Grandes Cidades Ame-ricanas”; diz respeito à possibilidade de vigilância natural sobre o espaço público, a ser exercida por

aqueles que se deslocam pelo espaço, ou mesmo pelos moradores através de suas janelas.

Jacobs critica os projetos de desenho urbano re-alizados na década de 1960 de zonas residenciais que não favoreciam o contato entre vizinhos. Em sua obra, ela destaca que lugares onde há maior diversidade de atividades, como comércio e resi-dências, são mais seguros do que lugares mais dis-tantes que concentram um único tipo de atividade.

Desde o ponto de vista da percepção de seguran-ça no espaço público, Jacobs (1962) estabelece três noções básicas que devem ser aplicadas de maneira equilibrada para que uma localidade seja segura:• deve existir uma clara demarcação entre os espa-ços públicos e privados;• devem existir “olhos nas ruas” que observem o que ocorre e que sejam dos frequentadores habitu-ais desses espaços; e• o espaço deve ser utilizado, continuamente.

Teoria do espaço defensável (defensible space) | Elaborada pelo arquiteto Oscar Newman (1972), ela parte do pressuposto que o meio ambiente pode apresentar efeitos significativos sobre a perspecti-va de controle da delinquência e os delinquentes. Newman, a partir da observação de conjuntos re-sidenciais, estabeleceu as seguintes características arquitetônicas como causas do surgimento de con-dutas antissociais:• as grandes dimensões dos conjuntos propiciavam o anonimato dos seus moradores;• ausência de condições para a vigilância natural (ver e ser visto); e• a inexistência de caminhos alternativos, pelo de-senho do tipo labirinto (ruas estreitas).

De acordo com Newman, o desenho adequado do espaço público teria efeito em curto prazo na re-dução do crime, demonstrando uma relação causal entre meio ambiente físico e o crime.

Sintaxe espacial | Desenvolvida por Bill Hillier, na década de 1970, a teoria surge do questionamento em torno das relações de sociabilidade promovidas

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pelas configurações do espaço construído, para, depois, se aproximar da segurança, sendo a inte-graçãoa variável “mais sintática”, entendida como o grau de acessibilidade por pedestres e veículos e a conexão do lugar com outras áreas da cidade. A integração condiciona o movimento de pessoas e atividades em uma região.

Essa linha de reflexão prioriza os espaços de “encontro”, ao considerar o fato de que “vincula(m) espaço, corpos, movimento e comunicação poten-cial face a face”; e ao potencial de contato entre pessoas no espaço urbano (DE SOUZA; COMPANS, 2009, p.9).

A partir desses princípios teóricos, foram desen-volvidas algumas metodologias para a construção de espaços urbanos seguros. Uma das principais é a Prevenção Criminal por meio do Desenho Ambien-tal – Crime Prevention Through Environmental De-sign (CPTED). O modelo CPTED é uma metodologia que busca construir ambientes seguros e com maior bem-estar em locais que sejam vulneráveis à crimi-nalidade e à desordem urbana. Sua premissa básica relaciona-se, diretamente, com o desenho urbano e sobre como o planejamento e o uso adequado e efi-ciente do ambiente podem levar a uma redução na prática de crimes, assim como na redução da percep-ção do medo, obtendo uma melhoria na qualidade de vida das pessoas.

A aplicação desse modelo tem o seu eixo central na elaboração do diagnóstico. Ele deve ser capaz de detectar e delimitar os problemas e deve ser constru-ído de forma participativa, contemplando a visão da comunidade. As ferramentas básicas para realizar um diagnóstico eficaz são:1) Levantamento de dados e seleção das fontes

de informação – Devem ser selecionadas infor-mações que permitam conhecer a dinâmica da criminalidade e da desordem, assim como essa dinâmica está distribuída espacialmente; e quais são as principais características do território. Esses dados podem ser buscados em sites de go-

verno ou solicitados diretamente a instituições policiais. A principal fonte de informação sobre a dinâmica criminal virá dos registros de ocorrên-cia da polícia civil, e a principal fonte de informa-ção acerca das desordens, conflitos e incivilidades será proveniente das chamadas emergenciais da polícia militar.

2) Marcha exploratória de segurança – Aqueles que estão responsáveis pela elaboração do diagnóstico devem realizar uma caminhada com os moradores, buscando coletar informações sobre a percepção da população sobre os locais de risco e vulnerabilida-de. Essa é uma ferramenta que permite apreender a percepção espacial de segurança que é compartilha-da pela comunidade, auxiliando na identificação das características desses ambientes.

3) Oficina de desenhos e modelos – Depois da caminhada, os participantes são convidados a re-alizar, de forma conjunta, o desenho dos espaços visitados. Esta ferramenta permite uma visuali-zação mais clara das preferências ambientais que estão relacionadas com a qualidade de vida da co-munidade.

4) Assembleia comunitária – Permite “validar” as informações coletadas por meio da marcha explo-ratória de segurança e da oficina de desenhos e modelos. Ao reunir a comunidade com uma pauta de trabalho definida, a partir do que foi previa-mente levantado, é possível discutir identifican-do-se outras variáveis que ajudam a compreender o problema. A assembleia também pode ocorrer sem a realização da marcha exploratória ou da oficina de desenhos, mas, nesse caso, ela deve ter uma pauta de trabalho bem definida, para a identi-ficação dos problemas de segurança do território.

5) Grupo focal – A partir de um questionário pre-viamente estruturado, essa técnica permite obter informações sobre um grupo específico da popu-lação. O grupo selecionado deve ser representativo dos moradores, por meio de critérios previamente estabelecidos.

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6) Aplicação de questionários | Pesquisas de viti-mização que permitem a verificação de crimes não registrados e a relação entre a população e as insti-tuições de segurança pública.

Essas são as principais ferramentas de formu-lação de um diagnóstico, podendo ser combinadas entre si; não é necessário utilizar todas, mas a com-binação de ferramentas e de fontes de dados quan-titativos, com dados qualitativos, permite uma com-preensão ampliada do problema e das suas causas.

A partir dos resultados do diagnóstico, é possí-vel formular projetos de intervenção que respon-dam às causas dos problemas apresentados. Cada projeto de intervenção será único, pois ele deve responder às necessidades de cada comunidade; todavia, a metodologia CPTED propõe cinco princí-pios básicos: controle natural de acessos; vigilância natural; manutenção dos espaços; reforço territo-rial; e participação comunitária.

Controle natural dos acessos: esta é uma estratégia de desenho arquitetônico que busca aumentar a sensação de segurança dos moradores, pela percep-ção de que ele está sendo “visto” por outras pessoas, e reduzir a oportunidade do criminoso de cometer um crime, com a certeza de que não está sendo visto.

As principais recomendações de adequação do espaço físico são:• conectar os acessos diretos à comunidade com áreas que possuam mecanismos de vigilância na-tural, ou seja, onde há trânsito de pessoas e sejam bem iluminadas;• prevenir a construção de acesso em áreas desertas;• desenhar espaços que orientem os usuários, dan-do a indicação natural de saídas e entradas; e• ter um número limitado de rotas de acesso, evitar caminhos do tipo “labirinto”.

Vigilância natural: o desenho dos espaços deve va-lorizar a visibilidade pela localização apropriada de acesso, desenho de janelas, iluminação adequada e projeto de paisagismo que não crie espaços sem vi-sibilidade. Essas medidas aumentam a capacidade

dos moradores e usuários do espaço de observar as atividades que ocorrem no entorno, inibindo, as-sim, o comportamento do agressor, que será mais facilmente identificado, aumentando para ele o cus-to de ser pego e inibindo o cometimento de crimes.

Manutenção dos espaços: os espaços públicos de-vem ser objeto de constantes ações de manutenção dos espaços físicos, com limpeza e paisagismo. O modelo CPTED confere especial importância a es-sas ações, pois elas incentivam que se perceba o espaço com um local que estimula a sensação de pertencimento e apropriação daquele espaço pela própria comunidade.

Reforço territorial: devem ser concebidas ações que estimulem o uso do espaço pela população, de for-ma que o habitante estabeleça uma relação de afeto com o seu entorno imediato e passe a cuidar dele.

Participação comunitária: a percepção do espaço, pelo usuário, deve ser sempre valorizada e conside-rada. O usuário tem uma relação particular com o espaço em que vive e frequenta, sendo, assim, a me-lhor fonte de informação sobre as características do lugar, uma vez que as atividades humanas também influenciam e constroem as características físicas e ambientais do território. Qualquer possibilidade de se obter êxito na transformação de um espaço deve levar em consideração seus moradores e usuários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da explanação feita, em que foram apresen-tados os principais conceitos, metodologias e ferra-mentas de construção de Espaços Urbanos Seguros, é possível concluir que um bom diagnóstico sobre o local que se pretende intervir é condição funda-mental para a formulação de qualquer proposta de construção de espaços urbanos mais seguros. Dessa forma, o diagnóstico deve ser capaz de: caracterizar a comunidade e o seu território, por meio de diver-sas fontes de informação; apreender a percepção de risco da comunidade e as razões que justifiquem essa percepção; definir quais são os problemas que

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afetam a comunidade; compreender a dinâmica espa-cial de como os problemas estão distribuídos e quais são as características ambientais que se relacionam com eles, tanto em relação à infraestrutura, quanto nas características físicas dos espaços públicos (ilu-minação, conservação e afins).

A partir do diagnóstico, é possível desenhar pro-jetos de intervenção que devem: incorporar, de forma ativa, a comunidade na formulação de propostas; me-lhorar a iluminação dos espaços públicos, aumentan-do a vigilância natural; promover a recuperação e a revitalização dos espaços públicos, estimulando seu uso pela comunidade; e estimular a gestão e a parti-cipação comunitária em todas as etapas do processo.

Marcelle Figueira

Geógrafa, doutora em Desenvolvimento, Sociedade

e Cooperação Internacional pela UnB. Professora da

Universidade Católica de Brasília, nas graduações em

Segurança Pública e Arquitetura e Urbanismo. Foi

coordenadora de Análise Criminal na Senasp-MJ e

analista criminal no Instituto de Segurança Pública (ISP),

no Rio de Janeiro.

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Atuação Policial: Formação e Modernização

Eduardo Cerqueira Batitucci

Durante o século XIX, na experiência inglesa, a po-lícia surge como uma espécie de mediadora entre a elite e o povo, garantindo, nas agruras da revolu-ção industrial, a segurança simbólica (e de fato) da primeira, e progressiva, inserção dos trabalhadores na pólis urbana, concomitantemente à consolidação dos seus direitos políticos e sociais. Na experiência americana, nesse mesmo período, a polícia se con-solida como uma das instituições capilares de me-diação política e social entre o Estado e o cidadão, assumindo papel relevante (e conflituoso) na políti-ca, bem como na assistência social.

Entretanto, a consolidação e a constituição histó-rica do campo da Segurança Pública e Justiça Crimi-nal no Brasil têm a sua origem completamente des-vinculada da discussão sobre promoção e garantia de direitos sociais e individuais. Especialmente no que se refere ao aparato policial, o país se constituiu, ainda no período colonial, e evoluiu durante o sécu-lo XIX, para garantir a capacidade da Coroa Portu-guesa (e depois do Império) de taxar as riquezas, fa-zer valer os desígnios do Estado absoluto, bem como e, principalmente, controlar a massa de escravos e subcidadãos livres ou libertos (BATITUCCI, 2010).

Essas características produziram efeitos visíveis para a consolidação dessa área, na lógica do espaço público brasileiro, já durante o século XX, na baixa ca-pacidade de interlocução institucional, no alto nível de complexidade organizacional e conflito sistêmico nas

suas dimensões institucionais e operativas, na vincu-lação histórica a uma perspectiva de defesa do Estado contra a sociedade, resultando, portanto, em baixa pro-fissionalização, reconhecimento e legitimidade social.

A POLÍCIA QUE NÃO PRECISAMOS

Dois dos principais problemas advindos da pouca evolução desse sistema frente aos desafios coloca-dos pela transição de uma sociedade aristocrática, patriarcal, agrária e tradicional para uma sociedade democrática, urbana, industrial e moderna, impac-tam o seu funcionamento, ainda hoje. De um lado por meio do fracionamento do ciclo policial (dividindo a dimensão policial entre duas organizações distintas, cultural e operacionalmente dicotômicas – a polícia militar e a polícia civil); e de outro, no insulamento cultural e institucional do ciclo judicial (aqui repre-sentado pela Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública) e dos seus correlatos institucionais – o ciclo policial e o ciclo da execução penal (as prisões e insti-tuições assemelhadas).

No primeiro caso, marcadas pela prevalência das disciplinas do Direito em sua formação e pelo milita-rismo em sua ideologia e operacionalidade, diante de uma trajetória histórica em que esses dois conjuntos de disciplinas se cruzaram, como componentes cul-turais, em uma concepção positivista e bacharelesca da realidade, a soma entre essas duas dimensões des-valorizam, simbolicamente e organizacionalmente, a

FORMAÇÃO E MODERNIZAÇÃO DA ATUAÇÃO POLICIAL

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atividade operacional e o policial de ponta, cujo conhe-cimento e experiência são, mais das vezes, considera-dos substantivamente pouco úteis para o conjunto do conhecimento organizacional (BATITUCCI, 2015).

Nesse sentido, as organizações policiais brasilei-ras, tanto civis quanto militares, se notabilizam pela aristocratização e formalização de sua estrutura, valores e funcionamento, mas convivendo, entretan-to, com limites bastante vagos na definição do seu mandato, no contexto da legislação e da cultura pú-blica brasileiras (MUNIZ; PROENÇA JR, 2007), o que “alarga” e, frequentemente, torna plásticos os limites entre o que é e o que não é próprio desse conjunto de atividades. Nas palavras de Paixão (1982, p.65), vivenciam, fortemente, o que ele definia como o pa-radoxo da discrição: um modelo de funcionamento da organização policial, no qual o foco operacional se desloca da estrutura formal (isto é, das regras e valo-res institucionalmente aceitos e formalizados) para a realidade de senso comum do policial (suas atitudes, valores e crenças pessoais), vista como uma instância mediadora entre a estrutura burocrática e a vida co-tidiana, chamando atenção para a coexistência entre a autonomia do policial na ponta da linha, em contra-ponto à aparente incongruência da rigidez dos con-troles burocráticos formais, exibindo, portanto, uma tensão entre o conteúdo da prática e o conteúdo das teorias sobre o que o policial e a polícia devem fazer.

Nesse caso, mais do que categorias legais ou nor-mas institucionais, o policial, usualmente, se utiliza de ideologias e estereótipos, formulados por meio da cultura ocupacional, que orientam a sua ação cotidia-na. Nesse sentido, como chamava atenção Lima (1989), a soma de todos esses elementos tende a ritualizar o reconhecimento social e institucional da discriciona-riedade do policial de ponta, desvalorizando e desau-torizando sua capacidade de agir e o seu julgamento, levando-o praticamente, para um tipo de “clandestini-dade organizacional”, prendendo-o a uma dimensão de subprofissionalização, em que ele é reconhecido ape-nas pela autoridade pública que o seu cargo incorpora (com déficit de legitimidade, como já foi colocado), mas

não pelo seu conhecimento, experiência, capacidade de decidir; ou pela competência para a ação, mesmo que, na prática, seja ele quem aja e decida; entretanto, des-guarnecido da legitimidade profissional necessária.

No segundo caso, vivendo em permanente conflito com outras organizações do Sistema de Justiça Crimi-nal, as polícias brasileiras se constituíram simbolica-mente e estão focadas, operacionalmente, a partir da dimensão do crime, e não a partir da concepção de direitos. Nesse sentido, do ponto de vista formal, elas têm se consolidado, institucionalmente, a partir das di-mensões burocráticas e processuais associadas à ma-nutenção da ordem e/ou à persecução criminal (isto é, do registro de ocorrências pela PM e das dimensões cartoriais do inquérito policial, pela PC), conhecendo e agindo muito pouco sobre a natureza substantiva dos conflitos na sociedade, suas dinâmicas e as vulnera-bilidades que evidenciam. São polícias que, pela sua visão de mundo, portanto, se afastam, simbolicamen-te, da população e estranham as complexidades que, necessariamente, estão associadas às dimensões da cidadania nas sociedades contemporâneas.

Tendo o “crime” como dimensão motriz da sua identidade, o sistema policial quase nunca trabalha por meio da concepção e observância de uma cadeia causal defensável entre a ação pública e o seu resulta-do – na maioria das vezes tendo como dinâmica uma perspectiva difusa de emergência, pautada pela oposi-ção entre o Bem e o Mal. Esta característica incentiva e promove uma concepção relativista dos direitos so-ciais, que é expressa, por exemplo, em acrônimos para a condição de cidadania – o cidadão de bem –por meio da qual um mundo cindido se apresenta em oposições entre nós e eles, policiais e bandidos; e, no limite, entre os que merecem ou não a ação estatal. Tal concepção se presta pouco à lógica das políticas públicas, dispen-sando diagnósticos, avaliação e monitoramento, dedi-cando-se à vigilância da sociedade e à punição, muitas vezes extrajudicial, de “criminosos”. O sistema policial não se percebe, e não é percebido, portanto, como um ator fundamental na constituição e consolidação do espaço público para a promoção da cidadania.

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POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

A reforma da lógica operativa da polícia brasileira, evidentemente, perpassa dimensões institucionais, organizacionais e legais, e se mostra como tarefa de grande complexidade; e que levará, provavelmente, mais de uma geração para se consolidar. Essencial-mente, pode-se concluir que ela se constitui, entre-tanto, um desafio de natureza cultural.

A polícia que precisamos deve, como lógica ope-rativa que oriente a sua atuação, partir das dinâmicas sociais associadas à produção e mediação de conflitos comunitários. Logo, os territórios, as comunidades, devem ser o ponto focal das políticas de segurança pública, e não o crime, que como ratio intangível e de racionalidade adversarial, tem dirigido a ação estatal nos dias de hoje. Para fugir da dinâmica da emergên-cia, o sistema deve incorporar a produção de diag-nósticos sistemáticos e pautar a sua ação por meio do ciclo das políticas públicas, baseando suas ações em

evidências, avaliando as intervenções e monitorando o seu desenvolvimento.

Para isso, torna-se necessário o reconhecimen-to da multicausalidade do fenômeno da violência e da criminalidade. Neste sentido, a noção de fatores de risco (SERRATO, 2007) precisa ser incorporada à concepção e à produção da ação dos atores policiais. Dessa forma, adensar-se-ia, como elemento indisso-ciável do ethos policial, o reconhecimento das vul-nerabilidades sociais e do seu impacto individual e comunitário, procurando o equilíbrio entre as ações tradicionais de controle do crime e as de prevenção social da criminalidade.

A polícia, nesse sentido, pode facilmente ultra-passar o papel limitado que cumpre, hoje, na arena pública brasileira, transformando-se em uma re-ferência para a construção da rede de ação estatal para a intervenção em alguns dos principais proble-mas que assolam a sociedade brasileira no campo da

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segurança pública: famílias e infâncias vulneráveis à vitimização e à repetição da vitimização; cenários de sociabilidade violenta pertinentes à socialização primária em contextos de territórios em disputa; di-nâmicas violentas de funcionamento e socialização de grupos e gangues; e processos de enfraquecimen-to de comunidades em situação de vulnerabilidade, em razão do abandono ou da limitação de uso do espaço público, do direito de ir e vir, do enfraqueci-mento das referências sociais locais e do abandono por parte do Estado; ou na ausência de foco da ação pública nos principais problemas vivenciados pelas comunidades.

Dessa forma, fortalecida em seu papel institucio-nal e na sua legitimidade social, a polícia também poderia – em uma realidade em que a administra-ção pública vivencia descontinuidades e capacidade institucional frequentemente duvidosa – se consti-tuir como elemento de circularidade e complemen-tariedade na ação pública voltada aos fatores de risco (ações de saúde, assistência e inclusão social, reforço de socialização positiva – autorregulação do comportamento individual e apoio para a organiza-ção comunitária –; além de referência no acesso a programas e estratégias de acesso à justiça e a me-canismos de resolução pacífica de conflitos, à medida que se posicionasse, axiologicamente, do lado das comunidades vulneráveis, protegendo-as.

Para isso, evidentemente, o sistema policial bra-sileiro necessitaria de uma profunda reforma. Uma reforma nos seus valores, na sua lógica operativa, nos pressupostos que orientam sua formação e atu-ação operacional e nas suas instâncias de accounta-bility e controle social.

Precisamos da consolidação de uma perspecti-va comunitária, que se estabeleça como elemento fundante do conjunto de valores que deve nortear a identidade da polícia ostensiva e de suas dimensões operacionais. A “guerra ao crime” deve ser substitu-ída pela proteção a comunidades vulneráveis como expressão do ethos policial. O policial de linha, neste

sentido, precisa ter a sua discricionariedade valori-zada institucionalmente, pelo empoderamento de sua responsabilidade e o seu poder de decisão, per-tinentes, evidentemente, ao foco e prioridades insti-tucionais para a sua formação e treinamento. É nele, portanto, na sua ambiência e posição institucional, que deverá ser reconhecida a identidade profissio-nal da polícia brasileira.

Da mesma forma, no caso da atividade da polícia judiciária, deve ser priorizada a construção de um modelo substantivo de investigação policial, raciona-lizável e formalizável em seus princípios básicos – por meio da desburocratização e descartorialização da atividade de instrução da persecução criminal (MISSE, 2010), e da construção de instrumentos de aproximação identitária e operacional substantiva com o Ministério Público e o Judiciário.

Antes de tudo, a sociedade brasileira precisa de-finir qual deve ser o equilíbrio entre as dimensões axiológicas (valores, atitudes e crenças) e os co-nhecimentos específicos (métodos e técnicas) que devem nortear o perfil profissiográfico que precisa-mos atribuir de forma sistemática à profissão poli-cial, tendo como princípios a neutralidade política e submissão à Lei, como critérios institucionais, e a Democracia e proteção à Cidadania como princípios imperativos.

Do ponto de vista do dimensionamento técnico, isso significaria: prevalência simbólica e a valori-zação institucional dos instrumentos de mediação e aproximação entre o policial e a comunidade – o policial mais importante é o policial de rua; priori-dade institucional e simbólica para o policiamento comunitário e/ou de proximidade; uso intensivo de metodologias de solução de problemas aplicadas à atividade policial; uso intensivo de estratégias de resolução pacífica de conflitos; modulação da for-ça como pressuposto operacional; e accountability como estratégia operacional e missão institucional.

Do ponto de vista do dimensionamento humano da atividade policial, isso significaria: universalização

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REFERÊNCIAS

BATITUCCI, E. C. A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 4, nº 7, 2010.

______. Polícia de ciclo completo e as reformas no aparato policial e na segurança pública brasileira. Caderno Temático Seminário Internacional de Segurança Pública. Câmara dos Deputados. Brasília, 2015.

LIMA, R. K. Cultura jurídica e práticas policiais – a tradição inquisitorial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, nº 10, p. 65-84, 1989.

MISSE, M. et al. O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Ed. BookLink, 2010.

MUNIZ, J. O.; PROENÇA JR, D. Muita politicagem, pouca política os problemas da polícia são. Estudos Avançados. São Paulo, 21 (61), 2007.

PAIXÃO, A. L. A organização policial numa área metropolitana. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 25, nº 1, p. 63-85, 1982.

SERRATO, H. R. Rumo a uma política integral de convivência e segurança cidadã na América Latina: Marco conceitual de interpretação-ação, PNUD. Mimeo, 2007.

Eduardo Cerqueira Batitucci

Possui graduação em Ciências Sociais, mestrado e doutorado

em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É

pesquisador pleno da Fundação João Pinheiro e coordenador

do Núcleo de Estudos em Segurança Pública (Nesp), daquela

instituição. Desde 1992 exerce atividade docente em cursos

de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de

Sociologia, com ênfase em Sociologia do Crime, da Violência

e das Instituições do Sistema de Justiça Criminal, atuando,

principalmente, nos seguintes temas: segurança pública;

políticas públicas; criminalidade; polícia; e funcionamento do

Sistema de Justiça Criminal.

de valores e posturas democráticas e de convi-vência sadia nos processos de socialização e for-mação; e reforço sistemático dessas dimensões na educação continuada; e reconhecimento insti-tucional das peculiaridades relativas à complexi-dade dos serviços policiais – garantias jurídicas, institucionais e corporativas, incluindo aquelas relacionadas à saúde física e mental e à qualidade de vida no trabalho.

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Formação e modernização da atuação policial

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Há pouco mais de duas décadas vivemos sob a égide de uma Constituição democrática. Entretanto, as rela-ções entre as polícias e os cidadãos no Brasil ainda se caracterizam, em muitos contextos, pela desconfian-ça, pelo abuso de poder e pela falta de critérios para o uso da força, produzindo altas taxas de mortes prati-cadas pela polícia e de vitimização policial.

Com efeito, a transição democrática garantiu os direitos políticos e o processo eleitoral, mas ainda não assegurou os direitos civis a todos os cidadãos e a reforma das instituições policiais. O controle legal da violência permaneceu abaixo do nível desejado e os principais obstáculos não foram enfrentados. Persis-tem graves violações a direitos humanos, resultado de uma “violência endêmica, radicada nas estruturas sociais, enraizada nos costumes, manifesta quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem pú-blica” (ZALUAR, 2007, p. 65-66).

Em uma cultura que combina o uso excessivo da força contra determinados grupos sociais e uma ló-gica de funcionamento burocrática e bacharelesca no âmbito da investigação criminal, a volta à democracia não alterou as estruturas da polícia, tradicionalmente comprometidas com a proteção das elites e do Estado e a supressão dos conflitos sociais. Essa tradição se faz presente em diversos países da América Latina, nos quais o controle da violência é utilizado como for-ma de manter a ordem social, justamente por nunca ter sido efetivada a universalização dos direitos de cidadania (PINHEIRO, 1997).

Parte importante da população brasileira não tem pleno acesso aos seus direitos civis, sobretudo no que diz respeito às relações com a polícia, em que o respeito às garantias legais é distribuído de manei-ra desigual. O debate sobre a modernização das ins-

tituições policiais foi adiado por um longo período, mas já a partir da década de 90, com o incremento da criminalidade, o tema voltou à pauta, com questões relacionadas à: letalidade policial, formação policial, ineficiência da investigação criminal, falta de contro-le institucional e desmilitarização das polícias, sendo amplamente debatidos por diversos atores sociais e institucionais.

Como lembra Roberto Kant de Lima (2014), ao que tudo indica, a organização judiciária colonial portuguesa representou a matriz da organização bu-rocrática estatal, e a burocracia brasileira, incluindo as organizações policiais, reproduziu, ao seu modo, essa matriz inspiradora, que implementava um mé-todo de controle de comportamentos de seus agen-tes baseado num sistema rígido de obrigatoriedades de procedimentos abstratamente definidos e de pu-nições severas pelo erro na execução de tarefas que lhes eram atribuídas. Essa forma de controle gerava nos agentes da Coroa, de um lado, a propensão para a inércia e, do outro, uma possibilidade permanente de culpabilização por parte das autoridades fiscali-zadoras, diante das inevitáveis omissões e erros dos agentes burocráticos em seu agir cotidiano. Essa es-tratégia inquisitorial, de suspeição sistemática, asse-gurava um estado de fragilização permanente entre os quadros da burocracia e estimulava a formação de lealdades pessoais verticais para a neutralização de tais ameaças potenciais de punição, assim como formas oficiosas invisíveis para reagir a esse controle draconiano e abstrato.

Para agravar os efeitos não desejados desse sis-tema abstrato de fiscalização e controle vigente na burocracia brasileira, seu reflexo nas instituições po-liciais – responsáveis pelos primeiros procedimentos de investigação e controle de atos supostamente ilíci-

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tos, cometidos pelos cidadãos, aí incluídos os agentes do estado – consiste em que essas instituições têm sua organização e estrutura funcional, na prática, hierarquizadas de maneira excludente, de tal forma que a mera diferença de funções vai-se rebatendo em uma desigualdade de posições. Na polícia mili-tar, por um lado, há duas entradas na profissão, que correspondem a formações e funções diferenciadas, uma para oficiais, outra para praças, sendo que estes dificilmente chegam aos postos mais altos do oficia-lato; na polícia judiciária, há várias carreiras, mas a principal distinção, a salarial, verifica-se entre os de-legados – que clamam ver sua carreira incluída entre as chamadas carreiras jurídicas, próprias dos opera-dores do Poder Judiciário, seja na magistratura, seja nas diversas posições institucionais assumidas pelas partes nos processos – e a tiragem: quer dizer, entre as autoridades policiais e os demais agentes policiais.

Essas segmentações são acompanhadas de atri-buições de autoridade e de regimes disciplinares di-ferenciados, o que provoca hiatos de comunicação profissional entre os segmentos das corporações, com prejuízo para todos. O sistema de culpabiliza-ção revela-se, assim, extremamente perverso, pois usa dois pesos e duas medidas com operadores que estão encarregados de funções, no mínimo, comple-mentares e, em muitos casos concretos, suplemen-tares e/ou equivalentes. Assim, a desigualdade de-corre da posição do sujeito na hierarquia da carreira e não em razão da responsabilidade pessoal decor-rente da função.

É claro que essa situação funcional vivida inter-namente na instituição não estimula a produção de normas e protocolos que definem a padronização das ações dos operadores, a partir de sua prática co-tidiana e que devem ser uniformemente aplicados a todos os que praticarem os atos neles definidos; nem a aprendizagem e a prática de formas de tratamento universal e uniforme do público a ser atendido pela instituição. Embora o tratamento universal e unifor-me, mesmo quando inscrito em leis fundamentais

substantivas e processuais, não constitua uma garan-tia do resultado, a criação e a aplicação de protocolos podem ser consideradas essenciais para a normaliza-ção da formação dos agentes do Estado democrático e como elemento crucial para uma eventual mudança de paradigma.

Por outro lado, o sistema judicial restringe, sig-nificativamente, a atividade da polícia judiciária, ao situá-la em plano inferior na hierarquia dos bacha-réis. A polícia reage a essa posição de subalternidade, uma vez que lhe cabe de fato a tarefa de selecionar quais indivíduos são qualificados para gozar dos direitos constitucionais, e quais os que não são. De-sempenhando esse papel, as práticas policiais discri-cionárias permitem ao sistema judicial permanecer “inocente” de quaisquer práticas discriminatórias e injustas na aplicação da lei. Quanto à polícia, trans-forma o seu estigma em identidade e projeta os meca-nismos de estigmatização sobre a população subme-tida à sua vigilância.

Tudo isso produz o fenômeno identificado por Sapori (2007) da frouxa articulação entre a estru-tura formal de uma organização e suas atividades práticas: a organização garante legitimidade na me-dida em que se conforma cerimonialmente aos mitos institucionais, especialmente por meio da adequação de sua estrutura. Na execução de suas atividades, en-tretanto, “prevalece um conjunto de procedimentos informalmente instituídos, pautados por parâmetros distintos daqueles prescritos na formalidade” (SAPO-RI, 2007, p. 59).

Constata-se, assim, que os padrões institucionais e a cultura burocrática que moldaram as práticas policiais no Brasil são muito anteriores e, em gran-de medida, ainda comprometem a implantação de um modelo profissional de polícia. Poncioni (2004, p. 72) define o modelo profissional da polícia como um quadro de referência analítico por meio do qual um conjunto de argumentos sobre papel, funções, fi-losofia de trabalho, administração, estratégias e táti-cas operacionais − portanto, uma ideia de missão − se

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organiza para moldar o comportamento policial, em resposta a um mandato da sociedade e na constru-ção de sua legitimidade social. Já para Bonelli (2002, p. 16-19), o profissionalismo pode ser reconhecido a partir da especialização do trabalho, de jurisdição ex-clusiva dos praticantes sobre a atividade, da posição protegida no mercado de trabalho por credenciais específicas, do programa formal de treinamento e de um ideal de serviço que valorize a realização pelo tra-balho e não do ganho financeiro dele advindo.

No entanto, como lembra Batitucci (2011, p. 78), se de um lado ainda não se consolidou no Brasil o modelo profissional-burocrático de polícia, de ou-tro, os últimos 40 anos testemunharam o desen-volvimento de novas soluções organizacionais para a confrontação das limitações do modelo profis-sional-burocrático de policiamento, especialmente aquelas voltadas à descentralização do comando nas organizações policiais e à reconsideração da comu-nidade como um interlocutor qualificado na busca da construção de uma nova relação com a polícia. Uma proposta, portanto, que demandaria uma for-mação mais generalista e humanista do policial, a descentralização organizacional na administração policial e, especialmente, a valorização do conheci-mento e da experiência do próprio policial, indepen-dentemente de sua posição hierárquica.

Como esclarece Poncioni:A esse modelo de polícia profissional que reforça os aspectos legalistas do trabalho policial, em um arranjo burocrático-militar com ênfase no “com-bate ao crime” como opção primordial para lidar com a segurança pública, denominei “modelo de polícia profissional tradicional” (PONCIONI, 2004). A polícia orientada por este modelo tem a grande vantagem de fornecer o que é percebido amplamente, pelo público e pelos próprios poli-ciais, como missão das instituições policiais. No entanto, a ênfase no controle do crime acarreta a negligência de outras demandas e interesses que

não estão limitados apenas ao crime, mas podem estar associados, em boa medida, à manutenção da ordem; além disso, essa concepção baseada em uma estratégia exclusivamente reativa se mos-tra menos efetiva que o prometido com relação ao controle do crime em geral, e em pelo menos alguns crimes particulares o seu fracasso é vasta-mente indicado na literatura especializada (PON-CIONI, 2005, p. 591).

Por fim, a educação policial, importante instru-mento para criar e estabelecer um padrão de exce-lência para o trabalho da polícia, não conseguiu, até o momento, firmar-se como prioridade em relação à se-gurança pública. Na realidade cotidiana de uma parte considerável das polícias brasileiras e da população atendida pela instituição, a qualificação do trabalho policial permanece como retórica, sem qualidade e capacidade efetivas de alterar as práticas policiais. A preparação dos policiais deve ser reestruturada e avançar para além dos cursos de formação. Ainda que a formação policial tenha sido reconsiderada do ponto de vista formal, ela precisa ser reconsiderada também do ponto de vista prático. Isso implica em mudar os fundamentos políticos, sociais e morais que perpassam as instituições policiais, para além dos cursos de formação.

É necessário que as práticas institucionais sejam reformuladas, com a implantação de uma deontolo-gia das práticas policiais orientada por princípios de-mocráticos e republicanos de tratamento com o pú-blico e controle e transparência da atuação policial. O quadro atual é de policiais formados, supostamente, em uma nova perspectiva, mas tendo que atuar em instituições antidemocráticas, gerando um descom-passo entre o que se aprende nos cursos de polícia e o que se faz no dia a dia do trabalho policial.

Além disso, tem crescido a perspectiva bachareles-ca, com a equiparação das atividades de polícia (tanto civil quanto militar), a carreiras jurídicas, e a conse-quente exigência de formação jurídica para a atuação

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nas carreiras de cúpula de ambas as polícias. Para uma polícia orientada para a administração de confli-tos e a resolução de problemas, e próxima da comuni-dade, há necessidade de uma formação mais ampla e voltada para o esclarecimento de crimes e o trato com o público, que pode ser dada em cursos de graduação em segurança pública, com perfil interdisciplinar e qualificados em âmbito nacional. Isso pode ocorrer pela criação de um sistema nacional de pós-gradua-ção específico, regido pela Coordenação de Aperfeiço-amento de Pessoal de Nível Superior (Capes), para a área de segurança pública, e a criação de uma escola nacional de polícia para a formação dos formadores.

O desafio de reforma das polícias no Brasil não é simples, pois as barreiras para a mudança são de diversos âmbitos, desde a história institucional, pas-sando pela matriz autoritária e sua atualização no período militar, a estrutura marcada pela divisão do ciclo de policiamento e pelas divisões internas das polícias, o corporativismo e as disputas de poder em torno das funções policiais, a cultura de baixa efi-ciência na gestão pública e de descontinuidade ad-ministrativa, o senso comum punitivista e a pouca propensão do sistema político para atuar de forma contundente para o aperfeiçoamento das institui-ções policiais.

REFERÊNCIAS

BATITUCCI, E. C. A polícia em transição: O modelo profissional-burocrático de policiamento e hipóteses sobre os limites da profissionalização das polícias brasileiras. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 4, nº 1, jan./fev./mar. 2011, p. 65-96.

BONELLI, M. G. Profissionalismo e política no mundo do direito. São Carlos: EdUFScar, 2002.

LIMA, R. K. Éticas e práticas na segurança pública e na justiça criminal. In: LIMA R. S; RATTON, J. L.; AZEVEDO, R. G. (Org.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 471-481.

PINHEIRO, P. S. Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias. Tempo Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, USP, v. 9, nº 1, mai. 1997, p. 44-45.

PONCIONI, P. Tornar-se policial: a construção da identidade profissional do policial no Estado do Rio de Janeiro. 2004. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004.

______. O modelo profissional policial e a formação profissional do futuro policial nas academias de polícia do Estado do Rio de Janeiro. Sociedade e Estado, Brasília, vol. 20, nº 3, set./dez. 2005, p. 585-610.

SAPORI, L. F. Segurança pública no Brasil: Desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

ZALUAR, A. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados, v.21, nº 61, set./dez., 2007.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor e pesquisador da PUCRS, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais. Doutorado em Sociologia pela UFRGS, com pós-doutorado em Criminologia nas Universidades

Pompeu Fabra (Barcelona) e de Ottawa. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pesquisador

do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Confl itos (Ineac).

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Formação Policial, Polícia e Direitos Humanos

Fabiano Dias Monteiro

Há pelo menos trinta anos a sociedade brasileira convive com índices alarmantes de violência e crimi-nalidade. O fenômeno, primeiramente associado aos centros urbanos da Região Sudeste, hoje, segundo es-tudos do tema, desloca-se também para cidades do interior, onde, há pouco mais de vinte anos, a crimi-nalidade violenta apresentava-se como uma realida-de praticamente alienígena (WAISELFISZ, 2014).

Tal como a pobreza, a precarização da saúde, o sucateamento do ensino e a recalcitrante desigualda-de social, a violência passou a figurar no imaginário social do brasileiro como uma das grandes mazelas nacionais, exigindo, assim, posicionamentos mais cla-ros dos governantes a respeito de suas políticas de segurança pública (SOARES, 2000).

Nesse contexto, um amplo leque de discursos tem sido utilizado para explicar o fenômeno da violência e apontar respostas a ele. Diante dos limites deste en-saio, dois deles são tomados, aqui, como “tipos ide-ais” (WEBER, 1994).

Por um lado – ainda que carente de sustentação empírica e profundamente questionado por setores acadêmicos, pelas agências internacionais e pelos cha-mados “defensores dos Direitos Humanos” – há o dis-curso punitivo, centrado na ideia de “tolerância zero” em relação à violência e num enfrentamento (quando não exclusivamente), eminentemente, bélico à crimi-nalidade (GARLAND, 2007; WACQUANT, 1999).

São adotadas, aqui, algumas ideias como cauda-tárias do discurso punitivo: o aumento das tropas como resposta-padrão à sensação de insegurança; o investimento em equipamentos de repressão (armas, veículos, sistemas de vigilância); a radicalização das penas – aumentando-se, inclusive, o leque de indiví-duos sujeitos às penas de reclusão – e maior rigidez do sistema prisional.

Por outro turno, há o discurso de valorização das práticas preventivas, em que conflito, crime e violência são tomados como imponderáveis do jogo social, cabendo ao Estado, nos seus atributos de detentor do monopólio do uso legítimo da força, gerar e gestar mecanismos que possam não ape-nas ser instrumentalizados para o enfrentamento à criminalidade violenta, mas para a antecipação e a atenuação desta.

As ideias caudatárias do discurso preventivo são: o reconhecimento das desigualdades sociais (não raro expressas em termos étnicos, religiosos, de origem nacional etc.) como uma variável altamente relevante na compreensão do fenômeno da violência e da cri-minalidade; a associação do emprego da força com outras iniciativas do Estado – como investimento em educação, saúde, urbanização etc. – para dirimir os efeitos de criminalidade violenta sobre a sociedade; a defesa dos direitos dos cidadãos como princípio norteador das ações do sistema jurídico-policial; e o uso de técnicas policiais orientadas pelo emprego adequado da força.

Conforme já afirmado, esses dois discursos são tomados, aqui, como tipos ideais e no cotidiano, tanto na esfera institucional (no mundo das leis e dos le-gisladores, dos gestores, dos políticos etc.), quanto na esfera pública (nas conversas informais, na mídia, na literatura etc.), eles se encontram – em maior ou me-nor grau – entrelaçados.

Procurou-se argumentar que esse entrelaçamen-to permeia a formação de policiais militares e civis na sociedade brasileira (assim como de outros ope-radores de segurança pública, como guardas munici-pais, por exemplo) comprometendo a valorização da defesa dos direitos individuais como o ponto central da atividade policial.

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FORMAÇÃO E ATUAÇÃO POLICIAL

Setores da academia, organismos internacionais, ativistas de direitos humanos e grupos da socieda-de civil organizada têm percebido, ainda no período pós-ditadura militar, a atuação policial como uma forma de ação do Estado orientada por formas, re-correntemente, autoritárias, repressivas e punitivas. Não raro, a questão da formação policial emerge como uma componente, senão central, profunda-mente significativa nos estudos de perfil de nossas polícias (em particular a Polícia Militar) (MONTEI-RO; MALANQUINI, 2012).

Autores como o antropólogo Roberto Kant de Lima (2003) identificam o processo de formação do policial brasileiro como uma experiência marcada por múltiplos saberes. Alguns deles teriam forte ape-lo normativo e estariam centrados no conhecimento das leis, no Código Penal, em regimentos e manuais de procedimento.

Outros saberes que teriam forte influência sobre suas rotinas e procedimentos seriam aqueles adqui-ridos “nas ruas”, com o envolvimento em situações concretas do cotidiano e, normalmente, acessados a partir da interação e/ou convivência com policiais mais antigos.

Em resumo, o autor argumenta que, para além dos discursos presentes nos materiais oficiais e regulares na formação policial, há um conjunto de saberes (que se transforma em práticas) que é construído para além dos muros das academias de formação policial; sabe-res que podem ser consonantes ou não com os prin-cípios da defesa e garantia dos direitos dos cidadãos.

Debruçando-se mais detidamente sobre a relação entre a formação e a atuação policial, Paula Poncioni (2005) destaca, no Estado do Rio de Janeiro, a preva-lência do modelo de formação policial tradicional, que é pautado, sobretudo, pela ênfase na burocracia de caráter militarista e numa interpretação legalista do mundo. Como corolário desse modelo, haveria “uma estratégia exclusivamente reativa da polícia, e dirigida, principalmente, para o confronto, apontando defici-

ências na área da atividade preventiva, com enfoque na negociação de conflitos e no relacionamento direto com o cidadão [...]” (PONCIONI, 2005, p. 601).

Muniz (1999) e Castro (1990) identificam na ação das polícias militares a presença de um ethos guerrei-ro, em que sua atuação aparece condicionada – e esta parece ser uma visão compartilhada por setores da mídia brasileira – à intervenção por meio do uso da força, sendo o fulcro de suas ações o enfrentamento ao criminoso, que, dentro dessa lógica, metonimica-mente, torna-se inimigo.

As características da formação policial, brevemen-te apresentadas aqui, devem ser compreendidas, no caso brasileiro, a partir do exame das características estruturais da nossa sociedade, observada por auto-res como Roberto DaMatta (1979), como um arranjo social que busca mesclar, dramaticamente, princípios igualitários e individualistas (preconizados formal-mente desde a fundação da República) com princí-pios autoritários, hierarquizantes e excludentes.

Nesse sentido, a formação do policial brasileiro, em suas diversas faces, seria mais uma expressão da tentativa de conjugação de duas lógicas, a princípio, incompatíveis: a da valorização de direitos universais e a da percepção de que “alguns cidadãos são mais merecedores de direitos do que outros”; que, por seu turno, devem ser monitorados, enfrentados e, no limite – dado o seu status de elemento nocivo à or-dem social –, exemplarmente punidos ou eliminados (LIMA, 2003; WACQUANT, 1999).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa inserção no curso de Convivência e Seguran-ça Cidadã (PNUD) foi profundamente orientada pela participação recente em cursos de formação poli-cial, no Estado do Rio de Janeiro, em particular, no curso de Aprimoramento da Prática Policial Cidadã, desenvolvido por uma parceria entre a Polícia Mi-litar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e a ONG Viva Rio (entre os anos de 2009 e 2012); e o curso de Cidadania e Acesso à Rede de Proteção Social

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para Policiais Atuantes em Unidades de Polícia Paci-ficadora (entre os anos de 2012 e 2014).

Ambas as experiência tinham como objetivo au-mentar o nível de reflexividade crítica de policiais (sobretudo praças) acerca da sua atuação e de seu comprometimento com a prevenção à violência, so-bretudo, em contextos de policiamento comunitário.

A análise da avaliação feita por instrutores, con-sultores e pelos próprios participantes dos cursos – que somam cerca de 4.500 policiais militares, no total – é instigante, no sentido de que revela um significativo reconhecimento dos policiais sobre as vantagens das práticas preventivas; isso não parece, contraditoriamente, diminuir seu ímpeto para o confronto e seu enfoque na identificação dos cha-mados “elementos perigosos”, aos quais deve ser direcionado o máximo de força e energia.

Essa experiência na PMERJ nos trouxe – e acre-dito também para os auxiliares de pesquisa que nos

acompanharam nessa jornada – a forte sensação de que outras ferramentas, para além da simples alte-ração/modernização dos conteúdos, terão que ser instrumentalizadas, para que policiais em formação ou em treinamento criem engajamento com práticas preventivas orientadas para a garantia dos direitos dos cidadãos, para a redução da letalidade e morta-lidade policial e para o estreitamento dos laços entre polícia e sociedade, no Brasil.

A despeito da projeção que o discurso preventi-vo pareça vir adquirindo em relação aos argumentos punitivos, sobretudo em campos como a academia e em “gestões mais progressistas”, a convivência com os operadores indica tratar-se de um debate ainda longe do fim; e que muitos recursos terão que ser em-pregados na formação policial, para que as políticas de segurança pautadas na prevenção tornem-se algo concreto em nossa sociedade.

Fabiano Dias Monteiro

Bacharel em Ciências Sociais pela UFF, Mestre em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ e Doutor

em Antropologia Cultural pelo PPGSA/UFRJ. Foi Bolsista Pos-Doc PDR da FAPERJ. É

Professor Adjunto do Departamento de Políticas Públicas do IEAR/UFF. Trabalhou como

gestor público na área de Direitos Humanos na Secretaria de Segurança do Estado do Rio

de Janeiro e na Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro entre

os anos de 2000-2010.

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REFERÊNCIAS

CASTRO, C. O espírito militar. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1990.

DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de janeiro: Zahar, 1979.

GARLAND, D. As contradições da sociedade punitiva: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, nº 13, p.59-80, 2007.

LIMA, R. K. Direitos civis, estado de direito e cultura policial: a formação policial em questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jan./mar., p. 241-256.

MONTEIRO, F. D; MALANQUINI, L. Sobre soldados e gansos: uma aproximação acerca da percepção policial sobre a atuação em UPPs. Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, São Paulo, 2012.

MUNIZ, J. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais, Iuperj-Ucam, Rio de Janeiro.

PONCIONI, P. O Modelo policial profissional e a formação profissional do futuro policial nas academias do Estado do Rio de Janeiro. Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, nº 3, p. 585-610, set./dez. 2005.

SOARES, L. E. Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública no Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

WACQUANT, L. As prisões da miséria. Paris: Raisons d’Agir, 1999.

WAISELFISZ, J. J. Os jovens do Brasil. Mapa da violência 2014. Brasília: SGPR-SNJ-SEPPIR, 2014.

WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. DF: Editora da Universidade de Brasília, 1994.

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Atuação Policial e Convivência e Segurança Cidadã: desafios do novo paradigma

Tânia Pinc

SEGURANÇA PÚBLICA VERSUS SEGURANÇA CIDADÃ

No Brasil, o tema segurança tem sido tradicional-mente tratado pela perspectiva da segurança públi-ca, cujos atores centrais são as polícias e as guardas municipais, que tendem a concentrar o foco de seu trabalho no desenvolvimento de estratégias que vi-sam localizar e prender criminosos. A Segurança Ci-dadã representa um novo paradigma da segurança, especialmente, porque amplia o foco na tentativa de diagnosticar o problema em toda sua complexidade; e envolve outras áreas e diferentes níveis de governo, além da participação da comunidade, para responder ao problema.

Os conceitos de policiamento comunitário e poli-ciamento de proximidade estão ancorados na pers-pectiva de cooperação social. Portanto, não se pode dizer que o trabalho realizado com a comunidade represente algo novo na formação e na atuação poli-cial, ao menos do ponto de vista conceitual. Todavia, esses modelos de policiamento ainda não alcançam a dimensão que a Segurança Cidadã propõe, por causa da ausência de atores sociais de outras áreas gover-namentais atuando como protagonistas no processo de enfrentamento integral ao problema.

Um dos principais propósitos dos espaços criados para difusão e indução das ações governamentais em direção ao paradigma da Segurança Cidadã é promo-ver a participação de setores governamentais, que, tradicionalmente, compõem o campo das políticas sociais, como planejamento urbano, educação, saúde, assistência social, entre outros. Contudo, foi possível observar – nos cursos de Convivência Cidadã, promo-vidos pelo PNUD, e em outras iniciativas que enca-

beçamos, principalmente em parceria com a Oficina Municipal, na cidade de São Paulo – que esses outros setores não costumam responder ao chamamento, provavelmente porque não se sentem responsáveis pelos problemas de segurança.

No entanto, a articulação de diferentes setores governamentais em projetos, programas e políticas de Segurança Cidadã é um problema que recai so-bre a gestão pública, testando sua capacidade de im-plementação intersetorial e coordenação (BLANCO; GOMÀ, 2003; CUNILL-GRAU, 2014). A participação de diferentes áreas está relacionada à noção de in-tegralidade, não apenas no sentido de enfrentamen-to integral ao problema, mas, principalmente, pela proposta de proteção integral ao cidadão (SCHUTZ; MIOTO, 2010).

Os setores governamentais que atuam no campo das políticas sociais já estão adaptados a essa noção de integralidade, contudo, a área de segurança ainda opera mais pautada no aspecto repressivo do que protetivo. Portanto, existe um elemento cultural que resiste à mudança de perspectiva e que não pode ser tratado apenas pela gestão da política. Nesse sentido, a formação e a educação continuada surgem como importantes ferramentas para o reposicionamento dos agentes da segurança pública.

O TREINAMENTO E A SACOLA DE CONHECIMENTO

O treinamento discutido neste texto é a atividade vol-tada para o aperfeiçoamento do preparo profissio-nal e leva em conta que o público-alvo possui algum conhecimento teórico e prático sobre o assunto. Isso quer dizer que o treinamento policial está voltado

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para um público adulto e com experiência profissio-nal e pretende promover alguma mudança de com-portamento.

Para promover a mudança de comportamento desejada, é relevante concentrar esforços na apren-dizagem e no desempenho. Sendo assim, é esperado não apenas que o policial aprenda o novo conheci-mento, mas faça o que aprendeu (GOLDSTEIN, 1979). Os métodos tradicionais de treinamento tendem a se concentrar em duas práticas: (i) apresentar o novo conhecimento, ou seja, mostrar “o que fazer” (what to do); e (ii) simular situações reais para praticar o novo conhecimento, no sentido de demonstrar “como fazer” (how to do).

Essa metodologia é usada em larga escala pelas polícias dos países democráticos, mas está, funda-mentalmente, incompleta (HABERFELD, 2002), pois apresenta significantes lacunas, em especial por não considerar a validade dos conhecimentos acumula-dos pelos profissionais ao longo da carreira (PINC, 2011). Dessa forma, o policial pode até aprender o novo conhecimento, mas dificilmente irá colocá-lo em prática.

Cada profissional traz consigo uma “sacola de conhecimento”, em que guarda o que considera rele-vante para desenvolver seu trabalho. Esse estoque é derivado tanto do conhecimento formal, transmitido pela organização policial quanto pelo conhecimen-to informal, construído na rotina diária do trabalho. Existe um equilíbrio que permite que ambos se com-plementem. Na ocasião de um treinamento, é muito provável que esses conhecimentos sejam confronta-dos pela nova perspectiva proposta.

Quando o treinamento é concentrado apenas em apresentar e praticar o novo conhecimento, é como

se estivesse levando em conta que cada profissional é uma página em branco e que a organização policial pode escrever o que quiser nessa página. Esse é um grande engano! Profissionais com experiência não possuem páginas em branco. Para que a organiza-ção seja capaz de introduzir algo novo, é necessário abrir espaço, retirando conhecimentos que já foram escritos. Nesse sentido, a melhor forma de começar um treinamento é abrindo a sacola de conhecimen-to1 dos profissionais.

Esse tipo de abordagem exige habilidade de me-diação do treinador, não apenas no que se refere ao debate entre os participantes, mas, principalmente, entre as ideias que são discutidas e o conhecimento formal proposto durante o planejamento do curso. Portanto, é muito diferente do método tradicional, em que o treinador consegue controlar o conteúdo e o tempo por meio da apresentação de slides em uma conduta meramente expositiva.

Se o propósito principal do treinamento for pro-mover o reposicionamento ou a mudança compor-tamental, é muito provável que o conteúdo do curso questione princípios que fundamentaram a condu-ta do policial até aquele momento. Esse é o ponto mais crítico do treinamento, porque se espera que o policial “apague” alguns desses antigos princípios, abrindo espaço para inscrever ou “escrever” o novo conhecimento. No entanto, esse movimento não ocorre simplesmente porque a organização quer que o policial aja “assim ou assado”. Esse objetivo somente será alcançado caso o próprio policial se convença de que o novo conhecimento é melhor do que o antigo.

Nesse sentido, quando o treinador consegue abrir a sacola de conhecimento do policial e ele/ela mostra

1. Em um dos cursos do PNUD, a maioria dos participantes era de guardas municipais e, por causa disso, minha decisão foi por começar explorando o perfil da Guarda. Em vez de apresentar o modelo “ideal”, eu pedi para que cada participante escrevesse, em um post-it, a principal atividade da Guarda em sua cidade e enumerasse o papel com 1, se sua função tivesse relação com a Guarda; e 2, se não tivesse. Alguns voluntários me ajudaram a colar e organizar as tarjetas em grupos de atividades, o que permitiu a todos mostrar o que sabiam e conhecer o que as guardas realmente estão fazendo, nos diferentes municípios do Brasil. A partir de então, estávamos prontos para começar a discutir o papel da Guarda Municipal no contexto da Convivência e Segurança Cidadã.

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o que guarda dentro dela, é chegado o momento de fazer o trabalho de desconstrução e construção2 con-junta; isso é feito de forma que o policial “descarte” o conhecimento que não tenha coerência com o con-teúdo proposto e preencha esse vazio com o novo princípio, apropriando-se desse novo formato como partícipe da construção.

RECOMENDAÇÕES: REGRAS DE OURO

Em um ambiente no qual se reúnem policiais/guar-das, gestores públicos não policiais e representantes da sociedade é muito grande a probabilidade de sur-girem diferentes pontos de vista. Algumas pessoas podem tentar monopolizar o debate, enquanto ou-tras podem ficar acanhadas em dizer o que pensam. O treinador tem o difícil papel de tentar promover a

participação de todos de forma equilibrada. Nem to-das as pessoas possuem essas habilidades que foram destacadas no papel do treinador. Sendo assim, a pri-meira regra de ouro é treinar o treinador.

Algumas mudanças na atuação policial somen-te poderão ser alcançadas ao longo do tempo e em associação a outros fatores. Contudo, a escolha da metodologia de treinamento é determinante para o sucesso da reforma desejada. Nesse sentido, é reco-mendável observar outras duas regras de ouro: (i) respeitar e considerar como válido o conhecimento acumulado pelo profissional ao longo de sua carreira; e (ii) reconhecer que o profissional irá desempenhar a conduta esperada não apenas porque a organização policial avaliza, mas, principalmente, porque acredita que esse é o caminho correto a seguir.

2. No intuito de introduzir o ponto crítico a respeito da tensão entre a aplicação da lei e a proteção ao cidadão, alguns voluntários simularam uma abordagem policial. No fim, os guardas e o abordado descreveram a experiência a partir do seu ponto de vista. Para evidenciar o desconforto que a abordagem provoca em um cidadão que não tem relação com o crime, mesmo quando os profissionais fundamentam sua ação no respeito à lei e aos princípios democráticos, eu acrescentava algumas informações, de acordo com o perfil da pessoa que fez o papel do abordado. Se ela fosse mais velha, eu dizia que aquela pessoa estava indo a uma entrevista de emprego, quando foi abordada. Essa pessoa estava desempregada há vários meses e aquela entrevista parecia ser um sinal de mudança em sua vida. Se fosse um jovem, eu dizia que ele estava indo se encontrar com uma garota e que há muito tempo ele ansiava por esse encontro. Contudo, a abordagem fez com que se atrasassem e um perdeu a entrevista e o outro, o encontro. Mas, em ambas as situações, quando os policiais/guardas estavam fazendo a busca pessoal, um vizinho passou e reconheceu o abordado. Logo começou a pensar que sempre desconfiou de algo errado na sua conduta e quando chegou ao prédio foi logo contando ao porteiro e ao síndico. Este foi o aquecimento para promover a discussão organizada em torno da tensão entre a aplicação da lei e o respeito aos direitos civis/humanos.

Tânia Pinc

Post doctoral Fellow at the Drugs, Security and Democracy Program – Social Science Research Council (2013-

2014); doutora (2011) e mestre (2007), em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Foi pesquisadora

visitante na Universidade do Texas, em Austin (2009-2010). Recebeu o Reconhecimento Fuerzas de Cambio II

do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe

(Unlirec), pela contribuição das mulheres da América Latina e Caribe para o Desarmamento (2014). Desenvolve

pesquisas sobre políticas públicas de segurança, temas relacionados ao desempenho da polícia e uso da força, e

política de drogas em perspectiva comparada com países da América Latina. Trabalhou por 25 anos na Polícia Militar

do Estado de São Paulo (1987-2012) e é major da Reserva. Consultora do PNUD para os projetos: Sistema Nacional

de Estatísticas em Segurança Pública (Sinesp) e Pensando a Segurança 3 (2012-2014).

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REFERÊNCIAS

BLANCO, I.; GOMÀ, R. La crisis del modelo de gobierno tradicional: reflexiones en torno a la governance participativa y de proximidade. Gestión y Política Pública, vol. 12, nº 1, 2003, p. 5-42.

CUNILL-GRAU, N. La intersectorialidad en las nuevas políticas sociales: Un acercamiento analítico-conceptual. GESTIÓN Y POLÍTICA PÚBLICA, vol. 23, nº 1, 2014, p. 5-46.

GOLDSTEIN, A. P. et al. Police crisis intervention. New York: Pergamon, 1979.

HABERFELD, M. R. Critical issues in police training. New Jersey: Prentice Hall, 2002.

PINC, T. Treinamento Policial: um meio de difusão de políticas públicas que incidem na conduta individual do policial de rua. 2011. 246 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

SCHUTZ, F.; MIOTO, R. C. T. Intersetorialidade e política social: subsídios para o debate. Sociedade em Debate, Pelotas, vol. 16, nº 1, 2010, p. 59-75.

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