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CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA DELEGAÇÃO DITA TÁCITA DE COMPETÊNCIAS * Ravi FernandoPina Afonso Pereira ** FDUNL N.º 9 - 2002 * O autor agradece muito reconhecido aos Senhores Professores Doutores Armando Marques Guedes, Armando M. Marques Guedes, Diogo Freitas do Amaral, João Caupers, ao Dr. Gunu Tiny e ao Ricardo do Nascimento Ferreira pela leitura das primeiras versões deste trabalho bem como pelas preciosas observações que a acompanharam. Manifesta ainda o seu apreço pela amabilidade com que a Senhora D. Maria de Fátima Monteiro, funcionária da biblioteca do Supremo Tribunal Administrativo, prestou auxílio na pesquisa de acórdãos relacionados com o tema. ** Aluno do 3º curso da Licenciatura da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

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CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA DELEGAÇÃO DITA TÁCITA DE COMPETÊNCIAS *

Ravi FernandoPina Afonso Pereira** FDUNL N.º 9 - 2002

* O autor agradece muito reconhecido aos Senhores Professores Doutores Armando Marques Guedes, Armando M. Marques Guedes, Diogo Freitas do Amaral, João Caupers, ao Dr. Gunu Tiny e ao Ricardo do Nascimento Ferreira pela leitura das primeiras versões deste trabalho bem como pelas preciosas observações que a acompanharam. Manifesta ainda o seu apreço pela amabilidade com que a Senhora D. Maria de Fátima Monteiro, funcionária da biblioteca do Supremo Tribunal Administrativo, prestou auxílio na pesquisa de acórdãos relacionados com o tema. ** Aluno do 3º curso da Licenciatura da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 9/02

Contributo Para o Estudo da Delegação Dita Tácita de Competências

Ravi Fernando Pina Afonso Pereira © Ravi Afonso Pereira Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro, [email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide, 1099-032 LISBOA.

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I – Introdução 1. Este texto trata da figura da delegação dita tácita de competências.

Segundo julgamos, não lhe tem sido reconhecida grande importância pelos cultores do direito administrativo em Portugal, o que é lamentável, uma vez que isso se reflecte no seu esmorecimento na vida da administração pública, quiçá por incertezas quanto ao seu regime específico. Este será objecto do nosso estudo por entendermos que haverá que autonomizá-lo em relação ao tratamento concedido à delegação administrativa de competências. Como mais tarde veremos, estamos perante duas realidades diferentes e não perante uma espécie – delegação tácita – que se inclua no género – delegação administrativa de competências. É certo que a figura já quase não existe 1. Talvez seja por isso que é muitas vezes ignorada. O nosso objectivo é reavivá-la, por ela surgir como uma boa solução no plano da política legislativa, numa altura em que tanto se fala de desconcentração e descentralização dos serviços da administração pública sem que passos visíveis, quadrados com um modelo jurídico-normativo consistente, sejam dados nessa direcção 2 3. Porém, a defesa da figura, de iure condendo, terá que ficar para outra oportunidade. Neste trabalho ocupamo-nos tão-somente do estudo do seu regime. Estudo esse que é acompanhado de uma análise muito sumária (remetida por isso para nota de pé de página) de alguma jurisprudência dos nossos tribunais sobre casos de delegação tácita no domínio da administração autárquica em que o que está em causa é, fundamentalmente, conflitos positivos de competência entre a câmara municipal e o seu presidente.

1 Embora nela se inspirem novos modelos de articulação de competências. É o caso da aplicação pelas autoridades dos Estados-Membros responsáveis em matéria de concorrência dos artigos 81º e 82º do Tratado de Roma. O novo Regulamento relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81º e 82º do Tratado, Regulamento (CE) nº 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002 (JO L 1 de 4.1.2003, p. 1), no art. 11º, nº 6, vem atribuir poderes de decisão às autoridades dos Estados-Membros salvo avocação pela Comissão. 2 Sem prejuízo, naturalmente, da imaginação crescente na configuração da actividade administrativa bem como das diferentes formas de parcerias público-privadas para a prestação de serviços públicos. V. Profs. Maria Manuel Leitão Marques / Vital Moreira, “Desintervenção do Estado, privatização e regulação de serviços públicos”, Economia e Prospectiva, Vol. II, nº 3/4, 1999, p. 135 ss. 3 Como veremos, a figura serviu paulatinamente os fins nobres da desconcentração administrativa: à delegação tácita de muitas das competências da câmara municipal no seu presidente, que vinha prevista nos artigos 51º e 52º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, seguiu-se a sua exclusiva atribuição ao presidente, com a nova redacção dada a esse diploma pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho. Porque não aplicar este modelo a outras situações, de natureza transitória, com vista a uma maior desconcentração ou descentralização dos serviços públicos?

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Defendemos neste texto que a omissão do “delegante” 4 não tem como efeito qualquer alteração no exercício de competências que vinha cabendo por lei ao “delegado”. Este é o nosso ponto de partida para o tratamento autónomo da figura da delegação tácita face à delegação administrativa de competências, pelo que procuramos estudar com algum desenvolvimento certos aspectos do seu regime. Uma vez que entendemos estarmos perante uma forma de atribuição legal de competências condicionada à sua não avocação, ocupamos algumas linhas a tentar justificar qual a razão por que o legislador concebe um recorte de competências de geometria variável em que prevê, desde logo, na própria lei, que um órgão, o “delegante”, ponha termo ao exercício de uma competência que ela atribui a outro órgão, o “delegado”. Em nosso modo de ver, a avocação de uma competência pelo “delegante”, em sede de delegação tácita, encontra justificação na sua conveniência para o interesse público, por alteração das circunstâncias. Chegados a este ponto e havendo concluído pela improcedência da aplicação directa do regime da delegação administrativa de competências a esta figura, cuidamos da questão de saber se, caso a caso, algumas das disposições previstas no Código do Procedimento Administrativo não serão de aplicar por analogia à delegação tácita. O recurso à analogia justifica-se em situações – como a de que cuidamos – em que inexiste um regime próprio ou em que este é lacunoso. É o que faremos no número 5, concluindo, algumas das vezes, pela aplicação analógica, outras pelo seu afastamento. Esta última solução será defendida em relação aos poderes do delegante, previstos no art. 39º do CPA, que não existem, segundo julgamos, nos casos de delegação tácita. Retomamos – fazendo a ponte para a qualificação da natureza jurídica da figura – a questão do fundamento da avocação, sublinhando a ideia de estarmos perante um acto que carece de ser fundamentado, dada a sua natureza extintiva do exercício de uma competência que a lei comete ao “delegado”. Se, a dada altura, o “delegante” pretende chamar a si o seu exercício, tem que fundamentá-lo, pois só lhe é permitido fazê-lo por conveniência do interesse público. O que isso quer dizer, di-lo-emos em sede própria. Por fim, redimensionamos o que os mais eminentes administrativistas portugueses já escreveram sobre a figura da delegação tácita, tomando posição sobre a sua natureza jurídica.

4 Para tornar evidente a distinção entre as duas figuras, a saber: a figura da delegação de competências e a figura da delegação dita tácita, usaremos os termos delegante ou delegado sempre que nos referirmos aos elementos subjectivos da primeira; já quando tivermos em vista os elementos subjectivos da segunda, recorreremos aos termos “delegante” ou “delegado”, aparecendo estes últimos entre aspas.

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Pretendemos com isso, de alguma maneira, prestar homenagem àqueles mestres que tanto nos ensinaram sobre a matéria. Referimo-nos ao Prof. Diogo Freitas do Amaral e ao Prof. João Caupers, de quem fomos alunos. II – Recorte da figura 2. Quem considera a delegação tácita como uma espécie do género delegação, atribui relevância jurídica à omissão do “delegante”. Qual o seu significado? Este não pode deixar de ser a permissão para que o “delegado” pratique actos da competência do “delegante”. Em nosso modo de ver e salvo o devido respeito por quem sufrague opinião contrária, não cremos que a omissão do “delegante” seja juridicamente relevante. Porquê? Essencialmente porque para que um determinado comportamento – ainda que tácito – seja juridicamente relevante é preciso que dele decorra uma alteração no mundo do Direito. É preciso que ele produza efeitos jurídicos. Por outras palavras: ele terá que ter como consequência a modificação de situações jurídicas; neste caso, ou do “delegante”, ou do “delegado” ou de ambos. Será que algo de semelhante se verifica na delegação dita tácita de competências? Não cremos que seja esse o caso.

É que, bem vistas as coisas, o comportamento omissivo do “delegante” em nada altera o exercício de competências que até então vinha cabendo ao “delegado” 5.

Este já estava autorizado a praticar actos da competência do primeiro a partir do momento em que tal ficara estabelecido por lei.

Ora, se o “delegado”, a partir do momento em que a lei prevê certas competências do “delegante” nele tacitamente delegadas, já as vem, desde então, exercendo, de nada serve o comportamento do “delegante”. A sua omissão em nada altera os poderes do “delegado”.

É que, repare-se, mesmo que o “delegante” resolvesse praticar um acto expresso de delegação para a prática de actos da sua competência, este em nada viria alterar os poderes do “delegado” (os quais já haviam sido atribuídos por lei) 6 7.

5 Por lhe faltar o carácter estatutário, elemento em que o conceito de acto administrativo se analisa. V. Prof. Rogério Soares, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, p. 76-78. 6 A não ser, obviamente, se estivessem em causa outras competências cujo exercício a lei não tivesse atribuído ao “delegado”. Neste outro caso, os poderes do delegado só nasceriam com o acto de delegação.

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Parece-nos, pois, que os termos da discussão não são os mais correctos.

A questão não está tanto em saber se – através de uma omissão – um órgão pode ou não manifestar uma vontade 8, mas antes em saber se essa omissão vem alterar alguma coisa na situação jurídica do seu autor ou na do seu destinatário.

Como tal não acontece, não reconhecemos relevância jurídica ao comportamento do “delegante”. Este, ainda que praticasse um acto expresso de delegação de competências, não estaria a atribuir ao “delegado” poderes de que este já não fosse titular. Também este acto expresso não produziria quaisquer efeitos jurídicos. III – Regime jurídico 3. Origem legal da delegação

Poderá afirmar-se que a delegação tácita corresponde à vontade do legislador em promover, ele próprio, a desconcentração da actividade administrativa, tarefa a que está obrigado pela própria Constituição 9. Ao atribuir competência para a prática de determinados actos a dois órgãos diferentes, sendo que um – o “delegado” – é aquele que originariamente exerce essa mesma competência, o legislador está a manifestar uma intenção para que se verifique, de facto, uma redistribuição de tarefas entre os vários órgãos de uma mesma pessoa colectiva 10. Assim, ele pondera uma série de factores que lhe permitam formar uma ideia exacta de como prosseguir, da melhor maneira, o interesse público. Há um juízo de custo/benefício chegando-se à conclusão de que, sobre aquelas matérias, haverá vantagens em ser determinado órgão a 7 No mesmo sentido, v. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Abril de 1994, processo nº 33 626, que trata de um caso de uma câmara municipal que profere um despacho pelo qual delega poderes no seu presidente, vindo este a subdelegá-los. Pode ler-se no segundo parágrafo do sumário desse Acórdão que “[o] despacho da câmara municipal que delega poderes (já tacitamente delegados) no presidente da câmara não assume qualquer valor juridicamente relevante[...]”. O douto acórdão, baseando-se na doutrina do Prof. Diogo Freitas do Amaral, chega a pronunciar-se sobre a natureza jurídica da delegação tácita afirmando: “[...] manifesto é que a figura da delegação tácita se ajusta mal ao conceito de delegação de poderes” (p. 2839), concluindo tratar-se antes “de uma forma originária de desconcentração em que indiscutivelmente o órgão delegado é também titular da competência em causa” (p. 2839). V., sobre um caso idêntico, o acórdão do STA de 8 de Fevereiro de 1994, processo nº 31 769. 8 Referimo-nos à vontade de delegar competências suas num outro órgão, o delegado. 9 V. art. 267º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. 10 Ou então, nas palavras do acórdão do STA de 15 de Março de 1990, processo nº 26 863, “a delegação tácita assenta na vontade presumida do órgão da Administração de delegar alguns dos seus poderes e, no caso da administração autárquica, pode ver-se, nela, um expediente de garantia de uma maior eficácia dos serviços e até não lhe será estranho alguma carga histórica de poderes atribuídos ao presidente da câmara municipal” (p. 2037).

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prossegui-las – ainda que tal prossecução se circunscreva a um certo período de tempo que, com a alteração das circunstâncias (e se o interesse público assim o reclamar) 11, deverá ser recuperada por aquele outro órgão que o legislador não quis sacrificar, poupando-lhe o exercício de mais aquela competência por não ser conciliável, à data da produção normativa, com as demais competências a seu cargo 12. Imaginemos uma situação em que a lei atribui o exercício de competências de um determinado órgão colegial directamente ao seu presidente. Neste tipo de casos, não foi o órgão colegial que delegou as competências no seu presidente 13. Foi a lei que previu que o exercício daquelas ficaria a cargo do presidente daquele órgão colegial, podendo este, se assim o entendesse, chamar a si o exercício das referidas competências. Neste contexto, no caso de o órgão colegial nada fazer, permitindo ao seu presidente o exercício daquelas competências, ele não estará a praticar nenhum acto de delegação, pois o exercício das competências pelo presidente do órgão já estava previsto na lei. O que o órgão está a fazer, através do seu comportamento omissivo, é renunciar – durante o período de tempo em que mantiver esse comportamento – à avocação dessas mesmas competências 14. Se um dia mais tarde aquele órgão colegial decidir, seja por que motivo for, chamar a si o exercício das competências de que também é titular e que vinham sendo, até à data, exercidas pelo seu presidente, ele não estará a despojar este da titularidade daquelas competências (a titularidade havia sido atribuída por lei); estará tão-somente a manifestar a sua vontade de ser ele, a partir de então, a praticar os actos correspondentes às referidas competências.

11 Sobre o fundamento do poder de avocar poderes tacitamente delegados, v. infra. 12 Em anotação ao art. 35º, Esteves de Oliveira / Pedro Gonçalves / Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1997, p. 213, escreve-se: “[a] figura justifica-se, pois, como forma de conferir determinada competência, dentro da mesma pessoa colectiva, à instância mais apta para a exercer no dia a dia, mas sem deixar de salvaguardar, nessa matéria, não só a possibilidade de um órgão em posição de “supremacia” (qualquer uma) exercer um poder de controlo sobre um órgão “sujeito”, como, mesmo, de tal órgão “supremo” substituir o órgão subordinado no exercício das competências que “normalmente” cabem a este. São, digamos assim, competências da pessoa colectiva, e que podem ser exercidas por mais do que um dos seus órgãos, consoante as circunstâncias de (a)normal funcionamento o recomendem”. 13 O acórdão a que fizemos referência na nota 8, referindo-se ao caso concreto nele tratado, afirma o seguinte: “[f]oi, assim, instituída uma delegação de poderes directamente pela lei no presidente da câmara, que como delegação tácita que é logo se distingue da delegação de poderes geral por não provir de acto do delegante” (p. 2037). 14 No mesmo sentido, pode ler-se no acórdão do STA de 2 de Junho de 1992, processo nº 30 380 que “as competências em causa se consideram atribuídas ao presidente da Câmara enquanto esta as não reservar para si, enquanto as não avocar” (p. 3578).

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É importante que retenhamos esta ideia por uma razão muito simples: é que, apesar de não ser ele a exercê-las, o presidente daquele órgão permanece titular daquelas competências. Ora, uma vez sendo titular daquelas competências, poderá, se assim o entender, requerer ao órgão colegial a que preside, que seja ele próprio – e já não o órgão colegial no seu conjunto – a exercer, daí para a frente, as competências de que se havia visto privado. Estaria, assim, a pretender que tudo voltasse ao início, repondo a situação na sua origem, tal como o quisera o legislador. 4. Avocação de poderes tacitamente delegados

Para melhor compreensão deste aspecto do regime, atentemos naquilo que se passava, até há pouco tempo, nas autarquias locais em que certas competências da câmara municipal se consideravam tacitamente delegadas no seu presidente 15. Se a lei entende dever ser o seu presidente a exercê-las, por que razão confere à câmara a faculdade de pôr termo à “delegação” 16? Por outras palavras, aquilo de que nos ocupamos outra coisa não é do que do fundamento do poder de avocação. Havendo definido, como o fizemos, a figura da delegação tácita, também pela negativa, como uma atribuição legal de competências condicionada à sua não avocação, melhor se compreende a nossa preocupação em tratar com algum desenvolvimento o regime e a natureza deste poder, o de avocar o exercício da competência do “delegado”. Ora, não nos podemos esquecer que a circunstância de a lei prever o exercício de competências por outro órgão, o presidente, não retira a sua titularidade à câmara. Isto tem como consequência que é esta quem responde perante os munícipes da autarquia pelo bom ou mau uso das 15 Pode, ainda assim, defender-se que a figura está prevista na Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, na redacção dada pela Lei nº 5-A/2002, de 11 de Janeiro, conhecida por Lei das Autarquias Locais, que estabelece o quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias, no art. 68º, nº 2. É certo que a lei não afirma expressamente tratar-se de um caso de delegação tácita (como fazia o diploma que regulava a matéria antes da sua revisão pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho, Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, no art. 52º, nº 1 que dispunha: “[c]onsidera-se tacitamente delegada no presidente da câmara a competência prevista nas alíneas [...]”), mas também não é ao legislador que compete qualificar a natureza das opções contidas nos preceitos legais. Tal tarefa deve ser deixada à doutrina. Atente-se, por exemplo, no art. 68º, nº 2, al. l) que atribui ao presidente da câmara competência para “[c]onceder [...] licenças ou autorizações de utilização de edifícios”, competência que é comum à câmara municipal, conforme dispõe o art. 64º do mesmo diploma, no seu nº 5, al. a). Da leitura conjugada dos preceitos resulta que o exercício daquela competência da câmara está confiado ao seu presidente. Inequivocamente, um caso de delegação tácita vem previsto no nº 2 do art. 56º dos Estatutos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se pode ler que se considera “tacitamente delegado no presidente do Conselho Directivo a competência deste último Órgão, com excepção dos poderes previstos na alínea e) do artigo 51°, do artigo 53° e das alíneas a), d) e h) do artigo 55°”. 16 Esta questão vem tratada com maior desenvolvimento infra p. 17 ss.

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competências “delegadas” 17, caso contrário estaria a demitir-se da prossecução do interesse público relativamente a competências de que se mantém titular. Há, assim, como que uma actuação em nome próprio mas por conta de outrem. Na realidade, existe no nosso direito administrativo uma outra situação em que a entidade que responde perante os utentes não é aquela que detém o exercício material da actividade administrativa subjacente à relação com os particulares. De igual modo se passam as coisas no contrato de concessão, em que é o Estado ou a entidade pública em causa a responder perante os utentes 18.

A este respeito, importa considerar uma outra figura que apresenta semelhanças não despiciendas com a da avocação em caso de delegação tácita. Qual? Estamos a referir-nos à figura do resgate 19, enquanto causa de extinção de um contrato administrativo? Também aqui, precisamente pelo facto de a lei cometer determinadas atribuições ao concedente, não pode este deixar de responder por elas, ainda que as tenha concessionado. É essa a razão por que “se, por alteração das circunstâncias, passou a ser mais conveniente ao interesse público que [certa] actividade – até ali exercida mediante concessão por uma empresa privada – seja desempenhada directamente pela Administração [...], em vez de continuar a ser desenvolvida pelo particular, aquela tem o direito de pôr termo ao contrato através de uma decisão de resgate. Mediante o resgate, a Administração recupera o exercício daqueles poderes públicos que tinha transferido para o particular [...]” 20. 17 Estamos a falar de uma responsabilização pela boa distribuição de tarefas em geral e não pelos actos praticados no uso de “delegação”. Aqui, naturalmente, apenas o seu autor, o presidente, responderá. Por essa razão, terá andado mal o STA, no seu acórdão de 2 de Dezembro de 1993, processo nº 32 308, na parte em que reconheceu legitimidade passiva da câmara para contestar a impugnação de actos praticados pelo seu presidente. Note-se que terá havido aqui uma inflexão jurisprudencial do Supremo, porquanto, em momento anterior, num caso em que a recorrente tinha identificado (mal) a câmara como autora do acto, quando este havia sido praticado pelo seu presidente ao abrigo de delegação tácita, este tribunal negou provimento ao recurso confirmando a sentença do tribunal a quo que rejeitou o recurso contencioso por falta de legitimidade passiva. V. acórdão do STA de 27 de Setembro de 1988, processo nº 25 170. 18 Mais uma vez chamamos a atenção para o facto de se tratar de uma responsabilização de natureza política. Mas também jurídica, na medida em que o Estado ou qualquer outra entidade pública concedente não pode alienar as suas atribuições, devendo prosseguir o interesse público. 19 “O resgate consiste no acto administrativo pelo qual a Administração, antes de findo o prazo do contrato, decide retomar o desempenho das atribuições administrativas de que estava encarregado o contraente particular, não como sanção, mas por conveniência do interesse público, e mediante justa indemnização (v. CPA, art. 180º, al. c))”. Esta a definição do Prof. Diogo Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2001, com a colaboração do Dr. Lino Torgal, p. 649. A ideia de estabelecer uma análise comparativa entre as duas figuras, a saber, o resgate e a avocação, foi-nos sugerida pelo Prof. Diogo Freitas do Amaral. Fica assim assinalada a paternidade da ideia em causa. 20 V. Prof. Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., Vol. II, Almedina, 2001, p. 650.

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Com efeito, cremos mesmo tratar-se de um lugar paralelo com a mesma lógica subjacente ao poder de avocação que existe em casos de delegação tácita. É que, repare-se, o fundamento é o mesmo: não funciona como sanção, antes encontra justificação na conveniência para o interesse público, por alteração das circunstâncias 21. Gostaríamos, de seguida, de sublinhar um ou outro aspecto desta espécie de avocação 22, entre nós pouco estudada. Em primeiro lugar, cremos que tanto é permitido ao “delegante” a avocação de poderes como também de matérias tacitamente delegadas 23. Tudo depende, da forma como a distribuição haja sido operada na própria lei. Se também esta considera tacitamente delegadas apenas matérias e não competências, estando o seu exercício pelo “delegado” assim configurado, deve ser permitido ao “delegante” avocar essas mesmas matérias no seu conjunto. Tal tem como consequência, por outro lado, que o “delegante” pode avocar as competências apenas parcialmente (se apenas parte das competências “delegadas” justificar a avocação). Um outro aspecto a que importa fazer referência e que claramente se afasta do que se passa na delegação administrativa de competências tem que ver com o âmbito da avocação, já não em termos quantitativos, como vimos no parágrafo anterior, mas em termos qualitativos. É que, segundo cremos, não é admissível a avocação de um caso concreto. Apenas deve ser permitida a avocação para o futuro de competências cujo exercício a lei confiava ao “delegado”. Porquê? Porque, caso contrário, o facto de ser permitido, por exemplo, à câmara municipal avocar um caso determinado que estava a ser conduzido pelo seu presidente quereria precisamente dizer que havia má fé por parte do executivo camarário ao justificar a avocação de certas competências e/ou matérias apenas naquele caso.

21 Em todo o caso, reconhecemos que o âmbito de controlo jurisdicional é no caso da decisão de resgate mais alargado. É que, em última análise, um dos pressupostos do poder de resgate – a alteração das circunstâncias – é uma situação cuja verificação é sindicável jurisdicionalmente, i. é, o tribunal aqui acaba por fazer um controle de legalidade (pelo menos quanto à recondução da situação de facto ao conceito de “alteração das circunstâncias”). Já nos casos de avocação, parece-nos que existe alguma discricionaridade na apreciação das situações de facto em que deve ser permitido ao “delegante” avocar. Este aspecto foi-nos sublinhado pelo Dr. Gunu Tiny. 22 Salvo melhor opinião, deverá considerar-se a avocação de competências tacitamente delegadas como uma espécie do género “avocação” que é estudada a propósito da figura da delegação administrativa de competências. 23 Recorde-se que, em casos de delegação administrativa de competências, o acto de delegação tem que discriminar os poderes delegados (não é permitida a delegação de matérias) e tem que ser feita positivamente. V. CPA, art. 37º. Um caso em que ao “delegante” é permitida a avocação de matérias encontramos na Lei de Enquadramento Orçamental, Lei nº 91/2001, de 20 de Agosto, no art. 36º, nº 6.

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É que não é essa a finalidade do poder de avocar competências. Esta tem que ver com uma melhor eficiência dos serviços, postos à disposição do interesse público. Ora, nunca o interesse público justifica a avocação num caso singular apenas, devendo continuar o presidente a tratar desses mesmos assuntos noutros casos. O que tal significaria, outra coisa não seria do que uma espécie de desacreditação do presidente da câmara; de desconfiança ou de suspeição em relação à sua idoneidade para intervir naquele caso. Ora, não se verificando nenhuma situação de impedimento, nem tendo sido deduzida suspeição, uma avocação concreta por parte da câmara poderia inclusive configurar um caso de desvio de poder: o executivo poderia – esse sim em situação muito suspeita – estar a chamar a si o tratamento de um caso por razões que muito dificilmente teriam que ver com o fim para o qual a) lhe foi atribuída aquela competência b) lhe foi concedida a faculdade de avocação de certas competências exercidas pelo seu presidente 24. O que dizer da existência de subdelegações? Como sabemos, o presidente da câmara pode delegar e subdelegar competências nos seus vereadores. Quanto a nós, a avocação por parte da câmara tem como efeito a extinção de eventuais subdelegações do presidente nos vereadores. Com efeito, muitas vezes, vindo o presidente da câmara a exercer – para além das competências próprias – aquelas que a lei nele considera tacitamente delegadas – este toma a iniciativa de as subdelegar nos vereadores 25 (distribuindo-as segundo os pelouros de cada um destes). Uma vez avocadas as competências pela câmara, o seu exercício pelo presidente cessa, assim como se devem considerar extintas as eventuais subdelegações deste nos vereadores. Se assim não fosse, estaria encontrada a forma de o presidente subtrair o exercício de competências a quem delas também é titular. Bastaria subdelegá-las num ou em mais vereadores 26, para impossibilitar, por essa via, a sua avocação pela câmara.

24 Padecendo, assim, o acto de avocação de um duplo desvio de poder. 25 V. art. 69º, nº 2, da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, que dispõe que “[o] presidente da câmara pode delegar ou subdelegar nos vereadores o exercício da sua competência própria ou delegada”. Este preceito nada diz sobre a susceptibilidade de delegação das competências que cabem ao presidente por via de delegação tácita, mas cremos que um argumento de identidade de razão permite a sua interpretação extensiva. Com efeito, quem pode subdelegar competências em si delegadas por acto administrativo, por identidade (senão maioria) de razão poderá fazê-lo nos casos em que aquelas lhe são atribuídas directamente por lei. 26 Exercendo sobre estes os poderes próprios do delegante, através, por exemplo, da emissão de directivas ou instruções, podendo avocar certos casos ou exercendo a sua competência revogatória sobre os actos praticados pelos vereadores no uso da delegação. V. CPA, art. 39º.

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Em conclusão, o acto de avocação tem como efeito a extinção de eventuais subdelegações 27. Por último, no que diz respeito aos requisitos de forma, dir-se-á que o acto de avocação está sujeito a publicação no Diário da República. Porquê? Porque tal é imposto pelo princípio da adequação formal. É que a lei que previa o exercício das competências pelo “delegado” fora, em princípio, objecto de publicação nesse jornal. 5. O que diz o Código do Procedimento Administrativo?

Passemos agora a tratar do regime jurídico próprio da delegação dita tácita. Fá-lo-emos através de uma leitura crítica das disposições previstas no Código do Procedimento Administrativo para a delegação administrativa de competências. Rapidamente chegaremos à conclusão de que não podemos ver na figura da delegação dita tácita uma espécie do género delegação. O regime jurídico da delegação de competências vem regulado na Secção IV do Capítulo I da Parte II do Código do Procedimento Administrativo. Ora, analisando, um a um, os diferentes preceitos do Código, logo concluimos que o regime da delegação de competências se mostra inadequado à figura da delegação dita tácita. Se concentrarmos a nossa análise nos artigos 38º e seguintes – uma vez que os artigos anteriores dizem directamente respeito à delegação expressa de competências – comprovamos a sua inaplicabilidade à figura que vimos de estudar. Com efeito, o artigo 38º exige a menção da qualidade de delegado no uso da delegação. Quanto a nós, já esse requisito não faz sentido na delegação dita tácita 28. É que a razão de ser dessa exigência legal tem que ver com o princípio da publicidade dos actos administrativos, bem como com a recorribilidade dos mesmos. A invocação ou omissão por parte do delegado do uso da delegação pode ter consequências diferentes em sede de garantia dos particulares. Em caso de omissão é interposto recurso hierárquico (próprio ou impróprio) para o delegante; a invocação leva o particular a lançar mão da acção administrativa especial junto de um

27 V. sobre o assunto os acórdãos do STA de 8 de Fevereiro de 1994, processo nº 31 769 e de 19 de Abril de 1994, processo nº 33 626. 28 É esta a orientação do STA. V. acórdão de 12 de Março de 1987, processo nº 22 379, onde se afirma que “[...] resultando tal delegação directamente da lei, o presidente nem precisava de a invocar para praticar o acto pois o destinatário deste não devia ignorar tal delegação” (p. 1364).

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tribunal administrativo 29, nos termos do novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Ora, na delegação dita tácita, as coisas passam-se de maneira diferente. Nem a publicidade nem a recorribilidade do acto suscitam quaisquer dúvidas pela omissão da qualidade de “delegado”. É que o impropriamente chamado “delegado” está a agir não ao abrigo de um acto de delegação (que, aliás, nunca chegou a existir); mas antes ao abrigo de uma norma legal que o habilita para o exercício daquelas competências. Se o artigo 37º, no seu número 2, pretende assegurar a publicidade dos actos de delegação através da sua publicação no Diário da República, então melhor se entende a dispensa da menção da qualidade de “delegado” nos casos de delegação tácita: é que a lei que havia distribuído as competências, confiando o seu exercício no “delegado”, fora já, necessariamente, objecto de publicação nesse jornal 30.

Já no que diz respeito à recorribilidade do acto, podem surgir duas situações diferentes: a) ou o “delegado” menciona a sua qualidade de “delegado” e esta é inexistente; b) ou o “delegado” nada diz no exercício das competências por lei nele delegadas. 29 O problema do decurso do prazo para a utilização do “meio administrativo necessário à abertura da via contenciosa” era antes resolvido pelo art. 56º da LPTA, readmitindo-o, “no prazo de um mês, a contar do trânsito em julgado da decisão de rejeição”. Tem sido defendido que com a entrada em vigor do novo CPTA o problema deixa de se pôr. O legislador teria sepultado de vez a figura do recurso hierárquico necessário. Tal não parece resultar claro da lei. Se é verdade que o art. 59º, nº 4 determina a suspensão do prazo de impugnação contenciosa com a utilização de meios de impugnação administrativa e que o seu nº 5 vem esclarecer que essa suspensão não obsta à impugnação contenciosa do acto na pendência da impugnação administrativa, essas normas, bem vistas as coisas, apenas cuidam da articulação da impugnação contenciosa com a impugnação administrativa sendo esta facultativa. E esta suspensão é salutar, pois redunda numa garantia acrescida do particular que vê hoje, como sabemos, os dois prazos correrem em simultâneo (cf. CPA, art. 168º, nº 2). Já nos casos em que a lei impõe impugnação administrativa prévia para abrir caminho junto dos tribunais (e seria esse o caso, pois os actos praticados por órgãos subalternos no exercício de competência concorrente com o seu superior estão genericamente sujeitos a recurso hierárquico) deve ter-se aquele artigo por inaplicável, pois se o recurso hierárquico é necessário, por definição, está vedada ao particular a impugnação contenciosa. No mesmo sentido, embora com reservas que não acompanhamos, cf. Prof. Mário Aroso de Almeida, “Implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 34, 2002, p. 71-74. Repare-se, aliás, que nem a Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro nem a Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro revogam os arts. 166º ss do CPA (cf. Lei nº 15/2002, art. 6º, a contrario). Diga-se, por último, que se o legislador queria acabar de vez com a figura da impugnação administrativa necessária, então deveria tê-lo feito de forma inequívoca, à imagem, aliás, do que fez em muitas outras áreas. Note-se que o CPTA recupera a solução do art. 56º da LPTA no seu art. 60º, nº 4, compreendendo-se mal que o fizesse tendo querido erradicar a figura do recurso hierárquico necessário. Parece-nos, além disso, que se deve entender que a notificação do acto do subalterno – por conter imprecisões que induzem o particular em erro quanto aos meios de que dispõe para se defender – só se perfaz com a cessação do seu vício e esta ocorrerá com o trânsito em julgado da decisão de rejeição, correndo novo prazo para a impugnação administrativa necessária. O art. 56º da LPTA resolvia o problema específico dos casos de invocação abusiva de delegação de poderes, embora se devesse considerar que a sua doutrina se limitava a consagrar um princípio geral, agora vasado no referido art. 60º, nº 4. V. um caso curioso, resolvido pelo acórdão do STA de 20 de Novembro de 2002, processo nº 48 010, em que a identidade do autor do acto, sendo errada, leva o particular a interpor recurso contencioso. 30 Por essa razão se afirma no citado acórdão que “[n]ão havia que comunicar [ao recorrente] que o acto tinha sido praticado por delegação, visto se tratava de delegação tácita da Câmara, nos termos da lei que o recorrente não devia ignorar” (p. 1365).

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Na situação descrita em a), o que se passa é o exercício abusivo de um órgão que menciona a sua qualidade de titular de competências postas por lei a seu cargo bem como a previsão normativa de ser ele o detentor do seu exercício (por efeito de uma delegação tácita). Se tal não se verificar, então de duas uma: ou o órgão não se encontra habilitado para o seu exercício 31; ou o órgão nem sequer chega a ser um potencial delegado. Os vícios que daí decorrem em nada se vêem alterados pela menção ou omissão da qualidade de “delegado”. Em qualquer dos casos, o que o particular vai fazer é propor uma acção administrativa especial e o tribunal virá a anular o acto com fundamento em incompetência 32.

Atentemos agora na situação descrita em b), i. é, no caso de o “delegado” se encontrar habilitado por lei a exercer aquelas competências mas não o mencionar aquando da prática do acto.

Também aqui o particular não pode ter dúvidas. Se na delegação expressa de competências uma situação idêntica geraria dúvidas e induziria o particular em erro, forçando-o a accionar primeiro os mecanismos administrativos necessários à acção em juízo (prevendo a lei nesses casos a contagem do prazo para a propositura da acção a partir da reapreciação administrativa), já na delegação dita tácita aquela distribuição de competências encontra-se estabelecida na própria lei: pelo que o particular não pode defender-se com o seu desconhecimento 33, devendo recorrer directamente para os tribunais se os actos daquele órgão forem impugnáveis contenciosamente 34.

O que pode acontecer – e aqui o legislador deveria rapidamente regular esta matéria – é o “delegado” praticar actos ao abrigo de competências nele (tacitamente) delegadas por lei, cujo exercício se havia extinguido por força de o “delegante” ter chamado a si esse exercício.

Bem vistas as coisas, o que se passa é que o particular é confrontado com uma situação em que o órgão invoca o exercício de competências por

31 Seria o caso de um órgão no qual uma lei de habilitação permitisse a delegação administrativa de competências. 32 Ou com fundamento em vício de forma para aqueles que defendam a tese da autorização do exercício de competência no que respeita à natureza jurídica da delegação de competências (embora tal só fosse admissível para a primeira das hipóteses que aventámos). Seguimos aqui a tese da transferência de exercício de competências. V. Prof. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. 1, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1994, p. 680. No mesmo sentido, o Prof. José Carlos Vieira de Andrade fala em “transferência de faculdades de exercício de uma competência que continua a pertencer a quem delega”, em “A “revisão” dos actos administrativos no direito português”, in Estudos sobre o Código do Procedimento Administrativo, INA, nº 9/10, Janeiro-Junho de 1994, p. 192. Era já este o entendimento do Prof. Rogério Soares, Direito Administrativo cit., p. 257-258. Contra: Prof. André Gonçalves Pereira, Da delegação de poderes em Direito Administrativo, Coimbra, 1960, p. 23-29; Prof. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. 1., 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, p. 226-230; Prof. João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, Lisboa, 2000, p. 129. 33 V. Código Civil, art. 6º. 34 O recurso para o “delegante” deve considerar-se um recurso hierárquico impróprio. V. Prof. Diogo Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, p. 123. E tem sempre, acrescentaríamos nós, natureza facultativa.

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lei nele delegadas (o que não deixa de ser verdade), mas que, naquele momento, por vontade do “delegante”, esse exercício se havia já extinguido. Com efeito, não há maneira de o particular ter conhecimento dessa situação. Como vimos, no entanto, na hipótese descrita em a) os mecanismos de garantia não seriam afectados, pois o tribunal viria a anular o acto em causa.

Ao fim e ao cabo, os direitos do particular ficam salvaguardados por uma garantia processual. Em todo o caso, no nosso entender, qualquer garantia processual tem que ter subjacente um determinado direito do particular. Qual seria, para este efeito, esse direito? Cremos que, na falta de disposição normativa que regule directamente esta matéria, se deve aplicar por analogia o disposto no art. 37º, nº 2: os actos do “delegante” que façam cessar o exercício das competências originariamente delegadas noutro órgão estão sujeitos “a publicação no Diário da República ou, tratando-se da administração local, no boletim da autarquia, e devem ser afixados nos lugares de estilo quando tal boletim não exista” 35.

É esta a maneira de, por um lado, assegurar a publicidade das decisões administrativas e, por outro, tornar efectivos os mecanismos de garantia dos particulares. O que dizer dos poderes do delegante consagrados no artigo 39º do Código?

Numa relação típica de delegação, “o órgão delegante [...] pode emitir directivas ou instruções vinculativas para o delegado […] sobre o modo como devem ser exercidos os poderes delegados” 36.

Será que, numa situação de delegação tácita, o “delegante” também pode lançar mão de tais poderes?

Não cremos que tal seja o caso. É que na delegação expressa de competências o fundamento de tais

poderes encontra-se no princípio jurídico a maiori ad minus. Com efeito, quem pode revogar os actos praticados pelo delegado bem como todo o acto de delegação também pode orientar o seu exercício através de directivas ou instruções. Aliás, esta possibilidade faz todo o sentido, se atendermos à razão pela qual um órgão delega competências. Ele fá-lo por considerar ser essa a forma que permite o melhor exercício das demais competências de que está incumbido 37. Para melhor eficiência do serviço,

35 Embora, à primeira vista, tal exigência possa parecer algo excessiva, ela é a única que obedece ao princípio da publicidade e também aquela que melhor assegura as garantias dos particulares. 36 V. CPA, art. 39º, nº 1. 37 Por essa razão permitimo-nos discordar do Prof. José Carlos Vieira de Andrade, ob. cit., p. 192, quando, fazendo a distinção (que reputamos correcta) entre revogação (propriamente dita) e anulação administrativa, o ilustre Professor sustenta que apenas esta última seria de permitir ao delegante. Em nosso modo de ver, uma vez que o delegante conserva a titularidade das competências delegadas, faz todo o sentido que ele tanto possa revogar os actos praticados pelo delegado ao abrigo da delegação com fundamento em invalidade (anulação administrativa) como com fundamento em inconveniência

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ele resolve confiar o exercício de algumas das suas competências a outro órgão.

Ora, nenhum destes fundamentos está presente nos casos de delegação tácita em que não apenas não é o “delegante” quem permite o exercício de competências pelo “delegado” (tal é assegurado por lei), como fica desde logo eliminada a possibilidade de revogação por parte do “delegante”, seja dos actos praticados pelo “delegado” seja do acto de delegação.

Vejamos cada uma destas afirmações em separado: a) o “delegante” não pode revogar os actos praticados pelo

“delegado”. Uma vez que não é aquele órgão que permite ao “delegado” o exercício das suas competências (mas sim a lei), ele não pode onerar esse mesmo exercício a não ser se e nos termos em que a lei o previr. Se a lei apenas disser que o “delegante” poderá pôr termo ao exercício das suas competências por parte do “delegado”, então não devemos distinguir onde a lei não distingue, lendo na disposição normativa o que lá não está escrito. O que a lei diz é que o “delegante” pode pôr termo ao exercício das suas competências por parte do “delegado”. Nem mais nem menos. Não havendo habilitação legal que atribua ao “delegante” competência revogatória sobre os actos do “delegado”, então aquele não poderá revogá-los. Não havendo poderes de revogação sobre os actos do “delegado”, todos aqueloutros – como a emissão de directivas ou instruções vinculativas – que têm como fundamento o poder de revogação devem ter-se por inexistentes. Por sua vez, também a explicação que legitima esses poderes por continuar a ser o delegante o órgão “responsável pela totalidade da função” 38 cai por terra, porquanto – conforme já vimos – a lei responsabiliza desde logo o “delegado” pelo seu exercício e não é o “delegante” que desconcentra competências para melhor funcionamento de serviço 39. Não há, como tal, nenhuma possibilidade de o “delegante” (revogação). Não julgamos haver, desse modo, uma diminuição do alcance do princípio da desconcentração administrativa recomendado pela Constituição. 38 V. Prof. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo cit., Vol. I, p. 673. 39 No domínio do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, dos actos praticados pelo presidente ao abrigo de competências da câmara municipal nele tacitamente delegadas cabia recurso para o plenário, podendo então o “delegante” revogar os actos praticados no uso de “delegação”. Era o que vinha disposto no art. 52º, nº 6 desse diploma. O mesmo se passava na vigência da Lei nº 79/77, de 25 de Outubro, que previa no art. 63º, nº 3 uma reclamação dos actos do presidente da câmara para o plenário quando tais actos tivessem sido praticados ao abrigo da competência delegada tacitamente. O uso do termo “reclamação” é incorrecto. Como assinala o acórdão já mencionado, acórdão do STA de 15 de Março de 1990, processo nº 26 863, “[e]mbora chamada de “reclamação” a verdade é que se tratava de um verdadeiro recurso uma vez que era dirigido a órgão diferente do que fora o autor do acto e porque entre a autoridade recorrida e a entidade ad quem não existe uma relação de hierarquia, a doutrina qualifica de recurso hierárquico impróprio um meio de impugnação administrativa com estas características”. Sobre a figura prevista neste preceito escrevia o Prof. Diogo Freitas do Amaral, em Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, p. 123, que “[e]m nossa opinião não se trata aqui de verdadeira e genuína delegação, mas sim de uma desconcentração legal de competência, sujeita a regime especial”, qualificando, de toda a

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avocar o caso. Para exercer aquelas competências, ele terá que pôr termo à delegação.

b) o “delegante” não pode revogar o acto de delegação. Tal é por demais evidente, pelo simples facto de não ter sequer existido qualquer acto de delegação. Como então admitir a possibilidade de revogação de um acto inexistente? A questão põe-se visto que a desconcentração é originária, i. é, provém directamente da lei; não é derivada, no sentido de, por exemplo, criada por via da prática de um acto de delegação. Ora, o fundamento do poder de revogação da delegação por parte do delegante é o de ter sido ele a praticar o acto de delegação. Com efeito, quem, em primeiro lugar, tem competência para revogar actos administrativos são os seus autores 40. O mesmo não se passa na delegação tácita em que a relação de delegação não é constituída por virtude de um acto do “delegante” mas sim por virtude da lei. Como pode então o “delegante” pôr termo ao exercício das suas competências por parte do “delegado”? Pode-o, desde logo, porque é a lei que o prevê 41. Quanto a nós, o que o “delegante” está a fazer neste caso não é revogar um acto seu, anteriormente praticado, mas sim praticar um acto primário que permite chamar a si o exercício de competências delegadas por lei noutro órgão, aquilo a que chamámos avocação. 6. Sobre o carácter intuitus personnae da delegação tácita

Um outro aspecto de particular relevo quanto ao regime da delegação dita tácita prende-se com a ausência daquela que é uma das características mais importantes do regime da delegação de competências. Estamos a

maneira, o recurso previsto no nº 3 desse artigo de recurso hierárquico impróprio. Da leitura dos preceitos que no domínio de leis anteriores versavam sobre o regime da delegação tácita, podemos concluir, desde logo, que o facto de o legislador ter sentido a necessidade de prever expressamente a admissibilidade daqueles recursos bem como a competência revogatória do “delegante” não pode significar outra coisa que não seja, por um lado, o reconhecimento de que delegação tácita e delegação administrativa são figuras diversas (caso contrário seria escusado prever a possibilidade de recurso para o delegante, pois esta faculdade é inerente a uma relação de delegação e tem nela o seu fundamento); por outro, o de que em sede de delegação tácita, a competência revogatória do “delegante” tem que estar expressamente prevista. 40 V. CPA, art. 142º, nº 1. 41 E mesmo nos casos em que a lei o não preveja, deve entender-se resultar da própria natureza do instituto. Caso contrário, se da omissão da lei resultasse a não permissão de avocar, não mais se poderia falar de delegação tácita, pois estar-se-ia perante um atribuição de competência exclusiva ao “delegado”, sem que o “delegante” (que a lei também considera titular) pudesse vir a exercer competências que são suas.

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referir-nos ao carácter intuitus personnae desta figura do nosso direito administrativo 42.

Com efeito, enquanto que na delegação de competências, o acto de delegação opera intuitu personnae, i. é, tendo como sujeitos não tanto os órgãos administrativos mas antes os respectivos titulares, extinguindo-se por caducidade em caso de alternância na titularidade seja do delegante seja do delegado 43, já na figura que temos vindo a estudar em pormenor tal não sucede.

Retomemos o exemplo que temos vindo a seguir para melhor compreensão prática da figura do órgão colegial e do seu presidente.

Se um dos membros desse órgão, por qualquer razão, pusesse termo ao mandato; ou se, hipótese mais remota, houvesse uma dissolução do órgão colegial, os novos titulares que, após eleição, viessem ocupar o cargo – sendo um deles o presidente do órgão – não viriam, em nada, alterar a distribuição de competências que à data da dissolução do órgão se tivesse verificado.

Se, durante o exercício do cargo pelos antigos titulares não se tivesse procedido a nenhuma alteração na atribuição originária de competências, em que a lei considerava delegada no presidente do órgão colegial muitas das competências deste último, também o novo presidente eleito seria responsável pelo exercício dessas mesmas competências.

Cremos que este argumento deita definitivamente por terra a tese que considera aquilo que se designa por delegação tácita como uma espécie de delegação administrativa.

É que, se assim fosse, os aspectos essenciais do regime de cada uma das figuras teriam que coincidir.

Ora, de duas uma: ou se nega que o carácter intuitus personnae seja um aspecto essencial da figura da delegação de competências, podendo esta incluir outras subfiguras que o não apresentem (como seria o caso da delegação dita tácita); ou, pura e simplesmente, se rejeita a tese da delegação tácita como uma espécie de delegação, autonomizando-se a figura. A sua importância bem merece um tratamento autónomo.

Com efeito, não cremos que se possa sustentar que o carácter intuitus personnae seja um aspecto incidental ou de segundo plano da delegação de competências. Na realidade, ele é uma das características mais particulares do seu regime e a vida prática na nossa administração pública bem o evidencia.

Admitimos que, em teoria, se possa conceber a figura da delegação de competências desprovida do seu carácter intuitus personnae – tal é, em boa verdade, o que sucede noutros ordenamentos jurídicos – mas devemos 42 Se bem que a mesma figura já não apresente esta característica em outros ordenamentos jurídicos, como é o caso no direito administrativo francês. 43 V. CPA, art. 40º, al. b).

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restringir o nosso estudo apenas àquilo que se passa no direito administrativo português. E no nosso ordenamento jurídico a figura da delegação de competências torna-se ininteligível sem intuitus personnae.

Eliminada a hipótese que negava a essencialidade do carácter intuitus personnae da delegação de competências no seu regime, resta-nos rejeitar – uma vez comprovada cientificamente a sua insustentabilidade – a tese que considera a figura da delegação tácita como uma espécie de delegação administrativa.

Repare-se que, retomando o exemplo que nos tem vindo a servir de apoio de estudo, o órgão colegial não está – através do seu comportamento omissivo – a permitir que aquele presidente, i. é, o titular do cargo naquele momento, continue a exercer as suas competências, tal qual a lei o quisera. Não, o que o órgão colegial está a querer dizer é que, independentemente de quem for o seu presidente, algumas das suas competências se encontram delegadas neste (salvo acto expresso futuro – o acto de avocação – que contrarie este sentido).

Portanto, o sentido desta “delegação” só pode ser – não o de permitir a outro órgão ou agente o exercício de competências próprias – mas o de renunciar, ainda que temporariamente, ao exercício de uma competência posta por lei a seu cargo.

Imagine-se agora uma situação em que os antigos titulares do órgão colegial haviam chamado a si o exercício daquelas competências que se encontravam delegadas no seu presidente, i. é, as haviam avocado.

O que dizer da situação em que se encontram ambos os órgãos, a saber: o órgão colegial e o seu presidente, após a investidura dos novos titulares no cargo de membros do órgão colegial?

Será que há como que uma repristinação do exercício das competências na situação prevista na lei, em que aquelas se encontram delegadas no presidente daquele órgão? Ou será que tudo fica na mesma, i. é, que não obstante a alternância de titulares no exercício do cargo, a decisão anterior do órgão colegial de chamar a si o exercício das competências delegadas no seu presidente se mantém?

Deve, quanto a nós, entender-se que, uma vez avocada certa competência, o seu exercício pelo “delegante” cessa com a alternância de titulares.

É que, caso contrário, a avocação só funcionaria uma vez e faria letra morta da lei. O que é inadmissível!

Com novos titulares, tudo volta à situação originária (como inicialmente prevista na lei).

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Numa palavra: a alternância de titulares faz extinguir os efeitos da avocação, retomando o “delegado” o exercício das competências avocadas 44 45. 7. Dever de fundamentação e fundamento da avocação

Todas as reflexões anteriores serviram para demonstrar que a figura da delegação dita tácita reclama um tratamento próprio, autonomizado daquele que é prestado àqueloutra figura do nosso direito administrativo que é a delegação de competências.

Por outro lado, ao procurarmos fazê-lo, aflorámos – ainda que superficialmente – alguns aspectos essenciais do seu regime, sem a compreensão dos quais qualquer tentativa de conhecimento e de recorte da figura sairia gorada.

Cremos que as considerações que já tecemos em volta da delegação dita tácita justificariam, só por si, o presente trabalho.

Não obstante, no decorrer do nosso estudo, pusemos em evidência especificidades muito importantes no que concerne ao seu regime jurídico, pelo que julgamos justificar-se a referência a um outro aspecto de que nos ocupamos de seguida.

Vimos como é possível ao “delegante” chamar a si o exercício das competências atribuído por lei ao “delegado”, praticando para o efeito um acto de avocação.

Dissemos que estamos, nesse caso, não perante um acto revogatório, mas sim perante um acto primário que permite ao “delegante” a prática de actos sobre matérias que até então a lei confiara ao “delegado”.

Em consequência, este último vê-se desprovido do exercício das respectivas competências, o que significa que o acto do “delegante” se traduz para ele num encargo.

Ora, de acordo com o disposto no CPA, art. 124º, nº 1, al. a), qualquer acto que imponha encargos carece de fundamentação.

Temos pois por necessário que qualquer acto – retomando o nosso exemplo – do órgão colegial que, ao possibilitar o exercício próprio de competências, o retire ao seu presidente tem que ser fundamentado.

Esta ideia é muito importante a dois níveis:

44 Uma vez mais, atribuímos o pensamento ao seu Autor. Com efeito, foi o Prof. Diogo Freitas do Amaral a chamar a nossa atenção para este aspecto. 45 Porém, se isto assim é, então aparentemente a avocação tem também um carácter sancionatório e não inextricavelmente associado à conveniência do interesse público. A única forma de contrariar esta asserção passa por afirmar que o interesse público é aqui entendido na perspectiva de uma distribuição de tarefas entre órgãos com aqueles titulares. Havendo já outros titulares, há como que uma presunção de que essa distribuição deve ser feita de acordo com a lei originária, salvo nova avocação.

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(i) o acto do órgão colegial que não seja devidamente fundamentado, i. é, que ou nem sequer apresente uma fundamentação ou que o faça de maneira obscura, imprecisa ou condicional, padece de vício de forma por preterição de uma formalidade essencial. Esse acto será, portanto, anulável e sindicável jurisdicionalmente;

(ii) por outro lado, qualquer acto que, futuramente, venha a ser

praticado pelo órgão colegial ao abrigo das competências que se encontravam delegadas no seu presidente está igualmente viciado. Põe-se aqui o problema de saber se o vício que inquina o acto se reconduz à incompetência ou ao vício de forma. Tudo leva a crer que tais actos padeceriam de vício de forma por preterição de uma formalidade essencial.

Não cremos que tenhamos que justificar com argumentos próprios a

imperatividade de fundamentação dos actos que extinguem o exercício de competências por parte daqueles órgãos a quem elas se encontravam originariamente delegadas. Isto, porque tal exigência resulta directamente do Código do Procedimento Administrativo actualmente em vigor.

Pensamos, em todo o caso, que se nos exige já, uma vez que defendemos esta tese, delimitar – ainda que em traços gerais – o fundamento do acto extintivo da situação em que ambos os órgãos se encontravam.

No nosso entender, qualquer acto praticado no sentido de chamar a si o exercício de competências originariamente delegadas por lei tem como fundamento, não o melhor exercício das competências do órgão em causa, mas sim a melhor prossecução das atribuições da pessoa colectiva pública a que este pertence. É este, como vimos anteriormente, o fundamento da avocação de competências tacitamente delegadas 46.

Esta é uma diferença assinalável em relação àquilo que se passa na delegação de competências. Nesta, o delegante permite o exercício das suas competências ao delegado, na medida em que entende ser essa a melhor maneira de gerir o exercício das demais competências a que está cometido. Pela mesma razão poderá, a todo o momento, pôr termo a essa relação de delegação, se for essa a melhor forma de optimizar o seu funcionamento e a sua actividade 47.

Já no acto extintivo a que nos temos vindo a referir, o órgão que o pratique terá que justificar a sua pretensão de chamar a si o exercício das competências que haviam sido cometidas por lei a outro órgão no quadro da actividade da pessoa colectiva pública a que pertence, ou melhor, que a 46 V. supra p. 6-10. 47 V., quanto a este aspecto, a discussão de índole dogmática que opôs o Prof. Paulo Otero ao Prof. Diogo Freitas do Amaral em Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo cit., Vol. I, p. 691 ss.

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prossecução daqueles fins será melhor conseguida através do exercício das competências que a asseguram pelo órgão que o reclama 48.

Enquanto na delegação de competências subsiste uma perspectiva orgânica do exercício de competências, já na delegação dita tácita está em causa uma visão de natureza material que se preocupa, não tanto com o órgão em causa, mas mais com a actividade administrativa a desenvolver.

É esta importante diferença 49, a qual assume uma extrema relevância prática como seja a necessidade de fundamentação do acto que extingue uma situação de delegação tácita, que explica outrossim a razão pela qual não encontramos nesta figura do nosso direito administrativo o carácter intuitus personnae que anima a figura da delegação de competências.

É que, se nesta se dá relevo à vontade do delegante de retomar ele o exercício das competências confiado a um determinado delegado (relação pessoal), já na delegação dita tácita o que está em causa é a melhor prossecução das atribuições de uma pessoa colectiva pública (relação funcional).

Aqui, a lei entende que aquelas deverão obedecer a uma lógica de distribuição de competências que ela própria estabelece confiando o seu exercício a um determinado órgão, exercício esse, no entanto, susceptível de vir a ser tomado por outro órgão, se este assim o entender.

Como podemos observar, não são os órgãos que estão em causa, nem muito menos os seus titulares. Atende-se, fundamentalmente, à actividade administrativa a desenvolver. E esta é vista na perspectiva da pessoa colectiva pública em causa.

É essa a razão pela qual o órgão que chama a si o exercício de competências que a lei havia cometido a outro órgão tem que justificar esse seu acto com a melhor prossecução dos fins visados pela lei ao estabelecer originariamente aquela distribuição de competências.

Qual a razão pela qual a lei permite que determinado órgão vá contra a distribuição de competências que ela própria tenha estabelecido chamando a si o seu exercício?

48 Não se compreende, por isso, muito bem os motivos que levaram o legislador a prever na Lei de Enquadramento Orçamental, Lei nº 91/2001, de 20 de Agosto, no art. 36º, nº 6, a possibilidade de avocação pelo Plenário da Assembleia da República de quaisquer matérias compreendidas na fase de discussão e votação na especialidade da proposta de lei do Orçamento do Estado. É que, nos termos do nº 4 desse artigo, a regra é a discussão e votação na especialidade ter lugar em comissão especializada, constituindo excepções as matérias que obrigatoriamente são discutidas e votadas na especialidade em Plenário. Melhor teria andado o legislador em enumerar as situações e em estabelecer os limites à avocação. É claro que tal solução só pode valer de iure condendo. Face à lei actualmente em vigor, deve entender-se não recair sobre o Plenário o dever de fundamentação da avocação, assim como, pelo facto de existir tal norma, não valer aqui o que dissemos supra p. 8-9 sobre a inadmissibilidade de avocação de casos concretos. 49 E que, no campo processual, impõe ao “delegante” o ónus da prova de que a melhor prossecução das atribuições daquela pessoa colectiva se faz mediante o exercício por parte deste das competências tacitamente delegadas.

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Quanto a nós, o fundamento jurídico desta possibilidade legal reconduz-se à natureza variável do interesse público.

Se a melhor prossecução das atribuições a que aquela pessoa colectiva está cometida impõe, hoje, que o exercício de competências que a lei tinha anteriormente confiado a determinado órgão passe a ser empreendido por outro órgão, então à própria lei interessará que seja este a fazê-lo.

É este o fundamento da possibilidade do órgão colegial permitir-se o exercício de competências delegadas por lei no seu presidente.

Acresce referir que é, neste caso, ao órgão colegial que cabe demonstrar que a melhor prossecução das atribuições da pessoa colectiva pública em que está inserido depende dessa transferência do exercício de competências. É sobre ele que recai o ónus da prova, não sobre o seu presidente.

Este poderá, inclusive, contestar a decisão do órgão a que preside, discordando da fundamentação exposta, contestação essa que poderá ir até às últimas consequências, estando também ao alcance do presidente a nova acção administrativa especial 50 51. IV – Natureza da delegação tácita 8. É chegado agora o momento de lançarmos luz sobre qual a categoria jurídica em que se insere a impropriamente chamada delegação tácita.

Para melhor entendimento desta controversa questão, é necessário fazer uma distinção entre, por um lado, a habilitação legal (i. é, a disposição que distribui originariamente as competências), e, por outro, o comportamento omissivo do “delegante” (i. é, a vontade que este manifesta em renunciar temporariamente ao exercício de uma competência posta por lei a seu cargo).

Retenhamo-nos, nas linhas que se seguem, neste elemento da figura da delegação tácita, i. é, no comportamento omissivo do “delegante”.

50 Devendo esta ser proposta contra o órgão colegial, já que se trata de um litígio entre órgãos da mesma pessoa colectiva (v. CPTA, art. 10º, nº 6). O novo Código de Processo, no seu art. 55º, nº 1, al. d), reconhece legitimidade activa aos órgãos administrativos, relativamente a actos praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva. Repare-se que é, como dissemos, a al. d) que se aplica neste caso e não a al. e) (esta última revogou o art. 14º, nº 4 do CPA). Isto porque o presidente do órgão colegial não está a agir em defesa da legalidade administrativa (em que pressupor-se-ia a prática, pelo órgão colegial, de um acto com eficácia externa), mas a requerer ao tribunal a tutela de um direito subjectivo ao exercício das suas compretências (tratando-se, pois, de um litígio de natureza bipolar ou dialógica). Cf., com alcance geral, Prof. Pedro Gonçalves, “A justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 35, 2002, p. 15-16 e 20-23, cuja terminologia é aqui adoptada. 51 Duvidoso é se está ao alcance do presidente pedir ao tribunal a condenação do órgão colegial à não emissão de actos praticáveis ao abrigo da competência litigiosa, nos termos do art. 37º, nº 2, al c) do CPTA, a formular em acção administrativa comum ou em acção administrativa especial se o pedido for cumulado com o de anulação do acto de avocação (CPTA, art. 5º, nº 2).

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Qual o valor jurídico desse comportamento? Cremos que há basicamente duas posições quanto a este aspecto. De um lado, a que ficciona a existência de um acto administrativo; do

outro, a que recusa atribuir à omissão do “delegante” qualquer relevância jurídica.

Já o Prof. João Caupers parece ter superado esta questão ao considerar como elemento decisivo da figura da delegação de competências não o acto de delegação em si, mas antes a relevância da vontade do delegante. Relembremos as suas palavras:

“Entendemos que o último elemento 52 da delegação não é o acto de delegação propriamente dito mas a relevância da vontade do delegante 53. Para existir delegação não julgamos imprescindível a prática de um acto jurídico, bastando uma omissão juridicamente relevante. É o que ocorre na chamada delegação tácita, em que a lei de habilitação, em vez de prever o acto de delegação, considera certos poderes delegados, a não ser que o delegante manifeste a sua vontade em sentido oposto” 54.

O ilustre Professor não atribui ao acto de delegação em si a importância de elemento autónomo da figura da delegação de competências. O que conta, nas suas palavras, é a vontade do delegante. Se a lei considera determinados poderes delegados, então o “delegante” – ao nada fazer – está a concordar com o exercício dos mesmos pelo “delegado”. É essa a relevância jurídica da sua omissão.

Não cremos, salvo o devido respeito, ser essa a visão mais correcta do problema.

É que, no nosso entender, o Prof. João Caupers não é suficientemente claro na qualificação do comportamento do “delegante”, vendo nele uma omissão juridicamente relevante 55. Qual o valor desta omissão? Tratar-se-á de uma mera declaração de vontade?

No nosso entender, o Prof. João Caupers conflaciona aqui duas coisas. Primeiro, não considera imprescindível a prática de um acto jurídico para que exista delegação; de seguida, encontra na vontade do delegante o elemento determinante da figura da delegação de competências. Nesta sua explicação, a delegação tácita outra coisa não seria senão uma espécie do género delegação.

Ora, como é que o “delegante” há-de manifestar a sua vontade?

52 Para o ilustre Professor, os restantes elementos da delegação de competências são a lei de habilitação bem como a existência de um delegante e de um delegado (elementos subjectivos da delegação). 53 Sublinhado no original. 54 V. Prof. João Caupers, ob. cit., p. 123. 55 Em todo o caso, a doutrina do Prof. João Caupers teve eco na jurisprudência do STA, no acórdão de 15 de Março de 1990, processo nº 26 863, a que já fizemos referência, onde é dito que “a delegação tácita assenta na vontade presumida do órgão da Administração de delegar alguns dos seus poderes [...]” (p. 2037). Curioso é para nós o facto de o tribunal ter sentido a necessidade de colocar o termo “delegante” entre aspas, reconhecendo o emprego impróprio do termo.

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O próprio Prof. João Caupers reconhece que tal só é possível através da prática de um acto jurídico. Senão atentemos na definição que ele dá de delegação de competência: esta consiste no “acto pelo qual o órgão de uma pessoa colectiva envolvida no exercício de uma actividade administrativa pública normalmente competente em determinada matéria e devidamente habilitado por lei possibilita que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria” 56.

Como podemos observar, a definição de delegação de competências que é ensaiada é incompatível com a figura da delegação tácita. Por um lado, o Prof. João Caupers reconhece a necessidade da prática de um acto jurídico (algo de que já prescinde na delegação tácita); por outro, na definição dada, fala-se do órgão “normalmente competente em determinada matéria”. Ora, qual dos dois, “delegante” ou “delegado”, se deve considerar, em sede de delegação tácita, como o órgão “normalmente competente”? É que, bem vistas as coisas, aquele de entre os dois órgãos a quem a lei atribui o exercício originário de competências é, não o “delegante”, mas sim o “delegado”. 9. Em nosso modo de ver, não é tanto a definição gizada pelo ilustre Professor que é pouco rigorosa, mas antes a sua tentativa de reconduzir a ela ambas as figuras.

Outra possibilidade que pode ter estado na base da construção dogmática do Prof. João Caupers é a ideia de que o acto jurídico de que fala na sua definição de delegação de competências não tem necessariamente que ser expresso, podendo outrossim tratar-se de um acto tácito.

Neste segundo entendimento, já se poderia compreender aquilo que o ilustre Professor entende por omissão juridicamente relevante. Ela outra coisa mais não seria do que a renúncia do “delegante” a praticar um acto que pusesse termo à delegação.

Nas palavras do Prof. João Caupers, “a nossa concepção quanto a este elemento da delegação explica por que razão divergimos de Freitas do Amaral, que, considerando imprescindível o acto expresso de delegação, conclui ser a delegação tácita, não uma espécie de delegação de poderes, mas uma espécie de desconcentração originária, resultante directamente da lei” 57.

Aqui, o Prof. João Caupers parece já qualificar o comportamento omissivo como consubstanciando um verdadeiro acto administrativo (ainda que não expresso). Porque, ao contrário do Prof. Diogo Freitas do Amaral,

56 Ibid, p. 122. 57 Ibid, p. 124.

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considera que o acto expresso de delegação não é imprescindível, bastando a verificação de uma omissão juridicamente relevante.

Na nossa modesta opinião, o que na prática o ilustre Professor está a sustentar, neste seu entendimento, acaba por ser também que a verdadeira natureza da delegação tácita é a de uma ficção legal de acto administrativo. Tudo se passaria como se tivesse sido praticado pelo “delegante” um acto expresso de delegação.

Conclui, por isso, o Professor que o tratamento a dar à figura da delegação tácita é em tudo idêntico ao da delegação de competências, aplicando-se-lhe o regime próprio desta.

Não julgamos ser este o caminho mais correcto. Em primeiro lugar, esta explicação não serve para ultrapassar a

dificuldade imposta pela definição quando se fala em órgão “normalmente competente”.

Em segundo lugar (e conforme ficou demonstrado quando estudámos o regime jurídico da delegação tácita), não é de aplicar a esta última o regime próprio da delegação de competências: pelo que se não pode fazer derivar de uma eventual identidade de regime uma identidade de natureza jurídica 58.

Por último, o sentido da omissão do “delegante” não tem tanto que ver com um acto tácito de delegação (permitindo ao “delegado” o exercício das suas competências), mas antes deve ser entendido como a renúncia a vir a ser ele a exercê-las.

Esta a conclusão a que havíamos chegado quando nos ocupámos do conceito de delegação tácita.

Mas cremos ter ido mais longe, ao estudarmos o seu regime. Aí, vimos que o fundamento jurídico da possibilidade de o “delegante” vir a exercer as competências por lei delegadas reconduz-se à natureza variável do interesse público 59. Só em determinadas circunstâncias (e devidamente fundamentado), poderá um órgão da Administração alterar a topografia de competências gizada pela lei.

Assim sendo, qualquer tentativa de ver na figura da delegação tácita qualquer semelhança com a figura da delegação de competências não obtém justificação 60.

58 Em anotação ao art. 35º, Esteves de Oliveira / Pedro Gonçalves / Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo cit., p. 213, entendem que “não se deverá aplicar à delegação tácita ou legal, sem as adaptações que se mostrem necessárias, o regime instituído nesta secção do Código, porque não é uma verdadeira delegação de poderes que aí se trata, mas uma forma de desconcentração originária em que, normalmente (e ao contrário daquela) o órgão competente “em primeira mão” é o órgão que está em posição de sujeição (“delegado”) – afigurando-se como precária e excepcional (ou provisória) a substituição do “delegado” pelo “delegante”, subsequente à “revogação” desta “delegação””. 59 V. supra p. 20. 60 Esta ideia está bem presente no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Dezembro de 1993, processo nº 32 308, em que se discute a legitimidade passiva da câmara municipal para contestar recurso contencioso de anulação de um acto praticado pelo seu presidente ao abrigo de matérias nele

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Estamos, pelas razões apresentadas, mais próximos da posição do Prof. Diogo Freitas do Amaral, que considera a figura da delegação tácita de competências como uma espécie de desconcentração originária 61.

O facto de um órgão da Administração poder vir a extinguir o exercício de competências por parte de outro órgão (ainda que esse exercício esteja previsto na lei) encontra fundamento nessa mesma lei ao prever, desde logo, essa possibilidade, na medida em que seja a solução que melhor defende o interesse público.

De qualquer modo, talvez seja preferível falar-se antes de uma atribuição legal condicionada à não-avocação da competência por outro órgão. O que funciona como “delegação” deste 62.

V – Conclusão 10. Este artigo serve antes de mais para tornar evidente a especificidade da delegação dita tácita.

Após havermos procedido ao recorte da figura, i. é, à sua delimitação conceitual, explorámos alguns aspectos do seu regime.

Então, havíamos visto que só muito forçosamente podemos considerar directamente aplicáveis as várias disposições contidas no Código do Procedimento Administrativo. Antes se exige ao intérprete – na ausência de um regime legal próprio – a integração por analogia das disposições legais que versam sobre a figura da delegação administrativa de competências. Mas nem sempre, como também vimos, tal é possível.

Não se trata certamente de um estudo exaustivo. Seria interessante elaborar doutrina sobre as próprias normas que consideram certas competências delegadas, a fim de inventariar os seus requisitos. Todavia, tal exame extravasa por completo do âmbito deste trabalho, o qual pretende apenas propor uma nova abordagem à figura.

Outra das finalidades que motivaram este trabalho tem que ver com a nossa posição em relação ao instituto da delegação tácita enquanto tal.

tacitamente delegadas. No primeiro parágrafo do sumário do acórdão pode ler-se: “[a] delegação tácita das competências da câmara municipal no respectivo presidente, ao abrigo do preceituado nas disposições combinadas dos arts. 51 n. 2, al. g) e 52 n. 1 do D.L. n. 100/84, de 29 de Março, na redacção anterior à Lei n. 18/91, de 12 de Junho, para embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções e edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas sem licença, não constituia uma verdadeira delegação de poderes, mas antes uma figura afim”, numa clara alusão, pode concluir-se, à diferente natureza jurídica da delegação tácita. 61 De desconcentração originária fala-nos o acórdão do STA de 24 de Junho de 1993, processo nº 30 669, onde se pode ler no quarto parágrafo do sumário que a delegação tácita de competências consubstancia “uma forma de desconcentração originária, já que decorre imediatamente da lei [...]”. 62 Esta a síntese ensaiada pelo Prof. Armando M. Marques Guedes, em comentário a uma versão inicial deste trabalho.

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O nosso parecer é assim favorável, não apenas em relação aos exemplos concretos em que a ideia subjacente à figura – de desconcentração originária – se manifesta. Antes defendemos a sua generalização às estruturas administrativas do nosso país. Tal passará por aplicar o regime da delegação tácita à relação entre institutos públicos e administração estadual directa 63, entre departamentos dos ministérios e respectivos órgãos superiores 64 e, porventura o passo mais difícil mas também, em nosso modo de ver, mais necessário, o alargamento da figura a casos não apenas de desconcentração 65 mas também de descentralização 66.

Em todo o caso, sustentámos o dever da fundamentação dos actos do “delegante” que façam cessar ou que onerem o exercício de competências pelo “delegado”, o que traz implicações significativas na relação entre os órgãos.

Finalmente, reconduzimos a figura da delegação dita tácita a uma espécie de atribuição legal condicionada à não-avocação da competência por outro órgão.

63 Para além das atribuições próprias dos primeiros por via de devolução de poderes. Lograr-se-ia assim a transferência do exercício de competências próprias dos órgãos dos vários ministérios que superintendem as actividades dos institutos públicos para os conselhos de administração destes, salvo avocação. 64 Pensemos por exemplo no Ministério da Saúde e em quão desejável seria que muitas das competências dos seus órgãos centrais fossem consideradas nos termos da lei tacitamente delegadas nas várias administrações regionais, salvo avocação pelo ministro. 65 Talvez se lograsse, por esta via, uma maior funcionalidade das Comissões de Coordenação Regional (CCR). A ideia passaria por considerar competências dos órgãos da administração estadual central tacitamente delegadas nestas entidades. Tanto mais que, hoje em dia, o seu grau de democraticidade o permite. Como escrevia o Prof. Vital Moreira há tempos no PÚBLICO (Menos Terreiro do Paço, in PÚBLICO, 30 de Julho de 2002), “[...] mediante a “democratização” das [CCR], estabelece-se uma interface fecunda entre os municípios e a administração estadual territorialmente desconcentrada”. Na opinião do Professor de Coimbra, tal “democratização” significa que “as CCR deixam de ser simples expressão da administração estadual, para passarem a ser uma instância híbrida, um ponto de encontro entre a administração estadual e a administração municipal. Bem pode suceder que este seja apenas o primeiro passo para a integral autonomização das CCR em relação ao Governo. Nessa altura, só será preciso conferir-lhes personalidade jurídica – uma espécie de “institutos públicos territoriais” – para virmos a ter uma boa aproximação à regionalização que falta”. Acrescentaríamos nós a estas palavras – vindas de uma pessoa que tanto estudou o assunto – que a figura da delegação tácita é um possível instrumento jurídico que permite a transição para essa maior autonomização. Tal ficou já historicamente demonstrado: à delegação tácita de muitas das competências da câmara municipal no seu presidente, que vinha prevista nos artigos 51º e 52º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, seguiu-se a sua exclusiva atribuição ao presidente, com a nova redacção dada a esse diploma pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho. 66 Seria o caso de a lei cometer o exercício de competências tradicionalmente confiadas ao Estado às autarquias, salvo avocação pelo governo. Não nos esqueçamos que hoje em dia as autarquias já acumulam atribuições no domínio da saúde, do ambiente, da educação, faltando-lhes em larga medida poderes (para não falar das dotações orçamentais) para prossegui-las.