contraponto 102

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JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP ANO 16 N 0 102 Março 2016 © Alice V. / Democratize

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Março de 2016

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Page 1: Contraponto 102

JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP

ANO 16 N0 102 Março 2016

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CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

PUCPontifícia Universidade católica

de sÃo PaUloPUc-sP

reitor

vice-reitor

Pró-reitora de Graduação

Pró-reitor comunitário

facUldade de filosofia,comUnicaçÃo, letras e artes

faficla

diretormárcio alves da fonseca

diretora adjuntaregiane miranda nakagawa

chefe do departamento de Jornalismovaldir mengardo

coordenador do Jornalismocristiano Burmester

vice-coordenador do JornalismoJosé salvador faro

c o n t r a Ponto

conselho editorialJosé arbex Jr.,

marcos cripa e Pollyana ferrari

comitê laboratorialluiz carlos ramos, rachel Balsalobre, salomon cytrynowicz, Wladyr nader

editorJosé arbex Jr.

ombudsman

secretária de redaçãomaria eduarda Gulman

secretárias de produçãoandressa vilela e Giovanna fabbri

editor de fotografialeonardo m. macedo

PUC

E D I T O R I A L

SUMÁRIO

capa: ato contra dilma na PUc-sP

alice v. / democratize

meritocracia # meu primeiro emprego pág. 3

manifestações Polícia Militar ataca alunos da PUC-SP pág. 4

educação A reorganização continua pág. 6

direitoshumanos Sistema carcerário ignora as mulheres pág. 8

saúde Aedes Aegypti 4 x 0 Brasil pág. 10

ensaiofotográfico Dois atos pág. 12

tensãosocial O mito da hospitalidade brasileira: racismo e refúgio pág. 14

cinema Oscar expõe falta de diversidade na indústria cinematográfica pág. 16

cultura O poder da charge na crítica política pág. 18

abandono Cinzas da memória pág. 20

comunicação Uma imagem vale mais que mil palavras? pág. 21

resenha As perguntas que não entram na reportagem pág. 22

crônica O outro lado da ponte pág. 22

antena PMDB rompe com o governo Dilma pág. 23

machismo Mulheres no mundo artístico: muito além das aparências pág. 24

simetria design Gráfico – projeto/editoraçãoWladimir senise – fone: 2309.6321

contraPonto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUc-sP.

rua monte alegre 984 – PerdizesceP 05.014-901 – são Paulo – sP

fone: 3670.8205

número 102 – março de 2016

cill Press Gráfica e editorafone: 993.583.533

ErramosNo CP 99, a matéria intitulada “O direito à cidade“ é de autoria de Pedro Prata,Paola Micheletti e Laura Jabur.

No CP 100, a secretária de redação é Maria Eduarda Gulman.

Não vai ter golpe No 16 de março, quarta-feira, o Palácio do Planalto lançou uma nota oficial nomeando o

ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, ocupando o lugar de Jaques Wagner. O ex-presidente fez uma reunião com a presidenta Dilma Rousseff na noite do dia 15 para acertarem os últimos detalhes e o comunicado oficial foi feito no dia seguinte.

As reações da população não demoraram a acontecer. Já no dia 16, foram organizados dois atos: um a favor da democracia e outro a favor do impeachment de Dilma. O primeiro ocorreu nas dependências do TUCA, o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, e contou com a presença de Marilena Chauí, Gilberto Maringoni, Maria Rita Kehl e outros importantes intelec-tuais e artistas. O segundo, na Avenida Paulista, reuniu pessoas contra o governo do Partido dos trabalhadores (PT). Ao longo da noite, o prédio do Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) se iluminou com as cores da bandeira brasileira e os dizeres “Renuncia Já”.

Manifestantes presentes no ato da Paulista permaneceram acampados em frente ao prédio da Fiesp, que serviu filet mignon como almoço aos “cidadãos de bem” na quinta-feira do dia 17. Alguns dos manifestantes, que também pediam por intervenção militar, só foram retirados do local quando a Tropa de Choque usou bombas de efeito moral e jatos d’água a fim de dispersar o acampamento, que já bloqueava a avenida por muitas horas.

Já no final da tarde da sexta-feira, 18, partidos de oposição de esquerda marcharam ao lado de organizações do PT contra o golpe e a favor da democracia. Segundo o instituto Datafolha, a manifestação reuniu 95 mil pessoas.

É impossível dizer que a grande mídia não se posicionou em relação aos recentes aconte-cimentos envolvendo os escândalos de corrupção e o PT. Foi armado um circo midiático para cada ação que ligava um membro do partido a algum caso da Operação Lava Jato. A imprensa brasileira parou para noticiar o ex-presidente Lula depondo e até levou algumas pessoas a acreditarem que era um pedido de prisão, devido à cobertura midiática tendenciosa que foi dada.

Infelizmente, não é de hoje que a grande mídia escolhe ficar do lado de uma direita que se mostra golpista. Como bem lembrado nos gritos do povo brasileiro na noite de sexta-feira, “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”. A esquerda sofreu muito na mão de militares para saber que 1964 não deve se repetir e não irá permitir um impeachment vindo da comissão mais corrupta já vista no Senado. A palavra de ordem é uma só: não vai ter golpe.

EXPEDIENTE

Page 3: Contraponto 102

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por carol rocha, isabela rovaroto e letícia sepúlveda

MeritocraciaCONTRAPONTO

A política em seus vários desdobra-mentos sempre mostrou o quão

importante é chegar ao poder. Existem aqueles que afirmam que, na verdade, política é poder. Maquiavel escreveu em sua obra O Príncipe que para alcançá-lo e se manter soberano, não im-porta os meios que os indivíduos usam, desde que consigam chegar aos seus fins. Atualmen-te, é possível observar no Brasil a ascensão de candidaturas através de vários modos. Existem os que conseguem por apoio das classes sociais, bancadas religiosas e até mesmo os que usam o seu “capital político”, isto é, a bagagem política de suas famílias, para tornar mais fácil o acesso aos cargos públicos. Talvez esse seja o caso de João Henrique Campos, filho do ex-candidato à presidência pelo PSB Eduardo Campos, morto em um acidente de avião no ano de 2014. O jovem foi nomeado pelo governador de Pernambuco, Paulo Câmara, ao cargo de chefe de gabinete.

Depois da morte de seu marido, Renata Campos passou a ser mentora do filho. Ele as-sumiu o mesmo cargo que seu pai exerceu nos anos 1980 durante o governo de seu avô, Miguel Arraes. Com a morte do pai, João Campos ficou responsável por preservar o capital político que a família possui a gerações, o que explica o seu in-teresse em candidatar-se nas próximas eleições. Em 2014, ele esteve envolvido em uma disputa pela liderança da Juventude Socialista Brasileira (JSB-PE). Na época, recusou o cargo, dizendo não estar preparado para assumi-lo e defender o legado. Além disso, enfatizou que gostaria de ser reconhecido por seus méritos e não por suas ligações familiares.

A nomeação de um jovem de apenas 22 anos, recém-formado em engenharia civil e com salário superior a sete mil reais, gerou uma discussão sobre aplicação da meritocracia na política brasileira. A discussão resultou na criação de uma hashtag (#meuprimeiroemprego), na qual os internautas usaram suas redes sociais como ferramenta para protestar. Foram diversos depoimentos a respeito das dificuldades encon-tradas nas primeiras experiências profissionais: “#meuprimeiroemprego oficialmente foi em um cargo público, estranhamente eu tive que fazer concurso para entrar no mesmo e acho que por não ter o sobrenome Campos eu ganhava pouco mais de um salário mínimo”, publicou Diogo Xavier, estudante da universidade federal rural de Pernambuco (UFRPE).

Para o cidadão comum, encontrar um trabalho sem que seja necessário ter experiência prévia é uma tarefa cada vez mais difícil. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego do terceiro tri-mestre de 2015 ficou em 9%, a mais alta desde 2012. Além disso, no mesmo período, a média de renda real do brasileiro foi de R$1.899. Em um cenário como esse, a atuação de familiares influentes na promoção de cargos públicos é alvo de diversos questionamentos.

O discurso meritocrático, tão presente nas pautas de diversos setores da sociedade, sobretudo dos conservadores, parece não valer quando o assunto é favorecimento político. Cerca

vez que possuiu muitos familiares na política. Isso justificaria o fato de sempre ter recebido orientação para assumir um cargo público. Deste modo, a família poderia se manter atuante na política, perpetuando seu nome entre o eleitora-do. Por outro lado, o professor Wagner não acha justificável o atual cargo de chefe de gabinete que o jovem exerce. “Política é esfera publica, lugar sustentado pelos recursos públicos e pelo trabalho da maioria das pessoas. O setor publico tinha que dar exemplo, não poderia acontecer isso nunca”, ressaltou.

Em si, a meritocracia é justa; entretanto na prática, não é isso que ocorre. No Brasil, um jovem de 22 anos sem auxílio político da família dificilmente chegaria ao mesmo cargo que João Campos assume atualmente. Favorecimentos por herança familiar ainda são uma prática comum na política do País. Enquanto isso, milhões de brasileiros continuam a percorrer as mais diversas etapas de formação em busca de uma vaga que garanta seu sustento, enfrentando obstáculos que um sobrenome como o de João evitaria. É a lógica meritocrática se perpetuando como um mito.

#meu primeiro empregoPanorama atual do mundo do trabalho no Brasil produz reflexos

na arena pública

de 49% do Congresso Nacional possui ligação com políticos ou ex-ocupantes de cargos; quando o raio é restringido aos mais jovens, com idade inferior a 35 anos, o percentual passa a ser de 85%. É o que diz um estudo feito pela organi-zação não governamental (ONG) Transparência Brasil, a respeito da dominação dos clãs políticos nas últimas eleições, em 2014.

A partir de dados como esses, fica evidente o quanto situações como a de João Campos são corriqueiras. O caso trouxe à tona uma discussão sobre a meritocracia que, segundo o doutor em sociologia e professor de gestão de políticas pú-blicas da USP, Wagner Iglecias, é positiva apenas em teoria. “Na vida real, muitas variáveis entram nesse jogo; as pessoas não largam do mesmo ponto de partida. Quem nasce em família influen-te sempre vai largar na frente, porque os pais, os avós, tem contatos, tem inserções no mercado privado ou no Estado” afirma. “Há o discurso de meritocracia, de igualdade, mas, na verdade, o que acontece é a reprodução de desigualdades”. Para o professor, João Campos ainda não teve experiência de vida ou profissional suficientes para provar que é qualificado.

O Contraponto também entrevistou o professor de Ciências Sociais da PUC, Francisco Fonseca. Ele afirma que é natural João Campos estar no cargo que assumiu recentemente, uma

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Parlamentares com parentes (principais partidos)

CÂMARA SENADO

Partidos Bancada Parentes % Bancada Parentes %

PMDB 65 43 65% 18 16 89%

PSDB 54 29 54% 10 7 70%

PSD 37 22 59% 3 1 33%

PSB 34 19 56% 6 4 67%

PP 35 21 58% 5 4 80%

PT 70 19 27% 14 4 29%

PR 34 16 47% 3 1 33%

PTB 25 15 60% 3 1 33%

DEM 22 12 55% 5 4 80%

PDT 19 9 47% 7 4 57%

SD 15 9 60% 1 1 100%

Depoimento de estudante em rede social

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CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por evelyn nogueira

Pela terceira vez em menos de 40 anos, a Polícia Militar deixou sua marca na

PUC-SP. A noite de 21 de março será lembrada por mais uma ação violenta da polícia de Geraldo Alckmin (PSDB), governador do Estado, contra os estudantes e as estudantes de São Paulo.

Alguns alunos da Faculdade de Economia e Administração (FEA-PUC) convocaram um ato pró-impeachment na segunda-feira. Cerca de 100 manifestantes se reuniram na Rua Ministro Godoi, em frente à Universidade, ao redor de um carro de som que foi alugado para dar mais visibilidade à pequena concentração. Alunos e alunas de outros cursos projetaram em um dos prédios da rua os dizeres “não vai ter golpe”, além de algumas outras frases fazendo ironia a quantidade de pessoas reunidas em frente à faculdade para pedir uma inconstitucionalidade. Em certo momento da noite, alunos contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) foram até a rua para tentar dialogar com os organizadores do ato pró-golpe, minutos antes da repressão começar.

Um empurra-empurra tomou conta dos dois grupos e então a polícia foi chamada para conter uma possível confusão que se instauraria na rua. Devido ao horário e barulho, os auto-in-titulados “cidadãos do bem” decidiram encerrar seu ato cantando o hino nacional. Foi nesse exato momento que a PM envolveu os manifestantes contra a democracia em um cordão de proteção. Ao fim do hino, estudantes da PUC começaram a cantar “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar”, e nesse exato momento o exército do governador atacou de forma co-varde todos e todas que estavam na frente de seus escudos.

O ataque começou com o disparo de uma bala de borracha na direção dos estudantes, o que fez o grupo se dispersar. A estudante Caro-line Hikari, 20, estava na entrada da faculdade quando o primeiro disparo foi feito e correu para avisar professoras e colegas do que estava acon-tecendo, no exato momento em que bombas de gás lacrimogêneo foram jogadas na rua e dentro da universidade.

Durante a escancarada repressão dos alu-nos que estavam ali pela defesa da democracia, o grupo pró-impeachment gritava “Viva a PM, viva os nossos guerreiros”. Do terceiro andar, alguns alunos jogaram garrafas plásticas na rua para tentar impedir a PM de massacrar seus colegas, mas isso só fez com que os policiais apontassem suas armas para os alunos que estavam dentro da PUC.

Ricardo Assis, 21, precisou abaixar nesse momento para não ser atingido pelas balas, pois já estava respirando muito gás lacrimogêneo, assim como todos que estavam no corredor que dá vista para a Rua Ministro Godoi. Segundo Ri-cardo, “foram muitas bombas em um espaço que é menos de um quarteirão”. A estudante Larissa Bernardes, 20, não deu a mesma sorte que os colegas. Durante a correria, Larissa ingeriu uma grande quantidade de gás lacrimogêneo e ao

polícia militar ataca alunos da puc-spAto pró-impeachment de Dilma Rousseff terminou com agressões

desproporcionais à comunidade universitária

tentar se abrigar em um dos bares da rua, Espaço 946 Hostel - Bar com um grupo de amigos, o dono os expulsou de volta, para a mira do ataque da PM, dizendo que petistas não teriam abrigo lá dentro e que foram eles quem pediram por isso, então teriam que respirar todo o gás da rua. Na volta para a faculdade, Larissa relatou que a rua já estava praticamente vazia, as únicas pessoas que a habitavam eram os manifestantes a favor da renúncia da presidenta Dilma Rousseff, que aplaudiam a ação da PM. Larissa foi socorrida por um grupo de alunos que se mobilizou para ficar com ela até que se sentisse melhor.

Na manhã seguinte à tentativa de mas-sacre instaurada aos arredores da universidade, alunos e alunas se mobilizaram para fazer um ato em repúdio a todos os episódios em que a PM se

envolveu na PUC. Estudantes se concentraram na Prainha, espaço aberto da universidade, e fizeram uma assembleia com falas de alguns membros dos Centros Acadêmicos.

Durante os atos, nomes de pessoas mor-tas nas mãos da Polícia Militar foram gritados seguidos da palavra “presente” – forma de relembrar companheiros que foram execu-tados durante a ditadura militar -, e outros alunos deram sua concepção de como seria a representação do repúdio à PM. Pela manhã, a manifestação foi finalizada com uma marcha até a porta da reitoria, onde pediram para a atual reitora, Anna Cintra, assinar uma nota de repúdio contra o governo, além de processar o estado de São Paulo por atacar alunos e alunas dentro da universidade.

ManifestaçõesCONTRAPONTO

Um dos cartazes em manifestação pró democracia

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a Ato pró democracia na PUC-SP

Ato contra o governo Dilma acaba com forte repressão da PM na PUC-SP, e conflito entre estdantes

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Ato pró democracia na PUC-SP

Page 5: Contraponto 102

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Defender a PM na PUC é ofender a história da PUC

Professores e estudantes da PUC-SP mostraram ao longo dessa semana o quão incoerente é aplaudir ações da PM na frente da universidade, que sempre foi palco de resistência da democracia. Alunas e ex-alunos postaram em suas redes sociais relatos dos massacres anteriores, em 1977 e em 2007.

O primeiro foi conhecido como “Invasão da PUC”, quando o então coronel Erasmo Dias coor-denou que tropas armadas usassem bombas para reprimir um encontro de estudantes que tentava reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE). A invasão resultou em muitos alunos presos e outros feridos.

Em novembro de 2007, alunos da Pontifícia ocuparam a reitoria, protestando contra o Redesenho Institucional, que precarizava a educação em São Paulo. Cinco dias depois da ocupação, a Tropa de Choque invadiu a PUC – exatamente 30 anos após a ditadura – com cerca de 100 policiais fortemente armados, que cercaram o Campus Perdizes e entraram pelas duas portarias (Ministro Godói e Monte Alegre). A invasão aconteceu durante a madrugada, por volta das 2h30 da manhã, e alunos foram liberados após registro de nome, RG e Registro Acadêmico.

Nove anos depois da última ação, a PM não invadiu a PUC, mas fez um ataque desumano a seus estudantes, como relatado acima. Como dizia a palavra de ordem do ato do dia 22 de março, “Fas-cistas na PUC não passarão”. A universidade segue resistindo.

Ato com forte repressão da Polícia Militar na PUC-SP

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Protesto a favor do impechment da presidente Dilma

Durante o período noturno, outro ato foi feito, com alunos que também se reuniram na Prainha, seguiram ao Tucarena, onde o Arcebis-po Dom Odilo Scherer se encontrava para uma cerimônia e resolveram sair às ruas, em direção à Avenida Francisco Matarazzo, gritando “não vai ter golpe”. Assim como Nadir Kfouri fez em 1977, ao se recusar a apertar a mão do coro-nel Erasmo Carlos, dizendo “não dou a mão a assassinos”, estudantes da PUC deixaram claro que também não darão as mãos à PM fascista de Alckmin.

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Manifestação, que aconteceu na Paulista, pró democracia

Page 6: Contraponto 102

CONTRAPONTO6 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por augusto oliveira, daniel Yazbek, Julia vendramel, luiza schiff, Pedro assis e tatiana aguiar

Em Outubro de 2015, o Estado de São Paulo vivenciou uma parcela da força

estudantil nunca antes mostrada à sociedade. Esse marco entrou para a história como a priori das Ocupações Secundaristas, ou também co-nhecidas como Escolas de Luta - um movimento discente executado por alunos de ensino médio básico.

Os estudantes da rede pública estadual ocuparam suas escolas como forma de protesto contra a reorganização realizada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, a qual visava paralisar as ações em mais de 90 escolas, transferir mais de 300.000 estudantes e segregar os ensinos de forma que o Ensino Médio não ficasse no mesmo prédio que os Fundamentais, com o argumento de que avaliações apontavam melhor desempenho dos alunos quando separa-dos e em “menor numero”.

Essa reorganização estava planejada para ocorrer de forma confidencial. O governo preten-dia realizá-la sem ao menos executar a pesquisa necessária e adequada, consultar os estudantes, professores, familiares e os principais envolvi-dos. Foram mais de três meses de ocupações e protestos pelas ruas de São Paulo, os jovens secundaristas mostravam cada vez mais sua força e seu desejo de diálogo.

O governo, ao contrário, se mostrou inco-erente e indisposto a ouvi-los. Silenciosamente, o governador Geraldo Alckmin, além de continuar a reorganizar as salas de aula, novamente sem pesquisa alguma, vem condenando o ato político de luta dos estudantes. Classes têm sido fechadas ou superlotadas, alunos continuam a ser transfe-ridos e, a barbárie policial persiste, principalmente na periferia, onde a bala não é de borracha. Os alunos têm o dever e o direito de manifestar seus interesses. Desta maneira, os estudantes secundaristas, ou “secundas”, ocuparam, não invadiram, as escolas que lhes pertencem por direito. O Secretário de Educação em atividade no momento, Herman Voorwald, renunciou ao cargo após o escândalo.

O que é – As ocupações acabaram, mas a luta continua. Segundo Lilith Passos Moreira, 15 anos, estudante da escola estadual Maria José do bairro do Bexiga, a mobilização conti-nua forte, “depois de tudo isso que aconteceu, a gente não consegue voltar a ser adolescentes normais, moldados para sair da escola estadual sem saber nada e virar trabalhadores cansados”. Os secundaristas não se dizem preocupados com as autoridades de modo geral, e buscam através de palestras, grupos de estudos e atividades rea-lizadas por colaboradores das ocupações como Jornalistas Livres, APEOESP e MST, dar base e formação política aos estudantes, principalmente aqueles que não participaram ativamente dos movimentos de outubro a janeiro. As reuniões do Comando acontecem semanalmente, com data e local “secretos”, em função dos policiais à paisana, que costumam intervir violentamente nos encontros. É uma forma de precaução contra a repressão policial.

a “reorganização” continuaO movimento secundarista atua como dispositivo emancipador

contra um Estado autoritário e regulador

Em decorrência da mesma, o comitê Mães e Pais em Luta, formado por pais de alunos durante a primavera secundarista, junto com a ONG Artigo 19, conseguiram uma audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em Washington que aconteceu no dia 7 abril, com o intuito de discutir e denunciar o abuso da força policial nas ocupações, para isso, enviaram um grupo de congressistas, escolhidos pelos mesmos membros do comando e do comi-tê, para representar os secundaristas.

O primeiro ato de 2016 se consagrou no dia 22 de março. A máfia da merenda e o fechamento de quase quatro mil salas de aula foram os principais enfoques da manifestação, que desta vez foi inteiramente pacífica, sem inter-venção da Polícia Militar na rota do protesto, ou repressão contra os manifestantes. Entretanto, as pautas continuam resguardadas nos meios de comunicação e na justiça, os quais pouco têm interesse em casos de corrupção envolvendo líderes tucanos.

O que será – Para esse ano não há pers-pectiva nenhuma quanto a reocupar as escolas. Os secundaristas possuem como principal foco a implantação de grêmios livres de autogestão nas escolas do Estado. Também planejam promover atividades culturais, protestos e manifestações de formas inovadoras, visando divulgar o movi-mento e acabar com a reorganização silenciosa, que continua acontecendo em várias escolas de São Paulo e, instigar cada vez mais os alunos a lutarem por seus direitos.

Não se sabe ao certo o futuro do secun-darismo, entretanto, é de conhecimento popular que os estudantes não realizarão atitudes repe-tidas, se algo houver, será tão inovador quanto as Ocupações de 2015. Uma nova concepção de escola acabará surgindo, pois, a reorganização é necessária, mas, não do jeito que ocorreu, de forma desorganizada e pouco planejada.

Mais atos vêm sendo organizados, espe-cialmente, contra a Máfia das Merendas, o qual também envolve os estudantes, não deixando

EducaçãoCONTRAPONTO

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Secundaristas lutando por seus direitos (“Hoje a aula é na rua, vem pra cá“)

“Depois De tuDo isso que aconteceu, a gente não consegue voltar a ser aDolescentes normais, molDaDos para sair

Da escola estaDual sem saber naDa e virar trabalhaDores cansaDos”

(lilith passos moreira, estuDante secunDarista)

Page 7: Contraponto 102

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

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Primeiro ato Secundarista em 2016 (“Cadê a merenda que tava aqui?” / “Pai, afasta de mim esse Alckmin, pai”)

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isde ser uma forma de reorganização silenciosa repressora promovida pelo governador e o atual secretário de educação, o senhor José Renato Nalini.

No interior do estado – No interior do Estado de São Paulo, diversas escolas foram ocu-padas. Em Americana e Santa Bárbara d’Oeste foram sete ao todo. Nayara Bonganha, 16 anos, estudante da Escola Estadual Monsenhor Magi, em Americana, conta que os estudantes locais ao ficarem sabendo da reorganização não sabiam qual seria seu impacto e desconheciam o seu direito de lutar contra essa ação do Governo Esta-dual, “os estudantes conseguiram ver que muitos de seus direitos estavam sendo roubados. O ato de ocupar foi político. Ali, eles estavam fazendo política mesmo sem perceber”. Na escola, crian-ças e adolescentes, de 11 a 18 anos, participaram da ocupação, além de contarem com o auxílio de professores, pais, amigos e voluntários. Não houveram casos de conflito com a PM. Após o fim do ano letivo de 2015, a reorganização foi perdendo espaço na mídia, o que deu liberdade para o governo agir.

Neste ano, em Americana, apesar da paralisação do movimento dos secundaristas, as aulas voltaram normalmente e os alunos não foram realocados, uma prova da importância da resistência. Para Nayara, o movimento estudan-til local não perdeu forças após o fim do ano, “após as ocupações, alguns se distanciaram, outros se aproximaram para fortalecer o movi-mento. Começaram a ter mais interesse pelos próprios direitos, como cidadãos e estudantes. Eles aprenderam que devem se manifestar até mesmo dentro da própria escola. A galera se uniu muito”.

O crescimento do movimento estudantil é de extrema importância para apresentar aos estu-dantes seus direitos e incentivar uma consciência política. O mesmo movimento, em Americana, vem promovendo campanhas, uma delas sobre a importância de ser eleitor já aos 16 anos, e também busca levar essa discussão e outras como feminismo e a questão de gêneros para dentro das salas de aula. Durante as ocupações foram promovidos debates sobre assuntos que as instituições de ensino ainda não tratam com a devida importância.

Enquanto isso na ALESP – Já são 23 assinaturas, das 32 necessárias, na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) para instalação da CPI das Merendas, sendo delas 19 delas oposição ao governo Alckmin. A peça principal de represen-tatividade na luta é o deputado estadual Carlos Giannazi, do PSOL. Ele vem abrindo inquéritos no Ministério Público e na Corregedoria da Polícia Militar denunciando as ações violentas da PM con-tra os estudantes e acusando seus companheiros políticos pelo “merendaço”, nome popular dado à máfia das merendas.

Durante o último ato dos Secundaristas na frente da ALESP, na terça-feira, 29 de Março, o deputado Giannazi afirmou que é necessária a pressão dos “secundas” contra o comando governamental, para que assim as investigações possam avançar, já que certos políticos estão dificultando a iniciação da CPI por interesses próprios. Ademais, ele ressaltou que a situação dos alunos e professores deve continuar a ser denunciada. Apenas a oposição comenta o fato dentro da Assembleia Legislativa, enquanto aqueles da base governista se acobertam e encobrem também os secretários e chefes de gabinetes envolvidos no esquema, “o alto escalão do governo Alckmin está envolvido no escânda-lo da merenda”, afirma Giannazi. O deputado Fernando Capez, principal alvo da CPI, continua a presidir a casa.

O lado docente – Professores e alunos que simpatizam com o movimento secundarista vêm sendo perseguidos por aqueles que, dentro da escola, discordam de suas ideias. Ameaças são feitas diariamente, piadas de mau gosto rondam as aulas e o ódio está muito presente nos discursos.

A professora da E.E. Fernão Dias, Dalva Garcia, tem acompanhado os movimentos estu-dantis por mais de 30 anos, e diz nunca ter visto tal brutalidade por parte da polícia antes, “nem mesmo na ditadura”. Uma polícia que permite a obstrução da Avenida Paulista por quase uma se-mana seguida, mas que, ao mesmo tempo, bate nos estudantes que ocupam as escolas e que vão às ruas reivindicar seus direitos não faz sentido. “A polícia não é democrática, não é imparcial e não está pensando no bem da população” diz a professora. Acrescentou também que democra-cia é saber ouvir a todos sem exceção, e que atos simbólicos são, normalmente, mais impactantes do que o fechamento de ruas e avenidas a troco de bombas e pancadarias fornecidas aos alunos gratuitamente pelas corporações policiais.

Ainda sobre tipos de repressão, a pro-fessora ressaltou que a violência policial ocorre nas ruas e nas escolas de periferia, entretanto, a pior repressão é a que acontece dentro das salas de aula com professores e alunos. A decadência acadêmica que ocorre em nome da educação gerou a onda de protestos que hoje tomam as ruas. Muitos professores condenaram como ação bandida o ato de ocupar as escolas, todavia, ou-tros educadores viram a tão famosa “luz no fim do túnel” e recuperaram sua fé na juventude.

“Cadê minha merenda? Geraldo fascista”

Page 8: Contraponto 102

CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por carolina Gomes, Giulia villa real, Giulia degan, maria eduarda Gulman,

nádya duarte e thalita archangelo

São muitas as presidiárias que dão à luz dentro das celas e não recebem o acompanhamento médico necessário

sistema carcerário ignora as mulheres

Ser mulher na sociedade patriarcal bra-sileira é uma luta diária. Com o assédio

do dia a dia, o machismo exacerbado e muita desigualdade comparado ao sexo masculino, as mulheres têm que se esforçar para conquistar o seu espaço. Se isso já é difícil fora das grades, na vida carcerária é muito pior. Nesse universo terrível e precário, elas pagam caro por ocupar um lugar predominantemente masculino.

O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça referentes ao primeiro semestre de 2014. Em números absolutos, o Bra-sil alcançou a marca de 607.700 presos. Mesmo os presídios masculinos ou os mistos (apesar de só serem considerados “mistos” por precariamente ter uma sala ou ala possivelmente dedicada para mulheres), estão com superlotação e péssimas condições de vida.

No caso das mulheres, elas somam 37.380 presas e, um relatório do Depen, Departamento de Execução Penal, lançado em novembro passa-do, mostra que a população carcerária feminina aumentou em 567,4% entre 2000 e 2014. A advogada criminal Maíra Fernandes contesta: “mesmo diante desses números, o sistema pe-nitenciário permanece construído por homens, para homens, e apenas (mal) adaptado para mulheres. Não há uma perspectiva de gênero, o que torna a privação de liberdade ainda mais cruel para as mulheres”.

Mulheres no cárcere e a maternidade – O Estado esquece que existem presos que menstruam, que são mães, que têm filhos, que são mulheres. Para tentar mostrar à sociedade o absurdo que é ser mulher no sistema carcerário brasileiro, Fernandes coordenou no último ano, junto com a também advogada criminal Luciana Boiteux, uma pesquisa a respeito das mulheres encarceradas e a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro.

De acordo com a pesquisa das advogadas, a grande maioria das entrevistadas grávidas são jovens, negras/pardas, solteiras e com baixa escolaridade. Além disso, quase metade das entrevistadas (46,3%) afirmou estar sendo pro-cessada/ter sido condenada pelo crime de tráfico de drogas. “Não há estrutura mínima de saúde para as grávidas no Sistema, não há médicos e as frequentes demoras no atendimento podem ser fatais. Ao contrário de se solidarizarem com as gestantes, algumas agentes – mulheres, mães! – culpam as presas por trazer ao mundo um filho no cárcere e despejam sobre elas toda a crueldade de seu mal exercido poder”, afirma Fernandes e indaga “que sistema é esse que não se sensibiliza nem com gritos de parto?”

Descaso com as gestantes – São inúme-ros os casos de mulheres que dão à luz dentro das celas, sem o devido acompanhamento médico, e isso se tornou regra, e não excessão. Ou até mesmo quando nos hospitais, elas são obriga-das a darem à luz ou amamentarem algemadas

Direitos HumanosCONTRAPONTO

– uma terrível tortura psicológica imposta por agentes e aprovado por profissionais de saúde, deixando claro que “a pena imposta às mulheres é muito superior à privação de liberdade”, afirma Fernandes.

A constituição brasileira permite que a mãe permaneça com o filho durante o período de aleitamento materno, restringindo então, os direitos da mulher presa ter convívio com seu filho. Além disso, após esse período, as mães correm o risco de perder a guarda e o contato com seus filhos, que são levados para a casa de algum parente ou, para um abrigo, pois não encontram apoio nem de seus familiares.

Isso tudo apenas deixa em evidência a de-sumanização cada vez maior do sistema peniten-ciário brasileiro, que violenta psicologicamente essas mulheres diariamente com o isolamento social, a perda da identidade e o corte dos laços familiares.

Em outubro de 2012, na 65ª Assembleia Geral das Nações Unidas, foram discutidas as

regras mínimas para o tratamento das mulheres presas, chamadas posteriormente de “Regras de Bangkok”. As regras ditam que se devem priorizar as medidas não privativas de liberdade e também que não gerem rompimento do vínculo familiar. Foi decidido que a responsabilidade ma-ternal pode ser considerada como circunstância atenuante de pena e reconhecem que a mulher tem o direito, ainda no momento da prisão, de definir acerca dos filhos e que a detenção deve ser no local mais próximo da residência, para garantir o vínculo entre a mãe no cárcere e o filho.

Porém, como apresentado na pesquisa de Boiteux e Fernandes, a maioria das mulheres que foram entrevistadas não tiveram a oportunidade de entrar em contato com a sua família no mo-mento da prisão.

Além de todo esse sofrimento por parte do sistema, as mulheres ainda sofrem o precon-ceito e a pressão por terem “abandonado o filho”, com diversos julgamentos repugnantes. Por conta disso, “elas costumam muitas vezes

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vivem diariamente, uma gravidez será, em sua maioria, de risco. Se mesmo fora das grades a gestação é um momento delicado para a mulher, que se encontra vulnerável a doenças, neces-sita de acompanhamento médico adequado e regular, as que conseguem sobreviver e resistir a indiferença do Sistema são incrivelmente mu-lheres de respeito.

Denúncias sobre os absurdos sobre a condição da mulher atrás das grades são raros de encontrar na mídia tradicional. É até mesmo difícil conhecer alguém que tenha noção do absurdo que é o sistema carcerário brasileiro com todas suas irregularidades e das vidas que lá tentam resistir diariamente. São situações que deixam claro o absurdo que é defender que, nessas condições, as mulheres invisíveis que lá estão vão sair melhor do que entraram e prontas para se adequar a vida “normal” como de qualquer outra brasileira.

entrar no mundo do crime por amor ou por medo e são abandonadas por seus companheiros após a prisão”, comenta a advogada. Ou seja, a situ-ação em que se encontra a mulher no cárcere, pela lei natural da sociedade, não tem perspectiva de melhora e nem de saída, o que faz com que se sintam devastadas e culpadas, causando uma miséria moral pessoal ainda maior.

A mulher é dilacerada dentro das penitenci-árias por ter que se separar de seu recém-nascido precocemente, por ter condições precárias para cuidar da criança dentro das celas, por não ter a devida atenção do Sistema com relação aos cui-dados de higiene e ginecológicos, etc. “Esse efeito do encarceramento feminino faz das unidades prisionais verdadeiros “cemitérios de mulheres vivas”, no dizer de Nelson Rodrigues”, contesta Fernandes que completa, “abandonadas à própria sorte, sem visitas, as presas sonham com os mais elementares itens de higiene e limpeza, invariavel-mente não fornecidos pelo Estado”.

Transtornos mentais e psicológicos – Outro fato que se desenvolve em consequên-cia dessa invisibilidade das mulheres no cárcere são os problemas psicológicos que afetam suas vidas. De acordo com a AMB, Associação Médica Brasileira, o número de mulheres com disfunções mentais e psicológicas nos presídios brasileiros é maior do que o número de homens com esses mesmos distúrbios. Essa situação decorre princi-palmente pelo fato da infraestrutura não oferecer o auxílio médico e psicológico necessário para as presidiárias, causando cada vez mais disfunções psicológicas, como a depressão e as vezes até mesmo suicídios.

No Brasil, há poucos projetos desenvol-vidos para o auxílio dessas moças, portanto a falta de assistência médica especializada acaba provocando diagnósticos precipitados ou equi-vocados.

Obviamente diante de todas as atrocida-des às quais as mulheres encarceradas sobre-

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“Acompanhamento” médico para as mulheres no cárcere

Aumento do aprisionamento no Brasil nos últimos anos

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CONTRAPONTO10 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por Giovanna fabbri, Julia vendramel, Juliana munaro, laura doubek e

letícia sepúlveda

Aedes Aegypti 4 x 0 BrasilIndústria farmacêutica fatura bilhões, graças ao despreparo do

Estado face ao surgimento de epidemias

A microcefalia é uma síndrome na qual o perímetro da cabeça do bebê

é menor do que o normal, podendo também ser acompanhada de problemas neurológicos, psicológicos e motores. Suas causas podem ser tanto genéticas, quanto devido a fatores exter-nos durante a gestação: uso de drogas, álcool, contaminação por mercúrio, falta de vitaminas e nutrientes e contágio de doenças infecciosas (rubéola, toxoplasmose, citomegalovírus, va-ricela, entre outras). Porém, recentemente, os inúmeros casos de mães que contraíram o Zika vírus durante a gravidez e o material genético do vírus encontrado no bebê indicam que essa virose seja também mais uma das causas da microcefalia.

Desde o final do ano passado, a quan-tidade de mosquitos da espécie Aedes aegipty (vetor do zika vírus) aumentou expressivamente e, simultaneamente, o número de casos de recém-nascidos com microcefalia. Apesar da falta de uma real comprovação científica da relação dessa síndrome com o vírus, assim como acontece pelo uso de tóxicos e álcool durante a gravidez, não se pode descartar a ideia, já que é incalculável os casos em que gestantes contaminadas pelo vírus deram à luz a crianças com a síndrome.

Consequências – É o caso da Josiane Santana, baiana de 36 anos e mãe de cinco filhos. Ela alega ter contraído o vírus no terceiro mês de gravidez e, após 6 meses, nasceram dois meni-nos gêmeos, ambos com a doença. “Depois dos exames, a médica disse que meus bebês estavam com microcefalia e perguntou se eu havia contra-ído algum tipo de infecção durante a gravidez. Respondi que tive Zika logo no começo. Então ela disse que provavelmente essa seria a razão para a síndrome”, relata a mãe dos gêmeos.

De acordo com um informe divulgado no dia 16 de março pelo Ministério da Saúde, dos 4.268 casos suspeitos de microcefalia e outras alterações no sistema nervoso, 2.212 foram investigados e dentre eles, 863 estão confirma-dos. “Isto não pode ser considerado um surto, já devemos classificar o cenário como uma epidemia que só tende a crescer” afirma o doutor Délcio Natal, professor associado da Universidade de São Paulo, especializado em Epidemiologia. Para ele, a tendência é que a concentração de casos, que hoje está presente principalmente no nor-deste brasileiro, avance para todo o país.

Sobre a possível relação do vírus com a doença, o professor alega: “eu diria que essa relação é muito plausível, tanto é que a Or-ganização Mundial da Saúde (OMS) deu um alerta. Já existiram muitos casos de associação na comunidade científica, e também na própria Organização ninguém a descarta. Então, eu não vejo como uma má interpretação da mídia, mas sim como um fato”. Segundo o doutor e professor, a mulher que contrair a doença pode ou não ter sua gestação afetada, pois existem diversas “barreiras” para que o vírus chegue até a criança.

Outro transtorno do cenário atual é a consequência para as crianças afetadas. Os pais, alegando não terem condições financeiras, ou até mesmo psicológicas para arcar com as necessi-dades especiais que a criança precisa, deixam os filhos em casas de adoção, com casos de aban-dono de bebês com até dois meses de idade. Por outro lado, com medo de contrair a infecção, há gestantes brasileiras com planos de viagem para o exterior. Dispostas a pagar cerca de cem mil reais, algumas mulheres optam por evitar a contaminação pelo mosquito que, supostamente, poderia transmitir a doença a seus filhos.

Soluções – Mais uma vez, ao invés de se optar por uma medida que acabe com o problema a longo prazo, a solução para o Zika vírus acaba por se tornar o investimento na indústria farmacêutica - assim ocorreu também com doenças como a dengue e a chikungunya. O histórico dessas doenças mostra que, com a permanência desse cenário, a criação de vacinas, soros e coquetéis para o Zika poderão controlar a doença, mas que o vírus só é de fato evitado se tais ações forem acompanhadas de medidas para melhoria de vida e saúde dos cidadãos por parte

do governo, como instalação do saneamento básico por todo o território (mas que é pror-rogado desde o surgimento da febre amarela, que também é causada pelo Aedes aegipty) - de acordo com o Instituto Trata Brasil, metade da população brasileira não conta com a coleta de esgoto e apenas um quarto dela vive em locais com tratamento dos dejetos.

Como foi dito, discute-se atualmente a criação de uma vacina que será desenvolvida artificialmente para prevenir a instalação do Zika vírus. O professor e doutor Délcio Natal vê certa positividade em seu desenvolvimento e afirma que a vacina pode, sim, funcionar, devido à quali-dade dos laboratórios no Brasil e pela semelhança à febre amarela, que possui o mesmo vetor do Zika e vacina preventiva desenvolvida.

Além do investimento na indústria far-macêutica, o governo apela pelas inúmeras campanhas preventivas sobre os cuidados que os cidadãos devem assumir quanto ao vírus. Incentivar a educação é de fato extremamente necessário. O que é bastante questionado sobre essa postura quanto à erradicação do vetor é incumbir à sociedade toda essa responsabilidade. Se o governo não investir em políticas públicas

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(Délcio natal, méDico e professor)

Políticas públicas são imcapazes de erradicar mosquito transmissor dos vírus responsáveis pela febre amarela, dengue, chikungunya e o zika

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11CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

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Josiane Santana, 36 anos, mãe dos gêmeos com microcefalia

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saneamento básico, visanDo aDequar a coleta De lixo e o abastecimento De água para

que não ocorra uma oferta De criaDouros”

(tamara nunes De lima, epiDemiologista)

direcionadas à real eliminação do vetor, os inú-meros casos continuarão a surgir. É nesse quesito que a responsabilidade não pode recair somente sobre o povo. Segundo Délcio, não adianta eliminar a água parada nas residências, se em alguns metros dela não existe uma rede de água encanada, aterros sanitários e gerenciamento de resíduos.

Portanto, assim como acredita a profes-sora e doutora Tamara Nunes de Lima, também especializada em epidemiologia, é fundamental tanto uma educação e informação da população, quanto um remanejo ambiental. “É necessário que o governo desenvolva um projeto de sane-amento básico, visando adequar a coleta de lixo e o abastecimento de água para que não ocorra uma oferta de criadouros, mas ao mesmo tem-po a população precisa fazer a sua parte para eliminar os criadouros dentro de casa. Para isso, as campanhas informativas sobre o mosquito devem permanecer intensamente no cotidiano da população brasileira”, explicou.

Prevenção – Se comparado à outros países, o Brasil não está preparado para lidar com uma epidemia de tamanha complexidade.

O Dr. Natal revelou que há certos países que não possuem problemas associados à proliferação do mosquito, como a Rússia e os Estados Unidos, por exemplo, mas que o Brasil não deve importar os modelos de prevenção destes países. Segundo ele, importar modelos não funciona, o certo seria criar modelos próprios. É preciso pesquisar e encontrar um apelo para o desenvolvimento do país, ade-quado à cultura local, à população, ao clima e a à própria localização. “Lá fora é outra realidade. Podemos pegar como modelo de inspiração, mas não como modelo para copiar. Tudo que é copia-do não é efetivo”, diz o especialista.

Uma forma de prevenção bastante re-corrente e comum são os repelentes, contudo o professor contradiz essa ideia, já que deve ser usado com cautela, pois devido ao seu baixo efeito duradouro na pele, deveria ser reaplica-do várias vezes ao dia. A proteção das pessoas pelo repelente depende de vários fatores, como o número de aplicações e a própria qualidade do produto, então não pode ser uma medida considerada completamente efetiva. Ele afirma que saúde e ambiente são intrínsecos: a vida em ambiente saudável, será saudável. A vida em um ambiente doentio, atrai doenças.

O entrevistado relata que não existe um tipo de tratamento para as crianças que já con-traíram a microcefalia. Esta doença é uma sequela neurológica e neurônios quando se rompem são destruídos. No caso da infecção por vírus, este entra na célula, se multiplica e a destrói. Células nervosas não conseguem ser repostas, é da na-tureza biológica do ser humano, não se recupera tecido nervoso. A fisioterapia não é uma solução, pois se trata de músculos, não nervos, portanto serão sequelas efetivas.

O Contraponto pediu ao Dr. Natal que fizesse uma recomendação final à população quanto a essa difícil situação do Zika vírus e expressivos casos de microcefalia que estão ocorrendo pelo território nacional: “Gostaria de pedir a participação das famílias, para que cuidem de seu meio ambiente. Cada um precisa limpar seu quintal: não só as residências, mas também empresas e setores das áreas públicas. Cada um precisa fazer o seu papel, ter a preocupação de tirar os criadouros dos mosquitos. Infelizmente, é necessário cuidar das áreas onde o governo não chega”.

Informações equivocadas sobre uso de larvicidaNo mês de fevereiro, ocorreu um grande desentendimento sobre certas informações a respeito das causas da microcefalia. Informações divulgadas

erroneamente nas redes sociais por alguns portais de notícias associavam a microcefalia ao uso do larvicida Pyriproxifen na agricultura pela empresa Monsanto. Isso ocorreu em função de uma má interpretação das ideias de um grupo de docentes argentinos pertencentes à Reduas (Rede Universitária de Ambiente e Saúde) juntos da empresa Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), mas rapidamente foi explicitada e desmentida pelos pesqui-sadores. A relação pôde ser feita devido a grande quantidade de neurotóxicos presente na substância do larvicida, os quais poderiam afetar o sistema nervoso central. Marcelo Firpo, coordenador da Abrasco, explica que, em nota divulgada pela empresa em dois de fevereiro, não foi feita a relação entre o larvicida e a microcefalia, mas sim a divulgação da necessidade de investimento em saneamento básico e o posicionamento da Associação contra o uso de substâncias químicas para combate ao mosquito Aedes aegipty.

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Dois atosCONTRAPONTO

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Por marianna rosalles

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O Oito de Março é a data na qual as mulheres pertencentes aos

mais diversos movimentos sociais ocupam as ruas reivindicando seus direitos. É um momento em que as divergências do mo-vimento feminista são deixadas de lado em prol da unificação do ato. Assim ocorreu, até este ano.

Dessa vez frentes governistas chega-ram à Avenida Paulista munidas de balões com a imagem de Lula e Dilma e faixas com os dizeres “não vai ter golpe” e “Fica Dilma”. Essa aparição gerou polêmica.

Frentes de oposição tentaram fazer falas nos carros de som e foram brutalmente impedidas, as que conseguiram discursar foram vaiadas. Uma militante do PSTU que foi crítica à gestão do Partido dos Traba-lhadores foi, inclusive, agredida com uma bandeira atirada em sua direção.

Após a agressão e tumulto o ato rachou. Frentes governistas e seus podero-sos carros de som seguiram do MASP – a concentração do ato – em direção à direita. À Esquerda se direcionaram frentes de es-querda combativa e grupos que foram contra as agressões.

Esse acontecimento foi um marco e é muito simbólico dada a conjuntura política do país. As manifestações de ódio permeiam os debates, as famí-lias, os círculos sociais e o clima de Fla x Flu impera. O que ocor-reu no oito de março é reflexo disso. A ameaça de um golpe político no país faz com que as pessoas se agarrem fortemente às figuras – mesmo que obso-letas – do governo, a ponto de rifar a pauta das mulheres.

Apesar disso o ato ocorreu e a cada dia mais mulheres tomam consciência de sua luta. A internet é agente fundamental para a difusão do debate de gênero e gra-ças a isso, mulheres independentes, autô-nomas e guerreiras do dia a dia passaram a entender que o feminismo também era pra elas.

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CONTRAPONTO1� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por alessandra monterastelli, ana Beatriz Pattoli, eva vila Pacheco, isabel rabelo e luciana console

O Brasil, reconhecido mundialmente por sua cordialidade, muda de lado e torna-se intolerante quando o assunto

é imigração de negros

o mito da hospitalidade Brasileira: racismo e refúgio

O Brasil é conhecido em todo o mundo por sua hospitalidade, pela alegria de

seu povo e pela sua diversidade de culturas. Nos últimos anos, uma onda de imigração

haitiana e africana chegou ao Brasil. Ao contrário do que muitos pensam, essas pessoas têm difi-culdade para conseguir emprego, estabilizar-se e serem aceitos socialmente. Willy Jean, imigrante do Haiti que está no Brasil há quatro anos traba-lhando como pedreiro na construção civil, conta ter ouvido de um empresário em uma entrevista de emprego que “aqui não tem vaga para es-trangeiro”. “Eles não respeitam”, comenta Jean. Os motivos da discriminação vão muito além do fato de serem imigrantes. Para entendermos melhor, precisamos pensar no contexto histórico do Brasil e no racismo velado que praticamos e vemos diariamente na sociedade.

O que acontece no Brasil é uma hos-pitalidade seletiva, isto é, brasileiros aceitam e recebem melhor pessoas vindas da Europa, brancas e cristãs, do que imigrantes haitianos e africanos, que são negros e diferem quanto à religião. Segundo o pesquisador da UFRJ Gustavo Barreto, “a mídia brasileira tem um papel fundamental nesse aspecto: quando fala sobre o assunto, não propõe uma discussão da imigração, mas destaca a noção de crise”. Para isso são ressaltados os problemas dos haitianos e africanos, relacionando-os sempre com a pobreza e miséria, enquanto que o europeu é valorizado por sua cultura e pela contribuição que pode dar ao Brasil - a contribuição cultural dos africanos raramente vira notícia.

O pesquisador ainda afirma que há di-ferença entre os termos usados pela mídia e as qualidades que são atribuídas a eles: “refugiado” é sempre visto como um problema, enquanto “estrangeiro”, termo associado geralmente aos europeus, é ligado a uma imagem positiva. Willy Jean conta que ficou irritado quando ouviu bra-sileiros afirmarem que “no Haiti não tem água nem comida”. “Como pode existir um país sem água nem comida?” questiona Jean, “eles não sabem do Haiti”.

De acordo com o sociólogo Alex André Vargem, 35 anos, membro do Instituto do De-senvolvimento da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB), nos onze anos de trabalho com pesquisa e denúncia de violações de direitos humanos, o sociólogo notou que a migração negra causa muito mais intolerância nos brasileiros do que a branca. Concluindo então, que é uma questão muito mais racial do que da migração em si.

O racismo estrutural pode ser constatado com os dados de entidades responsáveis como o IBGE e o Anuário Brasileiro de Segurança Pú-blica de 2014, que nos informam que apesar de serem mais de 50% da população do país, os negros fazem parte de somente 20% do PIB. A taxa de analfabetismo é duas vezes maior nesse segmento e a violência policial é absurdamente

ligada à cor da pele. Das mortes causadas por ações violentas no Brasil, 68% das vítimas são negros e entre a população carcerária, o número é 61%.

O racismo estrutural está presente em nos-so país e não é difícil de observar esta realidade: que lugares da sociedade os negros ocupam? Os altos cargos, universidades e bairros centrais. A política e a mídia são embranquecidas e não representam a realidade do país. Quando ques-tionado se já sofreu racismo ou discriminação por ser imigrante, Willy Jean diz que já teve episódios em que pessoas não quiseram sentar do seu lado no metrô, ou que se sentiram incomodadas por esbarrar nele sem querer.

O preconceito do brasileiro quanto ao imigrante negro também pode ser associado a uma herança das teorias eugenistas dos séculos XIX, que defendiam a ideia de que para atingir o desenvolvimento, o Brasil deveria “branquear sua população”. Assim, a entrada de imigrantes europeus foi incentivada pelo governo. Com a Declaração Mundial dos Direitos Humanos, do-cumento elaborado pela ONU após a Segunda Guerra Mundial, as teorias eugenistas perderam fundamento, contudo, o preconceito ainda con-tinua em muitos dos casos.

Ao conversar com alguns imigrantes na Casa do Imigrante (centro de acolhimento), no centro de São Paulo, percebe-se que, assim

como Willy Jean, muitos outros vieram ao Brasil em busca de trabalho e se decepcionaram. A maioria está desempregada e reclama da falta de vagas. Gloowmin Aive, haitiano que está há dois meses no Brasil e continua sem emprego, afirma: “muitos estão sofrendo aqui”.

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Breve perfil do migrante

Existe um perfil daqueles que se mudam para o Brasil. De acordo com Marcelo Haydu, são, em sua maioria, homens, entre vinte e trinta e cinco anos, que migram sozinhos. São raras as migrações familiares por conta do alto custo da viagem. Esses imigrantes e refugiados chegam com pouca ou nenhuma compreensão do Português e conhecimentos de Brasil. Procuram auxílio na Missão Paz - igreja localizada na Sé que abriga o Centro de Estudos Migratórios (CEM) e na Casa do Migrante – onde permanecem por, no máximo, dois meses, até encontrarem outro local para residir. Fato que pode surpreender alguns é o de, apesar de acabarem por aceitar postos de emprego precarizados, como foi dito, esses migrantes possuem diploma de ensino superior em sua terra natal.

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1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

“a míDia brasileira tem um papel funDamental nesse

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(gustavo barreto, pesquisaDor Da ufrj)

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Entrevistamos Marcelo Haydu (37), for-mado em Relações Internacionais pela PUC e um dos diretores da ADUS (Instituto de Reintegração do Refugiado), ONG que atua como facilitadora no processo de integração local dos imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil. Os voluntá-rios auxiliam essas pessoas no estabelecimento de moradia e emprego e oferecem aulas de português e informática, além de atendimento psicológico aos recém-chegados.

Contraponto – O brasileiro aceita melhor os imigrantes que vem de países europeus se com-parado aos que vem do continente Africano e do Haiti?Marcelo Haydu – A gente ouve muito o questio-namento de que eles estão vindo aqui pra roubar nossos empregos. Não tem coisa que me deixa mais enojado do que isso. Se formos comparar a quantidade de refugiados que temos no Brasil com a que temos em outros países, é um número muito pequeno. Nós estamos falando de menos de 9 mil imigrantes e 13 mil declarados refugia-dos. Somando esses números temos 22 mil. Eu nunca ouvi qualquer comentário questionando a entrada de um francês ou de um norte-america-no. Nunca ouvi falar que um francês está vindo “roubar nossos empregos”.

CP – Na sua opinião, por que acontece essa “preferência” por europeus?MH – Essa coisa de que o brasileiro é um povo acolhedor pra mim é uma grande mentira. Tem algumas pessoas que recebem bem, mas a gran-de maioria não (a gente vê a realidade dos negros no nosso país). O problema é a forma com que as pessoas enxergam os africanos, os haitianos. Eles vem de países pobres, com corrupção, doenças como a AIDS e a malária. A imagem passada é de que são insolentes, preguiçosos, não trabalham, tem muitos filhos ou traficam drogas. O que a TV passa de África e Haiti é só desgraça, então você não consegue enxergar algo positivo. Quando se imagina um haitiano ou africano trabalhando, pensa em faxineiro, cozinheiro, pedreiro e que essas pessoas são designadas somente nesses segmentos. Nós que lidamos com essas pessoas “corpo a corpo” sabemos que muitos deles tem formação. O certo seria parar de pensar que eles trazem desgraça, enquanto o europeu traz progresso.Vamos tentar pensar o que aprendemos na escola: dentro do nosso currículo escolar, discu-te-se China, Europa, EUA, etc.; a África muitas vezes não é citada. A mídia valoriza esses países e deixa de lado a cultura do Haiti, por exemplo. A cultura africana está enraizada em nosso país, mas a gente nega as nossas raízes. O brasileiro quer ser europeu ou norte-americano.CP – Você acha que esse preconceito tem alguma relação com as políticas de “embranquecimento” adotadas nos séculos XIX e XX?MH – Quando começaram, no século XIX, ao trazer os europeus e não mais os negros para o trabalho braçal, isso fez parte da política in-terna de embranquecimento da população. No século seguinte, a lei migratória brasileira escrita

na época da Ditadura, deixa claro esse mesmo propósito. E tem gente que se vale até hoje dessa teoria absurda de que o negro é menos inteligente.

CP – De onde surgiu a ideia de que os imigrantes africanos e haitianos estão “roubando nossos empregos”?M- Os empresários falam que “os brasileiros não querem mais trabalhar”. Essa afirmação se deve ao fato de que os brasileiros não estão mais dis-postos a aceitar empregos precarizados. Então os empresários estão vendo nesses imigrantes pessoas que estão realmente necessitadas desses

postos. O perfil das empresas que contratam reflete também o preconceito: supermercados, metalúrgicas e empresas ter-ceirizadas. Os brasileiros não querem trabalhar muito para ganhar meros 800 reais. Então existe essa visão da empresa, a de conseguir uma mão de obra mais barata – muitas vezes ocorrendo exploração, e ninguém faz nada.

CP – Qual a diferença entre imigrante e refugiado?MH – Uma definição bem grosseira que as pessoas usam é: imigrante migra voluntaria-mente e refugiado migra de forma forçada. Não é bem as-sim, porque o imigrante muitas vezes não tem a opção de ficar em seu país; ou ele migra ou ele morre. O refugiado sai do país por uma questão política, guerra, por exemplo. Mas no caso do haitiano, por mais que ele seja considerado imigrante por ter deixado seu país devido a um desastre natural (terre-moto de 2010), ele perdeu a casa, o posto de saúde, ficam sem ter o que comer. Isso tam-bém tinha que ser considerado como migração forçada.

CP – Então hoje em dia, quem deixa seu país por desastres naturais ainda é considerado imigrante?MH – Sim, tem toda uma discussão sobre isso, principal-mente no meio da academia de imigração, para caracterizá-los como imigrantes climáticos. Mas na lógica não existe isso. Há pesquisadores e profes-sores que são a favor dessa mudança, para inclui-los na categoria de refugiados. Esse é

um problema que um dia vai estourar, por causa das mudanças climáticas que estão ocorrendo no mundo.

CP – Você sabe se há uma relação desses imi-grantes se envolverem no crime?MH – Eu nunca soube. Nunca tive relatos de um caso assim. Aliás, um pré-requisito para ser refu-giado é não ter nenhum contato com o crime.

CP – Por que esses imigrantes haitianos e africa-nos escolhem o Brasil?MH – O Brasil passou a ser um destino para eles pela possibilidade de fácil entrada no país, embo-ra não tenha as características típicas dos países que mais recebem essas pessoas. Algumas dessas características são: proximidade geográfica, mes-mo idioma, bom desenvolvimento econômico, etc. O problema é que a maioria dos países com esse perfil dificulta a entrada de imigrantes.

CP – Então a escolha pelo Brasil não é muito pensada?MH – Não, é muito mais uma falta de opção, até porque a viagem não é muito prática.

“nunca ouvi falar que um francês está vindo rouBar

nossos empregos”

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CONTRAPONTO16 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por ana lourenço, caroline aragaki, Giovana costa, Julia alencar,

leonardo sanchez e Pedro strazza

oscar expõe falta de diversidade na indústria cinematográfica

Um ano após a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas anunciar

uma das listas mais problemáticas de indicados a seu prêmio anual, o Oscar, a instituição repetiu o feito e mais uma vez se tornou alvo de críticas. Assim como em 2015, faltaram negros entre os concorrentes à estatueta mais cobiçada de Hollywood em 2016, o que causou surpresa e revolta no mundo todo.

Os negros não foram os únicos negligen-ciados na noite de domingo, 28 de fevereiro. Categorias importantes, como Melhor Direção e Melhor Edição, foram novamente dominadas por homens. Enquanto isso, a comunidade LGBT* também ficou frustrada ao ver seu maior repre-sentante do ano, o romance Carol, ficar de fora da corrida pelo Oscar de Melhor Filme, apesar de ter sido aclamado por boa parte da crítica e do público. Na cerimônia, o apresentador Chris Rock ainda conseguiu piorar a situação ao contar piadas sexistas e preconceituosas.

Essa situação escancarou de novo um grande problema que se manifesta não somente na Academia, mas em toda a indústria cinema-tográfica: a falta de diversidade. Mesmo com uma maior participação dos latinos nos últimos anos, graças ao protagonismo de cineastas como Alejandro G. Iñárritu (diretor de O Regresso) e Alfonso Cuarón (diretor de Gravidade), a in-dústria continua sendo dominada pelo mesmo perfil que representa a maior parte dos votantes do Oscar: homens brancos, heterossexuais e de idade avançada.

A questão racial tem se agravado desde 2015, quando o ator David Oyelowo e a direto-ra Ava DuVernay, ambos de Selma: Uma Luta Pela Igualdade e que são negros, não foram lembrados no Oscar, fato que levou à criação da hashtag “#OscarSoWhite” (“Oscar tão branco”). O mesmo ocorreu este ano com o ator Idris Elba, cujo papel em Beasts of No Nation foi ignorado na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, en-quanto longas como Straight Outta Compton: A História do N.W.A. – filme sobre a cena do rap dos anos 1980 – e Creed: Nascido Para Lutar – retomada da franquia Rocky – também foram esnobados, o que motivou a campanha por um Oscar mais diverso.

O acontecimento tomou proporções ainda maiores quando o diretor Spike Lee (conhecido por filmes que retratam os conflitos raciais nos EUA, como Malcom X) declarou, em um texto publicado no Instagram, que não iria à premiação em forma de protesto. Posteriormente, o ator Will Smith e sua esposa Jada Pinkett Smith também se recusaram a comparecer. “Neste exato momen-to, não estamos confortáveis para estar lá. Vai parecer que está tudo bem”, afirmou o ator.

A presidente da Academia de Artes e Ciên-cias Cinematográficas, Cheryl Boone Isaacs, que é negra, desabafou que estava “triste e frustrada” pelo ocorrido, e revelou na época que trabalharia

Ausência de indicações de negros evidenciou outras formas de preconceito presentes em Hollywood

para que ocorresse uma maior diversificação nas nomeações dos próximos anos.

Com o intuito de aliviar essa questão, alguns artistas negros de grande relevância foram chamados para participar da premiação com um maior destaque. Morgan Freeman, por exemplo, anunciou o prêmio de Melhor Filme, e Whoopi Goldberg e Tracy Morgan apareceram em esquetes satirizando a existência de papeis reservados exclusivamente para brancos.

Já o apresentador Chris Rock, que utilizou um humor ácido para retratar a situação, fez pia-das com teor irônico e ao mesmo tempo hostil, em que reivindicava os direitos negros: “O que quero dizer é que não se trata de boicotar as coisas. O que a gente quer é oportunidade. Queremos que atores negros tenham as mesmas oportunidades. E só. Não só de vez em quando. Leo (DiCaprio)

consegue um grande papel todo ano. Todos vocês conseguem grandes papéis o tempo todo. E os negros?”. Por outro lado, o mestre de cerimônias aproveitou o momento para fazer piadas de tom preconceituoso contra mulheres (“Jada boicotan-do o Oscar é como se eu boicotasse a calcinha da Rihanna. Eu não fui convidado!”) e asiáticos, aumentando ainda mais a polêmica.

O problema, porém, é muito maior. Para o crítico de cinema Chico Fireman, “não se pode culpar só Hollywood porque o problema é de como nos estruturamos como sociedade. A indústria não é obrigada a assumir nenhuma postura para combater algo que é anterior a ela, mas seria muito bom se ela assumisse”. Mas o cinema não parece oferecer as mesmas opor-tunidades para aqueles que não pertencem ao padrão hollywoodiano.

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Todos os 20 indicados nas categorias de atuação do Oscar 2016 são brancos

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1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

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Chris Rock apresenta a cerimônia do Oscar 2016

De acordo com um estudo da Universida-de do Sul da Califórnia (USC), que analisou 414 produções audiovisuais de 2014 e 2015, somente 28,3% dos personagens com diálogo nos filmes estadunidenses não eram brancos (12,2% eram negros; 5,8%, latinos; 5,1%, asiáticos; 2,3%, do Oriente Médio; e 3,1%, de outras etnias). O que agrava ainda mais o problema é a maneira este-reotipada com a qual as minorias são tratadas. De acordo com Fireman, “o ideal seria produzir e exibir mais filmes que representem gays, latinos, asiáticos, mulheres e negros. O público pode colaborar procurando estes filmes. Mas isso é mais utópico do que prático”.

Mulheres – Outro grande problema que tem ganhado cada vez mais visibilidade desde a temporada de premiações de 2015 é a diferença com a qual homens e mulheres são tratados no cinema.

Em 2016, houve uma enorme quantidade de papeis femininos empenhados em quebrar os estereótipos com os quais as atrizes precisam lidar. Um deles foi o de Charlize Theron em Mad Max: Estrada da Fúria. No filme, a atriz interpreta Furiosa, uma mulher forte e poderosa, que luta para salvar outras mulheres do que se entende como servidão sexual, e destaca-se por não se-guir o “padrão feminino” com o qual o cinema geralmente trabalha, o da heroína frágil, delicada e sensual.

Theron pode não ter sido indicada, mas Mad Max recebeu 6 estatuetas no Oscar, entre elas a de Melhor Figurino para Jenny Beaven, que chamou atenção por ter recebido o prêmio vestindo uma calça social e uma jaqueta com uma caveira em cristais Swarovski. A roupa causou estranhamento em grande parte dos convidados e ressuscitou a hashtag “#AskHerMore” (“per-gunte mais a ela”), sobre a atenção dada sempre às roupas das convidadas do Oscar, e não neces-sariamente à mulher e ao que ela alcançou.

O discurso de agradecimento de Patricia Arquette, em 2015, também ajudou a iluminar essa questão. Quando saiu vencedora na catego-ria de Atriz Coadjuvante pelo filme Boyhood: Da Infância à Juventude, Arquette afirmou que “é o momento de ter igualdade de direitos, de uma vez por todas, para as mulheres”. Mas apesar da visibilidade que o tema tem recebido, as mulhe-res, assim como outras minorias, continuam sen-do subestimadas no cenário cinematográfico.

No estudo realizado pela USC, de 414 filmes estadunidenses avaliados apenas 29% dos papéis com falas eram dados para mulheres. O artigo ainda revela que 85% dos diretores e 75% dos roteiristas são homens. As mulheres representam apenas 21% dos cargo executivos e 19% dos assentos nos conselhos.

Na tentativa de alterar esse padrão de predominância masculina na indústria, um grupo de diretoras e atrizes americana criou este ano a produtora “We do it together” (“Nós fazemos isso juntas”). O grupo, que conta com a partici-pação de nomes importantes do cinema, como Jessica Chastain, Juliette Binoche, Queen Latifah e Freida Pinto, tem o intuito de dar oportunidades às novas mulheres da indústria e criar papeis que visem o empoderamento feminino e não repro-duzam os clichês hollywoodianos.

Comunidade LGBT* – A população LGBT* é outro grupo que se tornou refém de diversos estereótipos e preconceitos constante-mente presentes no cinema. Para Chico Fireman, falta “representação e representatividade”. “No

cinema hollywoodiano, há pouco espaço para di-retores e atores LGBT* e há menos espaço ainda para contar suas histórias. Falta um cinema que os contemple”, argumenta.

De fato, os filmes empenhados em retratar a vida de personagens que representam esse gru-po recebem pouca atenção do grande público, principalmente no Brasil, onde sua exibição fica muitas vezes limitada a cinemas nas regiões mais ricas das capitais, como aconteceu com Carol em 2015. Protagonizado pelas atrizes Rooney Mara e Cate Blanchett, o romance foi um dos longas-metragens que mais chamaram atenção no ano, mas também foi esnobado pelo Oscar.

Recentemente eleito pelo Instituto Bri-tânico de Cinema o melhor filme LGBT* já produzido, Carol ficou de fora das categorias de Melhor Filme e Melhor Direção e ainda saiu sem nenhum Oscar, dos 6 aos quais concorria, na noite de 28 de fevereiro. Apesar de figurar em várias das listas de melhores filmes do ano, entre as quais a do Instituto Americano de Cine-ma, o romance não teve fôlego para enfrentar O Regresso ou A Grande Aposta, filmes menos unânimes, mas que disputaram a honraria má-xima do cinema hollywoodiano na cerimônia de entrega do Oscar.

É difícil dizer se o resultado se deve ao preconceito presente na indústria, mas é seguro admitir que tais filmes não recebem tanta aten-ção quanto títulos mais tradicionais. Em outro

estudo da USC, dos 700 filmes produzidos e lançados nos Estados Unidos entre 2007 e 2014, somente 0,4% eram protagonizados por personagens homossexuais. Além disso, dos 100 principais títulos lançados em 2014, somente 14 tinham algum personagem LGBT*.

Quando há essa representação, porém, a indústria cinematográfica parece tratar a questão com uma faca de dois gumes, e a temporada de premiações deste ano evidenciou o problema com nitidez. Enquanto a atriz Mya Taylor fez história ao se tornar a primeira transexual a vencer, pelo filme Tangerine, em uma das prin-cipais categorias do Spirit Awards – o Oscar do cinema independente – a cantora trans Anohni , indicada (por Racing Extinction) à categoria de Melhor Canção Original nos Academy Awards, virou notícia em todos os veículos especializados ao anunciar seu boicote à cerimônia.

Na ocasião, ela afirmou que sua apresen-tação no evento foi negada pelos organizadores porque, assim como a também indicada na categoria e sul-coreana Sumi Jo, ela não era tão comercialmente atrativa para a audiência como os concorrentes Lady Gaga, The Weeknd e Sam Smith, que levou o prêmio por sua composição para a música-tema de 007 Contra Spectre.

A premiação também serviu de palco para uma polêmica envolvendo um dos filmes indica-dos em algumas das principais categorias. Com quatro nomeações, A Garota Dinamarquesa foi alvo de críticas da comunidade LGBT* por sua abordagem da vida de Lili Wegener, a paciente da primeira cirurgia de troca de sexo da história. Para Chico, “o maior pecado de A Garota Dinamar-quesa é o próprio filme. Para contar uma história tão cheia de nuances, o filme precisava ser mais ousado. Nem que fosse só um pouco”.

Polêmicas e a questão LGBT* parecem andar juntas na trajetória da Academia. Em 2005, por exemplo, o filme de Ang Lee O Segredo de Brokeback Mountain, sobre o relacionamento de dois caubóis entre os anos 1960 e 80, cole-cionou troféus em festivais e na temporada de premiações, e depois de ter recebido o maior número de indicações no Oscar daquele ano, era considerado por muitos como favorito à estatueta de Melhor Filme. Os votantes, porém, surpreen-deram e premiaram o longa apenas em Melhor Direção, Roteiro Adaptado e Trilha Sonora, concedendo a honraria máxima ao controverso Crash - No Limite e realizando um ato que Chico considera como uma recusa “sintomática, contra a corrente”.

Buscando uma solução para esses proble-mas, a Academia anunciou mudanças em seu sistema de votação. A tendência é que alguns dos associados mais velhos - e teoricamente mais conservadores - deixem de ter tanta influência na escolha dos indicados nos próximos anos. Para continuar votando, cada membro deverá renovar sua filiação a cada dez anos, período no qual deve permanecer ativo na indústria cinematográfica. Ficam imunes à regra aqueles que já receberam ou foram indicados ao Oscar. A medida, apesar de ter sido apontada como importante, também foi considerada um passo pequeno frente ao tamanho do problema que a falta de diversidade se tornou. Além disso, é importante ressaltar que, antes de combater os preconceitos da Academia, é preciso acabar com o conservadorismo presente na indústria como um todo. Resta aguardar para descobrir os efeitos que tal medida pode trazer e que outras soluções ela pode inspirar.

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CONTRAPONTO1� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

“Procuro não atacar grupos historicamente usa-dos no humor burguês. Nordestinos, imigrantes, negros, mulheres, gays... acho que usá-los como alvo é medíocre e preguiçoso. Chutar mendigo é fácil. Difícil é passar a mão na bunda do guar-da”, afirma.

Um dos principais locais de circulação de charges atualmente são as redes sociais. Entre-vistado nesta matéria, Vitor Teixeira é um dos chargistas que optou por divulgar seu trabalho na rede de Mark Zuckerberg. Com apenas três anos de página, o desenhista já tem 88.615 curtidas e o número não para de subir. Ao lado de Vitor, o chargista que cuida da página “Ribs” também começou a divulgar seu trabalho em 2013 e hoje já alcançou 113.325 curtidas. Vini Oliveira se junta aos dois anteriormente citados e com pouco mais de um ano de página já atingiu as 56.966 curtidas.

Apesar de ser um instrumento de re-percussão para muitos ilustradores, a internet também pode ser um péssimo objeto de trabalho para outros, como foi o caso de Ivan Cabral, char-gista do NOVO Jornal. Ivan ilustrou manifestantes contra o governo Dilma fugindo de um livro de história. Na mesma semana, a charge de Cabral foi alterada: pintaram as camisas de vermelho e substituíram o livro de história por uma carteira de trabalho. O chargista usou seu Facebook para reclamar que a internet é “uma terra sem-lei”.

Por augusto oliveira, evelyn nogueira, rodrigo sanzi

e victória azevedo

Artistas vêm ganhando cada vez mais reconhecimento por suas obras com caráter crítico

o poder da charge na crítica política

A política brasileira vive um momento delicado: o país encontra sua popula-

ção gravemente dividida entre simpatizantes do governo e oposicionistas. A mídia exerce enorme influência nessa polarização, principalmente com a divulgação de informações tendenciosas e mal apuradas nos grandes veículos de comunicação como telejornais e o jornal impresso. Neste segundo exemplo, é onde atua o foco desta matéria: A charge, que busca, por meio da sátira e da imagem, a crítica.

A primeira charge do Brasil foi publicada na data de 1837, poucos anos após a indepen-dência, intitulada “A Campanha e o Sujo”. Já a primeira revista a reproduzir uma charge em seu material foi a “Lanterna Mágica”, depois, outras também aderiram à crítica ilustrativa. Conforme o país desenvolvia seu cenário político e seus meios de comunicação, as charges ganhavam espaço e caiam no gosto do brasileiro. Durante a ditadura militar, por exemplo, esse modo de crítica foi impactante. “O Pasquim”, que contava com a presença de Ziraldo, causou não só dis-cussões, mas também exílios e prisões. Algumas ilustrações foram tão icônicas que ainda são usadas como exemplos em livros didáticos e textos sobre a época.

Porém, hoje, a crítica se modernizou. O artista precisa estar sempre bem informado, principalmente acerca do cenário político, o que leva ao questionamento sobre a obrigatoriedade do engajamento na charge. Para a cartunista Laerte, as charges sempre devem possuir como foco a política: “Está na definição de charge, isso de falar de política - ou de fatos da atualidade. Enfim, de ter caráter editorial. Ultimamente a palavra ‘charge’ vem sendo usada de modo bastante amplo, perdendo um pouco do sentido que sempre teve. Prefiro manter o entendimento de charge como ‘carga’, no sentido de ataque; de ‘carregar’, no mesmo sentido que existe em ‘caricatura’”. Já para Vitor Teixeira, ilustrador que investe na divulgação de seus desenhos em redes sociais como o Facebook, não há o dever: “Depende das motivações do autor. Não existe obrigatoriedade, mas o cartunista está sempre expondo seu olhar sobre o mundo, então creio que se torna um pouco inevitável.” E quase que inocentemente, Vitor retrata o dia a dia de um jornalista e como suas matérias são escritas a partir de sua visão sobre o mundo, ideologia e valores.

Charlie Hebdo e as redes sociais – Em janeiro de 2015, na França, ocorreu um atenta-do à revista Charlie Hebdo que deixou feridos e mortos, devido ao caráter da publicação que faz diversas ilustrações críticas e provocativas, princi-palmente à religião. Esse acontecimento trouxe à tona a discussão sobre os limites do humor nas charges e o preconceito.

Para Laerte, as sátiras são, naturalmente, “ofensivas”, porém, é necessário avaliar se es-tão infringindo alguma lei ou ferindo os direitos humanos. “Toda sátira - como quase todas as

CulturaCONTRAPONTO

formas de humor - contém agressividade. Em princípio, ser ofensivo é da natureza dessa lin-guagem. É preciso entender melhor, no entanto, o que significa ‘ofensivo’. Se há implicações que podem caracterizar infração da lei, é evidente que há abuso e que é possível o acionamento da justiça em defesa da parte ofendida. Se não, a dis-cussão deve ficar no campo do debate de ideias, mesmo.” Ela complementa, sobre a discussão da validade e legalidade das sátiras feitas pelo jornal, que é necessário a análise do contexto em que as críticas se colocam para não emitir opiniões precipitadas. “São críticas. E, principalmente, é preciso conhecer o contexto da publicação para emitir opinião. As pessoas, muitas vezes, vão postando e dando opiniões sumárias sem saber do que se trata de fato.”.

Apesar de ter possibilitado um maior intercâmbio de ideias, e provocando debates interessantes, o desenvolvimento das redes so-ciais, por outro lado, possibilitou dar visibilidade a discursos de ódio.

A charge teve, ao longo da sua história, participação na luta pelos direitos do povo e prin-cipalmente das minorias, que costumam sofrer com inúmeros preconceitos que são, também, propagados pela mídia. É comum um cartunista ser julgado por suas obras, sempre há aqueles que ficam ofendidos ou por não compreender, ou por ser o alvo da crítica. Vitor Teixeira diz que é necessário o cuidado quando se está produzindo.

O autor retrata como os tucanos são manipulados pela Rede Globo,

e têm voz na emissora

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A arte de Ivan Cabral alterada, e com sua assinatura

O desenho original do chargista Ivan Cabral

Vini ilustra a semelhança das ações da Polícia Militar durante a

ditadura e hoje em dia, e como uma reflete a outra

Ribs desenhou o golpe midiático, patrocinado pela grande mídia do país

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CONTRAPONTO�0 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

Por ana luiza menechino, laura Jabur, Paula Zarif e Pedro Prata

A ideia de identidade de um povo está intrinsecamente ligada à sua memó-

ria cultural, à sua história. Ela existe a partir do modo como essa história é vista, processo que sofre alterações constantes, ou seja, a história está constantemente sendo ressignificada. Ela é lembrada e passada adiante por meio da fala, da escrita e da arte. Nesse aspecto, pode-se destacar a importância dos museus nesse pro-cesso de construção de identidade. São eles que armazenam toda a história a ser contada de um povo. Sendo assim, infelizmente o Brasil parece ter alguma doença degenerativa. Seus centros culturais estão entregues ao descaso, falta de manutenção e burocracia, que resultam em diversos acidentes. Os museus, se deveriam preservar nosso patrimônio cultural, acabam por expô-lo a grandes riscos.

Em pouco mais de dois meses, somente na cidade de São Paulo, dois centros culturais foram incendiados. Em dezembro de 2015, o Museu da Língua Portuguesa virou notícia por ter sido palco de um incêndio iniciado a partir de uma fagulha de uma lâmpada estourada que caiu em uma das redes, objeto que fazia parte da exposição na época. Logo em fevereiro de 2016, a Cinemateca sofreu o 4° incêndio de sua história, destruindo parte de seu acervo.

Infelizmente, esses não foram os únicos patrimônios a sofrer com o descaso. Em 2013, o auditório do Memorial da América Latina foi cenário de um dos maiores incêndios já registra-dos em centros culturais no Brasil. O problema vai muito além do fogo. Mais de dois anos depois, o auditório continua fechado, com previsão de término da obra para junho desse ano. A infor-mação que deveria gerar conforto esconde uma triste, porém sincera realidade: a empresa que realiza a reconstrução do local não é a primeira e não será a última a passar por lá.

No caso de outro centro cultural, o Teatro Cultura Artística, que foi completamente destru-ído por um incêndio em 2008, a reconstrução ainda está em fase de projeto. Esses dois últimos exemplos indicam que não só o tempo de espera é sempre longo, mas também evidenciam que a burocracia e a falta de interesse são barreiras na tentativa de retomar o espaço que ajuda a preservar a memória. Mais um exemplo triste, o Museu da Independência, no Ipiranga, teve de ser fechado em agosto de 2013 para uma reforma estrutural geral. Inicialmente a ideia era reabrir o museu em 2022, mas como até o momento as obras não saíram do papel, pode ser que esse prazo não seja cumprido.

A memória cultural pode ser vista como um processo coletivo de reconstrução do pas-sado, ressignificação do presente e antecipação do futuro, segundo Marilena Chauí. Ou seja, os olhares direcionados para a história de uma sociedade é que darão diferentes sentidos para o seu presente, e a projetarão para o futuro.

A memória cultural é o principal fator que constitui a identidade de uma sociedade. Todo o seu passado leva ao conjunto de caracterís-ticas do presente, e é esse conjunto complexo

Há uma diferença, porém, entre ter ele-mentos históricos esquecidos como parte da formação da memória e ignorar a história, des-prezá-la. O resultado desse segundo caso acaba sendo visível nos poucos museus que temos: a maior parte ou reconta apenas uma visão da história ou está limitada à história de apenas um seleto grupo social.

Cada segmento da sociedade tem sua pró-pria memória cultural. A memória dos pampas é diferente da memória das populações litorâneas, que ainda é diferente da memória das grandes ci-dades. Esse pluralismo existe. Contudo, segundo a professora Matilde Maria, “a questão é: até que ponto há uma alimentação dessa memória de vários grupos, ou seja, de considerar esses vários grupos, ou até que ponto a história construída a partir dessa memória é construída a partir da memória de um único grupo? Tem segmentos da sociedade brasileira que não conhecem a sua his-tória, tem segmentos que sim e segmentos que não, que se particularizam na sua individualidade e não tem a própria perspectiva de conjunto ou de coletivo”.

A responsabilidade pelo descaso é sempre repassada, sem mostrar que na verdade é dever de todos cuidar da memória e dos patrimônios que a mantém próxima mesmo após tantos séculos. Assim é comentado pela restauradora Simona: “a responsabilidade em primeira ins-tância são das pessoas designadas e pagas por estes serviços. Em segunda instância é da sociedade, pois só com o controle e cobrança da sociedade é que vamos avançar. Esta é uma imposição de um país em desenvolvimento e que há muito para aprender”. A professora Matilde, para quem o dever de cuidar da memória é de todos, concorda: “não é um dever do governo. É nosso enquanto população, enquanto grupos sociais”.

AbandonoCONTRAPONTO

Incêndios recorrentes em museus num curto espaço de tempo revelam o modo como nos relacionamos com a nossa história

cinzas da memória

que forma sua identidade. Se esse processo coletivo sobre o passado não está ocorrendo devidamente, as noções atuais que norteiam a sociedade brasileira ficam abaladas. Sem algo que identifique o povo à sua história, a valorização do patrimônio deixa de existir, o povo acaba não reconhecendo a importância para si mesmo de preservar esse patrimônio. E é aí que os incêndios ocorrem, na ausência de um controle rígido sobre as condições de segurança e conservação em que esse patrimônio é tratado.

A restauradora de obras, Simona Misan, avalia que “o descaso com a memória cultural é o reflexo da falta de preparo cultural, social e econômico. Só se pode cuidar de patrimônio e memória quando o país é minimamente ca-pacitado para realizar ações de: diagnósticos, planejamentos, orçamentos e cronogramas. Sem isso, fica tudo no discurso”.

Memória de poucos – A história como a encontramos em livros didáticos transmite apenas um recorte dos fatos. Omitir ou modificar o ocorrido, no entanto, não é necessariamente uma perda, mas sim parte de um processo, como explicado pela professora Matilde Maria Almeida Melo, do departamento de Ciências Sociais da PUC-SP: “o esquecimento faz parte da própria memória, a gente exclui elementos indesejáveis da memória coletiva. E a nossa história tem muita coisa esquecida, travestida inclusive, e isso faz parte da nossa própria construção histórica”.

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“o Descaso com a memória cultural é o reflexo Da

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Museu da Língua Portuguesa perde

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Por Julia castello Goulart, Kamila volci, julia castello e tatiana aguiar

uma imagem vale mais que mil palavras?

Todo ano, a editora do Dicionário Oxford, como forma de analisar a evo-

lução do inglês e a renovação de seu vocabulário, faz uma votação para a “palavra do ano”. Os critérios de escolha envolvem grande interesse do público e as palavras pré-selecionadas passam por um júri que avalia desde “significância cultural” até potencial duradouro na língua inglesa.

Em 2013, a palavra eleita foi “selfie”. Em 2014 foi “vape” (ato de fumar cigarros ele-trônicos). Mas o que mais impressionou muitos estudiosos foi que a palavra eleita de 2015 não foi uma palavra e sim um pictograma. Esse pic-tograma é um emoji, ou seja, as famosas “cari-nhas”, rindo com lágrimas nos olhos. A utilização do emoji iniciou sua popularização no Twitter e hoje está nas mais famosas redes sociais, como Facebook e Instagram.

No Brasil, em meados de 2015, houve a febre dos “livros de colorir”. Segundo uma pesquisa divulgada pela Nielsen Bookscan, no primeiro semestre de 2015, a venda dos livros de colorir foi responsável por 6,5% das vendas de exemplares e 4,65% do total faturado pelas livrarias. No auge das vendas, esses livros foram responsáveis por 17,34% de todas as obras vendidas no Brasil e 14,21 % do faturamento. O levantamento analisou 200 mil exemplares, dentre esses 89 livros de colorir.

Segundo esses dados, floresce a dúvida: será que os indivíduos estão trocando a escrita pela imagem, como uma forma mais fácil e ágil de comunicação? Ou será que os dois mecanis-mos de expressão se complementam a fim de tornar os diálogos mais didáticos?

Na pré-história, a pictografia era um sistema de comunicação por meio de figuras e símbolos, que tinha por função registrar ideias e acontecimentos. Com o passar do tempo, com a ajuda dos sumérios da Mesopotâmia, a escrita cuneiforme foi desenvolvida e de lá traçou seu progresso até os dias atuais.

Entretanto, durante o desenvolvimento mundial e a capacidade – ou incapacidade – de alguns governos em suprir as noções básicas de educação, o domínio da escrita foi distribuído em parcelas desiguais, o que dividiu os indivíduos entre ‘’alfabetizados’’ e ‘’não alfabetizados’’, garantido o monopólio da comunicação apenas a alguns grupos. Desta forma, os símbolos e figuras contribuem com a democratização dos meios de comunicação.

Há, entretanto, quem defenda a ideia de que o uso exacerbado das imagens é um retrocesso do desenvolvimento humano, visto que tornará os indivíduos mais acomodados e cada vez menos preocupados com o uso correto da língua. Contudo, há quem diga o contrário. ‘’Eu não diria que é algo negativo. Do mesmo jeito vamos pensar na linguagem escrita e na linguagem falada: não falamos exatamente como escrevemos. É mais prático escrever da forma que falamos. Então, é claro que é uma mudança de paradigma, mas, na minha opinião, a imagem vem para complementar e não para sobrepor. É uma forma de praticidade, outro modo de lin-guajar, o que não quer dizer que uma prevalece

Uso cada vez mais frequente de ícones na construção de diálogos pode limitar a interlocução humana

em detrimento da outra’’, afirma Renato Goulart, 40, diretor de desenvolvimento para o programa de parcerias do Facebook da América Latina.

Além disso, Renato também acredita que esse mecanismo contribui com a equiparação das classes sociais. ‘’É algo democrático, todos podem usar, independente da classe social. Nesse aspecto, nivelou muito’’, completou.

Segundo o diretor, a imagem é respon-sável por atingir um entendimento maior do público, uma vez que não necessita da interpre-tação textual. Mas, em contrapartida, utilizando seu senso crítico, o impacto que gera é menor. A imensa quantidade de imagens que é bom-bardeada ao longo do dia faz com que algumas passem desapercebidas ou, quando notadas, esquecidas logo em seguida.

Psicologia – Procurando analisar as transformações resultantes do uso de imagens, a psicanalista Fabiana Abdal relatou algumas de suas observações sobre determinadas influências em âmbito individual e social.

Em meio à característica pressa do mundo moderno, ao constante bombardeio de imagens e informações, milhares de pessoas buscam na psi-canálise a resposta para diversos conflitos internos que Fabiana acredita ter aumentado e se intensi-ficado. Ao contrário da terapia comportamental,

que trata o sintoma do paciente e tem efeito rápido, a psicanálise demanda tempo e busca a real causa do problema. Permitindo que o paciente tenha liberdade para se expressar e refletir.

“A minha profissão é a profissão da pala-vra, até o silêncio fala.” afirma ela, que acredita haver uma melhora do paciente durante as ses-sões apenas por possuir um espaço onde pode ser escutado.

Apesar de notar conflitos cada vez mais intensos nos pacientes devido ao desenvolvi-mento tecnológico, Fabiana não vê o contexto atual superior ou inferior a tempos passados. Acredita que seja apenas diferente, um período de transição, se sentindo incapaz de fazer pre-visões sobre uma sociedade futura e os reflexos da tecnologia sobre ela.

A profissional ressalta ainda que o contato físico permite diferentes formas de interação, como gesticulação ou alteração do tom de voz, tornando-se função dos emojis complementar o que não pode ser transmitido por palavras. Entretando, Fabiana, relaciona o uso dos emojis a uma conotação de mentira, por frequentemente não representar a real emoção de quem o utiliza perante o fato, permite facilmente forjar respos-tas, o que é mais difícil pessoalmente.

Em relação ao sucesso dos livros de colorir, Fabiana não os vê com uma função além da tera-pêutica. Trata-se de um ato que remete o adulto a sensações relacionadas à infância, que ao exigir concentração e delicadeza permite o usuário se distrair e focar sua atenção em algo belo.

O uso de imagens como forma de ex-pressão do homem – um meio antigo e eficaz, mas que atualmente vem sendo considerada uma ameaça às outras linguagens, da mesma forma como correu com a fotografia, o cinema, o rá-dio e televisão em sua respectiva época. Com a tecnologia e o desenvolvimento da comunicação virtual, as redes sociais e meios de comunicação virtual se apoderaram das figuras e símbolos, transformando a imagem em uma das linguagens mais utilizados durante os diálogos.

A incógnita se encontra na eficiência deste diálogo, visto que a expressão visual, o tom da voz e o modo da escrita não são levados em conta, como afirma a psicanalista Fabiana. Os pictogramas, as palavras abreviadas e os textos curtos se tornaram prioridade dentro do espaço virtual, devido à sensação ilusória de instantanei-dade que a internet proporciona.

Para a semiótica, ciência que estuda os símbolos, sua cultura e seus significados e como a percepção humana relaciona-se com eles, o homem se expressa e assimila informações cons-ciente e inconscientemente de diferentes formas e meios. Portanto, é natural que a imagem seja equiparada ao texto como forma de expressão, se levado em conta suas distinções linguísticas, sua função e interpretação, pois caso o contrário seu uso exacerbado sem sabedoria pode levar a uma simplificação e superficialidade que gera mais desinformação e ruído do que uma efetiva comunicação.

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Renato GoulaRt (facebook) e fabiana abdal (psicanalista):

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CONTRAPONTO�� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

O jornalismo sempre esteve indo e vindo pelas telas dos cinemas.

Cidadão Kane é um dos primeiros e mais clássicos exemplos de que o casamento entre as câmeras e a atividade jornalística rende momentos marcantes na história da sétima arte. Spotlight – Segredos revelados é mais um bom fruto dessa união. De roteiro inteli-gente, cada passagem do longa-metragem é uma exposição das boas práticas e questões éticas que os jornalistas enfrentam. Ou deve-riam enfrentar.

O filme narra a investigação do jornal Boston Globe sobre os casos de pedofilia por parte de membros da arquidiocese católica de Boston e a conivência do cardeal de Boston (interpretado por Len Cariou). A equipe de jornalistas responsável pela investigação é estrelada pelos bem conhecidos Michael Ke-aton (Walter Robinson), Mark Rufallo (Mike Rezendes), Rachel McAdams (Sacha Pfeiffer) e Bryan d’Arcy James (Matt Carroll).

Deixando de lado o clichê das ameaças físicas, o principal trunfo do diretor Tom McCarthy foi abordar os problemas morais e éticos pe-los quais os jornalistas passam na cobertura de casos como esse: Matt Carroll se vê dividido entre sua vida pessoal e sua profissão de jornalista; Walter Robinson percebe como na sua profissão eles estão constante-mente “tateando no escuro”, e que essa investigação poderia ter sido feita anos antes; Mike Rezendes levanta a questão da responsabilidade editorial, ou seja, publicar a melhor foto ou a melhor história sempre implica pensar nos impactos que tal informação pode ter, principalmente em denúncias envolvendo direitos humanos.

E da fronteira entre os dois estados, a menina do uai ultrapassa a ponte

onde um dia conflitou café com leite. De uma cidade pequena para uma cidade grande, ela vê o mundo com olhos mais abertos. Olhos curiosos por um mundo muito diferente. Em vez de árvores, os prédios se juntam e formam pequenos lares. Pessoas passam grande parte do seu tempo esperando. Esperam em filas para comer, em filas para usar o banheiro, em filas para o caixa do supermercado, da farmácia, para usar um transporte, ou para chegar a suas casas depois de um dia longo no trabalho.

São muitas pessoas, muito mais do que havia em sua cidade. Ela os olha, entretanto estão todos ocupados. Possuem compromissos, horários, problemas. Imagina o que cada um é ou o que gostaria de ser, seus sonhos e receios. Passa um tempo na janela criando histórias para a senhora que atravessa a rua sozinha, para o menino que não está na escola e sim vendendo balas, para o homem engravatado discutindo ao telefone.

Por um momento, ela não consegue entender as pessoas. Nem a cidade. Já que a cidade grita o tempo todo para ser vista, para ser cuidada, para ser descoberta, e ninguém possui tempo de escutar. As pessoas sentam, passam por muitas outras, e não as enxergam. Não se importam em dar um “bom dia”. O rio da sua cidade é poluído. O rio dessa nova cidade não é um rio. Era um rio. Ela percebe que as pessoas têm medo. E ela tem também. Não medo de ser assaltada, sequestrada, estuprada, mas medo do que pode acontecer com aqueles que moram debaixo da ponte, dentro de uma caixa, dentro das suas esperanças de

se mudar para um lugar melhor. Por um momento, sente-se impotente.

O menino quer vender as balas, e ela as com-pra. Mas queria dar-lhe um livro, um bolo de chocolate, porque toda criança gosta. Ajuda a senhora a atravessar a rua, mas gostaria de dar-lhe um cachorro, para que ela não se sentisse tão só. Ela segura o elevador para o homem engravatado, mas queria lhe dar umas férias com a família. A vontade de fazer algo crescia dentro dela e enchia seu coração como nunca antes. De repente, ela conheceu outras pessoas. Pessoas que pegavam filas, que pegavam trânsito, que tinham compro-missos, horários e problemas, tinham medos, contudo queriam escutar a cidade. Pessoas que liam os pedidos de socorros, de revolta, de amor, de poesia nas paredes da grande cidade. E aquela cidade preta e branca se tornou colorida.

A cidade foi se tingindo de oportuni-dades, de conhecimento. Ela via pessoas de várias regiões do Brasil. Conheceu o sotaque, a praticidade dos paulistas. Conheceu o bairro

de imigrantes, conheceu o bairro daqueles que viviam um pouco longe do centro, mas possuíam sua escola, seu supermercado, seus pequenos lares. E por um momento ela se sentiu em “Lá vou eu” da Rita, “São Paulo, São Paulo” de Premê, ”Sampa no Walkman” dos Engenheiros. E como em “Sampa” de Caetano, ”E os Novos Mineiros passeiam na tua garoa, E novos mineiros te podem curtir numa boa”.

O senso comum muitas vezes leva a crer que ser jornalista é apenas arrancar as informações de suas fon-tes. A interação de Sacha Pfeiffer (Ra-chel McAdams) com seus entrevistados deixa claro que ser jornalista é sentir a dor do próximo. Mark Rufallo fornece boa atuação durante todo o filme, e o momento mais marcante do longa com certeza é entre ele e Michael Kea-ton. A discussão entre os dois prende o fôlego, e o assunto delicado do plano de fundo ganha novo peso.

Quanto à cinematografia, nas cenas externas é forte a presença de igrejas ao fundo, reforçando o poder onipresente delas na cidade de Boston. Além disso, a todo instante em que os repórteres estão com um padre ou com uma vítima, há crianças passando em volta. Por outro lado, as cenas dentro de escritórios

cumprem o papel de recriar, junto com o roteiro, a atmosfera das antigas investigações. Sobre o roteiro, trabalho de Tom McCarthy e Josh Singer, não deixa de abordar nenhum aspecto relevante e faz jus à estatueta de Melhor Roteiro Original que recebeu no Oscar.

Com cinematografia que representa bem o pomêmico tema da “pedofilia na Igreja” e um elenco que não decepciona, Spotlight traz uma história sobre jornalismo com o trunfo de abrir espaço para discutir a turbulência pela qual a profissão passa, ao mesmo tempo em que mostra o outro lado da moeda: as possibilidades que ela abriga.

as perguntas que não entram na reportagem

o outro lado da ponte

Por Pedro Prata

Por Julia castello Goulart

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Spotlight – SegredoS reveladoS Direção: Tom mccarThy

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��CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Março 2016

■ Mídia oficializa apoio ao impeachment

As edições do dia 29 de março dos jornais Estadão, Folha de S. Paulo, O Globo e Correio Braziliense estamparam ao longo de 14 páginas uma faixa amarela a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT). Tratou-se de uma campanha financiada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e quase 400 entidades ligadas a ela.

Desde meados do ano pas-sado, a Fiesp se tornou um dos apoiadores mais determinados da saída da presidenta. Além disso, a partir do momento em que a movimentação pelo processo de impeachment começou, os conglomera-dos midiáticos passaram a dar mais destaque à cobertura desse tema.

Contudo, se no começo do ano passado os jornais apresentavam cautela quanto ao seu posicionamento, conforme os eventos foram avançando, a empatia pelo processo tornou-se cada vez mais perceptível. Essa empatia se tornou simpatia com a peça publicitária da Fiesp estampada em suas páginas, momento em que a grande mídia se engaja na campanha de forma decisiva, ponto do qual não poderá voltar atrás.

■ Ameaça do fenômeno Trump torna-se cada vez mais real nos Estados Unidos

Quando anunciou que disputaria as prévias para ser o candidato do Partido Republicano para as eleições presidenciais dos Estados Uni-dos de 2016, o magnata bilionário Donald Trump foi tratado como piada. O jornal Huffington Post optou por publicar a cobertura de sua campanha na área de entretenimento por considerá-la um “grande espetáculo”.

Quem está rindo à toa agora é Trump. Nove meses depois, dos 32 estados que já tiveram suas prévias realizadas, o candidato venceu em 20 e ficou em segundo em outros nove. O candidato tem preocupado des-de o presidente Barack Obama até experientes políticos do próprio Parti-do Republicano, além de grupos de direitos huma-nos, empresas do Vale do Silício e até mesmo Angela Merkel, chance-ler alemã, e o Parlamento britânico demonstraram preocupações.

A reação vem porque, entre outras coisas, ele defende publicamente a expulsão de todos os imigrantes do país, a construção de um muro na fronteira com o México e o uso de tortura em interrogatórios. Todos riam de Trump no começo. Agora, a ameaça de sua figura como representante do Partido Republicano torna-se cada vez mais palpável.

Por andressa vilela, carol rocha, Helena Benfica e Pedro Prata

■ PMDB rompe com governo Dilma

No último dia 29, em uma reunião que durou menos de cinco minu-tos, o PMDB aprovou uma moção que consolidou o rompimento do partido com o governo da presidenta Dilma Rousseff (PT), com recomendação de entrega imediata dos cargos no governo federal.

Na moção aprovada, o partido defende a saída do governo Rousseff elencando uma série de problemas como crises “econômica, moral e política”. Além disso, considera que a manutenção do partido na base aliada do governo não condiz com a pretensão da legenda de lançar seu próprio candidato à presidência em 2018.

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Campanha promovida pela FIESP nos grandes jornais

■ Estado Islâmico ataca Bruxelas

No dia 22 de março, terça-feira, a cidade de Bruxelas, na Bélgica, foi alvo de um atentado que deixou dezenas de mortos e feridos. Os ataques ocorreram no Aeroporto Internacional de Zaventem e na estação de metrô Maelbeek, dois pontos muito movimentados da cidade, e foram reivindicados pelo Estado Islâmico.

O ataque reacendeu na Europa a preocupação com a ameaça terrorista, que se soma à crise de refugiados e também à recessão causada pela crise econômica. A Bélgica ativou o nível de alerta máximo, e escolas, museus, hospitais e transporte público pararam de funcionar ou aumentaram ao máximos os níveis de vigilância.

As investigações sobre as células do EI que atacaram Bruxelas já se expande por toda a Europa, prisões de suspeitos de ligação com as ramificações do grupo já foram realizadas em cinco países.

■ Jornalistas repudiam agressões a profissionais da área

Após repórteres terem sido agredidos durante a cobertura do depoimento do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, no aeroporto de Congonhas, para a Operação Lava Jato, algumas entidades lançaram notas de repúdio ao acontecido e cobraram respeito aos profissionais.

Segundo a Federação Nacional dos Jor-nalistas (Fenaj), a violência cometida só interessa aos inimigos da demo-cracia, além de ferir uma das bases da prática jornalística e democrática, que é a liberdade de imprensa.

Houve também um encontro entre lideranças do setor da comunicação social e o ministro-chefe da Secreta-ria de Comunicação Social da Presi-dência da República (SECOM) para discutir os crescentes casos de exces-sos e ataques à segurança cometidos contra jornalistas, que chegam a 57 desde o início do ano.

■ Federação dos Jornalistas homenageia mulheres da profissão

No dia em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher, a Fede-ração Nacional dos Jornalistas (Fenaj) dedicou homenagens a todas as tra-balhadoras brasileiras, especialmente às do ramo jornalístico, e chamou a atenção do governo para a necessi-dade da implementação de políticas de igualdade de gênero.

No Brasil, o diagnóstico do Mapa da Vio-lência 2015 aponta 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, colocando o país na 5º posição. A situação piora quando se trata de questão racial, quando o número de homicídios de brancas caiu 9,8%, enquanto o de negras aumentou em 54,2% entre 2003 e 2013. O resultado é alarmante e mostra a necessidade de que a Lei do Feminicídio (lei que pune aquele que persegue e mata, intencional-mente, pessoas do sexo feminino), sancionada em março de 2015, seja cumprida.

O texto foi escrito pelo peemedebista baiano Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Integração Nacional, e em momento algum cita o impeachment. Após a decisão, os presentes comemoraram, bradando “Brasil pra frente, Temer presidente”. Vale ressaltar que o vice-presidente não abandonou seu cargo, apesar da posição do partido.

Além dele, os ministros da Saúde, Marcelo Castro, e de Ciência e Tecnologia, Celso Pansera, já manifestaram desejo de continuar nos cargos. Atualmente, o partido ocupa os ministérios de Avia-çao Civil, Agricultura, Minas e Energias e Portos.

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Trump: onda conservadora

Jornalistas e manifestantes

são agredidos em manifestação pró-Lula

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Fenaj dedica homenagem a todas

as trabalhadoras brasileiras

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moldam antes de se lançar, visando alcançar um ideal de perfeição, levando ao desejo dos homens e à admiração das mulheres.

A problemática desta questão é que, na busca por um ideal irreal de beleza, muitas destas talentosas artistas se perdem em procedimen-tos estéticos absurdos e até mesmo distúrbios alimentares gravíssimos. Sobre isso, Gabriela afirma, “eu acredito que para se desvencilhar disso, nós temos que incorporar a nossa verda-de, o que queremos transmitir para as pessoas. E tem que ser exigente com você mesmo para não cair nesse mercado. Até porque quando subo no palco não é para mostrar meu corpo, mas minha música”.

O machismo pode ir além da relação ar-tista-público e se mostrar ainda mais profundo e implícito nas relações entre produtor e artista. Este se dá não só apenas quando há uma insinuação da parte do produtor, que passa de questões meramente profissionais para questões amorosas, mas também quando este se superpõe à artista, demonstrando posse ou superioridade. Segundo a cantora Alessandra Freire, de 44 anos, “muitos produtores se sentem donos da artista e talvez a relação homem-produtor mulher-artista insinue para um homem machista a relação de posse”.

O caso Ke$ha – Dr. Luke é um famoso produtor musical, responsável por trazer a can-tora americana Ke$ha para a indústria musical hollywoodiana e produtor executivo dos dois álbuns de sucesso lançados pela cantora. Desde o ano passado, entretanto, a artista move na justiça um processo contra produtor, alegando diversos abusos sexuais e psicológicos por parte dele, na esperança de romper o contrato com Luke e sua produtora Sony para que pudesse prosseguir trabalhando com outras gravadoras. Ke$ha afir-ma em processo que o produtor a manipulava, pressionando-a a perder peso, o que levou-a à uma internação em um clínica de reabilitação no ano de 2013, além de ter relatado que, mais de uma vez, o produtor haveria a drogado e a embebedado para abusar sexualmente dela.

Dr. Luke alegou que a artista teria inven-tado essas acusações, pois sua carreira estaria

mulheres no mundo artístico: muito além das aparências

Lugar de mulher é onde ela quiser. Inclusive, no mundo da música. Desde

que a música é música, mulheres vem inspirando canções e seus artistas. Mas foi após séculos en-frentando o machismo, que elas puderam virar as musas de suas próprias canções, conquistando o direito de compor e apresentá-las. Apesar disso, a sociedade segue longe de um ideal quanto a igualdade de gênero. As mulheres são altamente admiradas por seu talento e graça no palco, mas podem ter suas carreiras ameaçadas a partir do momento em que contestam o patriarcado e que usam seu timbre para dar voz a lutas defendidas por elas.

No Brasil, as mulheres passaram a se destacar na música popular brasileira a partir da década de 30. Desde então, grandes nomes sur-gem para dividir o cenário musical. Atualmente, com a crescente onda do feminismo, as mulhe-res vem colocando em suas letras um recente, mas crucial tema: o empoderamento feminino. Valeska Popozuda vai até o chão afirmando que “a buceta é minha”, Carol Konká dá o recado, “mamasita fala, vagabundo senta”, e a MC Luana Hansen manda a rima: “vivendo num sistema machista e patriarcal, onde se espancar uma mulher é natural”. Tudo isso como prova de que as artistas vêm conquistando seu espaço cada dia mais e que, muito além de promover entretenimento, elas buscam, com sua arte, dar voz às mulheres.

Outra artista que vem se destacando na luta pelo empoderamento feminino é a norte-americana Beyoncé. A cantora tem um histórico de encorajar, em suas letras, valores feministas. Além disso, ela tem demonstrado um posicio-namento cada vez maior nas questões raciais, sendo o ápice disso sua apresentação no Super Bowl (jogo decisivo da principal liga de futebol americano dos Estados Unidos). Na ocasião, ela exaltou símbolos da cultura negra e criticou a ação da polícia com esta população. A partir dis-so, a cantora passou a ser alvo de diversas críticas frente a seu posicionamento político.

Essa é a repetição de uma história que já acontecia décadas atrás. A cantora Nina Simone, por exemplo, alavancou sua carreira com um talento nato para o jazz. Foi aclamada ao redor dos Estados Unidos com sua belíssima voz e habi-lidade com o piano mas, ao se tornar uma ativista pelos direitos civis norte-americanos, passou a ver sua carreira ruir e enfrentou obscuras fases de sua vida e carreira. O que parece com este e outros exemplos é que a mulher é bem vinda no cenário musical desde que tenha o intuito de entreter. A partir do momento em que ela começa a levantar questões que movimentam a estrutura social já tão confortável para as classes privilegiadas, é hora de sabotar sua carreira.

Além disso, artistas mulheres sofrem pres-sões e cobranças que os homens, por uma simples questão de gênero, não precisam se preocupar. Os constantes holofotes, paparazzi e revistas exigem que as cantoras, mais do que talentosas, estejam de acordo com o padrão de beleza que conside-ram ideal. Parte do sucesso da grande maioria delas, depende de uma boa imagem para os olhos hollywoodianos. Em entrevista, a cantora Gabriela Fernandes, de 21 anos, diz que muitas artistas se

Por ana Beatriz Pattoli, clara marques, Giulia villa real,

mariana castro e Paula Zarif

estagnada, e simultaneamente abriu um pro-cesso contra a cantora. Por decisão da Justiça, a quebra de contrato requisitada pela cantora (que tem prazo para acabar apenas no ano de 2017) não foi permitida, obrigando-a a conviver com Luke.

A decisão causou grande tumulto e indig-nação por parte de seus fãs, que imediatamente criaram o movimento “#freeKe$ha” (Ke$ha livre), e que ganhou repercussão mundial de diversas mulheres de grande nome no meio musical como Lady Gaga, Ariana Grande, Lilly Allen, Taylor Swift, Demi Lovato e Adele, que atualmente possui contrato também com a pro-dutora Sony e declarou no Grammy total apoio a causa de Ke$ha.

Devido à tamanha repercussão tomada, a Corte de Nova York revogou sua decisão es-tabelecendo que a cantora pode trabalhar com qualquer outro produtor da gravadora Sony, e não necessariamente Luke. A gravadora ainda não determinou se haverá a demissão de Dr. Luke.

A Justiça – Já de acordo com a legislação brasileira, o abuso mental e sexual só é um mo-tivo para quebra de contrato se estiver explícito, o que em muitos casos não ocorre. Assim se o caso for levado à justiça o agressor é punido, mas na maioria dos casos não envolve a quebra contratual. O que mostra como a própria justiça já se prepara constitucionalmente para que haja a diminuição da relevância desses casos ocorridos no meio artístico. Em entrevista, a advogada Paula Pagliari expõe “o que ocorre muitas vezes, principalmente com autoridades, é sempre a tentativa de diminuição do sofrimento da mulher, ou tentativa de culpabilização da vítima de abuso ou violência de gênero de qualquer tipo”, mas também alerta “a gente tem que tomar cuida-do com a postura de tomar uma verdade como absoluta e ponto final”.

O pseudoglamour do mundo artístico na verdade esconde uma situação que permeia todas as mulheres, e somente o amadureci-mento da sociedade será capaz de superar as desigualdades.

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O caso da cantora Ke$ha traz à tona a desigualdade de gênero entre artistas

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Alessandra Freire, 44 anos, em show

Gabriela Fernandes, 21 anos, em show

Cantora Kesha e seu produtor Dr. Luke em

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