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1 Arquivo PDF disponível na pagina www.fem.unicamp.br/~seva --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Controle da água e do território como meta imperialista O que farão os alternativos? 14.03.2005 O discurso das guerreiras contra a máfia da água 18.03.05 Nosotros - contra privatizar a água e a política 20.03.05 Água, Bem público, Financiamento público 15.04.05 O renascimento da esquerda, a água e outros interesses coletivos 15.04.05 O «jet d’eau» do lago Leman em Genebra, visto da Plage de Pâquis, onde houve na noite de 19 de março de 2005 uma atividade cultural de encerramento do Forum Alternativo Mundial da Agua --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Série de cinco artigos elaborados em Março e Abril de 2005, para a Agência Carta Maior e sua revista eletrônica, dentro da cobertura feita do 2 o . FAME – Fórum Alternatif Mondial de l’Eau, em Genebra, Suíça, pelo professor Oswaldo Sevá. Na equipe de Carta Maior estavam esse autor e os jornalistas da agência, Verena Glass e Mauricio Thuswohl, cujos artigos, e também de outros autores, estão na página www.agenciacartamaior.combr e dentro dela, no especial Fórum da Água 2005

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AArrqquuiivvoo PPDDFF ddiissppoonníívveell nnaa ppaaggiinnaa wwwwww..ffeemm..uunniiccaammpp..bbrr//~~sseevvaa ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

CCoonnttrroollee ddaa áágguuaa ee ddoo tteerrrriittóórriioo ccoommoo mmeettaa iimmppeerriiaalliissttaa

OO qquuee ffaarrããoo ooss aalltteerrnnaattiivvooss?? 1144..0033..22000055

OO ddiissccuurrssoo ddaass gguueerrrreeiirraass ccoonnttrraa aa mmááffiiaa ddaa áágguuaa 1188..0033..0055

NNoossoottrrooss -- ccoonnttrraa pprriivvaattiizzaarr aa áágguuaa ee aa ppoollííttiiccaa 2200..0033..0055

ÁÁgguuaa,, BBeemm ppúúbblliiccoo,, FFiinnaanncciiaammeennttoo ppúúbblliiccoo 1155..0044..0055

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O «jet d’eau» do lago Leman em Genebra, visto da Plage de Pâquis, onde houve na noite de 19 de março de 2005

uma atividade cultural de encerramento do Forum Alternativo Mundial da Agua ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Série de cinco artigos elaborados em Março e Abril de 2005, para a Agência Carta Maior e sua revista eletrônica, dentro da cobertura feita do 2o. FAME – Fórum Alternatif Mondial de l’Eau, em Genebra, Suíça, pelo professor Oswaldo Sevá. Na equipe de Carta Maior estavam esse autor e os jornalistas da agência, Verena Glass e Mauricio Thuswohl, cujos artigos, e também de outros autores, estão na página www.agenciacartamaior.combr e dentro dela, no especial Fórum da Água 2005

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CCoonnttrroollee ddaa áágguuaa ee ddoo tteerrrriittóórriioo ccoommoo mmeettaa iimmppeerriiaalliissttaa.. OO qquuee ffaarrããoo ooss aalltteerrnnaattiivvooss??

Oswaldo Sevá, Campinas, 14.03.2005 Eis as palavras de boas vindas, de Alberto Velasco, presidente do Comitê suíço de

organização do Fórum Alternativo Mundial da Água, (FAME2005) que acontecerá em Genebra, Suíça, nesta semana:

AAlloorrss qquuee llaa ppllaannèèttee nn’’aa jjaammaaiiss pprroodduuiitt aauuttaanntt dd’’oobbjjeettss ssuuppeerrfflluuss,, lleess ddeeuuxx ttiieerrss ddee sseess hhaabbiittaannttss,, qquuii ppaarr aaiilllleeuurrss ddééttiieennnneenntt llaa pplluuss ggrraannddee ppaarrttiiee ddeess rriicchheesssseess nnaattuurreelllleess,,

Enquanto o planeta jamais produziu tantos objetos supérfluos, dois terços de seus habitantes, os mesmos que detêm a maior parte das riquezas naturais,

nn’’oonntt ppaass aaccccèèss àà ddeess iinnssttaallllaattiioonnss ssaanniittaaiirreess eett uunn mmiilllliiaarrdd eett ddeemmii dd’’êêttrreess hhuummaaiinnss vviivveenntt ssaannss eeaauu ppoottaabbllee.. IIllss nn’’oonntt ppaass ddrrooiitt àà uunn bbiieenn sseennsséé lleeuurr ggaarraannttiirr llaa vviiee eett llaa ddiiggnniittéé..

não usam instalações sanitárias e um bilhão e meio de seres humanos vivem sem água potável. Eles não têm direito a esse bem, considerado como garantia de vida e dignidade.

......LL’’eeaauu dd’’uunn ppooiinntt ddee vvuuee ééccoonnoommiiqquuee eesstt uunn bbiieenn ccoommmmuunn eett nnoonn uunn pprroodduuiitt iinndduussttrriieell.. CC’’eesstt uunn ddoonn ddee llaa nnaattuurree eett àà ccee ttiittrree ppeerrssoonnnnee nnee ppeeuutt ssee ll’’aapppprroopprriieerr dduu ffaaiitt qquu’’iill ssee ttrroouuvvee

ooppppoorrttuunnéémmeenntt ddaannss uunn lliieeuu eett ppaass aaiilllleeuurrss.. ...Água, de um ponto de vista econômico é um bem comum e não um produto industrial. É uma dádiva da natureza e, como tal, ninguém pode apropriá-la só porque ela se encontra,

oportunamente, num dado local e não alhures. Palavras bem escolhidas para dar o tom do Fórum onde se tentará costurar uma ampla e sólida

frente anti -mercantilização da água. Bem comum, garantia de dignidade, dom da natureza. Palavras merecedoras também de uma análise acurada e de confrontações com a realidade,

informando e estimulando o leitor da agência Carta Maior, cuja equipe estará acompanhando e comentando o evento.

Não é bem o planeta que produz objetos supérfluos, e a situação talvez seja ainda pior: desse um terço dos terráqueos que teriam acesso às instalações sanitárias, uma boa parte tem o esgoto coletado mas não tratado. Não precisa ir longe, é exatamente o caso das maiores metrópoles e de tantas cidades brasileiras.

Um bilhão e meio de pessoas que vivem sem água potável ? Mais exato seria dizer que elas sobrevivem bebendo água ruim ou perigosa. E os outros cinco bilhões por acaso só bebem água boa? Aliás, com os custos crescentes para tratamento de líquido captado em rios e poços cada vez

mais sujos, para se conseguir obter água potável - a tendência só pode ser de agravamento na grande maioria das aglomerações humanas, afetando muitas bacias fluviais em todos os continentes.

Em Genebra esta semana, a tarefa será difícil para Monsieur Velasco, Monsieur Ricardo Petrella e demais organizadores do Fame 2005, pela abrangência dos tópicos diversos sob uma mesma bandeira, pelo estopim dos interesses antagônicos envolvidos.

Meio vital, insumo, mercadoria

Os discursos sobre a água, mesmo os que são entronizados e circulam na esquerda e nos

campos alternativos, estão cheios de armadilhas ideológicas e de indefinições conceituais. Exemplos fortes: Água não é recurso natural, pois só é recurso aquilo que tem ou terá valor

econômico. Rio não é recurso, nem manancial de captação, nem corpo receptor, rio é fluxo de água no

território, é meio de vida, pode ser até meio de transporte. Rio é ecossistema, é maternidade e estoque de peixe e de outros animais aquáticos e peri-aquáticos. Pode ser para nós uma fonte de água boa ... isto tudo se o rio não estiver barrado ou poluído ou ambos.

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Ao contrário de certas disputas verbais, que pouco influem no desfecho real, aqui as armadilhas e indefinições são parte integrante do debate. Dilemas, encruzilhadas e embates da mais alta relevância.

Prá começar, dizer que a água é um meio vital é obvio. Mas, em tempos de desencantamento, é destacarmos nosso vínculo e o concernimento com a

vida, a de cada um dos seis bilhões e meios de humanos e a dos que estão chegando a cada dia. Com a vida em geral, já que o ciclo da água e a existência da vida no planeta são indissociáveis. Caracterizar a água como insumo produtivo, de amplo uso na economia, é também evidente,

basta registrar o uso e a destinação das águas nas atividades hoje praticadas em grande escala: - irrigação de hortas, pomares e de culturas comerciais, - interceptação das minas d’água e bombeamento dos aqüíferos profundos e dos rios

subterrâneos para uso geral, para coletividades como hotéis, hospitais, clubes, presídios, shoppings, e para venda engarrafada como água potável;

- represamento de rios para uso de água na atividade mineradora e na concentração de minérios, e para a formação de bacias de rejeitos, incluindo o acréscimo de águas extraídas do subsolo durante a lavra;

- represamento ou derivação da correnteza dos rios para aproveitamento ou construção de queda d’água com a finalidade de turbinar e produzir eletricidade;

- captação de grandes vazões dos rios e de aqüíferos freáticos e semi - artesianos para lavagem de cana e de outras safras, para fabricação de açúcar vê álcool, de celulose, papel e papelão, para indústria cerâmica, para o refino de petróleo, para o uso em toda a indústria química e toda a indústria de alimentos industrializados e de derivados de carne e de leite, em quase toda a indústria têxtil e assim por diante...

- e a subseqüente geração de grandes vazões de efluentes que serão de um modo ou outro devolvidos para os rios e mares;

- e, em muitos casos, a perda evaporativa por causa da geração e utilização de vapor, dos sistemas de resfriamento e das emanações das bacias e tanques.

Obras de construção de um emissário para devolver o esgoto tratado de Genebra para o Lago Léman, entre a Place des Nations e a beira do lago, no terreno da sede da OMC – Organização mundial do Comércio. Se além disso tudo, incluirmos o fornecimento de água nas cidades e núcleos urbanos, e

lembramos que muitas atividades ficam ao longo das mesmas bacias fluviais, ou nos mesmos trechos de um litoral, aí temos o mundo real: cada um pega uma água de um tipo, de um jeito, num ponto do seu longo e repetido ciclo, e cada um pega com um custo diferente; tipos e custos de água podem variar muitíssimo. E pronto: uns sujam ou desviam as águas que outros captarão para seu uso, e assim ela não pode deixar de ser motivo de disputa e de conflito.

Sempre foi, como ilustra antes mesmo da era cristã, a fábula de Esopo do cordeiro e o lobo que bebem no mesmo rio.

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Acessar e conduzir a água sempre foi estratégia chave na tribo e entre as nações, como atestam os raros prazeres das termas, e das saunas, a centralidade medieval do chafariz e da fonte, as maravilhas dos aquedutos e a sabedoria dos patamares montanhosos irrigados.

No capitalismo, tornou-se uma mercadoria dentre as mais valiosas, promissoras e disputadas.

As empresas multi utilities; os mercados cativos Nos tempos em que Lênin radiografou o imperialismo financeiro-industrial, os engenheiros

Billings e Henry Borden circulavam entre Toronto, New York, RJ e SP para cuidar da infraestrutura da modernização: os mesmos capitais se juntavam para obter as concessões da usina térmica na cidade, a usina hidrelétrica na serra próxima, as linhas de bonde, a rede elétrica, a operação do porto e às vezes o sistema de gás canalizado, as redes pioneiras de telégrafos e de telefones.

Na época, Mr. Farquhar, seu gerente Mc Kenzie e demais personagens hoje parecendo de ficção, engrenaram com influência e violência nada românticas, várias atividades de tipo imperialista no eixo RJ Belém Porto Velho e também no Paraná.

Não bastava operar a ferrovia e iluminar a cidade, tinha que exterminar ou expulsar indígenas e posseiros, que grilar terras e cortar madeira na faixa da ferrovia, montar projetos de colonização, fundar cidades e regiões.

Hoje podemos ver o renascimento das empresas que se especializam em “multi-utilities”, na exploração de redes físicas, ganhando dinheiro com as múltiplas utilidades supridas por infraestruturas territoriais, vendidas a consumidores difusos e grandes usuários concentrados, todos pendurados na mesma rede, possibilitando transferir custos e rendas entre eles.

As mesmas empreiteiras que fazem as grandes obras viárias depois se associam com nomes de

fantasia, sonoros como Nova Dutra, AutoBan, Via Lagos, e conquistam as concessões de exploração das rodovias: ganham fortunas com o pedágio dos veículos, lançam cabos de fibras óticas na faixa da rodovia, alugam pontos valiosos como os postos de serviços e os centros de lazer nas margens da rodovia, e em alguns casos, cobram pedágio também das empresas distribuidoras de gás e de água que usam as faixas para a colocação dos dutos e tubos.

As empresas de eletricidade abrem o acesso de suas linhas de transmissão para cabos de

dados, as empresas de água e esgotos também aproveitam seu network de tubos enterrado nas cidades e podem acoplar cabos elétricos e óticos, transmitindo dados. O esgoto tratado e até o esgoto bruto podem ser faturados como água de re-uso, como fluido de resfriamento de usinas térmicas e de indústrias com grande demanda de vapor.

A Sabesp, que cuida do abastecimento de água e do saneamento na capital e em muitos

municípios de SP pode se tornar também uma empresa autoprodutora ou até um produtor independente de energia elétrica, passando a usar suas instalações das represas na Serra da Mantiqueira (Jaguari, Atibainha e Cachoeira) e na Serra da Cantareira (Juqueri) também como usinas hidrelétricas. De todo modo, uma parte da vazão deve ser sempre destinada às cidades que ficam rio abaixo, como Atibaia, Itatiba, Jundiaí, Campinas, Americana, Bragança Paulista, Pedreira, e tantas outras. A empresa-lobo poderia alegar que está fazendo uma benesse ao usuário-cordeiro rio abaixo, como na fábula de Esopo.

Em Limeira, há dez anos se fez uma privatização pioneira, a Prefeitura passando a operação da autarquia municipal para um consórcio chamado “Águas de Limeira”, formado pela construtora Odebrecht e pela empresa francesa Lyonnaise des Eaux. De lá para cá, aumentou bastante a captação de água bruta no rio Jaguari (rio acima da cidade de Americana), aumentaram as tarifas, e aumentou a carga de esgoto não tratado descarregado no mesmo rio que ali mudou de nome para rio Piracicaba.

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No mesmo município, Limeira, na beira do mesmo rio, Piracicaba, o grupo de eletricidade Tratecbel (que no Brasil é o dono da Gerasul, parte da antiga Eletrosul), que integra com a Lyonnaise o mesmo grande capital bancário Indosuez, tentou há três anos implantar um outro projeto pioneiro: a central de co-geração que usaria um bom fluxo de gás vendido pela britânica Comgás, puxaria água e jogaria efluentes no mesmo rio, dentro das cotas outorgadas para um grupo de sete indústrias (algumas multinacionais, duas locais) que seriam clientes do projeto, comprando dele a eletricidade e o vapor para seus processos industriais.

A “cogeração Anhangüera” não deu certo, mas aponta uma rota já decidida: as multi-utilities buscam a perenidade do negócio, se possível, a perpetuidade.

Preparam-se para renovar o poderio imperialista. Agora sim, com a transformação da água em

mercadoria, com a conversão dos rios e dos poços em jazidas e estoques de lucros a extrair sem restrições, venderão serviços essenciais para consumidores difusos e segmentados, que dificilmente se oporão e resistirão.

Fotos da revolta popular de Cochabamba, no ano de 2000. Painéis levados a Genebra pela delegação boliviana

A força da história às vezes prevalece sobre a decisão estratégica empresarial: foi lá longe em

pequenos países e em locais improváveis que o frisson da infra-estrutura começou a ser questionado de frente.

O Uruguai impediu por meio de um plebiscito a privatização da água. Na Bolívia, a revolta de Cochabamba expulsou a Bechtel do poderoso George Schultz. No Peru, pequenas cidades do litoral norte vão retomando das empresas estrangeiras as

concessões que foram obrigadas a ceder anos antes. O quê ficará para os próximos artigos, esperando que fatos desse calibre venham à tona nesse Fórum Alternativo Mundial da Água.

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OO ddiissccuurrssoo ddaass gguueerrrreeiirraass ccoonnttrraa aa mmááffiiaa ddaa áágguuaa Oswaldo Seva, de Genebra, 18. 03. 2005

A teoria parece incomodar mas não deixou de estar presente, por detrás, uma espécie de

fantasma nas entrelinhas de todos os discursos. Conceitos como solvabilidade, titularidade, correlação de forcas não foi diretamente mencionados

nos trabalhos iniciais do Fórum Alternativo Mundial da Água, que transcorre esses dias em Genebra, Suíça.

A noção de "água como direito" antagoniza e pretende substituir a noção de "água como necessidade". Claramente, trata-se de um embate ideológico sofisticado, pois necessidade e algo que pode, no capitalismo, corresponder a uma carência real das pessoas, ou não. Pode também corresponder a algo criado, estimulado induzido pela propaganda e pelas campanhas de tipo comportamental, cultural.

A água tratada, potável, acessível dentro ou perto de casa ou do sitio, certamente pode ser

classificada como necessidade, ninguém ousaria dizer o contrario, mas, na lógica férrea da valorização mercantil, tal necessidade somente seria atendida se for uma demanda solvável, ou seja, se os custos da sua captação, tratamento e distribuição puderem ser cobertos por meio das tarifas pagas pelos consumidores.

E como todo esse serviço exige investimentos físicos em geral elevados, e exige organização e pessoas qualificadas para operar e dar manutenção, ha que se conseguir angariar tais fundos ali mesmo, naquela coletividade, ou obre-los emprestando dos bancos, o quê de todo modo incidiria sobre as tarifas. Para isto, alguns economistas, por exemplo o francês Christian Palloix, elaboraram o conceito sofisticado de "solvabilidade coletiva".

Para defendermos o financiamento dos serviços de água para todos sem exceção, e não apenas para aqueles que podem pagar, tal conceito tem que ser detalhado e tornado operacional. Senão, sobrarão apenas as belas intenções.

Por baixo de uma das Ponts de l’Ile sobre o Rio Rhône, no centro da cidade, passam tubos de água da empresa pública SIG-Services Industriels de Genève; um deles com vazamento esguichando.

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Para isto, outro passo tem que ser dado: definir a pertencem os rios, os lençóis subterrâneos de água, os aqüíferos, ou seja, os locais onde os fluxos naturais de água doce podem ser captados para uso. O fazendeiro pode ter a terra, mas certamente não possui o rio, a indústria pode obter uma concessão e captar água no aqüífero subtraio, mas o subsolo não lhe pertence. O município tem que captar água no rio, mas na Constituição o rio pertence ao estado ou a União, o empresário pode ser obrigado ou não a pagar pela água que usa e pelo esgoto que devolve.

O serviço de distribuição de água e de coleta de esgoto tem que ser coletivo, pode ser

considerado ou não como um serviço público, pode ser ou não operado pela administração publica. Ai entra o conceito de titularidade dos recursos e dos serviços, algo que esta sendo objeto de um ataque jurídico concentrado nos últimos anos. No Brasil uma das seqüelas dessa ofensiva parece ser a paralisia dos projetos de lei do saneamento básico e da titularidade da água e dos serviços nos municípios e regiões metropolitanas.

Danielle Mitterand Vandana Shiva

Danielle e Vandana.

Na sessão de abertura do Fórum, no grande e moderno Auditório da Fundação Adite, em frente à Place do Cirque, dez personalidades falaram desde seis e meia ate quase nove da noite.

O show mesmo foi das mulheres, a começar pela francesa Madame Danielle Mitterand viúva do político socialista francês François Mitterand eleito presidente em 1981. Falou de uma tomada de consciência em âmbito mundial, lembrou que precisamos sempre nos preocupar com o sentido das palavras, para que cheguemos a um estatuto da água claramente definido. De quebra, desmascarou o plebiscito que está se realizando em 2005 nos paises europeus, pela adoção de uma constituição européia, em cuja redação os ideólogos neoliberais substituíram o interesse publico geral, a "res publica", pelo interesse puramente econômico.

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Vandana Shiva, líder indiana de movimentos de mulheres e ambientalistas, disparou contra a "máfia da água", citando o caso dos serviços de água e esgoto da capital Delhi. Um patrimônio de mais de um trilhão de rúpias, cujo controle foi cedido ao grupo Lyonnaise-Suez. Informou também sobre o movimento contra a fabrica da Coca Cola em Mailama, no Estado de Prashti Madar, advertindo: "Cada vez que você bebe uma Coca Cola lembre-se que esta bebendo o sangue do povo".

Pôs o dedo numa contradição entre dois gigantes do capitalismo: o agrobusiness que no tempo da revolução verde exigia muita irrigação para aplicar seus fosfatos e agroquímicos, e o hidrobusiness, que agora alega ser um desperdício o uso de água na agricultura. Claro, pois pretende conduzir cada vez mais água para as metrópoles e industrias.

E indicou também uma nova fonte de segregação e de corrupção, que bem poderia ser um caso no Brasil um dia: uma boa parte da população não tem como pagar tarifas de água e esgoto, e as redes com água de qualidade não os atendem, o que ela chama de hydro apartheid, ou segregação social da água.

E, jeitinho brasileiro na Índia? para melhorar a eficiência da coleta dos pagamentos das contas, a grande empresa alicia os eleitos locais ...para que percorram os bairros convencendo os pobres a pagar. E, para não nos deixar esquecer do contexto econômico no qual o governo brasileiro defende a transposição do São Francisco, lembrou que fazem parte do esquema da "máfia da água" esses mega-projetos de transposição de vazão entre bacias fluviais distintas.

Wenona Hauter Adriana Marquisio

Wenona e Adriana. A norte-americana Wenonah Hauter iniciou seu tiroteio em cima das mesmas empresas de

capital europeu, os grupos Suez e Vivendi (agora rebatizado Veolia), os ingleses da Thames Water e seus sócios alemães da RWE. Para muitos dos presentes foi uma surpresa o fato dos capitalistas europeus terem iniciado o processo de privatização dos serviços públicos nos EUA . Em 1998, anunciaram que o serviço municipal de Atlanta se tornaria um modelo para o restante do pais, em 2003 foi retomado pelo poder publico.

As empresas parecem ter mudado a estratégia: abastecer as cidades grandes e tratar seu esgoto da muito trabalho, exige muito investimento, agora assediam as cidades menores.

Informou a todos, provavelmente tão surpresos quanto nós, que os movimentos contrários à privatização da água seguem a sua "water battle”, ou “batalha da água" : Indianapolis, Hampstead, Cleveland, Tacla, e outras em Wisconsin, Maine, Kentucky, e outros Estados. Em New Orleans, cresce a defesa do rio Mississipi pelos cidadãos . Fez a ponte entre as guerras do governo Bush e a onda privatizante do serviço publico: a escalada bélica custa cada vez mais, portanto que se corte a parte civil do orçamento.

E, num verdadeiro flash back para a geração que combateu a ditadura, encerrou levantando a platéia em uníssono, com a palavra de ordem jamais esquecida: "The people - united - will never -be divided" "O povo - unido - nunca será dividido".

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A uruguaia Adriana Marquisio fez um histórico emocionado das lutas populares no nosso vizinho Uruguai: desde 1992, plebiscitos foram realizados barrando cada investida de entrega do patrimônio publico. Primeiro a telefonia, depois a energia elétrica, os combustíveis. Em 2002, foi criada uma Comissão Nacional de defesa da água e da vida, e em 31 de outubro de 2004, juntamente com os votos que elegeram o presidente Tabaré Vasques, 65% dos eleitores uruguaios marcaram "sim" na proposta de emenda constitucional com cinco pontos básicos: 1. água como direito humano, 2. os serviços de água e esgoto operados direta e exclusivamente por empresa estatal, 3. a solidariedade aos povos que necessitam de água, 5. a participação horizontal e democrática nas fases de planejamento gestão e controle das águas.

O quinto e ultimo ponto do referendo sem duvida será a maior dor de cabeça do novo governo: 5. devem deixar o país as operadoras privadas que já atuam em alguns serviços municipais,

como o departamento de Maldonado, operado pela espanhola águas de Bilbao; sendo ressarcidas apenas do montante de investimento realizado, não sendo contabilizado o famoso lucro cessante, que as empresas sempre alegam nesses casos.

Adriana terminou sua mensagem falando em algo que ainda esta em gestação, mas que pode se transformar na nova política, a democracia direta, o enfrentamento das corporações feito pelo povo sem intermediários, as mudanças constitucionais obtidas pela iniciativa popular, apesar dos parlamentares e dos governantes, e às vezes, contra eles.

Muito justo, pois eles parecem estar cada vez mais contra o seu próprio povo. E nesse ponto, entraria o conceito (também não falado nos discursos, nem escritos nas teses

que aqui circulam), de correlação de forcas, que seria o mais apropriado para se analisar os rumos e as chances das lutas e batalhas que caracterizam a vida política e social dos povos e das nações.

Como veremos na seqüência dessa cobertura, nem mesmo a suíça, rica, pouco populosa, primeiro mundo do primeiro mundo, talvez escape da máfia da água.

Para adiantar, abram o site www.lecourrier.ch, do talvez único jornal independente do pais, que

produziu na teça feira dia 15 um belo caderno especial de doze paginas sobre o "ouro azul" e os "mercadores da água".

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NNoossoottrrooss -- ccoonnttrraa pprriivvaattiizzaarr aa áágguuaa ee aa ppoollííttiiccaa

Oswaldo Seva, de Genebra,20.03.2005

Revolta popular, Cochabamba, no ano de 2000. Painéis levados a Genebra pela delegação boliviana

El Alto pode ser uma nova Cochabamba, de onde outras empresas estrangeiras foram expulsas

pela rebelião do ano 2000. E a luta de classes na Bolívia, engrossada pelas de países próximos, como Equador, Peru,

Argentina, Uruguai, será um espelho para o mundo e, quem sabe, também para o grande vizinho Brasil: quechuas, aymaras e outros povos nativos que sobreviveram a meio milênio de conquista e matança promovem agora guerras para manter o controle sobre seus recursos econômicos cruciais: guerra do gás natural, guerra do petróleo, guerra da água.

É o que pudemos deduzir depois de uma jornada de seis horas num ateliê promovido por entidades da sociedade civil no 2º Fórum Alternativo Mundial da Água, realizado em Genebra na semana passada. O ateliê se chamou “Água, paz e conflitos na América Latina” e contou com a presença de cerca de 70 pessoas, que se reuniram numa sala de aula no palacete neoclássico da Universidade de Genebra, na Proménade des Bastions, centro histórico desta cidade suíça.

El Alto se alevanta

Em junho de 1997, o serviço municipal de água e esgoto de La Paz operado pela autarquia

Samapa foi concedido, sob pressão dos bancos internacionais e de agências de cooperação, como a alemã GTZ, para o consórcio formado pelo mega-grupo financeiro Suez, de origem francesa (55% do capital), pelo braço investidor do Banco Mundial, a International Finance Corporation (com 8%), capitais argentinos e 28% de capitais bolivianos, dos quais simbolicamente 1% pertencia a empregados reunidos em clubes de investimento – esta última fatia, aliás, como se viu também no Brasil em privatizações similares.

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Atender com água potável e esgoto à cidade de El Alto, uma segunda La Paz mais miserável e populosa, era tarefa para gente séria e concernida com as condições de milhões de bolivianos. Não é o caso do tal consórcio, batizado, como sempre faz a Suez em suas investidas, com um nome regional enganoso, onde a empresa principal não se identifica e os desinformados ficam achando que não é capital estrangeiro: Águas del Illimani. Como se os lucros escorressem diretamente e naturalmente dos glaciares dos Andes e das neves do grande vulcão que domina a paisagem.<p>

Entrada do “corredor boliviano” na Maison des Associations

na sede do FAME 2005, Genebra O contrato não estabelecia metas detalhadas de investimento, deixava de fora do atendimento os

setores 7 e 8 de El Alto, as tarifas aumentaram e, com isso, a empresa teve que enfrentar a revolta do povo organizado em Comités de Barrios e sua incapacidade de pagar as contas, o que acabou sendo também um ato de desobediência.<p>

Começou a ruir a pretensa competência empresarial privada, a ponto do presidente Carlos Mesa

ter mandado realizar uma auditoria fina nos serviços concedidos. Iniciou-se, na prática, o processo de ruptura do contrato, em fevereiro passado.

Em poucas semanas, conforme notícia publicada em 13 de março pelo jornal Los Tiempos, de Cochabamba, o governo ficou sob a chantagem da famosa “arbitragem internacional” – que todas essas empresas impõem unilateralmente, em um foro da escolha delas e sempre bem longe do país onde estão lucrando e de onde podem, apesar de tudo, serem expulsas.<p>

Disseram os bolivianos presentes em Genebra que o seu presidente havia sido pessoalmente

ofendido pelo atual chefão da Suez. Deve ter costas quentes, pois o seu antecessor, Jacques Monod, dirigente do partido RPR, do presidente francês Chirac, comandou antes a empresa Eaux de Marseille (de novo o nome laranja: Águas de Marselha) que opera os serviços na terceira maior cidade francesa, uma sociedade das duas grandes européias da “máfia da água”, a Suez e a Veolia (que antes se chamava Vivendi, a mesma que adquiriu o controle da empresa paranaense Sanepar, mesmo tendo menos de 40% do capital).

Monsieur Monod também preside o World Water Council, Conselho Mundial da Água, que promoveu oficialmente o Fórum Mundial da Água em Quioto, no Japão, em 2003, e está convocando o segundo para o México, em 2006.<p>

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No Equador e na Argentina, o cerco ao “lobby”

Atelier América Latina, na Uni Bastions, Geneve, 19 .03.2005. A partir da esquerda

Denis Garcia Alberto Munoz Adriana Marquisio Omar Fernandez Emilio Molinari

Denis Garcia, do Foro de Recursos Hídricos del Ecuador, lembrou-nos de que a água é considerada a fonte suprema da fertilidade para os nativos do país e também para os afro-descendentes que lá moram. Sendo assim, objeto de culto, de batismos, e de banhos rituais nas fontes e rios. Sagrada e ao mesmo tempo frágil: “A água se cuida como se cuida de uma planta, para que cresça, como um fruto, para que a colheita dê mais...”

E depois nos informou que na única cidade onde foi privatizado o serviço municipal, Guayaquil, segunda maior do país, a sociedade das norte-americanas Bechtel (expulsa de Cochabamba há cinco anos) e Edison cobra dos consumidores 0,52 cents de dólar por m3 de água servida, enquanto na capital Quito e na terceira maior cidade, Cuenca, a tarifa é de 0,20 a 0,24 cents. Mas há vários bairros de Guayaquil que não estão servidos e o povo tem que comprar do caminhão pipa, e aí podem chegar a pagar mais de 3 dólares por galão, quando a gasolina lá vendida mal passa de 2 dólares o galão de pouco mais de 4 litros.

Alberto Munoz, que veio da cidade de Santa Fe, representando a Associación provincial del Derecho al água, informou que o serviço da cidade foi entregue para a “Águas de Santa Fé”, imaginem quem de novo, a Suez!, e que mais de 250 mil pessoas votaram em 2002 num plebiscito contra a permanência da empresa européia, cuja renovação de contrato será discutida agora pelo governo de Néstor Kirchner.

Universalizar o direito ou o medidor de consumo? A chamada regulação social (desses serviços de tipo essencial) visa bancar totalmente ou

parcialmente as faturas mensais de água para os consumidores mais pobres e, como mostrou outro expositor desse ateliê Manoel Baquedano, do Chile, pode funcionar como um controle político fino, ramificado e eficaz, porque garante algo vital para os miseráveis, acalmando-os e, de fato, incluindo-os no mercado. Pretendem os promotores do Fórum alternativo implantar em escala mundial uma espécie de tarifa social: não cobrar de ninguém os primeiros 50 litros diários de consumo per capita.

Seria elogiável de cara, se não houvessem omitido durante os dias do Fórum que se trata da universalização do serviço medido e não do acesso em si, e se houvessem esclarecido o que proporiam para grandes consumidores como a indústria e os serviços coletivos, como por exemplo, o turismo, a hotelaria, o lazer dos clubes, piscinas, duchas nas praias e campos de golfe – e que são também fonte importante de renda para tantos países sul-americanos, africanos e asiáticos.

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Não despolitizar nem se deixar intermediar

Revolta popular, Cochabamba, no ano de 2000. Painéis levados a Genebra pela delegação boliviana

Sabem o que querem os expositores desse ateliê. Denis e Alberto, junto com o líder de Cochabamba Omar Fernandez, a líder uruguaia Adriana Marquisio, com apoio de poucos europeus “não oficiais” do Fórum Alternativo, como o italiano Emilio Molinari e o francês Jean Luc Touly, sindicalista do setor de saneamento e da central Force Ouvrière.

Deram o tom certo, dramático sem ser desesperado, ao momento delicado por que passam as esquerdas e os movimentos populares centrados nesse tipo de luta: se a causa é comum, não se pode permitir sectarismos, e os beneficiários, a gente do povo, tem que ser informada corretamente e capacitada a argumentar e avançar no debate.

Para isso, as equipes de análise e proposta têm que ser formadas e sempre afiadas, principalmente o pessoal que cuida dos aspectos jurídicos, legais e tecnológicos, para que possam saber quais documentos obter, como fazer sua leitura e análise, como auditorar contas e relatórios, e para que possam questionar as agências ditas reguladoras e os governos que cederam aos lobbies do hidronegócio. Mas, se os instruídos e acadêmicos podem ajudar, a mobilização só é forte quando é popular, quando tem raízes, quando pode se apresentar em atos públicos e em manifestações de rua com muita gente, quando pode obter vitórias sem depender de intermediários e aliados eventuais, como os parlamentares e algum órgão da grande imprensa.

Querem os alternativos dos alternativos, que este Fórum alternativo se defina, ora! Que explicitem a sua recusa da fórmula PPP (Parceria Publico Privada) aplicada ao setor de

água e saneamento, sob qualquer arranjo ou gradação, que seja feita a condenação sem rodeios da empresa Suez e da cooperação alemã GTZ (aliás, bem implantada no Brasil, em parcerias com ONGs e governos), e que sejam ditas as palavras certas: se os movimentos são sociais e tem raízes, o problema é de poder e não de um novo arranjo jurídico ou parlamentar. E que o próximo Fórum, os próximos encontros não sejam assim tão... eurocêntricos. Portanto, si Diós lo quiera!! estaremos na Venezuela em 2006, para fermentar nossas lutas no mesmo momento em que o hidronegócio estiver reunido no México, para conversar sobre seus lucros cada vez mais ameaçados.

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Água, Bem público, Financiamento público11 Oswaldo Sevá, de Campinas, S.P. 15.04.05

Cais de Pâquis, margem direita do Lago Léman, Genebra. Monte Saléve, no pré-Alpes.

Água, bem público, financiamento público era o título do terceiro dentre os 4 “eixos prioritários”

definidos para os trabalhos do Fórum FAME 2005. Reunidos em um amplo e moderno anfiteatro do campus UniMail da Universidade de Genebra, no dia 18 de março, quase quarenta oradores expuseram, comentaram para umas duzentas pessoas na platéia, criticaram e acrescentaram pontos num texto-guia (“document de travail 3”, que era uma plaquete de 25 pequenas páginas bastante recheadas).

Uma proposta que alinhavou este grupo temático e todo o fórum, é a de inscrever nas leis nacionais, como um direito para todos os povos e habitantes do mundo, o consumo de água em condições potáveis, e que uma certa vazão mínima per capita seja fornecida sem custos para os cidadãos. O que é evidentemente uma ousadia aberrante, para os defensores da água como “recurso econômico” e da sua mercantilização total, como objeto de produção capitalista e de lucro. Por isso e tudo o mais que se vai ver, os elaboradores do tema 3 em genebra estavam cuidando de lapidar, de argumentar, assumindo a disputa ideológica:

“Contrariamente às teses favoráveis à privatização desses custos, o financiamento público que aqui propomos não se traduz pelo fornecimento gratuito da água – seria uma tomada de responsabilidade (“prise en charge” ) pela coletividade, assumindo os custos ligados ao direito à água – o que segundo os detratores, incitaria a população a desperdiçar a água... Não há gratuidade, mas os custos decorrentes, associados à concretização desse direito têm que ser assumidos pelas finanças públicas.” (grifado no original) pág. 7

1 as frases mencionadas na íntegra, originalmente faladas ou escritas em inglês e em francês, foram por mim compiladas e traduzidas para o português. [exceto citações de A . Carlos Mendes Thame e de Lúcio Flávio Pinto]

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Dentre as intervenções mais marcantes, registrei alguns destaques e performances de um brasileiro, o deputado Antonio Carlos Mendes Thame, do italiano professor Ricardo Petrella, do marroquino economista Mehdi Lalou, e do parlamentar suíço Alberto Velasco, que presidiu o comitê suíço organizador do Fórum. 2.

A participação plena de Petrella e de Velasco neste grupo temático nos dá uma pista relevante: os líderes dos alternativos da água projetam uma alternativa ao Banco Mundial, uma rota a parte das finanças pilotadas pelos grandes bancos. Se eu nomeasse hipoteticamente Banco Popular Mundial da Água, isso não representaria fielmente a idéia de uma federação de cooperativas locais e regionais, cada uma delas angariando poupança pessoal e das famílias para bancar com tais fundos públicos, o custo crescente de suprir água e coletar e tratar esgotos de quase sete bilhões de humanos.

A propósito da fixação de um consumo mínimo per capita não cobrado dos usuários, fica a dúvida sobre a dimensão numérica (física, em termos de vazão de água por tempo) . O grupo de trabalho 3 “Água Bem Público Financiamento Público” consolidou a proposta de um patamar de 50 litros diários ou 1.700 m3 anuais por pessoa.

Comentando a proposta, o deputado federal brasileiro Mendes Thame,3 - lembrou que é bastante

difícil de se obter a medição correta destes 1.700 m3 por ano por cada pessoa, e para toda a população. Teve também que refrescar a memória da platéia e dos próprios redatores e propositores do FAME 2005, sobre os vários tipos de consumo de água, que incluem não somente as residências familiares e a agricultura, - que foram as únicas atividades consumidoras de água mencionadas em todo o fórum, mas incluem também grandes vazões usadas na indústria, e no comércio, na lavagem de ruas após as feiras livres, na aguada dos jardins, parques e gramados públicos

E contra-propôs – ainda sem a menor chance de alterar a posição das lideranças desse processo

bem expresso no FAME – argumentando que já existe e já se pratica a concepção de cobrança pelo uso. É a chamada “redevance” na França, praticada de modo similar na Alemanha, no México. O deputado bem sabe que as novas leis das águas e de gestão das bacias no Brasil são ainda mais avançadas, e ele mesmo, secretário de Recursos Hídricos do estado brasileiro mais populoso e com os maiores consumidores de água, resume a filosofia, ou talvez, a utopia hídrica:

“ não se cobrará de quem consome pouco nem de quem devolve a água em boas condições; mas se deve sobretaxar quem usa mal a água e quem polui os cursos d’água”.

Fez também recomendações estratégicas, certamente baseado na experiência paulista e na

brasileira da última década: que os financiamentos públicos propostos para investir em água e em saneamento sejam explicitamente considerados como investimentos em saúde pública, em saúde preventiva; deveriam ser considerados isentos de avaliação por meio desses coeficientes de endividamento, nem como despesas públicas para fins de cálculo de superávits, etc... e foi enfático nos vetos, nas precauções que mesmo num fórum como esse, devem ser tomadas.

Solicitou que colocassem nas resoluções do Fórum: “Proibir usar esse financiamento público para as concessões tipo onerosas (aquelas nas

quaisquem paga mais à agência ou ao poder público - ganha a concessão); não vender as empresas de serviços de água e saneamento, no máximo sua operação poderia ser terceirizada”

2 (Outros presentes naquela sessão de debates, e outros que entrevistei pessoalmente, serão mencionados no ultimo artigo da série, publicado ao mesmo tempo em que este) 3 (representando a Câmara Federal, junto com outros dois deputados do PT, num encontro parlamentar internacional que integrou a programação do FAME 2005)

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Petrella no grupo 3 Água Bem Público Financiamento Público Velasco no encerramento do FAME 2005

O professor Petrella, italiano, vinculado a uma universidade belga, falando em inglês – colocou

toda sua energia neste grupo temático, e sua liderança permitiu-lhe lançar ao mesmo tempo o jargão e os alertas - à altura da missão que ele e uns poucos se dedicam :

“Comecemos pela “filosofia” dos financiamentos: existe uma corrente dominante (mainstream financial philosophy) representado pelo Relatório Camdessus (no World Water Fórum de 2003, em Kyoto ), e pelo Banco Mundial e o FMI; existe uma outra escola de pensamento, que começou com o PNUD há muitos anos, que prioriza a noção de “common goods”, ou bens comuns. Daqui se originam aqueles que se organizam para angariar fundos públicos não – estatais.”

Mas, antes que pensemos que ali jogará sua âncora, Petrella toma a devida distinção, e adverte: “Por favor não vamos cair nesta armadilha – para eles a boa coisa pública é o não -

Estado, por isso também, falam em “governança” , outra armadilha, querem criar uma política sem o Estado.”

Faço um parêntese para comparar: no mesmo mês em que Genebra hospedou o fórum

Alternativo da Água, circulava pelo Brasil, e notadamente na Amazônia, um dos “capôs” das finanças multilaterais, a disseminar a noção de que na atualidade, há alguns bens que são “comuns”, pertencem à humanidade – o que em certos casos, quer dizer literalmente que os atuais donos ou pretendentes a esses bens, serão derrotados.

Citando aqui o jornalista e sociólogo paraense Lucio Flávio Pinto, a propósito da riqueza amazônica, cuja maior parte está no território brasileiro, ele assim abre o artigo:

“Uma nova temporada de debates sobre a internacionalização da Amazônia começou no final do mês. Ela foi provocada por uma palestra do francês Pascal Lamy, ex-comissário de Comércio da União Européia, e aspirante ao posto de diretor da Organização Mundial do Comércio - OMC, - atualmente em disputa com outros dois candidatos, um dos quais brasileiro.

Lamy defendeu a inclusão da Amazônia como um dos “bens públicos”, sujeitos, por essa condição, “às regras de gestão coletiva”. Outros bens públicos mundiais, em seu entendimento, seriam a água, as rotas marítimas e a segurança dos mercados financeiros.” (do artigo “Internacionalizar ou nacionalizar: dilema” , pg. 6 do periódico Jornal Pessoal, ano XVIII, no 341, 1a. quinzena de março de 2005, Belém)

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Uma das fontes de logro, engendradas pelas poderosas forças – as que são apenas representadas pelos tipos líderes da classe dominante internacional, como Lamy e Camdessus - é a repetição da afirmativa de não há recursos estatais para gastar em atividades e serviços como a água e o esgoto.

De fato, se não houvesse, uma das causas seria – como dizia o velho Brizola – as perdas internacionais: a cada ano, um enorme fluxo de renda vai dos países do Sul para os do Norte.

Um dos integrantes da mesa e expositor naquele grupo 3, dia 18 de março em Genebra, o pelo economista marroquino Mehdi Lahlou estimou esta sangria em 370 bilhões de dólares somente em juros da dívida -E foi ao ponto:

“Não há um problema de financiamento para a água e o saneamento, é uma questão de escolha, isto sim!. Por exemplo, no Marrocos, o investimento total seria da ordem de 300 milhões de euros por ano, quantia que seria 75% coberta por exemplo, se fosse cobrado de cada turista uma taxa para conceder o visto, de 45 euros. Foi eu que paguei, para entrar na Suíça e vir participar desse Fórum. Os cinco milhões de turistas que chegam ao Marrocos a cada ano podem pagar. Afinal, o consumo de água para o turismo é muito alto, estimamos em mil litros diários por visitante!”

Encerro com o quê o deputado Alberto Velasco, nesse mesmo grupo do financiamento público da água, encerrou sua fala: “Temos que mostrar que somos capazes de falar também das finanças, da economia”. E, de imediato abriu o jogo: “um Fundo que substitua o Banco Mundial”. Muitos se surpreenderam com tal proposta.

Talvez Velasco quisesse nos lembrar, participantes comuns daquele Fórum alternativo, militantes, estudiosos, jornalistas, que tudo pode ser convergente, que toda a luta pode ser dirigida para a pilotagem do fluxo financeiro nessa ou naquela rota.

Estaria reafirmando que o econômico ainda é determinante em ultima instância ? Ou então, - já não há mais como distinguir a luta de classes - da disputa em torno da acumulação

de capital e do seu direcionamento?

Entrada principal do prédio da OMC Organização Mundial do Comércio .na praça defronte, a “homenagem” aos trabalhadores

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OO rreennaasscciimmeennttoo ddaa eessqquueerrddaa,, aa áágguuaa ee oouuttrrooss iinntteerreesssseess ccoolleettiivvooss

Oswaldo Sevá, 15;04.05

Colado na fachada da Université de Genève, campus Promenade des Bastions

O argentino e as palavras.

No debate público, na organização das pessoas e dos grupos em torno de suas preocupações comuns, e, especialmente quando isto desemboca nas ações políticas, nas manifestações públicas, nas demandas jurídicas e perante os parlamentos - a preocupação permanente com as palavras usadas, com os conceitos adotados e com as conotações possíveis, é uma contingência da disputa ideológica. Aliás, é um dos seus componentes-chave.

Ao contrário dos que querem despolitizar tudo, quando prosseguem as aparentes querelas e competições entre essa ou aquela palavra, pode não se tratar de !”jogo de palavras”, nem de “preciosismos” no sentido pejorativo.

Assim raciocinava o líder argentino da luta contra a privatização da água em Santa Fé, Alberto

Muñoz, na entrevista que me deu na cafeteria da Maison des Associations, rue des Savoises, em Genebra. Enquanto no salão ao lado, finalizava de modo tenso e discrepante a assembléia das entidades que participaram do Fórum Alternativo Mundial da Água, o FAME 2005:

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“Há que se ter cuidado extremo com algumas dessas palavras: por exemplo, “regulação”, que para os europeus e americanos que aqui estão conosco, pode significar regulamentar as relações na sociedade, ...para nós é sinônimo de privatizar serviços coletivos.

“Parceria” poderia muito bem não significar algo entre o público e o privado; mas somente foi lhe dada essa conotação insistente. Para nós, parceria mesmo só se for entre o público e o público, entre instâncias públicas.

E, a mesma coisa com os tais “acordos bilaterais de investimento”. Como assim “acordos”? Por acaso passaram pelo Congresso de cada país? Foram feitos entre Estados ou entre grupos de empresas? E porque então os responsáveis não põem sempre nome e sobrenome nas empresas que estão nos tais consórcios, que fazem tais parcerias?”

Rue des Savoises, perto da Place du Cirque, onde se concentraram

atividades das entidades presentes ao FAME 2005 É nítido aí que, mesmo num Fórum alternativo, na convivência e na costura política entre grupos

que se identificam e se respeitam, permanece o problema da postura colonialista ou até imperialista por parte de muitos europeus, mais os nórdicos, germânicos, do que os mediterrâneos, de muitos norte-americanos e canadenses.

O quê se agrava com a disseminação de certas traduções e de certas conotações dos conceitos-chave usados no debate, nas pesquisas técnicas, nas sondagens de opinião e nas formulações sobre a água como bem público e o direito ao acesso.

O francês e a força da informação técnica sindical.

A presença e participação de líderes sindicais nesse tipo de reunião é, ainda, depois de tantos anos, bem menor do que deveria ser, se o objetivo fosse um combate permanente à ditadura empresarial, ou seja: as suas práticas antidemocráticas no interior da organização e sua falta de ética e clareza nas relações com a sociedade. Uma das poucas chances que tem a sociedade nesta batalha provém do acesso à informação técnica resumida e interpretada, e aí os trabalhadores e técnicos de cada setor, em seus movimentos sindicais é que podem destravar um dos ferrolhos.

Menos mal que, na delegação brasileira parlamentar para o FAME 2005, estava o deputado federal Mauro Passos, do PT de Santa Catarina, um antigo e combativo líder sindical dos eletricitários; afinal, entre a energia elétrica e a água existe uma íntima e lógica relação, pelo menos no Brasil. Se em Genebra estivessem presentes dirigentes da FNU -Federação Nacional dos Urbanitários, do campo cutista, e dos tantos Sindaee (sindicatos de trabalhadores em empresas de águas e esgotos), aí estaríamos em bem melhores condições para avançar e aperfeiçoar a amplitude internacional dessa luta.

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Por isso, quem brilhou mesmo nesse campo foi Jean Luc Touly , dirigente sindical dos funcionários de serviços de água e esgoto da França, e da federação Force Ouvrière, atualmente a mais à esquerda, ou talvez, a única ainda de esquerda dentre as centrais francesas. Sobre a prática institucional do grupo empresarial. Alertou-nos, a todos:

“As empresas do Vivendi implantam grupos de agentes, representantes, no interior dos partidos, em vários casos empregam os políticos nos quadros da organização econômica, e também corrompem, ou tentam corromper os sindicatos de trabalhadores.”

Na sua intervenção no grupo de trabalho 3, Água Bem Publico Financiamento público, propôs que sejam firmadas normas de interdição, de fundo ético-profissional, para que os responsáveis e técnicos públicos destes serviços de água e esgoto nunca possam participar em instâncias das empresas operadoras, p.ex. dos conselhos de administração, fiscal ou consultivo, das assembléias de acionistas. Deixou entrever que, numa França com já 55% dos usuários de água e esgoto sendo atendidos por empresas privadas, a corrupção e o tráfico de influência pode estar dominando a cena.

Fixou também uma ordem de grandeza econômica: o patrimônio do setor, na França, é estimado em três mil euros per capita, entenda-se, imobilizados em estações de captação, tubulações, estações de tratamento de água, reservatórios e redes de distribuição, mais as redes de coleta de esgoto e as suas estações de tratamento. Para cerca de 60 milhões de habitantes, pode-se dizer que o capital do sistema de água e esgoto seria 180 bilhões de euros, uns 250 bilhões de dólares, ou ainda, 650 bilhões de reais.

Touly registrou que o grupo Vivendi, agora chamado Veolia, faz apresentações idílicas dele mesmo, de suas 46 empresas de nomes distintos em tantos locais do país; mas, esconde que uma soma de 5 bilhões de euros, pagos pelos usuários franceses a título de custos de manutenção desse mesmo patrimônio de redes, tubulações, estações, foi aplicada em operações de capital nos EU!!.

Advertiu sobre a nova forma de, digamos, captação forçada de faturamento – algo bem conhecido dos brasileiros pagadores de contas por exemplo, de eletricidade e de telefone: nas cidades francesas onde o grupo Vivendi opera, ela anexa outras prestações à conta d’ água, por exemplo, o “aluguel” do relógio medidor de consumo !!!

Se uma entidade política e ao mesmo tempo técnica, como um sindicato de trabalhadores que fazem operação e manutenção de um serviço público pretende prestar um serviço valiosos às demais entidades e à população, - essa participação de Touly no FAME foi uma prova de eficácia. Mais do que isso, uma contribuição insubstituível, a não ser por um outro dirigente equivalente, que detenha tais informações e que também esteja a fim de repassá-las!

Adriana Marquisio, Omar Fernandez e Emilio Molinari, na Uni – Bastions, 19.03.05

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O italiano e o possível recomeço

Dentre poucas e boas conversas especiais que tive em Genebra, a posição pessoal mais original, a mais delicadamente afiada, foi a do militante italiano Emilio Molinari, ao relatar como estava a movimentação de empresas e de cidadãos em importantes cidades italianas: Em Napoli, parou o processo de privatização; e ele acha que tende a parar também em Milano e em Bergamo.

Na cidade de Florença, a comuna adotou a privatização numa primeira etapa, mas no âmbito mais regional, estão fazendo plebiscitos sobre uma Lei de Iniciativa Popular, que seria uma espécie de “Carta dell’acqua”, para fazer retroceder a privatização no departamento da Toscana. Os movimentos populares associam a sua campanha contra a privatização dos serviços com as eleições parlamentares, tornando público o apoio ou não dos candidatos à Carta.

Molinari enxergou também as pistas dessa nova “cultura” política de esquerdistas que passam a se empresarializar. Apontou um tanto frustrado, mas já conformado, que

“Além das empresas fazerem política, criarem ou bancarem partidos, isso acontece em todo o mundo, agora temos na Itália, partidos que acabam se transformando em empresas multinacionais, seus quadros se tornam quadros de empresas. Foi o ocorrido com o Partido Della Sinistra (antigo PCI) que participa ativamente da autarquia da comuna romana de água e esgoto, a ACEA, e que agora opera ou é sócia de serviços municipais em Honduras, no Peru, na Albânia e na Armênia”.

Engatando a marcha para a ladeira, subiu o tom, como se fosse um militante do terceiro mundo,

mantendo-se totalmente italiano do pós –segunda guerra: “Neste panorama, ainda temos que articular com essas ONGs americanas e canadenses

que despolitizam nossas lutas!” Instigado sobre o futuro político da esquerda, se haverá algum “renascimento”, Molinari responde

de bate pronto: “Claro! Renascerá desde que diga não à privatização da política. Desde que assuma não só a água, o saneamento, assuma também as florestas, a energia, assuma a luta pela saúde e pela educação do povo!”

Na Uni-Bastions; letreiro pintado na pilastra da entrada Vitral no saguão principal, com brasão de Genebra: Merda para a Declaração de Bolonha (da União européia) Nós não somos gado! Post Tenebras Lux Após as trevas, a Luz

========================================================================== *** Tudo isto (viagem, a cobertura do Fórum e a publicação dos artigos) só foi possível pelo convite inusitado para

mim, do Dr. Joaquim Palhares, diretor da Agência Carta Maior, pela dedicação de sua secretária Dona Estela, e porque pude contar com a amizade e generosidade dos colegas professores Salvador Carpi Jr., Sérgio Bajay e Waldyr Bizzo, que me substituíram nas três turmas que dou aulas nesse semestre.

Em Genebra, além do companheirismo do Mauricio e da Verena, agradeço especialmente ao Wolgrand Ribeiro, que me ajudou com o down load e o tratamento digital das fotos.