contraponto nº 90

32
JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP ANO 14 N 0 90 Fevereiro 2014

Upload: jornal-contraponto

Post on 05-Apr-2016

236 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Setembro 2014

TRANSCRIPT

Page 1: Contraponto Nº 90

JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP

ANO 14 N0 90 Fevereiro 2014

Page 2: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO2 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

PUC

PUCEXPEDIENTE

Pontifícia Universidade católica de sÃo PaUlo

PUc-sP

reitor

vice-reitor

Pró-reitora de Graduação

Pró-reitor comunitário

facUldade de filosofia,comUnicaçÃo, letras e artes

faficla

diretormárcio alves da fonseca

diretora adjuntaregiane miranda nakagawa

chefe do departamento de Jornalismovaldir mengardo

suplentelaís Guaraldo

coordenador do Jornalismomilton Pelegrini

vice-coordenador do Jornalismofrancisco chagas câmelo

c o n t r a Ponto

conselho editorialHamilton octavio de souza, José arbex Jr.,

José salvador faro, marcos cripa,Pollyana ferrari

comitê laboratorialluiz carlos ramos, rachel Balsalobre, salomon cytrynowicz, Wladyr nader

editorJosé arbex Jr.

ombudsmananna feldmann

secretárias de redaçãolu sudré e carolina Piai

secretária de produçãoJacqueline elise

editora de fotografiaBruna Bravo

E D I T O R I A L

SUMÁRIOcapa: victoria azevedo

SilmaraCoSta Mulher Coragem ...................................................................................... pág. 3

luizEduardoalvESBEzErra De segunda– a domingo– feira ................................................. pág. 8

FrEiBEtto Nem a fé pode absolver a política e nem a política pode (...) ....... pág. 12

EnSaioFotográFiCo Cultura e resistência na zona leste ................................................. pág. 16

mayaramaEmura Acompanhante de luxo ........................................................................... pág. 18

pEdroliro Sinfonia e MPB nas calçadas de Sampa............................................. pág. 22

EnSaioFotográFiCo (Um pedaço de) São Paulo ...................................................................... pág. 26

luCiananahaS Está tudo nas cartas .............................................................................. pág. 28

CrôniCa Pulsações de São Paulo ........................................................................ pág. 32

simetria design Gráfico – projeto/editoraçãoWladimir senise – fone: 2309.6321

contraPonto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUc-sP.

rua monte alegre 984 – PerdizesceP 05.014-901 – são Paulo – sP

fone: 3670.8205

número 90 – fevereiro de 2014

Wt Gráficafone: 993.583.533

Fale com a genteenvie suas sugestões, críticas, comentários: [email protected]

Personagens revelam as profundezasde São Paulo

A cidade é o local de reprodução do capital, e por isso concentra todas as contradições, tensões e impasses próprios do sistema. É na cidade que estão localizados o parque industrial, o setor de serviços, as instituições do mercado financeiro. Por essa razão, a especulação imobiliária ganha rédeas soltas: o preço do metro quadrado, que também se traduz no valor do aluguel, reflete a voracidade do capital rentista. A cidade devora tudo com a mesma força com que “ergue e destrói coisas belas”.

São Paulo é isso: é, por excelência, a via forçada do capitalismo brasileiro, com todas as suas potencialidades, para o bem e para o mal. Capitalismo em sua forma mais selvagem, indiscipli-nado, imposto a ferro e fogo por uma elite patrimonialista, que, historicamente, habituou-se a tratar o próprio estado como propriedade privada e não sujeita às leis.

A vida em São Paulo é brutal, selvagem, ameaçadora. Reflete, de um lado, a arrogância das elites – que não reconhecem o primado da lei – e o embrutecimento das camadas mais pobres – herdeiros do legado monstruoso do escravismo. Foi contra esse estado de coisas que eclodiram as “jornadas de junho”. A rejeição ao aumento de 20 centavos apenas sintetizava a vontade de aniquilar o monstro metrópole.

Ainda assim, São Paulo é humana. São as pessoas concretas, de carne e osso, que participaram das jornadas e que transmitem ao espaço urbano a possibilidade de acolher a vida. Pessoas que fazem de São Paulo um espaço reconhecível, ainda que marcado pela dor. A presente edição é dedicada a algumas dessas pessoas: são ambulantes, cartomantes, prostitutas, intelectuais, mães coragem.

Foram nomes escolhidos mais ou menos ao acaso, mas cujas trajetórias são representativas dos desafios que aguardam qualquer um que viva na metrópole. Suas histórias são permeadas pelos mesmos sonhos, esperanças e frustrações que marcam as vidas de todos – mudam as circunstâncias, as personagens, o meio material em que os enredos se desenvolvem, mas, no fim, estão todos no mesmo barco – ou melhor, na mesma cidade, que são muitas cidades dentro de uma.

Ao iluminarmos determinados aspectos da vida dessas pessoas, iluminamos também um pouco do que é São Paulo. E reaprendemos que sob a superfície enrugada e aparentemente indiferen-te da vida na cidade, jaz um oceano absolutamente profundo, composto pelo cruzamento de milhões de vidas.

São Paulo é também a profundeza abissal.

Page 3: Contraponto Nº 90

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Por Patricia iglecio

Silmara CostaCONTRAPONTO

Silmara Costa tem 44 anos, nasceu no dia 11 de outubro de 1969 em São Bernardo do Campo,

São Paulo. Entre Silvia, Silvana e Cesar, é a segunda filha do casamento dos pais. Com cinco anos se separou do irmão e foi morar com as irmãs e a mãe na casa em que vive até hoje. Dona Adélia, sua mãe, deixou o marido, Luiz Carlos Costa, por ser um homem agressivo com ela e suas filhas. Logo que se mudou, Adélia casou-se com Avelino, co-nhecido como Seu Barbosa, o homem que Silmara considera seu verdadeiro pai, já falecido.

Luiz Carlos Costa, seu pai biológico, morreu atropelado na Via Anchieta há dez anos. Depois que sua mãe o deixou, Silmara quase não o viu mas soube que ele virou morador de rua. Uma vez sentiu que tinha visto o pai na rua, mas não quis ficar olhando muito tempo. Ficou com medo.

Seu irmão, Cesar, foi assassinado aos 17 anos. Com lágrimas nos olhos, Silmara conta que ele tinha abusado sexualmente de crianças, por isso foram atrás dele. Até hoje sente muito pela morte do irmão. Cesar cresceu com o pai e a madrasta, que segundo Silmara, era uma mulher muito má.

Dona Adélia conseguiu um terreno cedido pelo governo, COHAB de mutirão, chamado Padre Chico Falconi, onde criou as filhas e viveu ao lado de Seu Barbosa. Silmara lembra com muito carinho do pai de criação na cadeira de rodas, fazendo seus trabalhos na bancada da sala, conta que ele ensinou bons modos. Barbosa sofria de uma doença que lhe fez perder as duas pernas. Con-feccionava enfeites de natal para Silmara. Era um homem elegante, educado, muito bonito. Nunca gritava ou batia nas filhas diferente de sua mãe que batia muito. Barbosa sempre tentava intervir impedindo que ela não fizesse aquilo. Teve um enfarte e morreu há 16 anos.

Depois do falecimento do marido, Adélia foi viver em Goiás. Sua epilepsia e sua diabetes diminuíram muito com a mudança. A casa que deixou de herança para a filha e os netos fica no Itaim Paulista, um Itaim muito diferente do Itaim Bibi dos ricos de São Paulo; um bairro afastado da região central – bem afastado, vindo do centro ao descer na estação de metrô Corinthians-Itaquera, onde está sendo construído o grande estádio de futebol. É necessário pegar uma lotação que realiza uma percurso de 40 minutos até chegar à praça que fica ao lado da Rua Big Star, número 132. O horizonte é extenso de moradias simples, comunidades que se multiplicam infinitamente pelos declives do relevo.

Jenipher Laisa, 26; Tamara Laisa, 21; Rin-con Ulises, 19; Kauara Laisa, 18; Licoln Ulises, 17; Cesar Clinton, 15; Jonab Ulises, 14; e Henri Vicente, 9, são os oito filhos de Silmara. Todos moram com ela.

Em um puxadinho, no quintal da frente, moram Daniel e sua mãe Vanessa, sobrinha de Silmara e filha da Silvia. Daniel tem 13 anos e atualmente está internado em uma clínica. Com 12 anos, começou a se envolver com tráfico e

também é permitida, e a casa, mesmo com todas as dificuldades, tem grande energia.

Silmara e seus filhos dormem no andar de cima da casa principal, a escada de madeira que fica no quintal e leva até o quarto deles é um pouco bamba, mas Silmara promete que não cai. São três treliches e uma cama de casal, a grande conquista de 2013 foi ter conseguido uma cama para o filho, além de novos armários. Até então, as crianças tinham que dividir camas. As meninas têm muitos acessórios espalhados por todo quarto e uma grande estante com livros, Silmara diz que elas são mais estudiosas que os meninos.

Jenipher e Kauara estão cursando o ensi-no técnico profissionalizante para lecionar, em Santana. Os meninos, por outro lado, têm certa dificuldade com os estudos. Cesar é muito bom de bola, mas ruim na escola. Também é líder do time de futebol dos meninos do bairro, o Raposa, e tem grande carisma. Este ano o time vai participar do campeonato de futebol promovido pela prefeitura de Suzano, e Silmara demonstra empolgação e apoio pela conquista.

Licoln vai fazer pela terceira vez o segundo colegial. Kauara também repetiu e vai fazer o terceiro ano novamente. Silmara inscreveu Cesar e Jonab para também cursarem o técnico, embora os meninos não tenham grande empenho com os

Mulher CorageM

Faxineira, mulher e mãe de nove filhos é exemplo de superação e persistência

roubo. Todos no bairro passaram a reclamar para Silmara. Recentemente, ao roubar um carro, o menino foi denunciado para polícia pela própria mãe. Como não havia vaga na Fundação Casa, Daniel foi levado para uma clínica. De quinze em quinze dias, Vanessa, que tem problemas com o álcool, vai visitar o filho. A irmã de Silmara, Silvia, também é alcoólatra e mora em Itaquá, um bair-ro perto do Itaim Paulista. No começo de 2013 pediu para Silmara que Vanessa fosse morar com o Daniel em sua casa.

No quintal dos fundos vive Claudinha e seus três filhos, Gabriel, Rafael e Riquelme. Rodrigo, que também é filho da Silvia, era casado com Claudinha, mas abandonou as crianças e a espo-sa. Há oito anos ele conheceu uma nova moça e desde então visita as crianças, revezando entre as duas mulheres. Silmara e Silvia decidiram juntas que Claudinha continuaria sendo abrigada por Silmara, mesmo que o Rodrigo tenha saído de lá, pois é ela quem cuida das crianças e também é considerada sua sobrinha.

A casa não é grande, mas comporta muitas pessoas. Começou apenas com o pequeno espaço que hoje é a sala, a cozinha e um banheiro. Foram construídos puxadinhos de acordo com a necessi-dade. O funk é proibido, mas o rap é o som mais escutado, em especial os Racionais MC’s. Alegria

© P

atri

cia

Igle

cio

Silmara, carinhosamente apelidada “a carequinha” é muito querida pela vizinhança

Page 4: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO4 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

estudos. Kauara se casou no final de 2013 e é a primeira filha a sair de casa. Silmara está muito triste, chora há vários dias.

Rincoln adquiriu o hábito de fumar maco-nha. Isso preocupa muito Silmara, porque para uma mãe da periferia, como conta ela, o maior medo é que o filho se envolva com o tráfico. Ele é um menino muito tranqüilo e Silmara conhece todos os seus amigos, mas sente receio que eles acabem se envolvendo com as pessoas erradas. Esse ano ele fará pela terceira vez o terceiro co-legial. Apesar das notas ruins, ele é empenhado no trabalho. No começo desse ano foi para uma construção no Mato Grosso junto com os amigos, está dormindo em um alojamento e passará um mês no trabalho. Silmara não sabe o que será de seu futuro escolar.

Tamara fez o curso Projeto Criar de Luciano Hulk e conseguiu um emprego. Comprou para a mãe um tênis novo e um fogão de seis bocas. No natal, todos foram presenteados com um tênis, pela mãe ou pelos próprios irmãos, mas não hou-ve festa porque Silmara estava triste e não tinha motivos para comemorar, todos estão sem pais. Faz seis meses que o pai das crianças foi embora. E Rodrigo, pai dos sobrinhos-netos da Silmara, continua no vai-e-vem, visita os filhos e Claudi-nha, mas depois sempre volta para a sua atual mulher, de quem Silmara fala com desdém e não tem vontade de conhecer. Diz que sua verdadeira sobrinha é Claudinha.

A grande novidade do ano de 2013 foi o bebê Guilherme: além dos oito filhos e de todos os sobrinhos que Silmara dá conta, ela adotou uma criança de dois anos. Xuxú, que é como eles chamam a criança, é irmão da namorada de Licoln. A mãe Rosa e o pai, vi-ciado em crack, não tem estrutura para cuidar do filho, então Silmara se sensibilizou com a história de Guilherme e passou cuidar dele aos finais de semana. Com o tempo, se apegou e resolveu pedir a mãe a guarda da criança. A promotora que cuidou do caso orientou a mãe de Guilherme que não fizesse isso, pois pode-ria nunca mais ver seu filho. Silmara se sentiu discriminada. Disse que a promotora não quis que ela tivesse a guarda por ser negra, pobre e já ter muitos filhos.

Mesmo com a guarda não formalizada, Guilherme passa a semana toda com Silmara. As meninas e os meninos cuidam dele durante a tarde e à noite Silmara fica com a criança. Aos finais de semana, Guilherme fica com os pais. Silmara tornou-se, de certa forma, amiga de Rosa. Ela diz que faz isso para garantir que não perca Xuxú, pois não quer encrenca com a mãe dele. Elas moram perto, o que facilita a troca de casas.

Silmara trabalha de segunda a sexta como faxineira na prefeitura de Suzano. É um trabalho duro e por isso presta o Enem desde 2002 para cursar uma faculdade, mas ainda não teve a pos-sibilidade. Faz cinco anos que Silmara deixou de receber o auxílio do Bolsa Família, mas continua lutando para voltar a ganhar. Acredita que o dinheiro que ganha ainda não é suficiente para sustentar toda a família.

Durante o período em que os mais novos não estão na escola, ficam em uma ONG da pre-feitura, perto do local onde moram, chamada OZEM. Lá eles têm direito ao café da manhã, almoço e brincam com outras crianças, além de não ficarem sozinhos em casa enquanto Silmara trabalha. O sonho da filha Tamara era debutar e Silmara conseguiu que ela fizesse sua festa na OZEM. Foi um momento muito emocionante para toda a família.

Os meninos também têm um sonho: viajar de avião. No começo de janeiro, Cesar e Rincon

© P

atri

cia

Igle

cio

© P

atri

cia

Igle

cio

© P

atri

cia

Igle

cio

Page 5: Contraponto Nº 90

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Silmara e seu nono filho “Xuxu”

foram para Goiás visitar a avó. Divertiram-se mui-to, apesar da impaciência de dona Adélia. O fato inédito é que viajaram de avião pela primeira vez, mas Silmara diz que para isso teve que se endividar. Ela já andou de avião uma vez quando foi visitar a mãe, e queria que seus filhos pudessem realizar o mesmo sonho. Diz que a mãe é chata, viciada em limpeza, se incomoda com a bagunça das filhas e dos netos, o que aborrece Silmara.

Depois de falar um pouco sobre a vida dos que moram com Silmara, é finalmente possível falar sobre ela. Ela é assim, uma mulher muito preocupada com o bem daqueles que ama. Os que estão ao seu redor estão sempre em primeiro lugar.

Silmara é muito conhecida em seu bairro, todos a cumprimentam e sabem que sua família é do bem. Apesar de ser conhecida, ela diz que não tem amigas, apenas uma: Cristiane. Elas se conhecem há quinze anos. Para Silmara, não é possível uma pessoa ter muito amigos e alguns conhecidos; dentre os milhares de conhecido elas tem uma melhor amiga que está sempre com ela.

Durante 16 anos Silmara raspou sua cabeça. Era sua marca, apesar disso afirma que havia uma desvantagem: ser careca vinha acima de outras características, mas gostava da aparência, se sen-tia bem assim. No final do ano passado decidiu que queria ter cabelo e deixou crescer, ainda sim muitos a chamam de “carequinha”.

Silmara passou por muitas dificuldades, a começar pela quantidade de filhos. Seu ex-marido, pai de todas as crianças, esteve preso durante cinco anos por ter assaltado um banco. Ela engravidou dos três últimos filhos em visitas na cadeia. Nessa época Silmara não tinha emprego fixo, trabalhava como faxineira em apartamentos no centro da cidade.

Com muito aperto no coração, conta que mal tinha o que dar de comer às crianças. Sua irmã mais nova, Silvana, sempre teve uma condi-ção de vida um pouco melhor, teve três filhos e nenhum deu problema como os filhos de Silvia. Silvana também mora perto, no Jardim Nazaré, mas Silmara diz que nunca ofereceu muita aju-da. No máximo seu cunhado levava um balde de frutas um pouco apodrecidas, que eles não queriam comer. Silmara deixava o balde cheio de água, depois cortava as partes mais podres e fazia chá de frutas para os meninos. Diz que não tinha condições de negar a ajuda, mesmo que mínima.

Apesar disso, com muito orgulho, a mu-lher guerreira afirma que nunca pediu a ajuda de ninguém. Nem ficou devendo. Cita uma pessoa que nessa época de grande dificuldade a ajudou, Eliane. Eliane mora em uma parte um pouco mais privilegiada do bairro, foi dona de locadora e tem até casa na praia. Silmara trabalhou na limpeza de sua casa durante um bom tempo. Recentemente elas foram juntas à praia. O móvel de guardar louças da cozinha foi um presente da amiga.

Durante alguns anos Silmara omitiu que seu marido estava preso. Foi nessa época que ela trabalhou na casa de Eliane. Sempre recusava os convites da amiga para sair, mentindo que ia a missa, mas na verdade ia visitar o pai das crian-ças na cadeia. Quando contou a verdade, Eliane não a discriminou, foi compreensiva e manteve a mesma relação.

Depois Silmara trabalhou como auxiliar só-cio-educativa em um abrigo em Suzano, onde se afeiçoou muito por Carina e seu filho, uma menina que passava por grandes dificuldades e conseguiu se superar depois da passagem pelo abrigo. Carina tem grande carinho por Silmara e a considera uma

© P

atri

cia

Igle

cio

© P

atri

cia

Igle

cio

ApesAr disso, com muito orgulho, A mulher

guerreirA AfirmA que nuncA pediu A AjudA

de ninguém. nem ficou devendo.

Page 6: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

mãe, sempre a visita e chama as meninas de irmãs. Quando seu filho nasceu, convidou Silmara para conhecê-lo, e ela foi.

Na OZEM também exerceu a função de faxineira, mas decidiu continuar no mesmo cargo na prefeitura de Suzano, por ser um emprego com maior estabilidade. Atualmente está pres-tando curso para trabalhar no auxilio de meninos da Fundação Casa e diz que tem grande apreço por ouvir historias difíceis das crianças. Sente que pode ajudá-las.

Acredita muito na educação que deu para seus filhos. Recentemente um amiguinho de Ce-sar encontrou dinheiro escondido por traficantes debaixo de uma pedra. Cesar não quis gastar o dinheiro e devolveu para uma conhecida dos donos do dinheiro, disse ao amigo que eles não deveriam se meter com aquilo.

Quando se trata da sua própria diversão, Silmara diz que não sobra muito tempo para si mesma. Às vezes ela pensa nisso e sente que gos-taria de sair mais. Frequentava bailes nostalgia e de discotecagem, mas hoje em dia vai muito pouco. Às vezes vai ao samba com Tamara e Claudinha, o que deixa Rodrigo muito enciumado: ele diz que Tamara é “muito baladeira” e influencia Claudinha a ir com ela, o que deixa Silmara muito brava, pois além de abandonar as crianças e a esposa, Rodrigo quer controlá-la.

Silmara gosta muito de teatro, mas diz que o ingresso custa muito caro e prefere gastar o dinheiro com o lazer dos filhos. Muitas vezes eles vão juntos ao SESC Itaquera, que fica à uma hora da casa deles e são necessárias duas conduções. Silmara não considera que seja lon-ge, pois é o lugar mais perto de lazer da casa deles. Em dias muito quentes eles montam uma piscina, mas a conta de água sai muito cara, o que acaba impedindo que montem sempre.

© P

atri

cia

Igle

cio

© P

atri

cia

Igle

cio

quAndo se trAtA dA suA própriA diversão, silmArA diz que não sobrA muito tempo pArA si mesmA. Às vezes elA pensA nisso e sente

que gostAriA de sAir mAis. frequentAvA bAiles nostAlgiA e de discotecAgem, mAs hoje em diA vAi muito pouco.

Page 7: Contraponto Nº 90

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Quase não existem programas do governo federal e da prefeitura no bairro da Silmara. Além da OZEM e da escola EMEF Padre Chico Falconi, em que Silmara e todos os seus filhos estudaram, não há mais nada. Por isso ela é totalmente de-sesperançosa quanto aos políticos e acredita que nenhum deles pode fazer nada por ela, apenas seu próprio esforço e trabalho foram capazes de tirá-la da situação precária em que vivia e dar uma condição de vida mais digna aos filhos.

Sobre o ex-presidente Lula, Silmara também não o idolatra. Acha que ele é uma boa pessoa, e por ser semianalfabeto e ter sido presidente do país, ela acredita também ser capaz de alcançar o que quiser.

As manifestações que aconteceram em todo país no mês de junho são vistas de maneira ambígua por Silmara, apesar de apoiar a reivin-dicações de direitos de cidadania, acredita que

muitas coisas não deveriam ser feitas. Queimar ônibus e depredar a cidade é vandalismo para ela, assim como os recentes “rolezinhos”, pois acre-dita que não há motivo para tais atitudes e que a população não deve destruir o próprio transporte que vai utilizar. Recentemente, em seu bairro, queimaram cinco ônibus e fizeram barricadas de pneus em algumas ruas por conta do desapareci-mento de duas crianças. Silmara acha que isso não tem nada a ver com o governo e não há porque vandalizar. Nenhum de seus filhos participou das manifestações.

Lá, os “donos do morro” funcionam como uma espécie de Estado. Há um tempo, quando quase ninguém da comunidade tinha carro, era necessário contatar os traficantes para casos de emergência, pois não era permitido acionar a polícia ou o corpo de bombeiros. Uma das vezes em que Seu Barbosa passou mal, Silmara e sua

mãe chamaram a polícia e isso foi lembrado. Em uma segunda vez, quando Dona Adélia passou mal, Silmara pediu ajuda dos donos do morro e eles negaram, lembrando-a da vez em que chamou a polícia. Muitas regiões alagam com a chuva, e ela agradece muito por sua casa nunca ter inundado.

Uma mulher muito trabalhadora, guerreira, simpática, acolhedora e enérgica, a história de Silmara é tocante. Sua simplicidade e intensidade em contar, com mínimos detalhes, sua vida, emo-cionam. Sua visão ampla, personalidade forte e olhos profundos também. A casa da Silmara está sempre cheia.

As mAnifestAções que AcontecerAm em todo pAís no mês de junho são vistAs de mAneirA AmbíguA por silmArA, ApesAr de ApoiAr A

reivindicAções de direitos de cidAdAniA, AcreditA que muitAs coisAs não deveriAm ser feitAs. queimAr ônibus e depredAr A cidAde é vAndAlismo

pArA elA, Assim como os recentes “rolezinhos”, pois AcreditA que não há motivo pArA tAis Atitudes e que A populAção não deve destruir o próprio

trAnsporte que vAi utilizAr.

© P

atri

cia

Igle

cio

Page 8: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

© V

icto

ria

Aze

ved

o

Por Bruna Bravo, thiago munhoze victoria azevedo A rotina de um apaixonado por frutas

CONTRAPONTO

De segunDa– a DoMingo– feira

Luiz Eduardo Alves Bezerra

Por volta das três horas da madrugada a rua já está agitada. Caminhões vindos de diferentes

regiões estacionam e deles saem vários funcioná-rios a postos para mais um dia de trabalho. Dentre os automóveis que estacionam na rua vazia no frio da madrugada, um tem escrito perto das rodas “Não me inveje, trabalhe” e “Obrigado, Senhor, por mais um dia”. Este é o de Luiz Eduardo Alves Bezerra, mais conhecido como Luiz Gordinho, um dos proprietários das tendas paulistanas mais bem visto pelos companheiros feirantes.

Todo dia é a mesma rotina: o ônibus para em uma rua quase deserta bem cedo e os fun-cionários começam a descarregar tudo que está no caminhão até por volta das 9 horas. Não tem tempo para moleza neste trabalho, todos se esfor-çam para conseguir montar a barraca e organizar os produtos para quando a feira começar estarem prontos para berrar suas ofertas.

“É jogo duro, meninos” disse Nelson, o funcionário que trabalha com Luiz a mais tempo. Desde pequeno o trabalhador presta serviços a ele, hoje são 22 anos de união. “Não tem desavenças, não tem inimizades. Aqui somos como uma famí-lia. Um momentinho.”

Nelson foi ajudar os mais cinco funcio-nários que descer do caminhão e descarregar a tenda. Muitas vezes tentavam não fazer muito ruído, mas os estrondos das caixas de madeira e vigas sendo descarregadas eram inevitáveis e violentos. Esse barulho que sustenta e cria a barraca juntam-se as conversas de quem já está na rua edificando a feira.

A rua Sampaio Viana nunca é tão baru-lhenta como aos domingos. Localizada no bairro Paraíso, zona centro-sul da cidade de São Paulo, desde madrugada começa a ter o clima de feira. Todos se animam com a chegada das barracas. A descontração começa desde cedo. “Eu fui olhar o cheque duas vezes e ela nem me deu um real da caixinha” – exclamou indignado o funcionário mais novo da barraca de Luiz Gordinho, o filho de 15 anos de Nelson. Todos se divertiam e riam enquanto montavam os balcões. “E ainda me olha com aquele olhar cínico!”, completou o garoto. O silêncio completo era algo impossível para suas disposições para mais um dia de trabalho.

Quando quase todas as peças de madeira foram descarregadas, começaram a aparecer no caminhão as frutas frescas prontas para serem vendidas na feira. As fofocas sobre vizinhos se mis-turavam aos berros de quem descarregava as frutas do automóvel e as dava a um segundo funcionário que as empilhava em suas caixas no canto da rua. “Melões!”. “Ela foi atrás! Tá com um garoto de 22 anos”. “Manga!”. “Ela gosta dos mais novos”. “Abacaxi!”. “Mas o outro lá já estava de olho nela! Vai dar treta...”. “Pêssego!”.

“Eu o admiro”, volta Nelson com um co-pinho cheio de café se referindo a Luiz. É preciso tomar a bebida pra aguentar o dia todo, alega. A garrafa térmica com o café é indispensável para todos que trabalham nas tendas da feira. Em al-gum momento todos pegam um copo da bebida

para se manterem energizados até o fim do dia de trabalho.

Luiz Gordinho, o dono da barraca, chegou quando a tenda estava armada e ajudou a organi-zar as mercadorias nas bancadas. Ele gosta muito de trabalhar com frutas. Afirma que é relaxante e gratificante arruma-las e tem uma lógica para tanto. As cores das frutas são importantes pra cha-mar a atenção dos fregueses, então ele as dispõe nas bancadas de acordo com a coloração. “Se eu colocar todas as uvas verdes juntas e as roxas em outra parte é menos chamativo que colocar uma verde e uma roxa, intercalando”.

Além desses detalhes, o que tanto o dono como os funcionários frisam em seu trabalho é a importância do comprometimento com o freguês. “O que passa no comércio é a simpatia”, esse é uma espécie de lema de todos que trabalham na tenda. Os fregueses percebem essa receptividade por parte dos funcionários da barraca. Muitos compram fru-tas a muitos anos de Luiz Gordinho, como Kunihiro Tsuchiya, 72, que vai barraca há 18 anos.

Esses anos em que vem abastecendo a casa de Kunihiro de frutas, Luiz foi o patrão de seu próprio negocio na feira. Contudo, no início de sua carreira, ele era um empregado da barraca em que seu primo trabalhava, e antes disso passou por vários outros trabalhos.

O começo de Luiz Gordinho – Antes de entrar na feira, ele fez “um pouquinho de tudo”: vendeu rosas no farol da Rebouças com a Avenida Brasil, foi verdureiro e depois passou para as frutas. O motivo dessa esco-lha pelas frutas, conta ele, é porque é o que sempre lhe atraiu, reforçando ainda que o que gosta mesmo de fazer é de arrumar as frutas colocando-as na barraca, participando de todo o processo. “Eu sei ser patrão e sei ser líder. Acho que você tem que ser ponderado nos dois lados”, afirma.

Entrou na feira em 1977 com um objetivo em sua cabeça: comprar um carro. Seu primo trabalhava na feira e disse que se fosse trabalhar com ele, em pouco tempo teria o dinheiro sufi-ciente para comprar o que desejava. No começo, vendia limão e maracujá e ficava encarregado de arrumar a barraca, ao mesmo tempo em que trabalhava no banco Comide. No entanto, a certa altura, o banco faliu e Luis Gordinho continuou indo à feira, porque tinha gostado do que fazia – e conseguiu alcançar seu objetivo: com seis meses de trabalho na feira comprou um carro usado.

“Trabalhei durante 17 anos como em-pregado e hoje eu tenho a minha barraca, eu sou o patrão”, diz Luis, com um sorriso no rosto

© B

run

a B

ravo

Aqui nA feirA é muito simples. A lArAnjA é o pré-primário; A

quintA série é A melAnciA, o AbAcAxi e o mAmão formoso.

A fAculdAde é quAndo se deve trAbAlhAr com o peso

dAs mercAdoriAs – uvA, pêssego e AmeixA, pois precisA

trAbAlhAr com o Auxilio dA bAlAnçA

Page 9: Contraponto Nº 90

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

de orgulho. Com a barraca, cinco famílias tiram sua renda – contando as de seus funcionários. Conseguiu criar um patrimônio que possibilitou a formação de seus dois filhos – a menina, estu-dou em Dublin e menino continua no Brasil. Mas tanto trabalho também tem seu lado ruim. “Vou falar uma coisa agora que até dói o coração: eu não vi eles crescerem, só vi quando eles estavam grandes”, confessa Luis.

Luiz conheceu sua mulher, Tânia, na pró-pria feira. Ele trabalhava em uma feira que era perto da rua dela, e que sempre a via andando com sua mãe fazia piadinhas do gênero “oi sogrinha”, o que chamou a atenção da menina. E isso acontecia com uma certa frequência, até que depois de um tempo, eles começaram a namorar e se casaram depois. Tânia ressalta que na época que ele mexia com ela, tinha catorze anos, e desde então, havia cativado um carinho por Luis.

Hoje em dia, ela trabalha com seu ma-rido. “Ela é meu braço direito, ela é pau pra toda obra, e o que mais me deixa feliz é que eu vejo que ela é feliz aqui na rua. Quando ela trabalhava no escritório ela ficava estressada e isso não lhe fazia bem. E aqui na feira, quando a gente fica estressado a gente grita, tirando ele da gente” diz ele.

Rotina de Trabalho – Luis afirma que dorme cedo, porque caso contrário, não consegue aguentar o dia seguinte, porque a rotina de um feirante é muito puxada e exige muito da condi-ção física da pessoa. Ele faz dois períodos – “eu sei que é errado, mas eu faço assim mesmo” diz o feirante – chega em casa, almoça, toma banho e dorme um pouco. Nove horas, ele acorda, e vai para o mercado, o Mercadão da Cantareira. E retorna para a sua casa, com o relógio já batendo na casa da meia noite. Volta a dormir, e levanta às cinco da manhã, que é o horário em que ele vai para a feira.

Na segunda feira, ele vai para o Ceasa, realiza algumas entregas de frutas e depois volta para casa . E às quintas feiras ele vai mais uma vez para o Ceasa, onde vai fazer as compras para os próximos três dias. Para isso, vai para lá as cinco da manhã e chega na sua casa às 13h. Ele sempre abastece para os três próximos dias e, de um dia para o outro, as frutas ficam no próprio caminhão, mas ele também conta com uma câmara frigorífica que ele possui – “ela é pequena, mas ajuda, por conta dos produtos perecíveis”, completa Luis.

Para Tânia, mulher de Luis e companheira de trabalho na feira, o ponto negativo desse trabalho como feirante é o fato de ser necessá-

rio acordar cedo. No entanto ela diz que com o tempo a pessoa se acostuma. Isso porque ela não precisa acordar tão cedo, já que não participa da montagem da barraca. O que ela mais gosta, por outro lado, é do contato com o público, a troca de experiências e de conhecer novas pessoas.

Tânia completa dizendo que tem muito orgulho do marido, principalmente por ele ser uma pessoa trabalhadora e batalhadora também – não tem preguiça de trabalhar, de levantar cedo. Também admira o poder de persuasão de Luis, que consegue convencer o cliente a levar uma determinada mercadoria, mas que, ao mesmo tempo, reconhece quando alguma fruta não está boa e diz isso para o cliente, para que ele não seja prejudicado.

Isso não se encontra em qualquer barraca. Existe a famosa a lenda de que feirantes colocam adoçante na faca que usam para cortar as frutas, pra quando os clientes forem experimentar, as frutas estarem doces. Luis afirma nunca ter usado esse truque. “Eu nunca trabalhei com isso, jamais. Acho que tem que trabalhar com o doce da fruta”, diz ele. O feirante conta sobre outras artimanhas e confessa que há 30 anos, quando ainda era jovem e inexperiente, usava a faca que cortava a beterraba para cortar o melão, deixando-o mais rosado, que era quando valia mais.

© V

icto

ria

Aze

ved

o

© B

run

a B

ravo

trAbAlhei durAnte 17 Anos como empregAdo e hoje eu tenho A

minhA bArrAcA, eu sou o pAtrão

Page 10: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO10 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

A paixão pelas frutas – Luis diz que sempre se sentiu atraído pelas frutas, e não sabe explicar o porquê disso – “é uma coisa minha, por isso não tem explicação, sabe?”. O que ele mais gosta é de oferecer ao freguês para que ele prove a fruta, pois é quando ele tem um maior contato com o cliente, sem que seja exagerado ou forçado – “não é um xaveco, eu digo quando a fruta está boa e quando ela está ruim” continua ele.

Para ele, existe uma relação entre as frutas e como as pessoas devem vendê-las: “Aqui na feira é muito simples. A laranja é o pré-primário; a quinta série é a melancia, o abacaxi e o mamão formoso. A faculdade é quando se deve trabalhar com o peso das mercadorias – uva, pêssego e ameixa, pois precisa trabalhar com o auxilio da balança. E a pera e a maçã são frutas sensíveis que você tem que trabalhar com delicadeza. E tudo isso pode ser comparado com a escola, existe um padrão de escola. Doze laranjas em cada saquinho, por exem-plo, é algo básico e que todos os feirantes devem saber – é o pré-primário. Conforme a pessoa vai se mostrando apta para vender as frutas, você diz que o cara já está bom e que ele pode ir vender abacaxi, o que já é mais difícil, por exemplo”.

Ressalta ainda, que com a balança digi-tal o trabalho do feirante foi muito facilitado, por que antes, para cuidar do peso das frutas e do seu respectivo preço, deveria ser alguém bom de matemática. Certa vez quando traba-lhava na barraca de seu primo, um companhei-ro seu de trabalho tinha muita dificuldade de pesar a mercadoria – principalmente as uvas, que tinham três tipos diferentes, como por exemplo, com ou sem semente. Seu compa-nheiro, percebendo a destreza de Luis, pediu que eles invertessem de papel, ele passaria a vender as frutas e o outro iria pesa-las. “O que eu fiz? Topei na hora, porque eu gostava de aceitar desafios. Eu gosto desse trabalho” completou Luis.

Pessoalmente não é diferente. Luis sempre gostou de comer frutas e sua mulher garante que nunca falta em casa. Suas favoritas? “Pêssego, morango, lichia, cereja quando tá dura. Uma uva sem semente também, do jeito que tá ali, crocante, fresquinha que você coloca na boca e estoura; adoro” diz ele.

A existência de feiras nas cidades – Luis conta que hoje é difícil a geração mais jovem gostar de ir a feira, seja como quem trabalha ou como um cliente. Para ele, a mão de obra em si esta acabando, restando só os mais velhos trabalhando nesse ramo. Afirma que, diferente do que é comum, ele não veio de uma geração de uma família com feirantes que passavam seu negócio de pai pra filho – que é o que prevalece hoje.

Existem famílias que passam seu negócio de pai para filho há mais de quatro gerações, conta ele. Em seu caso, seu filho não se interessa por trabalhar na feira, porque acha um trabalho muito estressante e exaustivo. Já a sua filha tem mais in-teresse porque ela gosta de lidar com o povo, com a “muvuca” e agitação do dia a dia. Característica que ele próprio estima de sua profissão. Mas acha que a menina não vai entrar para o ramo, ela só o ajuda quando ele precisa.

Reclamações sobre a feira – “Todo mun-do gosta de feira, contanto que não seja na rua da sua casa” diz Luis. Em seu caso, particularmente, nunca teve problemas sérios com os moradores das ruas reclamarem da existência das feiras de rua, mas é sabido que muitas vezes isso chega a ser uma questão tão grande que leva ao fecha-mento da feira.

Em uma das ruas em que trabalha, já teve pequenos atritos com os moradores, pois an-tigamente ela era uma feira de quatro fileiras, uma na própria calçada. Dessa forma, passaram a ter várias ocorrências de assaltos e roubos na região, pois a feira bloqueava a entrada e saída dos prédios, já que os moradores esta-cionavam seus carros nas ruas próximas, sem que houvesse a mesma segurança da garagem de suas casas.

Hoje em dia, cortaram a feira, deixando-a com duas fileiras, sem que fique bloqueadas as entradas e saídas dos prédios. Entre as seis horas da manhã e as duas horas da tarde, os morado-res conseguem entrar e sair livremente, pois é justamente o horário que o caminhão sai e chega na rua. Dessa forma, deu para conciliar as duas vontades, fazer uma fusão dos interesses dos moradores e feirantes.

E essa ideia não partiu dos moradores, disse Luis, mas justamente dele e de outros três feirantes, o Fino, o Atílio e o Zé Tavares. Isso pois estavam querendo extinguir a feira. “A gente estava até com vontade de mandar fazer um mandato de segurança, porque não pode extinguir uma feira de 50 anos de um dia para o outro, sem que ao menos seja estipulado um prazo para que os feirantes consigam arranjar outro lugar para fazer a sua feira”.

O barulho também chega a ser uma ques-tão de atrito entre feirantes e moradores da re-gião, porque por mais que evita-se fazer barulho na hora de descarregar a mercadoria e montar a barraca, não conseguem extingui-lo por completo – o barulho da madeira sendo empilhada, junto com as vigas que dão a sustentação e os caixotes ecoa pela rua durante a madrugada, horário em que começa a montagem das barracas. “Chegar aqui na rua com o som alto e todo mundo gri-tando e cantando, não acontece, nós tentamos diminuir ao máximo possível os ruídos” diz o feirante. Completa, falando que com o passar do tempo os moradores se acostumam com os barulhos e deixam de ligar, sendo poucos os que ainda reclamam.

Luis já tem mais de trinta anos de feira e diz que ainda têm chão até o dia em que for parar de trabalhar. Sua expectativa de trabalho pesado, do jeito como ele faz hoje em dia ele acredita ser até os 60 anos. Hoje, ele tem 52 anos, ou seja, acredita ter pela frente mais uns dez anos de tra-balho para, a partir de então, diminuir sua carga de trabalho, sem parar totalmente – trabalharia três vezes por semana, deixando os dias restantes para os seus funcionários cuidarem. Mas diz que nunca pensou em parar totalmente o trabalho, pois não conseguiria.

© V

icto

ria

Aze

ved

o

© B

run

a B

ravo

© B

run

a B

ravo

todo mundo gostA de feirA, contAnto que não sejA nA ruA dA

suA cAsA

Page 11: Contraponto Nº 90

11CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Lidando com os funcionários – Todos que trabalham com Luis na barraca são funcio-nários de longa data. Tem os que estão com Luis há 20 anos e o mais recente é o Haru, que entrou pra família há quatro anos. Luis tenta criar de fato uma relação familiar com seus empregados para que todos se sintam à vontade e cuidem um do outro. No entanto, nunca deixa de lado o profissio-nalismo, pois quer o melhor de todos seus funcio-nários. “Se ele é uma pessoa crua, a gente faz ele virar um diamante porque a gente lapida ele. Eu sou um que lapida: faz isso, faz aquilo, não ficou legal, tenta arrumar desse jeito que fica melhor”, comenta o feirante. Se der algum problema tudo é resolvido pessoalmente. Gritos na feira são só pra vender, as broncas são dadas discretamente. “Quando tenho que chamar a atenção eu sempre chamo funcionário de canto. Não grito pra todo mundo ouvir”, completa ele.

A mulher de Luis também acredita no su-cesso da barraca devido à relação criada entre os funcionários e com eles. Afirma que eles se dão muito bem, uma vez que ela sempre procurou estabelecer um bom ambiente de trabalho, alegre, sem pressão e que faz com que os funcionários trabalhem com vontade, e sempre com um sor-riso no rosto – tudo para que o cliente se sinta a vontade e seja bem tratado.

Quanto ao pagamento e oficialidade, Luis responde respectivamente: “Por dia de feira e não tem carteira assinada”. Ele explica que somente dois funcionários tem registro, porque esse é o mínimo necessário para a cria-ção de uma microempresa. Mas garante que as férias são regulares para seus funcionários. “Eles tiram junto comigo que eu gosto de des-cansar 15 dias em julho e 20 dias em janeiro”. Além disso, nessa época do ano, Luis também dá uma caixinha que seria o décimo terceiro. “Eu venho separando todo dia 50 reais, eu faço um caixa dois, pra que quando chegar em dezembro tenha um dinheiro pra dar pra eles”, explica.

No mais, Luis só espera de seus funcionários lealdade e honestidade. Durante todo seu percur-so como patrão, viveu uma situação que explica essa sua exigência. Em 96 montou um frutaria para gerenciar em paralelo com a feira. Deixou um funcionário que já estava com ele há 20 anos para cuidar do estabelecimento, enquanto ele ficava na feira. A conclusão foi que em seis meses de loja, o funcionário roubou o dinheiro e Luis se decepcionou muito, decidindo fechar a frutaria. Hoje pode dizer contente: “Na rua eu nunca tive decepção. Aqui na rua eu só tenho alegria, todo mundo é amigo”.

Freguesia – Já ficou claro que o negócio do Luis é a sinceridade. Os laços que mantem com seus clientes se firmam nas bases da simpatia e da honestidade. A maioria dos que compram com ele são costumeiros, “já é clientela, já é freguesia. Um ou outro que vê, se tá passando aqui e viu que a mercadoria é boa, encosta”, diz ele. Para Tânia, o diferencial da barraca é que eles cativam a amizade com os clientes, que sendo bem tratados e recebi-dos, sempre voltam – ele tem clientes que há mais de vinte anos compram com ele. “E você vê, as vezes tem um casal que vem com o filho, e ai esse filho daqui a pouco cresce, casa e ele volta com a família dele pra nossa barraca na feira. A gente já viu isso acontecer e é muito legal. A gente vê a família crescer junto com a gente” diz ela.

Kunihiro Tsuchiya, de 72 anos, é freguês de Luis há 18. Se referindo ao feirante, Kunihiro brinca que começou a comprar com ele porque “esse corintiano aqui é simpático, puxa saco (risos)”. O senhor Kunihiro, na verdade, sempre passava por aqui e achou que a barraca que tinha os melhores preços com frutas selecionadas, era a do Luis Gordinho. E garante que o diferencial da barraca “é o tratamento. Aqui a gente, quando uma coisa não ta boa, reclama e ele repõe. Então é aquele fornecedor consciente que quer uma freguesia seleta. Não temos nada que reclamar”, diz o freguês.

Acostumado, seu Kunihiro vai religiosa-mente todo domingo na feira da Sampaio Viana comprar na barraca do Luis. Quando eles entram de férias “aí a gente pena pra comprar; a gente fala assim ó: ruim com você, mas pior sem você (risos)”, confessa o freguês, brincando com Luis.

Final de feira – “Meio dia, meio dia e pouco é a hora que a gente começa a socar o pau”. O famoso final de feira, ou hora da xepa, é quando os preços abaixam e a gritaria aumenta. Luis explica que é nesse momento que ele faz seu lucro. Ele que é responsável por decidir quanto e como baixar os preços de acordo com o dinheiro que conseguiu até então. Perto do meio dia ele conta quanto já fez; se já conseguiu cinco mil reais ou perto disso, que é o seu custo com os produtos e funcionários, desce o preço, pois tudo que vier é lucro. No calor da gritaria e das ofertas “não importa os vizinhos do lado, eles são meus amigos e também vão fazer a mesma coisa que eu. Tem a competição? Tem. Mas eu acho que quem ganha nisso é o atendimento e a qualidade”, diz Gordinho.

Nem por isso a relação com os demais feirantes deixa de ser boa. Sendo o mais antigo na feira da Sampaio Viana, Luis sempre foi reco-nhecido e respeitado pelos colegas de trabalho. “Tudo que é feirante aqui me respeita, sabe quem é o Luis Gordinho”, diz ele.

Mesmo após a xepa, nem toda mercadoria é vendida e sobram algumas frutas que devem ser guardadas para o dia seguinte. Luis diz que, em ge-ral, o que sobra são produtos que não tem perigo de estragar e, portanto, não carecem de cuidados quanto sua preservação. Mesmo dispondo de uma pequena câmara frigorífica, muitas frutas podem ficar guardadas no próprio caminhão de um dia para o outro. “Um melão pode ficar 20 dias fora da geladeira e não vai estragar”, explica.

Com o fim das ofertas, o fim da gritaria. Os caixotes e a tenda voltam para o caminhão, que agora anda mais leve. Mas logo a madrugada trás o dia seguinte e mais um dia de trabalho. Porque todo dia é dia de feira.

© V

icto

ria

Aze

ved

o

é jogo duro, meninos

(nelson, funcionário)

Page 12: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO12 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Por Guilherme almeida e lu sudré

neM a fé poDe absolver a polítiCa e neM a polítiCa poDe absolver (ou negar) a fé

CONTRAPONTO

Escritor, religioso e militante, ajudou guerrilheiros na época da ditadura, contribuiu com a fundação da CUT e diz que o PT trocou

o projeto de um país por um de poder

Carlos Alberto Libânio Christo, ou apenas Frei Betto, se diferencia entre os numerosos

religiosos dominicanos do nosso país. Filho de jornalista, tornou-se um frade escritor, autor de 53 livros publicados no Brasil e no exterior. Religioso adepto da teologia da libertação e militante de movimentos pastorais, Frei Betto lida com religião, política e com os movimentos sociais. Envolve-se com tudo ao mesmo tempo, afinal, tais coisas são exatamente assim, misturadas e associadas culturalmente.

Mineiro, de Belho Horizonte, completará sua sétima década de vida em 25 de agosto desse ano e tem muitas histórias para contar sobre os 70 que já passaram. Talvez, ser filho de um jornalista e de uma escritora culinarista, Antônio Carlos Vieira Christo e Maria Stella Libanio Christo, possa ter influenciado seu lado autor. Mas duas prisões sob a ditadura militar também foram mais do que bons motivos que o levaram a escrever livros que retratam as árduas experiências ocasionadas pelos anos de chumbo ao longo de suas páginas

Em 1964, foi preso pela primeira vez durante 15 dias. A segunda vez foi mais longa, de 1969 até 1973. Cartas da Prisão, Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar bra-sileira e Batismo de Sangue, são frutos desses enclausuramentos. A participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte do guerrilheiro Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito, torturado nos porões da Operação Bandeirante (centro de informações e investigações montado pelo exército brasileiro em 1969 para coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate às organizações armadas de esquerda), e as demais informações retratas em Batismo de Sangue, contemplou Frei Betto com o Prêmio Jabuti de Literatura em 1983. Esse é apenas um, entre vários prêmios que recebera por conta de sua atuação na luta pelos direitos humanos e a favor dos movimentos sociais.

Segundo definição, a Teologia da Liber-tação é um movimento supra-denominacional e apartidário, descrito por seus proponentes como uma reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã relacionada com os problemas sociais. A teologia da libertação inclui a teologia política e considera diversas correntes de pensamento que procuram compreender os ensinamentos de Jesus Cristo pautando a libertação das condições econô-micas, políticas e/ou sociais. Outros a classificam como marxismo e materialismo cristianizado. De todas as formas, a nível nacional, Frei Betto é um expoente dessa teologia, que ao absorver crenças das religiões orientais, umbanda, espiritismo, is-lamismo e xamanismo, tornou-se um movimento internacional e interdenominacional.

Frei Betto, um analista político que fala de assuntos complexos de forma tão branda quanto um pároco do interior desenvolve seu sermão, re-

sume a Teologia da Libertação como uma corrente que coloca todos seguidores de Jesus Cristo como discípulos de um prisioneiro político e não alguém que levasse apenas a mensagem da vida após a morte. “Jesus não morreu de hepatite na cama e nem em um desastre de camelo em uma esquina de Jerusálem, ele foi preso e torturado, julgado com dois presos políticos e condenado à pena de morte dos romanos, que é a cruz”, dessa forma simples e didática Frei Betto cobra coerência da instituição católica em relação a história.

Reforma da Igreja – Há tempos a Igreja Católica é alvo de comentários – e até mesmo críticas – por estar perdendo seu histórico nú-mero de fiéis. “Eu não acho isso nem negativo, nem positivo. Como católico eu faço autocrítica”, diz Frei Betto, que acredita que tal “perda de terreno” da Igreja Católica seja por conta de sua incapacidade de adaptar-se aos tempos atuais; à pós-modernidade. Frei Betto é questionador dos caminhos que a Igreja constrói e gostaria que a mensagem da teologia da libertação, do ponto de vista cristão, tivesse muito mais incidência na

Frei Betto

© R

afae

l Sté

dile

sociedade. Para ele, quando a teologia da liberta-ção e as comunidades eclesiais de base eram bem vindas à Igreja Católica, havia um número muito maior de adeptos à religião.

Já o pluralismo religioso, responsável por colocar em cheque a Igreja Católica, é visto com bons olhos por Frei Betto, que ressalta a inexistência de uma postura de competição ou disputa de fiéis entre as religiões. De acordo com suas palavras, “A Igreja Católica está sendo questionada e levada e a rever seus métodos de evangelização, o seu perfil como instituição, o trabalho de seus ministros. Tudo tem que ser profundamente revisto”.

Muitos argumentam que a renúncia de Bento XVI é apenas uma evidência desse quadro. “Há mais de 500 anos um papa não renunciava. Ele deixou o cargo, deixando claras as razões. Ou seja, ele disse: há um esquema de corrupção na Igreja, esse esquema precisa ser combatido, mas, eu não tenho forças pra isso”, afirma Frei Betto, que avalia a eleição de Bergoglio, papa Francisco, como uma grande novidade que representa uma reforma da Igreja de cima pra baixo, corresponden-te à estrutura piramidal da Igreja Católica.

Frei Betto pousa para foto em convento dominicano, localizado na

rua Atibaia (São Paulo)

Page 13: Contraponto Nº 90

1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

No entendimento de Frei Betto, que não esconde sua consideração pelo novo Papa, ao abandonar uma série de símbolos que eram da nobreza, a reforma começou pelo papado. Opina que Francisco desloca o debate dentro da Igreja da esfera pessoal para a social e abre precedentes para uma nova teologia. Normalmente contido quando o assunto é a capacidade da Igreja em se renovar, Betto parece botar muita fé no atual Papa. “Bergoglio era a possibilidade mais progressista do conclave”. Uma afirmação que por um lado demostra a confiança do Frei no argentino e por outro escancara o conservadorismo dos cardeais “candidatos” ao papado.

É nisso que Frei Betto mais se diferencia de seus colegas indiretos da Igreja. Ele é um clérigo disposto a mudar de posição, e principalmente bater de frente com altos setores da instituição por contradizer dogmas que encabrestam os mi-nistros e os fiéis da religião. “A moral sexual, por exemplo, é um assunto congelado na Igreja desde o século XVI”, diz em tom de indignação. Defen-sor dos direitos das mulheres o frei é favorável ao ordenamento independentemente do gênero.

Atualmente são poucas as religiões que tem na figura feminina algum tipo de centralidade.

Para o religioso um caminho plausível para se desvencilhar das limitações que a moral sexual em descompasso com os tempos atuais causa seria uma revisão partindo do topo da hierarquia. Frei Betto sempre ressalta que a estrutura piramidal da Igreja sufoca quaisquer mudanças que tentem ser feitas pelas bases. A começar, o primeiro ponto a ser revisado seria o que ele chama de “heroica virtude do celibato”. Frei Betto escreveu em sua coluna publicada no jornal semanal Brasil de Fato que o celibato obrigatório para sacerdotes católicos não se justifica à luz da Bíblia. Pedro, escolhido primeiro papa, era casado (Marcos 1, 30), e na Igreja primitiva homens casados eram ordenados sacerdotes.

De acordo com a pesquisa de Betto, o rechaço a aceitação de vida sexual vêm de asso-ciações ilógicas, repassadas como ensinamento na formação de sacerdotes. “O preconceito sexual nasce na Igreja por influência neoplatônica, que culmina na (falsa) justificativa de que a lei natural associa sexo e reprodução. Daí o fato de perdurar,

ainda hoje, na doutrina oficial da Igreja Católica, a exigência de os casais só terem relações sexuais se houver intenção de procriar. Até 1903 gestos de carinho entre casados eram considerados peca-dos.”. Caso seja revista a necessidade de celibato para que seja exercida a função de padre, só no Brasil cerca de cinco mil homens poderiam retomar suas funções como ordenadas. Imagine o quanto o número de ministros ativos a Igreja católica teria caso abrisse o sacramento da ordem também às mulheres. “Nesse ponto a Igreja trabalha contra ela mesma, se enfraquece frente ao mundo mo-derno”, avalia Frei Betto.

O frade escritor dá a entender no mes-mo texto que o Papa Francisco deu os primeiro passos no sentido da revisão da moral sexual ao não demonizar as pessoas gays que busquem a igreja, embora assuma que isso parece pouco. No entanto, o principal ato que mostra que o Vaticano está, no mínimo, ciente da sua atuação falha é pela primeira vez em sua história no Comitê da ONU para os Direitos da Criança, em Genebra, a 16 de janeiro, crimes de abuso sexual como a pedofilia, praticados por membros da Igreja Católica.

© R

afae

l Sté

dile

jesus não morreu de hepAtite nA cAmA e nem em um desAstre de cAmelo em umA esquinA de

jerusálem, ele foi preso e torturAdo, julgAdo com dois

presos políticos e condenAdo À penA de morte dos romAnos,

que é A cruz

o preconceito sexuAl nAsce nA igrejA por influênciA

neoplAtônicA, que culminA nA (fAlsA) justificAtivA de que A lei nAturAl AssociA sexo e reprodução. dAí o fAto

de perdurAr, AindA hoje, nA doutrinA oficiAl dA igrejA

cAtólicA, A exigênciA de os cAsAis só terem relAções

sexuAis se houver intenção de procriAr. Até 1903, gestos de

cArinho entre cAsAdos erAm considerAdos pecAdos

Page 14: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO14 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Frei Betto não faz a associação direta entre a imposição de celibato e o alto número de acusações de abusos sexuais contra crianças na Igreja. Aliás, ele faz questão de lembrar que a pedofilia é um problema de recorrentemente ligado às instituições que lidam com menores, e que ocorre também no interior do núcleo familiar. Porém, sua prática deve ser severamente punida, e não acobertada em uma Igreja que se propõe a educar crianças segundo os valores do Evangelho. Não a toa ele argumenta sobre os dois temas de forma interligada.

É possível descobrir muito sobre uma pessoa através de seu trabalho. No caso de uma pessoa que escreve semanalmente como Frei Bet-to, os traços de personalidade são colocados no papel em conjunto com as palavras. São raros os momentos cômicos, mais raros ainda os lugares comuns. Ligações diretas entre dois pontos che-gando a uma conclusão previsível já no título, esse não é o tipo de texto que você encontra assinado “por: Frei Betto”. O teólogo é tão crítico das as-sociações mal explicadas que a religião acaba por transmitir que sempre faz questão de exemplificar bem suas colocações. Melhor do que muito jor-nalista o teólogo busca fontes que simplifiquem e preservem a complexidade dos temas retratados em seus artigos e colunas.

Não nos entenda mal, nem sua escrita e nem sua personalidade são frias. Vez ou outra se nota traços de ironia e agulhadas mais críticas a essa ou aquela figura. No entanto, é fácil notar que mesmo quando fala ou ouve algo engraçado, Frei Betto é estranhamente contido, quase como se quisesse rir mais do que pode. Impossível saber o quanto disso é espontâneo ou adquirido depois de sofrer com violência e reclusão no período da ditadura. Batismo de Sangue, livro que retrata esse período talvez seja o que mais tenha a dizer sobre o escritor. A linha entre romance e documentação histórica é a mesma que traça seu percurso sempre no limite das linguagens.

No limite, mas não encima do muro. Frei Betto toma partido e sofre consequências com isso. Batismo de Sangue é a história verídica do apoio que os frades da Ordem dos Dominicanos ofereciam ao grupo revolucionário comandado por Carlos Marighella, a Aliança Libertadora Na-cional. O livro é um documento que mostra como o assassinato de Marighella foi minunciosamente planejado para jogar os setores da esquerda da época contra os religiosos. O aparelho repressor conseguiu em uma só cartada enfraquecer a luta de guerrilha e prender os freis Betto, Oswaldo, Fernando, Ivo e Tito que foram injustamente marcados como traidores. O livro foi reconheci-do com o prêmio Jabuti de Literatura de 1983 e mais tarde, em 2007, virou filme sob a direção de Helvécio Ratton. Frei Betto foi vivido pelo ator Daniel de Oliveira.

Frei Tito de Alencar Lima, querido amigo é frequentemente lembrado por Betto nos debates que participa nas universidade e junto a movi-mentos sociais. Sobre ele o companheiro de luta escreveu Frei Tito, um relato do martírio sofrido por ele após os eventos do final da década de 1960 (período de Batismo de Sangue). Liberado pelo governo em troca do embaixador da Suíça que havia sido sequestrado, Tito ficou exilado na França e acabou se suicidando. Nessas duas obras Frei Betto desenvolve a relação entre fé cristã e ação politica revolucionária, num período no qual isso era inconcebível. Isso porque o marxismo que guiava a ação dos grupos de guerrilha no Brasil (e no mundo) tinha inspirações ateístas.

Outro livro da série: “para entender Frei Betto”, é Um Homem Chamado Jesus, lançado em 2009. Essa espécie de biografia de Jesus Cristo é

uma remontagem romanceada dos quatro evan-gelhos atribuídos aos apóstolos Mateus, Marcos, João e Lucas, somada a uma vasta pesquisa feita em pessoa pelo autor nas terras da palestina. O romance dá interpretações dos milagres executa-dos pelo messias e também de passagens de sua vida que são conhecidas até por quem não é reli-gioso. O nascimento de Cristo é considerado por muitos como a história mais famosa do mundo. Um Homem Chamado Jesus apresenta uma versão bem diferente e menos glamurizada da viagem de José e Maria motivados pelo recenseamento do Império Romano.

Como escrito no livro o casal foi rejei-tado por onde passavam porque Maria estava grávida mas, não era casada com José. Para dar a luz os dois entraram em uma propriedade, provavelmente sem o consentimento do dono,

onde se criava animais, a pior das possibilida-des. Frei Betto brinca que o “Estado de Belém” deve ter dado a destaque à manchete: “Família sem-terra invade celeiro”. Perguntado sobre o que levou o natal a se transformar em uma fes-tividade tão dispersa das origens religiosas Frei Betto responde: “Como a data tem um sentido religioso muito forte e como a data é muito sedutora do ponto de vista de seu simbolismo e significado o mercado procurou e procura cada vez mais obscurecer a dimensão de Jesus de Nazaré e impor o papai noel. Que aliás tinha originalmente a cor verde. A Coca-Cola que impôs a cor vermelha, literalmente, isso é histórico. Então há uma “papainoelização” do natal. Porque ai você tira do sentido religioso e joga para o comercial, para o mercado. Quer dizer vira uma festa de consumo.”

© R

afae

l Sté

dile

como A dAtA tem um sentido religioso muito forte e como A dAtA é muito sedutorA do ponto de vistA de seu simbolismo e significAdo o mercAdo procurou e procurA cAdA vez mAis

obscurecer A dimensão de jesus de nAzAré e impor o pApAi noel. que Aliás tinhA originAlmente A cor verde. A cocA-colA que

impôs A cor vermelhA, literAlmente, isso é histórico. então há umA “pApAinoelizAção” do nAtAl. porque Ai você tirA do sentido religioso e jogA pArA o comerciAl, pArA o mercAdo. quer dizer

virA umA festA de consumo

Page 15: Contraponto Nº 90

1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Outro ponto polêmico do livro é a carac-terização física de Cristo apresentada. De acordo com os indícios, Jesus não se pareceu nada com a figura europeia popularizada nos filmes e imagens católicos. Frei Betto defende com veemência que Jesus era um homem que se opunha às leis da Roma e tinha seguidores mais por atos de caridade e de solidariedade do que por seus milagres. Por razões políticas Jesus foi perseguido e condenado a morte, afinal ele era capaz de organizar multidões. Esse livro pode ser considerado uma releitura da bíblia com a ótica da teologia da libertação.

Teoria e Prática – Para se formar pastor na Igreja Católica é necessário cursar ao menos quatro anos de teologia e quatro anos de filosofia. Isso pode direcionar os jovens aspirantes a padres em teóricos menos ligados aos anseios da comunidade

ao fim da formação. Frei Betto é um exemplo de que teoria e prática não estão assim tão longe um do outro. Seja nas Pastorais, nas Comunidades Eclesiais de Base e até mesmo no Governo Federal, o intelectual orgânico da Ordem dos Domenicanos foi sempre efetivo com suas ações e alinhado com seus discursos.

“Projeto, se você tem um, deve ir a luta, mesmo que se decepcione depois”, esse é o conselho do religioso que já ajudou a abrigar guerrilheiros na ditadura militar, fundar a Central Única dos Trabalhadores (CUT) no início dos anos 1980 e coordenar o programa Fome Zero nos anos 2000. Poucos têm o reconhecimento e respeito de um aspecto tão amplo da esquerda no Brasil. Ele mesmo reconhece que num país onde os rachas políticos são tantos e tão frequentes é difícil se manter coerente.

Em uma análise sóbria e com certo dis-tanciamento Frei Betto avalia os governos do PT, que historicamente receberam seu apoio e por vezes contaram com sua participação. Em 2006 ele lança seu 54° livro: A Mosca Azul – Reflexão sobre o Poder, que analisa a chegada do Partido dos Trabalhadores à presidência da republica a partir de sua experiência na coor-denação do programa Fome Zero. O autor se desligou do governo pouco tempo antes da eclosão do que veio a ser chamado de escân-dalo do Mensalão.

“No meu livro (A Mosca Azul) eu analiso bem esse processo baseado na tese do autor de Sociologia dos Partidos Políticos, Robert Michels. O que ele diz infelizmente tem se comprovado histericamente, isso em 1911 na Alemanha. Ele diz que partidos de esquerda que disputam espaço na legalidade burguesa acabam sendo cooptados pro ela. Isso aconte-ceu na Europa recentemente e aconteceu no Brasil. O PT o PCdoB, por exemplo, são partidos que frente aos de oposição têm muitos méritos, mas eles trocaram um projeto de Brasil por um projeto de poder. Eu até espero que eles continuem no poder, mas hoje toda operação politica deles é em função da preservação do poder e não de uma alternativa para o Brasil. O que eu lamento muito. Precisamos voltar ao trabalho de base, valorizar e organizar os movimentos sociais, fortalecer espaços de par-ticipação popular de educação popular. Sem isso nós não vamos ter alternativa, vamos ficar girando no samba de uma nota só.”

Política: Laicidade e Democracia – Candomblecistas, umbandistas, budistas, hinduístas, católicos, evangélicos, espíritas... Entre tantas outras religiões, não há como ne-gar que nosso país é culturalmente devoto. De tempos em tempos nos deparamos com figuras religiosas ligadas às instituições política, o que por muitas vezes, questiona a concepção de Estado Laico oficialmente adotada no Brasil. Por muitas outras vezes, essa concepção per-manece apenas no oficial. O Estado Laico, ou Estado Secular, é aquele que não possui uma religião oficial, mantendo-se neutro e imparcial no que se refere aos temas religiosos.

Para Frei Betto, não há problema algum em uma figura religiosa disputar espaços políticos. “O que não pode é você não respeitar o pluralismo religioso e querer transformar a sua concepção religiosa em lei universal a ferro e fogo”, destaca Frei Betto, exemplificando com o caso de Marcos Feliciano, pastor evangélico eleito para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e dos Deputados, que publicizou opiniões racistas e ho-mofóbicas no âmbito político. O problema, então, estaria em confessionalizar a política, negando seu espaço laico.

“Tendo nas mãos o poder político, você transforma sua doutrina em lei universal e a impõe”, assegura Frei Betto, que supõe estar-mos assistindo silenciosamente a um ascenso de um projeto de confessionalização da política e, portanto, dando um passo atrás em relação a modernidade e as conquistas da autonomia do Estado, do espaço político e da laicidade. A imposição de doutrinas pelos fundamentalistas ocorre pela persuasão, por meio da pregação e da conversão. A questão é exatamente saber discernir a fé da política. Para Frei Betto, elas são complementares, mas nem a fé pode ab-solver a política e nem a política pode absolver ou negar a fé.

© R

afae

l Sté

dile

ele [robert michels] diz que pArtidos de esquerdA que disputAm espAço nA legAlidAde burguesA AcAbAm sendo cooptAdos pro elA.

isso Aconteceu nA europA recentemente e Aconteceu no brAsil. o pt o pcdob, por exemplo, são pArtidos que frente Aos de oposição têm muitos méritos, mAs eles trocArAm um projeto de brAsil por um

projeto de poder

Page 16: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO1� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

© F

oto

s: V

icto

ria

Aze

ved

o

CONTRAPONTO

ensaiofotográfico

Cultura e resistênCia na zona leste

CONTRAPONTO

ensaio fotográfico

Por victoria azevedo

No dia 26 de outubro de 2013, um grupo de alunos do primeiro ano de jornalismo da PUC-SP acompanhado de um professor da disciplina Introdução ao Jornalismo, realizou uma visita à comunidade Nossa Senhora Aparecida, zona

leste de São Paulo.A comunidade, que já enfrentou grandes problemas em sua história, como por exemplo o alto nível de violência, sem-

pre teve uma força de resistência incrível através das suas iniciativas culturais organizadas pelos seus moradores. Durante dez anos foram realizados festivais de música e poesia, que contribuíram para a integração dos moradores da comunidade. “Matadores” e famílias se reuniam para assistir aos espetáculos, deixando de lado desavenças e questões pessoais.

“O nosso maior parceiro aqui dentro são as famílias”, afirma Aragão, nome reconhecido na comunidade por orga-nizar tais projetos, assim como o mais recente, o “Varre Vila”, que tem por objetivo a conscientização das pessoas sobre o tratamento do lixo no local onde vivem.

Page 17: Contraponto Nº 90

1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Cultura e resistênCia na zona leste

Page 18: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO1� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Por carolina Piai, Júlia dolcee marcela reis

Aos 32 anos, a profissional do sexo e modelo transgêneroconta sua trajetória de vida

CONTRAPONTO

aCoMpanhante De luxo

Mayara Maemura

Em uma quitinete localizada entre os bairros da Consolação e de Higienópolis, dividem espaço:

uma bicicleta profissional, patins decorados com strass, um violão, um stéreo coberto por salto-altos, massageadores, hidratantes e fotografias eróticas. É o apartamento de Mayara Maemura, acompanhante de luxo e modelo, que contou para o Contraponto sua vida, ao nos receber com seus 1.80m de altura coberto por tatuagens coloridas, em um ambiente íntimo – com música de fundo tocada pelo rádio, que nos acompanhou durante toda a entrevista – e histórias, no mínimo, inte-ressantes.

Encontrar uma profissional do sexo que ceda entrevista a um jornal já é uma tarefa difícil. Através do Centro de Referência da Diversidade (CRD), um pequeno espaço a poucos quarteirões da casa de Mayara, conseguimos seu contato após sermos informadas que a matéria dificilmente sai-ria, devido ao grande número de prostitutas que desapareceram ou foram ameaçadas depois de cederem entrevistas a veículos de comunicação. Encontrar uma profissional de sexo, que seja trans-gênero, e aceite conversar com jornalistas é ainda mais difícil. Apesar disso, Mayara não se sentiu in-comodada em compartilhar histórias de violência, morte e suas próprias experiências sexuais.

Mayara não precisa mais do auxílio do CRD, frequenta o Centro para ajudar a aumentar o número de usuários, participando de algumas atividades, doando roupas, além de emprestar seu violão para aulas. “Eu sei que eu não preciso, mas tem muitas pessoas aí na rua que sim. Tem gente na mesma condição que eu que não tá nem aí”. Isso porque, hoje, ela se considera acompanhante de luxo, tendo uma qualidade de vida melhor do que a maior parte das profissionais do sexo, não apenas financeiramente, mas em relação à sua própria segurança: seleciona os clientes, não aten-de qualquer um depois da meia noite e trabalha poucas horas ao dia.

Assim, a vida de Mayara não se limita à sua profissão. Suas horas são dedicadas a diferentes hobbies: pratica ciclismo, é patinadora, gosta de cozinhar e de fotografar. Pretende inclusive ganhar dinheiro com a fotografia, de modo que não pre-cise mais se prostituir. “Não fiz aula, mas descobri o talento recentemente, quero fazer um curso e pegar um diploma bom, pra poder falar que sou fotógrafa”. Quanto a voltar a estudar, Mayara diz ter perdido a vontade, devido ao preconceito que sofria enquanto frequentava a escola “Não quero mais porque a sociedade não ajuda, não tem como, só se a gente for bem preparada psi-cologicamente”. Essa relação com a discriminação vem desde a infância.

A modelo em seu apartamento

Rep

rod

uçã

o

© J

úlia

Do

lce

Centro atende profissionais vulneráveis

O Centro de Referência da Diversidade (CRD) é um espaço dedicado ao atendimento de profissionais do sexo, gays, travestis, transexuais, portadores de HIV/Aids em situação de vulnerabilidade e risco social, além de moradores de rua. Localizado na Rua Major Sertório, 292/294, na Consolação, próximo ao bairro nobre de Higienópolis − no qual foi organizado pela associação de moradores, em 2011, um baixo assinado para que não fosse construída a estação de metrô da Linha 4-Amarela no local, pois isso atrairia ‘gente diferenciada’ − O CRD busca harmonizar a diversidade social e sexual, respeitando à autonomia dos usuários, oferecendo acolhimento e escuta especializada, promovendo orientação e serviços de assistência jurídica e de saúde física e psicológica.

Inaugurado em 2008 pela ONG Grupo Pela Vida/SP (pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids de São Paulo), o Centro tem sido mantido com recursos da Prefeitura e da União Europeia. Entre as atividades desenvolvidas pelo CRD estão o atendimento social e psicossocial, oficinas com ações direcionadas a geração de renda e emprego, inserção no mercado de trabalho, atendimento social nas ruas, participação em fóruns de desenvolvimento local do centro, além de espaço próprio de convivência, onde são promovidos eventos culturais e encontros comunitários.

Transexualidade e discriminação“Para as pessoas transexuais, travestis e transgêneros, a visibilidade é compulsória a certa altura de sua

vida; isso porque, ao contrário da orientação sexual, que pode ser ocultada pela mentira, omissão ou pelo armário, a identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que não se pode ocultar, como a cor da pele para os negros e negras. Por isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans são expulsos de casa, da escola, da família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é obrigatória para aquele cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma que não se pode ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior.” – Jean Wyllys

Números recentes publicados pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), estimam que 90% das travestis e transexuais do Brasil estão no mercado da prostituição. A discriminação profissional fica evidente no momento em que essas pessoas se candidatam a uma vaga. No dia 7 de novembro de 2013, uma matéria publicada no Estadão mostrou a história de transexuais com cursos superiores que não conseguem arrumar emprego devido ao preconceito com sua sexualidade. Dessa situação surgiu a iniciativa do site www.transempregos.com.br, criado há pouco mais de um mês, por Daniela Andrade, Márcia Rocha e Paulo Bevi-lacqua. O site apresenta ofertas de emprego voltadas para pessoas trans, travestis e crosdressers cadastradas no portal, oferecidas por empresas comprometidas com a diversidade sexual.

tá nA rotinA. já fui AgredidA, roubAdA, quAse me mAtArAm. tô

vivA por sorte

Page 19: Contraponto Nº 90

1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Infância – “Eu sofri muito na escola, por-que eu não sabia o que eu era, não sabia o que era isso – se era doença, se era tratável.”

Ainda bebê, Mayara era o xodó das tias. Brigavam para pegá-la no colo, ou até, quando já estava um pouco mais velha, para ver quem brin-caria de casinha com a criança. “Eu era a boneca da família. Eu não sabia o que era homem, o que era mulher”, comenta Mayara.

Foi criada sem o pai, e só descobriu sua identidade recentemente. Isso aconteceu por-que a mãe engravidou sem estarem casados. Naquela época, Mayara explica: “As famílias mudavam de cidade para uma não saber da outra, já que teve filho fora do casamento”. Portanto, apesar de ter nascido em Regente Feijó, pequena cidade próxima à Presidente Prudente, mudou-se, com poucos meses de idade, para Presidente Venceslau, onde passou a infância. “Minha mãe sempre me quis só pra ela, não quis dividir com a família do meu pai. Eu sofri, porque não tinha um pai”, diz. No entanto, nesse contexto, não foi apenas essa ausência que a abalou. “Em cidade pequena você precisa dos dois nomes da família pra po-der construir um nome, é assim que a sociedade funciona”. Logo, a falta do nome do pai era expressiva. De sua presença, também.

Documentos atualizados após a alteração de nome na Justiça

Ainda pequena começou a usar as roupas das tias escondido, enquanto trabalhavam. “Na escola eu tive sérios problemas, as pessoas queriam que eu fosse menino, mas eu tinha comporta-mento de menina”, afirma a modelo. Motivo de piada, só era amiga de garotas. Para ir ao banheiro, segurava até não ter ninguém no masculino. As piadas, com o tempo, tornaram-se surras, pedra-das. Da primeira vez que apanhou, não se esquece: “O filho do prefeito e os amigos dele perceberam minha transexualidade e se incomodaram, foi por isso que levei a primeira coça na saída da escola. E eles se gabavam por terem pais importantes, eu nem sabia quem era o meu”.

Conforme Mayara descobria sua sexu-alidade, era mais e mais excluída. Certa vez, o inspetor de sua escola a chamou para conversar, queria entender porque andava tão amuada e não realizava os exercícios propostos. A menina respondeu: “Como eu vou conseguir fazer alguma atividade com todo mundo na minha cabeça me discriminando e com os meninos jogando pedra? Me sinto como se fosse uma Jesus Crista, lá, cru-cificada”. A avó, preocupada com os conflitos da escola e com a falta de colegas meninos, levou-a a psicóloga. “Ela achava que o problema era eu. Mas não, o problema nunca fui eu. O problema eram as pessoas que se incomodavam comigo”, recorda.

Mesmo assim, lembra-se também de sentir culpa por ser como era, na época não sabia sequer se haviam pessoas como ela. Além disso, diz ter sido assustador: “Era um filme de terror e eu sonhava com um conto de fadas, em que eu seria aceita pelas pessoas”. Passou então a se aproximar de pessoas que a entendiam.

“Eu comecei a me revelar para o público, o que acabou me revelando para mim”, explica Mayara. Esse processo aconteceu conforme con-versava com essas pessoas que a compreendiam. Um enfermeiro particular que morava em uma vila próxima foi fundamental em sua vida, pois foi quem a ajudou na hormonização. Mentindo para a mãe, passou a comprar hormônios com prescrição desse amigo – dizia que os medicamen-tos eram antialérgicos. Naquele tempo, tinha 11 anos. “Meu peito começou a crescer, igual o de menina. Minha preocupação maior na época era essa. Quem tem peito participa”, conta.

Ao descobrir o processo de hormonização, já que os seios da menina começaram a crescer, sua mãe a rejeitara. Isso mudou, mas apenas com o passar do tempo. Um grande problema em casa eram dois tios: “Um que era muito machista, daque-les homens que não engole mesmo, e outro que é gay, não assumia e tinha recalque de mim que era assumida e mostrava para todo mundo”.

A hormonização, por si só, já era uma di-ficuldade tremenda. Os remédios causam efeitos colaterais, como náusea, enjoo e problemas na pele (furúnculos, por exemplo). Mayara ficara também com a pele mais sensível. “Só de me tocar, já me doía. O hormônio me doía tanto”, comenta. Acrescenta ainda: “Era muito distúrbio. Você tinha que estar preparada psicologicamente. Essa época não favorecia, então eu sofri. Eu sofri. Achava que eu ia morrer, que aquilo estava me matando”.

Assim, com 12 anos, depois de muito so-frimento, a garota já estava com seios formados. Quanto à mudança de sexo, explica: “Quando a gente é novinha, acha que vai atrapalhar. Não, é completamente o contrário, porque quando a gente se aceita como é, operada ou não, as outras pessoas te aceitam também”.

A partir daí sua vida profissional teve início, ela seria modelo. “O Kiko, um amigo, chegou e falou: ‘Ma, vai ter um evento na cidade e eu quero que você participe, vai ser o seu primeiro desfile’”. Para isso, pediram patrocínio para uma conhe-cida de Kiko, Solange M. No entanto, segundo Mayara, ela era casada com seu pai e não queria que a filha o conhecesse. Alegou, então, haver sido sequestrada por Mayara. “Ela me incriminou para a minha família, me marginalizou inventando esse sequestro, que foi arquivado. Ela não tinha nenhuma prova”, explica.

Com isso, a cidadezinha em que morava foi se tornando insuportável para a jovem garota. Apesar do arquivamento do processo, policiais, seguindo ordens de Solange, enquadravam-na injustamente. Mayara lamenta: “Batiam em mim, eu era obrigada a ir para a delegacia assinar por desacato. Como ia provar que era inocente? Com 12 anos? Sozinha?”.

Casa da Soraya – “É assim: quando a cafe-tina é boa, a gente chama de mãe, quando a cafe-tina é uó a gente chama pelo nome mesmo”.

Após as frustrações na carreira de modelo, Mayara deu início a vida da prostituição na peque-na cidade de Presidente Venceslau, no interior do estado de São Paulo. Exatamente porque lá havia sido criada, conhecendo pessoalmente o povo, foi se tornando popular profissionalmente entre o público das rádios, brincadeiras e festas, até que se viu obrigada a mudar de cidade.

procurei ficAr bem longe por que sAbiA que elA tinhA hiv, e tinhA medo do sAngue contAminAdo. mesmo depois que o chão foi limpo e

desinfetAdo, eu pAssAvA pulAndo pelo locAl, de tAnto medo

© J

úlia

Do

lce

© J

úlia

Do

lce

Page 20: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO20 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Mayara fugiu de casa aos 12 anos, devido ao preconceito que sofria por parte da população em geral e da própria família, em relação a transe-xualidade e as acusações de sequestro. Apanhou da polícia, foi barrada e presa diversas vezes, mas sua maior decepção foi não ter sido aceita pela mãe a princípio, “porque o resto a gente se vira, amigo você arruma, com o tempo vai mostrando quem você é. Eu sofria preconceito até quando queria visitar meus primos, e meus tios não dei-xavam porque não queriam gay e travesti na casa deles”. Ela se mudou para Presidente Prudente, a apenas uma hora de sua casa, mas a uma distância gigantesca da vida que levava até então.

O município possui hoje uma população cinco vezes maior do que a de Presidente Vences-lau, o suficiente para desconstruir famas e mer-gulhar uma pessoa estigmatizada no anonimato. Foi o que aconteceu com Mayara, que começou a trabalhar no bordel de Soraya, onde foi batizada com o nome pelo qual é chamada até hoje – pois naquela época as cafetinas escolhiam os novos no-mes das acompanhantes − formando aos poucos sua identidade. “Soraya me orientava em tudo, foi minha primeira mãe e primeira cafetina, eu a con-sidero como uma madrinha que ajudou a gente, que ensinou a me defender dos perigos”.

Presidente Prudente servia de passagem para as profissionais do sexo que vinham de fora para morar em São Paulo, pois a capital é considerada o local de encontro de acompanhantes do Brasil inteiro. Assim, Mayara conheceu meninas de diver-sos estados enquanto morava no interior, como a paraense Indiara, que se tornou uma de suas melho-res amigas. A índia de Belém era conhecida como uma das transexuais mais bonitas do país, antes de contrair HIV e falecer. Segundo Mayara, Indiara não se cuidava, negava tratamento médico por teimosia, mesmo nas recaídas. Na década de 90, os casos fatais de AIDS explodiram descontroladamente, e criaram em Mayara uma fobia pela doença.

Uma noite em que houve briga entre pros-titutas na casa da cafetina, Indiara foi esfaqueada e seu sangue jorrou pelo quarto que dividia com Mayara. “Procurei ficar bem longe por que sabia que ela tinha HIV, e tinha medo do sangue con-taminado. Mesmo depois que o chão foi limpo e desinfetado, eu passava pulando pelo local, de tanto medo. Isso mexeu muito comigo, Indiara foi uma amigona”.

As mortes por HIV hoje se equilibram com o número de assassinatos de profissionais do sexo, frequentemente cometidos pelos próprios clientes. Dessa forma Mayara perdeu outra amiga, Fran-cesca, que aos 19 anos foi morta por um homem enquanto o atendia. “Ela deve ter se recusado a fazer alguma coisa, porque a gente conhecia ela, não aprontava. Enquanto não fizerem nada, vai continuar, porque vai ser só mais uma travesti a menos pra sociedade, ‘menos um viado pra dar trabalho’”. Incomodada com as histórias fatais, Mayara pede para mudar de assunto. Hoje, ela pode contar nos dedos as amizades na profissão.

Indianópolis – Após muita insistência das meninas que passavam pela casa da Soraya – ga-rantindo que o potencial financeiro de se trabalhar em São Paulo era grande − Mayara resolveu se mudar, superando o temor que tinha pela cidade. O fato de ter morado com a conhecida cafetina de Presidente Prudente a salvou de várias situações de risco que correu quando chegou à capital, mas não foi suficiente para poupá-la de ameaças. Começou trabalhando na Avenida Indianópolis, ponto dispu-tado pelas prostitutas paulistanas (principalmente por ‘bonecas’, apelido dado às travestis e transexu-ais), onde a competição acirrada frequentemente resultava em violência.

Segundo Mayara, quando a cafetina é mais fraca e não se propõe a ajudar, suas meninas sofrem mais. Aconteceu com ela, que veio morar na casa de Leila Piaba, na Praça João Mendes. Arranjava brigas nos pontos com frequência, “com essas traveconas que não tem nada a perder, já que eu convivia no meio delas”. A situação mais marcante foi o desentendimento com a travesti Ju-rema, personagem que se tornou famosa na noite de São Paulo. “Eu tava em Indianópolis, toda loira, novinha, mestiça e bem produzida no salto alto, quando essa Jurema veio descendo a rua de lon-ge encrencando comigo, gritando ‘quem é você, viado?’. Já sabia que iam levar minhas sandálias e bolsa embora, além de cortar meu cabelo. Eu era uma ameaça pra elas. Não tô generalizando, mas sempre tem as bonecas barraqueiras”. Segundo Mayara, as travestis se diferenciam das transexuais, porque insistem em mostrar um comportamento masculino, enquanto as trans procuram parecer o mais “normal” possível.

Juízos à parte, Mayara afirma que realmen-te passava mais despercebida pelos policiais que rondavam a Avenida. “Eles gritavam ‘a gente vai bater e levar todas presas, vão subindo’, mas eu saía da linha das putas, fazia a garota e isso mexia com eles, então só me mandavam embora.” A vida de uma profissional do sexo é bem mais arriscada na rua, “Tá na rotina. Já fui agredida, roubada, quase me mataram. Tô viva por sorte”.

Hoje em dia, Mayara acredita que sua vida está muito melhor. Como acompanhante de luxo e modelo, trabalhando apenas para os proprietários dos sites onde suas fotos são divulgadas, a violência a qual é sujeita é consideravelmente menor. “O único risco agora é o de uma esposa preocupada com o marido pegar meu cartãozinho no bolso dele e me ligar. Já aconteceu várias vezes, eu me faço de desentendida para não atrapalhar o cara”.

Vida de Acompanhante – “Sou a Mayara Maemura durante o dia e a noite eu sou a Mayara profissional do sexo. Isso funciona melhor”.

A vida de prostituta e de acompanhante de luxo é diferente. Para Mayara, que além de acompanhante é modelo, os riscos que corre são menores, não há tanto preconceito e o perfil dos clientes não é o mesmo, os seus são “mais sofisti-cados e educados”. Além disso, ela consegue ter sua vida pessoal separada da profissão, algo que seu trabalho como acompanhante permite.

Ao fazer seu primeiro ensaio fotográfico sensual, recebeu a proposta para participar de um filme pornográfico, porém, não aceitou, pois reconhece que a sociedade não vê com os mesmos olhos uma cena de sexo na novela ou nu artístico e a pornografia, que ainda é muito discriminada. Mayara sempre temeu “sujar” seu nome, “e se precisasse mudá-lo ou trocar de profissão no futu-ro?” Assim, decidiu não se envolver. Ela também foi convidada pela diretora Cláudia Priscila para protagonizar um nu artístico no filme “Desbunde”, dirigido por Hilton Lacerda, conhecido pelo filme “Tatuagem”, que estreou recentemente. Mayara fez uma entrevista com Kiko Goifman para o SESC TV sobre sexualidade, ele se interessou pelo traba-lho dela e conversou com Cláudia, sua mulher.

Cerca de três a seis meses antes de um ensaio, o trabalho já começa, pois Mayara não tem patrocinador, é autônoma. Gastou seis mil reais em seu último ensaio fotográfico, com be-leza, produção e equipamentos, como a câmera profissional que teve que comprar. Ela tem que investir muito para conseguir o retorno que cobrirá suas despesas.

Normalmente ligam-se as trangêneros à prostituição, como se todas desejassem se pros-tituir e como se elas só soubessem trabalhar com

sexo. É claro que há diversos casos em que a pros-tituição é uma escolha, mas na maioria das vezes é o único caminho que elas têm a seguir, pois não têm oportunidades de trabalho. “Eu quero investir mais num público artístico, porque eu não vou ficar velha me prostituindo, não vou. É claro que certas coisas não dá pra gente concluir na vida, mas se a gente pensar em uma coisa que pode ser boa pra você, porque não não tentar, justo? Eu gosto muito de gastronomia, sei fazer comida japonesa, italiana, brasileira, do modo mais simples e fica aquela coisa maravilhosa. Meu público mesmo fala: ‘Abre um bistrozinho, vai dar certo!’”.

Mayara morou sete anos na Europa, onde era tratada como mulher, era respeitada e tinha direitos. Ela foi para a Itália em 2000, pois sofria muito preconceito aqui no Brasil, inclusive de seu pai e da família. Queria mostrar que não desejava dar trabalho para ninguém, só queria ser respei-tada e amada como é, sendo mulher. Além disso, algumas amigas chamavam-na para viajar, e ela acabou seguindo o conselho. “Lá tem menos risco, eles aprontam menos, tem menos morte, claro que pode acontecer, mas a gente vai mais pela onda das amigas, a gente vai e se sente mais segura”. Em 2006, voltou para resolver proble-mas envolvendo a paternidade e seu sobrenome e chegou até a recusar convites de agências de

dA onde meu dinheiro é sujo se eu trAbAlho e pAgo As minhAs

contAs?

Rep

rod

uçã

lia D

olc

e

Page 21: Contraponto Nº 90

21CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

modelos. Está bem hoje no Brasil, e segundo ela, só retornaria à Itália para visitar, não deseja voltar a ser prostituta por lá, mesmo sendo um lugar mais seguro e menos violento.

Casada não judicialmente há seis anos, Mayara se considera esposa por estar junto do marido há muito tempo, o que, para ela, conta mais do que muitos casamentos efetivados, que às vezes não passam de relações impostas por um papel. Sua relação é secreta, pois ela não quer prejudicar o marido em seu trabalho e não quer ser atrapalhada na sua profissão. Os dois não moram juntos e preferem que assim seja. No começo não era fácil, ele tinha ciúmes por ela ser acompa-nhante de luxo e ter clientes bonitos e novos. Mas aceitou e se acostumou com seu trabalho, pois Mayara é fiel a seu marido e não confunde sua vida pessoal com a profissional. “Ter uma relação séria? É você dedicar todo aquele sonho de uma verdadeira mulher naquele homem, você depositar tudo nele, e ter seus clientes só como profissional mesmo. Não confundir.”

Trabalhar como acompanhante de luxo é rentável, Mayara cobra R$ 250,00 por uma hora e meia, mas tem clientes que ficam por muitas horas e às vezes ela ganha até R$ 5.000,00 por serviço. Já chegou a receber R$ 15.000,00 de um senador para passar a noite. Ela atende mais

homens, entre eles japoneses, turcos, árabes, egípcios, italianos, americanos e brasileiros, esses três últimos são os mais frequentes. O beijo na boca é considerado muito íntimo e é algo que não está estipulado no trabalho de Mayara, por mais que alguns clientes peçam. Isso ilustra bem como a profissional do sexo tem sim controle sobre o seu próprio corpo e não está fadada a fazer o que não quer. “Eu já deixo bem claro: “olha amor, eu tenho namorado, eu beijo o meu namorado”. Mas eu beijo cliente sim, não vou mentir, mas eu seleciono muito bem”.

Ela já foi procurada por artistas, roqueiros internacionais, jogadores de futebol e afirma: “tenho muita sorte com senadores”. Mas guarda segredo e não revela quem são para não perder clientes. Já chegou a atender dez no mesmo dia, mas geralmente não passa de dois ou três. Ela prefere ter clientes fixos e de confiança a aceitar o maior número possível. Não tem uma clientela específica por ser transgênero e sente que ganha de acordo com sua beleza e trabalho. Mayara trabalha em sua própria casa e procura tratar os clientes da melhor maneira possível. “Como vo-cês podem ver eu sou um pouco bagunceira com acessórios, mas sou muito limpa com as minhas coisas, o tratamento é ótimo, meus clientes perce-bem isso. Tem amigas minhas que são relaxadas,

às vezes não tem toalhas pro cliente se enxugar. Eu conto com isso, meu atendimento é VIP, desde a toalha até a massagem”.

Mesmo sendo acompanhante e selecionan-do os clientes, Mayara não está imune a correr riscos. Há alguns meses atendeu um checo, que desconhecia sua transexualidade e a agrediu fisicamente devido à surpresa, deixando-a muito machucada por cerca de um mês, o que prejudicou seu trabalho. Mesmo em sua vida pessoal sofre com a violência: foi ao dentista fazer um canal e ele colocou cacos de resíduos velhos e até um parafuso no seu dente. Marcelo, o dentista que agora está sendo processado, disse que devolveria os R$ 800,00 que Mayara gastou com o trata-mento apenas após a polícia ser acionada por ela para resolver o caso. Mas passado algum tempo, ele disse que devolveria só metade do valor, pois o dinheiro dela era sujo. “Da onde meu dinheiro é sujo se eu trabalho e pago as minhas contas? Se fosse com alguém da sociedade o cara já tava na cadeia, mas como é com uma trans não.” Se a prostituição fosse uma profissão regularizada, Mayara não teria se prejudicado no mês que não pôde trabalhar devido à agressão sofrida, pois teria direitos trabalhistas. Ela paga R$ 400,00 por mês para o “Vitrine”, site do “Malícia”, onde seu perfil é exibido, além de gastar com os ensaios. E quando não pode trabalhar não recebe nada e continua tendo que pagar o valor ao site, pois não tem carteira de trabalho.

Mayara sofreu com o preconceito inúmeras vezes, já foi assediada e humilhada ao passar na porta da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, apesar de muitos alunos já terem ligado para ela querendo marcar horário. “Agora se fosse uma travesti e mexesse na porta com algum aluno, não ia chegar polícia e levar presa?”.

Antes de conseguir mudar seu nome ori-ginal pelo feminino, ela sofria com a constante atribuição ao sexo masculino. No Hospital Santa Cruz isso já ocorreu diversas vezes, sendo chama-da de propósito por seu antigo nome masculino. “Desde o passado a gente já tinha essa de colocar entre aspas o nome que deseja ser chamado, porque no momento que você paga imposto e sofre preconceito com seu nome, é a mesma coisa que uma pessoa da sociedade que se constrange com o nome. Ela não tem direito de mudar? Tem. Se não vai ficar passando constrangimento pelo resto da vida. Esse povo deveria ter mais cuidado, chegar mais preparado para lidar com a gente, só é fácil pra quem não passa por isso, ouve e deixa pra lá”.

Atualmente, é necessária intervenção do judiciário para que os travestis, transexuais e transgêneros possam alterar seus documentos. O Projeto de Lei ‘’João W Nery’’ (em homenagem ao primeiro transhomem brasilero), de autoria do deputado Jean Wyllys, está em trâmite e, se for aprovado, permitirá que a mudança de do-cumentos seja efetivada em qualquer cartório. Além disso, são exigidos laudos psicológicos para alteração de sexo e de nome, o que submete a pessoa a um longo processo de análise, para que um médico a considere ou não transexual. O PL também visa derrubar essa exigência, promovendo a despatologização da identidade de gênero.

Felizmente, mesmo antes da aprovação do PL, Mayara conseguiu trocar seus documentos. Há pouco tempo fez a alteração do nome em segredo de justiça com Douglas, advogado que trabalhava no CRD, e passou a ser, de fato, legal-mente considerada uma mulher em uma sociedade heteronormativa e preconceituosa.

bAtiAm em mim, eu erA obrigAdA A ir pArA A delegAciA AssinAr por desAcAto. como iA provAr que erA inocente? com 12 Anos? sozinhA?

Mayara Maemura

Rep

rod

uçã

o

© J

úlia

Do

lce

Page 22: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO22 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Por Gabriel collet

Ele acorda entre seis e sete horas da manhã em Guaianazes, onde mora; faz Yoga; come bem

e depois vai para a Avenida Paulista lá pelas 10h ou 11h. Começa seu trabalho na Consolação, vai para o MASP e depois para a Avenida Brigadeiro Luís Antônio; faz o que gosta e ainda ganha seu dinheiro. Esse é Pedro Augusto Liro Silva, 29 anos e atual músico de rua, mais especificamente da Avenida Paulista, zona central de São Paulo. A partir da história de vida de Pedro com a música, assim como seu dia a dia, é possível perceber men-sagens que os músicos tentam passar ao público, que quando aprecia seu trabalho, joga moedas em seus chapéus.

Era sábado à tarde quando esbarrei com Pedro em frente à Livraria Cultura no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Vários músicos de rua estavam dispersos pela calçada, mas ele estava exatamente na sua hora de “repouso”, guardando seus instrumentos e disposto a dar uma entrevista. O músico toca no local há três anos e explica como a atividade musical revolucionou sua vida, e o bem que ela traz para ele assim como para qualquer ser humano.

Pedro tem contato com a música desde menino. Vindo de família cristã, seus pais foram incentivadores desse processo. Tudo começou em sua infância, quando viu seu pai tocando sentado em uma cadeira embaixo do “baneneirão” – nome dado à árvore da casa onde moravam em Minas Gerais – e começou a estudar também, tendo o ca-vaquinho como seu primeiro instrumento. Depois disso seu pai lhe deu uma guitarrinha de plástico, e desde então não parou mais de tocar. Come-çou no conservatório Neuma Ansam Bler, em Londrina (PR), onde estudou música antiga e se apresentou em sua primeira orquestra com 13 anos na cidade.

De Londrina a São Paulo, de segurança a músico – Pedro veio a São Paulo para ajudar sua sogra que estava doente e faleceu. Logo depois se separou de sua esposa e essa separação o fez esco-lher a música definitivamente como profissão. Em São Paulo o atual músico foi de tudo: cozinheiro, auxiliar de serviços gerais e até vigilante em aero-porto, seu último emprego. Para ele, a experiência dessa radical mudança de vida foi ótima. “Faço o que gosto e ainda ganho dinheiro, vir pra rua me abriu vários leques”, diz.

Pedro conheceu muitas pessoas e graças a essa expansão está inserido em dois grupos de jazz atualmente: o Sahaja Jazz, liderado pelo ame-ricano conhecido pelas ruas de São Paulo como Hahert, e o Improvise; além de estar participando da gravação de dois CDs de blues e jazz, ainda sem data para lançamento.

Com um traje leve, solto, um chapéu simples e frutas na mala, Pedro tenta ao máximo levar uma vida saudável e limpa na metrópole. Mora com o ir-mão e parceiro nas ruas Sócrates, de 30 anos, músico que toca sax e flauta, mas trabalha como apicultor. Os dois formam a dupla Os Irmãos Sócrates e, quan-do podem, tocam juntos na rua.

Músicos de rua oferecem perspectivas muito mais ricas do que sugerem os estereótipos

CONTRAPONTO

sinfonia e Mpb nas CalçaDas De saMpa

Pedro Liro

Pedro Liro toca em frente ao Conjunto Nacional, na Avenida Paulista

© F

oto

s: G

abri

el C

olle

t

fAço o que gosto e

AindA gAnho dinheiro, vir

prA ruA me Abriu vários

leques

Page 23: Contraponto Nº 90

23CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

© F

oto

s: G

abri

el C

olle

t

Do nascer do sol à lua, o dia é tocando na rua – Em sua rotina o músico permanece no Conjunto Nacional, pela manhã até às 16h, faz uma pequena pausa, se alimenta sempre de frutas e logo depois caminha para o Starbucks próximo ao Parque Trianon. Seu último ponto do dia é o Fran’s Café, esquina da Avenida Paulista com a Rua Teixeira da Silva.

O músico prefere lugares com restaurantes ou lanchonetes, pois as pessoas podem sentar, comer e escutar sua música relaxadas, fora da correria. A viagem de volta para Guaianazes é feita por volta das 20h, e ao chegar em casa Pe-dro ainda da aula a oito alunos que conheceu na rua. Algumas vezes vai à casa dos próprios alunos, outros vão a sua.

Aos finais de semana Pedro só toca à noite, mas confessa que o cachê é bem maior do que durante os dias da semana. Em relação a seu sustento e contas a pagar, Pedro afirma com convicção que ganha tocando na rua o suficiente para se sustentar, pagar suas contas, viajar e fazer o que gosta. “Tocar na rua dá mais dinheiro do que as pessoas pensam”.

Durante sua experiência, o saxofonista re-lembra que entre os séculos XII e XIII os músicos de rua levavam não só a música, mas também poesia

para as pessoas. Quando nos pegamos pensando o porquê de alguém se atrever a encostar-se às calçadas e tocar um instrumento além da ques-tão financeira, podemos perceber agora que o “multimúsico” quer passar uma emoção para o público, seja a emoção de um passado, de uma sensação, de um país ou de alguém especial. A música tem essa função: despertar esse sentimento que, de acordo com Pedro, temos que cultivar nas pessoas.

Pedro define a Avenida Paulista como “cosmopolita” por receber todas as etnias, e que isso é ótimo, uma vez que as pessoas de outras culturas observam e apreciam a música brasileira. Acredita que o povo brasi-leiro tem referência e apego com a bossa nova e acredita que a música brasileira é marcada pelo violão e um banco, mas que infelizmente hoje vem perdendo muitos valores, como a poesia, a letra.

Para ele, Garota de Ipanema marcou o Brasil, a Bossa Nova e a MPB são referências da chamada “boa música brasileira” para o músico, pois trazem uma poesia de época, uma letra de história, com essência e sentimento em seus versos. As musicas favoritas do músico são Carinhoso de Pixinguinha e A onda de Tom

Jobim. Seu maior ídolo chama-se Elimar Plínio Machado, músico da Universidade Estadual de Londrina.

Experiências de um músico de rua – “Quem não é visto não é lembrado”. Para o mú-sico, sua experiência na Consolação é incrível, pois trouxe a ele a oportunidade de conhecer outras pessoas também envolvidas com música de rua. Ao conhecer essas pessoas entrou para esses dois grupos de jazz e conheceu em contato com seus atuais alunos.

Alaúde árabe, guitarra elétrica, violão, flauta transversal, cavaquinho e gaita são os ins-trumentos que Pedro tem domínio no dia a dia. Para ele, um músico deve escutar muito, estar bem com ele mesmo antes de todos e passar o que eles têm de bom para as pessoas através do instrumento. Acredita que todos podem fazer o que querem e o que gostam e que fazer o bem com pequenas atitudes faz de você um ser huma-no melhor todo dia. Para ele a música é um ótimo caminho para proporcionar essa mudança. Em seus planos futuros o músico deseja fazer bases de bossa nova e ter mais músicas próprias. Já deixou oportunidades passarem. Quando perguntado aonde ele quer chegar sendo músico de rua, Pedro

tocAr nA ruA dá mAis dinheiro do que As pessoAs pensAm

(pedro liro)

Page 24: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO24 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

percebeu que adora dar aula e que tem grandes objetivos nesse âmbito, principalmente dentro do jazz. Também quer conhecer outros espaços. A rua é um estudo.

Adesão do Público – Para o músico o público é demais. As crianças principalmente: elas param, olham com atenção, puxam os pais e mesmo não sabendo qual a música que esta tocando e do que ela se trata eles ficam fascinados. Elas funcionam como um termô-metro se você esta saindo bem ou não. Muitos idosos param na avenida e começam a cantar as músicas, com certeza lembrando seu tem-po, suas histórias. “Essa sensação é proposital dos músicos de rua aos pedestres”, afirma. Já para os moradores de rua, suas músicas e as de outros músicos funcionam como remédio, afinal, música é um remédio para os próprios artistas que a fazem, segundo Pedro. A música acalma as pessoas.

Músico de rua ou pedinte? – Para mui-tos, a vida de um musico de rua é solitária. Para o artista, o músico tenta encontrar no publico uma falta dentro dele mesmo, mas não condiz exatamente com a ausência da família. A música é um remédio, faz um papel terapêutico com os músicos, ela preenche um certo vazio no qual você se descobre. Ela traz alegria, mas ao mesmo tempo tristeza.

Para Pedro há um grande desinteresse do governo nos músicos de rua. O ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, via os músicos de rua como “pedintes”. Criou uma lei, na qual oficializa o pe-rímetro nos locais públicos nos quais os músicos podem trabalhar. Tocar nas estações de trem e metrô, por exemplo, são um desafio: em alguns metrôs os expulsam, “todos devem ficar atrás da chamada faixa branca”.

Do governo, os músicos e a arte – Pe-dro acredita que a política brasileira tem um desinteresse em “arte geral”, pois a arte faz o ser humano pensar e refletir, mas o governo não quer essa reflexão. Sobre a questão da arte e o ser humano, o músico faz referência a um psicólogo que relaciona a arte estando presente nas revolu-ções da sociedade e do ser humano ao longo da história. Pedro acha que o governo não quer que a população dissemine o conhecimento, pois só se importa com lucro, dinheiro e posse.

Ele também acredita que as grandes gravadoras e a mídia condicionam as pessoas a gostarem de músicas que não fazem bem a elas. E que a falta de espaço para os músicos de rua, que têm mais poesia na música, somada com o desinteresse do governo torna-se um empecilho para essa expansão.

Atualmente os músicos têm a Associação dos Músicos de São Paulo, na qual defendem rigorosamente seus direitos e o lançamento de projetos, além de novos espaços para quem tra-balha neste meio e maior divulgação nos eventos dos mesmos.

O sindicato é na Av. Ipiranga, 324 blo-co C no 6º andar. Pelo site www.sindmussp.com.br é possível acompanhar as novas divul-gações dos eventos. Já a dupla de nome Os Irmãos Sócrates tem sua própria pagina no facebook: www.facebook.com/irmaosliro.silva, no qual divulgam suas estreias, alguns trabalhos e parcerias.

© F

oto

s: G

abri

el C

olle

t

Os irmãos Sócrates: Pedro e Sócrates tocando juntos

Page 25: Contraponto Nº 90

25CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

músico de ruA ou pedinte? – pArA muitos, A vidA de um músico de ruA é solitáriA. pArA o ArtistA, o músico tentA encontrAr no público umA fAltA dentro dele mesmo, mAs

não condiz exAtAmente com A AusênciA dA fAmíliA. A músicA é um remédio, fAz um pApel terApêutico com os músicos, elA preenche um certo vAzio no quAl você se descobre.

elA trAz AlegriA, mAs Ao mesmo tempo tristezA.

Artistas de rua

Foto

s: R

epro

du

ção

Page 26: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO26 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

CONTRAPONTO

ensaiofotográficoCONTRAPONTO

ensaio fotográfico

Por isabella amaral

(um pedaço de) são paulo

Pensar na cara de São Paulo é difícil. A cidade é muito mais do que a

Avenida Paulista, os pontos famosos do Centro e os engarrafamentos. O fato repetido à exaustão de que esta é uma terra formada por todos os povos está aí para mostrar que o número de belezas em São Paulo é tão grande quanto o de habitantes. Um passeio com o olhar atento pelo Parque Ibi-rapuera ou a Avenida Paulista numa tarde de domingo revela que paulis-tanos são muito mais do que pessoas estressadas, eles querem se divertir. O bairro do Bixiga, ocupado por cantinas italianas e a feira de antiguidades, tem muito a ensinar sobre simpatia, tesou-ros, relíquias e tradição.

Contudo, nada supera os detalhes do centro da cidade. É comum ouvir clichês como “Isso aqui está completa-mente abandonado” ao circular pelas redondezas do Theatro Municipal, por exemplo, quando na verdade o que se mostra é um espaço em recuperação, cada dia mais charmoso. Dos prédios imensos que cercam o Viaduto Sta. Ifigênia, passando pelos desenhos que gritam nas paredes e os becos escon-didos, até a estátua de Mãe Preta no Largo do Paissandu, os detalhes do Centro de São Paulo marcam a identi-dade da cidade, tão complexa e forte quanto o povo que a construiu.

Rep

rod

uçã

oR

epro

du

ção

© F

oto

s: Is

abel

la A

mar

al

Page 27: Contraponto Nº 90

27CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

(um pedaço de) são paulo

© F

oto

s: Is

abel

la A

mar

al

Page 28: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO28 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Por Bia avila*Taróloga profissional conta sua trajetória no mundo esotérico

CONTRAPONTO

está tuDo nas Cartas

Luciana Nahas

Poucos oráculos são tão antigos e admirados quanto o tarô. Sua origem é tão misteriosa

quanto seu funcionamento: as cartas mais antigas, pintadas à mão, são do século XV. Acredita-se que o tarô chegou à Europa no século anterior, leva-do pelos ciganos da Ásia Central. Entretanto, foi apenas em 1781 que as cartas se tornaram parte do mundo místico, a partir da publicação de um estudo de Antoine Court Gébelin, pastor protes-tante suíço. Em “Monde primif, anlysé et comparé avec le monde moderne” (O mundo primitivo, ana-lisado e comparado ao mundo moderno), Gébelin explicou o significado de cada Arcano e afirmou que cada naipe das cartas representava os grupos sociais. Com a falta de argumentos racionais para sustentar suas teorias, principalmente a cerca da origem do tarô, suas ideias foram consideradas absurdas por historiadores e descartadas. Apesar disso, Gébelin foi responsável por dar visibilidade ao Tarô, visto como um mero “jogo divertido” para a maioria da população. Sua obra foi re-quisitada pela família real francesa (que pediu 100 cópias), pelo enciclopedista Diderot e outras figuras importantes como d’Alembert e Benjamin Franklin. E, desde então, as cartas de tarô foram associadas ao misticismo e à magia.

Os profissionais ligados à leitura de car-tas, muitas vezes, são tão misteriosos quanto o baralho. No imaginário popular, são mulheres, com olhos fortemente maquiados, envoltas em xales, turbantes, anéis e colares peculiares. Em um quarto fracamente iluminado, e em frente a uma bola de cristal, essa mulher será capaz de lhe dizer tudo o que vai acontecer nas próximas semanas, em uma simples jogada de cartas. São fechadas, enigmáticas, e convivem com o eterno estigma de charlatonas.

Luciana Milanov Nahas passa longe de tais esteriótipos. Quando chegou ao café da livraria Millenium, onde combinamos a entrevista, foi extremamente simpática. “Desculpa a demora!”, pediu, embora estivesse apenas alguns minutos atrasada. De sorriso fácil, cabelos ruivos bem cacheados e olhos verdes, Luciana inspirava con-fiança. Aberta, respondeu cada pergunta olhando nos olhos. Mostrou seu lado prestativo quando o meu gravador parou de funcionar. “Olha, eu gravo aqui com o meu celular, se der problema de novo eu te passo o áudio de algum jeito”, ofereceu.

Luciana não é casada e não tem filhos. No tempo livre, gosta de fotografar, viajar, ler e praticar yoga. Entre os livros preferidos, estão “Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, e “Oráculo de Luna”, de Frédéric Lenoir. O segundo, para ela, foi um “divisor de águas”. “O livro fala justamente sobre livre arbítrio e destino, e é todo relacionado a astrologia. Senti muita conexão com o tema”, afirma. Escorpiana, acredita que puxou muitas características do signo. “Ter intuição, perceber o outro facilmente, captar coisas ocultas, ter espírito investigativo. Além disso, a intensidade e profundidade, gosto de mergulhar a fundo nas minhas próprias questões. A capacidade de se transformar, de começar do zero - como fiz com a minha profissão - é algo muito escorpiônico

também”, conclui. Filha de um administrador de empresas e de uma artista plástica, Luciana nasceu em São Paulo e passou parte da adolescência em Piracicaba. Fez três anos de Economia na Faap, abandonou o curso e se formou em Hotelaria na Faculdade Hebraica Renascença.

Bruxinha – “Sempre tive interesses em questões místicas. Tinha uma intuição muito agu-çada, tanto é que meus amigos me chamavam bruxinha. Quando eu era mais nova, uma amiga me deu um tarô e comecei a estudar, peguei li-vros emprestados e depois li para meus amigos”, conta. Quando começou a ler a sorte para os amigos, Luciana sentiu que estavam ficando muito dependentes de suas consultas. “Amigas minhas não saíam com algum cara sem que eu tirasse as cartas”, relata, rindo. Sentindo-se sobrecarregada, sem conseguir controlar o limite dos amigos, “ficou de mal com o tarô” e prometeu a si mesma que não ia mais abrir as cartas para ninguém. Após trabalhar mais de 15 anos como como executiva de gerência e marketing de hotéis de luxo, largou a carreira de executiva no mundo corporativo para montar uma loja virtual e se dedicar aos estudos de astrologia e tarologia, adotando o nome Luna para separar sua vida corporativa da esotérica. “Quando para montei minha loja virtual, me vi autônoma e com tempo para me dedicar mais profundamente aos estudos astrológicos. O tarô veio de uma forma muito natural, não houve uma interrupção de algo

para se começar com isso. Sempre meus amigos estimularam esse lado místico, foram justamente as amigas que começaram a indicar clientes”, conta.

Apenas há alguns anos Luna retomou seus estudos, agora com o objetivo de fazer cursos profissionalizantes. “Ao longo da minha vida, não ouvi minha alma desde sempre. Não adianta ocupar um cargo, ter uma carreira e um nome se você nao está fazendo o que a sua alma pede. Para mim, foi muito sem querer, eu acho que eu já vinha trabalhando a minha alma, não foi forçado, pensado. Era um dom que eu já tinha. E não to falando em vidência, e sim de uma tendência. Se for ver, meu próprio mapa astral mostra um poder de intuição maior, uma vontade de ajudar o outro a tomar consciência de si próprio principalmente”, explica.

Fez o curso do baralho de Marselha – o tarô mais clássico – durante seis meses e também se formou no baralho Mitológico, após um ano de curso. Quando tinha terminado os cursos, uma amiga, Marcela, avisou que tinha conseguido uma cliente para ela atender por skype. “Eu sentia que não estava preparada, mas essa amiga falou que já era tarde, e que agora eu não podia fazer feio e desmarcar… Então, fui praticamente ‘obrigada’ a começar minha carreira”, conta. Depois da pri-meira cliente, não teve tempo para pensar, pois começou a receber indicações e, desde então, não parou mais. Há um ano e meio, se dedica integralmente à tarologia e à astrologia.

Para a taróloga, o significado das cartas é muito profundo.

“Usar o tarô somente como um instrumento oracular é usar o

mínimo que ele pode te oferecer”

© B

ia A

vila

não AdiAntA ocupAr um cArgo, ter umA cArreirA e um nome se você nAo está fAzendo o que A

suA AlmA pede

Page 29: Contraponto Nº 90

29CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

© B

ia A

vila

Para atender os clientes de tarô, Luna usa a mandala astrológica, tiragem que permi-te conhecer vários campos da vida do cliente, como profissional, espiritual, amoroso. São tiradas 12 cartas do baralho, dispostas em uma roda, e cada uma representará um assunto em específico sobre aquela pessoa naquele momento, dependendo do lugar que ocupar nesse círculo. “Ela fala de todos os aspectos da vida. A ideia é que a pessoa venha obter clareza em suas questões porque o baralho sempre vai dar respostas. Ele pode apontar um problema, mas ele também vai dar uma solução. E a pes-soa pode mudar a jogada inteira saindo dali porque, se ela ouvir o conselho do tarô e agir, ele deixa de ser um oráculo determinista. Ela acaba usando o potencial do tarô para ajudá-la a tomar decisões”, explica.

O oráculo auxiliou a cantora Amabile Ba-rel, 24 anos, a tomar uma importante decisão. “A primeira vez que tirei tarô estava um pouco receosa, pois tinha medo de ouvir previsões que não estivesse preparada. Talvez minha maior ex-pectativa na consulta era saber se eu estava indo pelo caminho certo nas minhas escolhas feitas naquele momento”, explica. Na época, pensava em mudar de carreira, mas ainda não tinha certe-za de sua decisão. Quando as cartas apontaram que aconteceriam grandes mudanças quanto a profissão, a jovem ficou mais segura em relação a suas escolhas.

A “Jornada de Autoconhecimento” foi outro modo o qual Luna encontrou de ajudar seus clientes. “Em um dos meus momentos de ócio criativo, eu comecei a perceber que, em muitas consultas, as pessoas estão deficientes em autoco-nhecimento e em desenvolver intuição. Na própria jogada delas, o tarô pede para ouvir o guia interior dela, para se conectar com algo superior, que não seja necessariamente uma religião” explica. Os arcanos maiores começam com a carta do Louco (a carta 0) e terminam com a do Mundo. As cartas do meio são a jornada que representa a evolução desse processo, nosso amadurecimento: o Louco seria o início de um ciclo, e o Mundo a realização plena dentro daquele ciclo. Ao longo de nossa vida, temos várias jornadas do Louco, se iniciamos um trabalho novo, por exemplo.

“Essa jornada de autoconhecimento seria um trabalho de quatro dias. Na primeira consulta a pessoa tiraria a carta que representa o momento da jornada dela - que não necessariamente vai começar com o Louco e terminar com o Mundo. O objetivo é ver em que processo da jornada ela está e onde ela precisa chegar naquele momento. E, ao longo disso, vamos trabalhando com os arcanos que tem no meio. Eu sou apenas uma facilitadora desse processo de autoconhecimento”, explica.

Outro instrumento de autoconhecimento que Luna considera essencial é o mapa astral. Há dois mapas que prepara: o natal e o previsional. O mapa astral natal é o como um manual de

instruções: onde está seu sol é onde estão suas maiores realizações, onde está sua lua são as coisas que gosta de fazer e onde você obtém segurança, por exemplo. “O seu mapa explica como você se expressa, suas grandes dificuldades, limitações. O mapa é um grande instrumento de autoco-nhecimento, porque não adianta você querer ser uma pessoa diferente daquilo que você é. Você vai melhorar suas limitações com as suas próprias potencialidades, não tentando fazer com que as limitações virem potencialidades”, explica.

Já o mapa astral previsional vai falar de uma previsão de um ano exatamente, além de abor-dar um ano e meio atrás da consulta, captando energias que a pessoa já vem vivendo há um ano e meio. Este mapa fala dos trânsitos planetários que estão indo de encontro com os planetas do seu mapa, então ele fala de tendências que po-dem acontecer na sua vida. Com ele, é possível administrar um pouco melhor as consequências desses trânsitos. “Outro dia, eu tinha um cliente pra atender mapa astral e previsional. Quando ele chegou, falou: ‘eu preciso que você leia tudo em uma hora, porque eu marquei um cliente e ainda tenho que depois demitir um funcionário’. Depois que começamos o previsional, perguntei: ‘tem alguma ação trabalhista?’ ele disse que não. Falei que era melhor avisar o cliente que ele ia atrasar e não demitir o funcionário naquele dia, porque o previsional apontava processos na justiça com relação à ação trabalhista. Então, sabendo que

o meu intuito como tArólogA e AstrólogA é

levAr um instrumento de Autoconhecimento pArA As

pessoAs

pArA ler um tArô, não podemos ter ApenAs intuição, tem que ter técnicA, conhecimento,

pArA sAber o que você está fAzendo, sejA esse

conhecimento de umA formAção ou de herAnçA fAmiliAr

Café da Livraria Millenium, localizada em Moema, onde Luna

atende seus clientes

O Tarô Mitológico que Luna usa foi presente de uma amiga

© B

ia A

vila

Page 30: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO�0 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

a pessoa ia processar, o melhor era não chegar correndo e manda embora, mas sim esperar e levantar a documentação dela, ver se estava tudo em ordem com ela para as consequências serem menos drásticas”, conta.

Agora que se dedica exclusivamente a isso, Luna atende cerca de cinco clientes por semana. Como não gosta de misturar energias na hora de ler as cartas, prefere um ambiente neutro. “Atendo na livraria Millenium, no Espaço Evoé e por Skype. Se atendesse em minha casa, ia misturar muito as energias, porque acabo trazendo para dentro de minha casa as questões do meu cliente. Um lugar neutro é sempre melhor”, opina. Para fazer a lei-tura de cartas, cobra R$152,00, e para os mapas astrais R$180,00. “No ano que vem vou precisar fazer um reajuste, porque estou cobrando abaixo da média e meus amigos do meio estão brigando comigo”, conta. Neste final de ano, está com a agenda cheia: “é a época em que mais aparecem clientes, todo mundo quer fazer um balanço e um fechamento de 2013”.

Quanto às questões mais frequentes, Luna aponta: trabalho e área afetiva. “Atendo mais mulheres, mas tenho muitos clientes homens. E tenho ficado surpresa, por incrível que pareça, os homens também tem questões afetivas. Muitos vão com esse intuito”, brinca. Seus clientes sempre retornam, além de indicarem a taróloga para ou-tras pessoas. “Por esse retorno, tenho certeza que minha consulta já ajudou meus clientes. Muitos me ligam, contando o que aconteceu. Outros chegam na consulta muito ansiosos e, ao término, me dizem o quanto foi bom e o quanto estão alivia-dos”, afirma. Amabile, que mês passado realizou sua segunda consulta, afirmou que a profissional a surpreendeu. “Como já a conhecia antes de me consultar, já tinha excelente referência dela como pessoa. Como taróloga, ela me impressionou mais ainda, pois muitas coisas do que eu estava passando saíram nas cartas, e fez com que eu tivesse uma visão mais ampla de tudo que estava acontecendo comigo”, conta.

E por que as pessoas querem tanto saber sobre o futuro? “Então, acho que isso sempre foi muito atraente, saber o futuro, conhecer a si mesmo, em todas as idades. Todo mundo tem essa curiosidade: sempre foi e sempre vai ser assim”, Luna responde. A profissional, no entanto, aponta uma mudança: “tenho ficado muito contente com o fato que as pessoas estão buscando autoconhe-cimento. O meu intuito como taróloga e astróloga é levar um instrumento de autoconhecimento para as pessoas, autoconsciência. Pelos meus clientes, vejo que eles tem muito essa vontade de ter essa clareza e aprender mesmo do que simplesmente saber o que vai acontecer no futuro”. Quando percebe que o cliente quer fazer consultas muito seguidas, Luna se recusa a atender. “Isso significa que ele está usando o tarô como um instrumento de apoio, uma muleta, o que ele não é. Não atendo mesmo”, afirma.

Essa postura inclusive ajudou a profissio-nal a trabalhar com as cartas sem provocar essa dependência que seus amigos tinham quando começou a estudar tarologia. “O significado dos arcanos é muito profundo, se trata de arquétipos muito profundos. Usar o tarô somente como um instrumento oracular é usar o mínimo que ele pode te oferecer”, explica. Outro fator que a ajudou a estabelecer tais limites foi começar a cobrar por consulta. “Um guru, amigo meu, falou que nesse trabalho, onde você fala da vida de uma pessoa, você está entrando no mundo dela, especificamen-te em uma parte que ela não consegue acessar sozinha, no carma dessa pessoa. Quando ela te recompensa materialmente, é como se ela esti-vesse dando aval para entrar nesse carma, e você

fica livre dele”, explica. Quando não há recom-pensa material, a taróloga ou cartomante acaba assumindo os problemas e o carma do cliente, ou seja, se responsabilizando por aquilo que ele faz ou deixa de fazer. “Quando a pessoa paga, sua responsabilidade acabou, porque fica claro que ela autorizou você a fazer esse movimento. isso fez muito sentido para mim e pode ser que seja uma das questões do limite, porque estabelece um limite profissional mesmo”, conclui.

Luna também estabeleceu alguns limites para ler para amigos e familiares. “Não leio para a família, já li e me arrependi. É diferente como o familiar lida com você, ele não está vê um profis-sional interpretando o que saiu na jogada, mas sim um parente se metendo nos assuntos dele”, expli-ca. Para alguns amigos muito íntimos, também não marca consulta. “Se eu sei muito sobre as questões íntimas daquele amigo e tenho opiniões pessoais, prefiro não tirar as cartas, porque minha opinião pessoal pode se misturar com aquela jogada”. Para outros amigos, atende normalmente, com hora marcada, nos mesmos lugares que costuma atender e cobra os mesmos valores.

Para Luna, cada jogada nova é um novo aprendizado. “Um tempo depois de cada con-sulta, já não me lembro o que falei em detalhes, me lembro do tema de cada cliente, mas sem aprofundamentos e isso é muito bom, pois o profissional não pode se envolver com as questões

dos clientes. Muitos casos me marcam, pois em algum momento de cada jogada, algo tem a ver comigo. É como se alguma mensagem de algum cliente também servisse para mim. Eu aprendo com todas as jogadas um pouquinho mais sobre mim. Deve ser por isso que não tenho necessidade de abrir as cartas para mim mesma, pois todos os dias eu tenho algumas respostas fragmentadas para questões presentes”, responde. Às vezes a taróloga tira as cartas para si para estudar e avaliar novas jogadas, mas não faz isso de forma oracular. Quando tem alguma questão de muito envolvimento pessoal, procura outros profissionais para ler as cartas. Quando me mostrei surpresa com isso, respondeu: “é normal entre a gente. Quando estou muito envolvida afetivamente, é como se tivesse um bloqueio, e vou procurar meus professores”.

Sobre algum caso que a marcou especifi-camente, Luna contou quando a amiga de uma amiga dela teve sua cachorra roubada de um Pet Shop. “Fiquei sabendo disso através das redes so-ciais. Me senti muito solidária e por alguma razão, essa história mexeu comigo. Não resisti e tirei o tarô, mesmo sem conhecer a menina”, confessa. Nas cartas, apareceu que o animal estava bem, sendo bem tratado, porém escondido e que pe-diriam o resgate. “Entrei em contato com a dona para dizer isso. Quando estava escrevendo, achei leviano de minha parte dar esse detalhe do resgate

Jornada dos LoucosO Tarô de Marselha é considerado um dos baralhos mais clássicos e conhecidos. Ele é um padrão, a par-

tir do qual todos os outros tarôs derivam. De origem francesa, o baralho é dividido em dois grupos: são 22 Arcanos Maiores e 56 Menores, totalizando 78 cartas. Os Arcanos Menores são divididos em quatro naipes: paus, espadas, copas, e ouros. Cada um dos naipes tem 13 cartas, que contam de Ás (1) ao 10, além das três figuras da corte: Valete, Rainha e Rei, como o baralho comum. Já os Arcanos Maiores são 21 cartas nume-radas e uma sem numeração, que é a carta do Louco. Esses arcanos contam a história de um ciclo de vida. O Louco representa o início desse ciclo, o começo de uma nova jornada. A imagem da carta representa um jovem caminhando, sempre olhando de forma despreocupada para frente. Ela representa espontaneidade, impulsividade e, principalmente, a experiência de ultrapassar limites. O último Arcano Maior é o Mundo, a carta XXI. Ela representa o êxito e a plenitude que se alcança no fim de um ciclo. A personagem da carta normalmente está flutuando, e é rodeada por símbolos que representam o equilíbro entre o plano celeste, o físico, e espiritual.

eu gosto de estAr com As pessoAs, de olhAr pArA o outro, entender A AlmA dAquele que está nA minhA frente, ter umA conexão de AlmA com A

outrA pessoA

Rep

rod

uçã

o“Sempre tive interesses em questões mís-ticas. Tinha uma intuição muito aguçada, tanto é que meus amigos me chamavam bruxinha”

A carta do Louco marca o início de um novo ciclo; a do Mundo, o fim

© B

ia A

vila

Page 31: Contraponto Nº 90

�1CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

para uma pessoa que está passando por isso e não me pediu para olhar as cartas. Omiti essa parte”. A dona da cachorra respondeu agradecendo, pois estava perdendo a esperança. Alguns dias depois, o animal foi recuperado, através de uma solicitação de resgate.

O dia-a-dia de Luna é praticamente voltado para o tarô. “A primeira coisa que eu faço quando eu acordo é alimentar o Facebook com alguma jogada de tarô. Depois, tenho que marcar as consultas na agenda, fazer os mapas astrais antes dos atendimentos, frequento aulas de astrologia terças e quintas. Além disso,os amigos também acabando sendo amigos desse meio... Estou imersa nesse mundo o tempo todo”, conta.

Para aprimorar seu lado profissional, Luna nunca para de estudar o tarô. Mesmo que não faça cursos voltados para a área no momento, sempre lê algum livro diferente, tenta fazer uma abordagem diferente sobre as cartas. “É um universo que não se acaba”. Para ser uma boa profissional, além de estudo, é necessário ser imparcial durante a consulta - ler exatamente o que as cartas estão dizendo, sem mentir ou omitir nada. “O importante é saber se colocar, falar o que é preciso falar da melhor maneira possível”, aconselha. “A gente tem que estar muito bem sempre. Se eu tiver uma enxaqueca, por exemplo, eu desmarco as consultas do meu dia. Para ler um tarô, não podemos ter apenas intuição, tem que

ter técnica, conhecimento, para saber o que você está fazendo, seja esse conhecimento de uma formação ou de herança familiar”, explica.

Ainda há espaço no mercado de trabalho, mas apenas para os bons profissionais. “Os clientes estão mais criteriosos com relação ao profissional, porque hoje existe uma variedade de pessoas e há a possibilidade de escolher e saber em quem confiar”, explica. Por mais que a pessoa esteja ali para buscar ajuda, para Luna, ela própria sabe se aquilo que o tarólogo diz é verdade ou não, mesmo que de forma inconsciente. “É interessante porque atendo muitas pessoas que, depois do atendimento, falam que consultaram outros profissionais e que eles falaram coisas totalmente diferentes e acham que eu é que tenho razão. Às vezes a pessoa não consegue fazer o movimento que ela precisa, mas ela sabe o que precisa fazer, no inconsciente”.

Arrependimentos? Luna não tem nenhum. “Comecei a trabalhar tão de paraquedas, e a coisa está fluindo tanto, que parece que eu sempre fiz isso na vida. Não consigo lembrar de quando eu trabalhava no mundo corporativo”, explica. “Para mim, trabalhar é um prazer, é como se eu estivesse brincando. Eu gosto de estar com as pessoas, de olhar para o outro, entender a alma daquele que está na minha frente, ter uma conexão de alma com a outra pessoa. É bem interessante nesse sentido, porque acho que tenho uma troca inte-ressante com os clientes”.

Para o futuro, Luna pretende continuar nessa área. O plano é trabalhar com foco em Astro-logia voltada para criança e adolescente e sinastria (compatibilidade de dois mapas astrais) dos pais, “para que aprendam a lidar com as diferenças de seus filhos e a estimular desde cedo suas capaci-dades e não exigir muito de suas limitações”. A sinastria também ajuda como cada pai pode obter melhores resultados com seus filhos em termos de disciplina, criatividade, estudos, entre outros.

Religião x Tarô – Católica, Luna vê um conflito entre sua religião e sua profissão, embora não o sinta. Quando eu decidi fazer astrologia, ela estava ajudando no grupo de crisma da igreja e um dos coordenadores, uma pessoa ligada ao mundo místico, não falava de aspectos esotéricos para o grupo, mas apenas com Luna. “Tínhamos uma relação extra-grupo onde a gente conversava sobre assuntos místicos, premonições, coisas que a gente tinha em comum. Tais aspectos não eram aceitos dentro da religião e, quando eu falei que ia fazer astrologia, eu saí do grupo, porque senti que não ia ter disponibilidade de horário e também porque não queria ficar dando explicações sobre a minha vida e meus caminhos. A minha fé é só minha, minha conexão com Deus e como eu ouço ele é pessoal - porque ser espiritual não é falar com Deus, é ouvir Deus. Acredito, pela fé que eu tenho, que o caminho que eu cheguei veio Dele, e não de outro lugar”, explica. Quando saiu do grupo, seu amigo não queria que ela falasse para o grupo que ia fazer astrologia. Como achava que não tinha nada o que esconder, Luna comentou com outra pessoa da Igreja, um tempo depois, que estava fazendo astrologia. “E aí essa pessoa me perguntou, ‘mas voce acredita nisso?’ e eu respondi que sim, e ela falou ‘tudo bem, eu sei que você tem interesse, mas voce tem uma crença nisso?’. Eu respondi ‘olha, a minha crença é em Jesus Cristo. Astrologia é uma outra coisa, não substitui minha fé, pelo contrário, me vem Dele’”, conta. Se tivesse ficado no grupo, a taróloga acre-dita que haveria conflito.

Livre arbítrio: Para a taróloga, todos temos um destino a cumprir, mas ao mesmo tempo pos-suímos o livre arbítrio, que nos permite mudar nos-so caminho. “O livro de que eu te falei, ‘O oráculo de Luna’, mostra bem isso. Na verdade, o destino é uma coisa que não conhecemos, não podemos saber se esse é o nosso destino ou não. Mas eu acredito sim que a gente tem um destino. Se a gente for pensar em mapa astral, nosso destino está de algum modo marcado ali, mas o nosso livre arbítrio pode mudar isso. Se você quiser mudar o seu caminho, a qualquer momento você pode. Então acho as duas coisas caminham juntas.

E qual seria a importância desse mundo mais esotérico, principalmente em um universo cada vez mais racional? “É, eu acho que o mundo tem que parar de ser tão racional, porque o racio-nal só leva as pessoas para a materialidade”, opina. Para ela, o místico deveria ser mais valorizado do que a razão: “e quando falo em místico, não falo só de misticismo desvairado, de conversões loucas, falo de ouvir sua própria intuição. Seus pensamentos, sua razão vão conduzir sua alma para esse lugar, e não o contrário”, responde. Luna defende que a mente não pode dominar o espírito, ou a intuição. “A fórmula deveria ser ao contrário. Não é que a gente não tem que ouvir a razão, ao contrário, a razão tem que trabalhar em favor da alma. E acho que as pessoas estão começando a entender esse processo”.

*Colaboração: Thiago Munhoz, Marcela Reis e Júlia Dolce

Acho que o mundo tem que pArAr de ser tão rAcionAl,

porque o rAcionAl só levA As pessoAs pArA A mAteriAlidAde

© B

ia A

vila

A carta Mundo representa êxito, plenitude e equilíbrio. “É o nosso objetivo no mundo”, mostra a taróloga

Rep

rod

uçã

o

Para atender os clientes de tarô, Luna usa a mandala astrológica, tiragem que permite conhecer vários campos da vida do cliente, como profissional, espiritual,

amoroso

Page 32: Contraponto Nº 90

CONTRAPONTO32 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Fevereiro 2014

Sentada em um mesmo banco, vejo inúmeras vidas passarem diante de mim. A porta se abre e sou inundada por pessoas, que pulsam,

como a cidade. Alguns diriam que andar de metrô é um desafio, e quem sou eu para negar? Os vagões são sempre lotados, às vezes quentes, quando não se dá sorte de pegar o trem com ar condicionado – privilégio para poucos – com poucas estações se comparado com o tamanho da cidade, que nos impele em uma velocidade atordoante. São trens que parecem se moverem sozinhos, sempre em frente, nos obrigando a acompanhá-los. Irrefreáveis. Como nossas vidas. São Paulo corre.

Ali, no meu canto do metrô, observo. E talvez para fugir daquela sensa-ção claustrofóbica do ambiente lotado, me proponho um jogo. Não faço ideia de quando comecei a fazer isso, mas atualmente já me parece quase natural. Envolvidas em bolhas particulares, as pessoas parecem deletar a existência de umas as outras, quase como se buscando sua individualidade em um ambiente coletivo. Observo. A moça com um fone de ouvido firma o livro – que lê tor-tuosamente – com as duas mãos, e mal percebe que, não muito longe de si, um garoto lhe lança olhares. Eles provavelmente nunca se encontrarão, mas em minha cabeça eu crio uma história.

Não sei se já repararam, mas cada rosto parece ter muito para contar. Distraídos, olhando para o reflexo da janela ou fixos no celular, em que os dedos dedilham nervosamente, as pessoas tornam-se introspectivas quando estão no metrô. Esse é o melhor momento. E é por isso que jogo. Um jogo simples, talvez idiota, de tentar adivinhar de onde a pessoa veio e para onde ela vai. Criar-lhe uma vida. Sentado no canto, por exemplo. O garoto não deve ter mais de seus treze anos, e o funk soa alto em seus fones, ecoando para fora, incomodando alguns ali. Um funk com uma letra de denúncia, que ele provavelmente não presta atenção, apesar de estar cansado de ver, na televisão que sua mãe constantemente deixa ligada, a violência brutal que acontece nas periferias. Perto de si, um calouro, o corpo todo pintado com as tintas do trote que acabou de receber, marca no pé a batida da mesma mú-sica, que escuta forçadamente pelo som que escorre dos fones alheios. Seus olhos estão perdidos e imagino que, por detrás daquele sorriso, existe uma vontade de mudar o mundo. Com palavras. Sim, para mim ele tem cara de jornalista, e anseia por novas manifestações – as de junho foram sua primeira experiência, e reanimaram os ânimos daquele que, um dia, pensou que São Paulo nunca sairia da letargia.

A mulher de saia jeans na altura dos joelhos parece a clássica trabalha-dora doméstica. Naquele fim de tarde ela volta para casa pronta para encontrar

pulsações De são pauloPor marcela millan

CR

ÔN

ICA

© F

lávi

a K

assi

no

ff

com os três filhos e conversa com uma amiga, que faz faxina no apartamento vizinho do que ela é responsável. Ela é feliz, apesar da vida difícil. E sonha com uma vida com mais oportunidades para seus garotos. Um já largou o ensino público, não realmente por opção.

O trem se move. Acelera. Para. Alguns descem, outros continuam. E eu observo. Agora uma freira embarca, e o mesmo garoto que antes escutava funk se levanta, dando espaço para que ela possa se acomodar. Todos se movem, e a cidade junto com eles. É, São Paulo nunca para.

A gorda se vê limitada por um espaço que não pensa nela. O negro recebe olhares, mas finge que não nota. São Paulo oprime. Condena, mes-mo sem motivos. Mas sempre segue adiante. Mais uma vez, as portas se abrem, e dessa vez um vendedor parece estar dentre aqueles que entram, os braços carregando duas grandes sacolas cheias de inúmeras garrafinhas de água mineral. “Pra acabar, minha senhora!”. Avança, negocia, arrisca um inglês cati-dogí ao ser chamado por um casal de turistas que, se antes eram tão brancos que mais pareciam transparentes, agora tinham a pele vermelha, castigada pelo sol e falta de protetor solar. Esses, penso, passa-ram o dia andando pela Paulista.

Meus olhos vagam pelas faces daquele trem, parando em uma ou outra. Raramente cruzam com outros olhares. Encontram o sorriso de uma criança, a roupa complicada e colorida de um cosplayer – definitivamente indo para a Liberdade. Fixam-se em uma pasta, segurada por uma mão com um relógio de pulso e depois escapam para a mochila cheia, quase explodindo, de uma adolescente. O que será que tinha ali...? Antes que eu pudesse pensar, es-cuto. Minha estação chega e eu finalmente me levanto, saindo dali. Sigo em frente, provavelmente sem que ninguém me note, e guardo para mim cada uma das histórias.

Do lado de fora, apresso o passo, sabendo que estou minimamente atrasada – como sempre todos parecem estar, na realidade, nessa cidade que persegue o relógio. Passo correndo e vejo São Paulo. Os carros, pos-tes, faixa, prédios, lojas. Trânsito. Em determinado momento, esbarro em alguém, e no meio da desculpa atrapalhada, ergo meu olhar. Dessa vez, eles cruzam com outros olhos, e eu sorrio largamente. Vejo São Paulo, e ela é feita de pessoas.