contos de urupês

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O Mata-pau “Píncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de mataria virgem, sombria e úmida, tramada de taquaruçus, afestoada de taquaris, com grandes árvores velhas de cujos galhos pendem cipós e escorrem barbas-depau e musgos.. Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, ao emboscar-se de chofre no frio túnel vegetal que é ali a estrada, inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco afeito aos aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. Extasia- se ante a graciosa copa dos samambaiuçus, ante as borboletas azuis, ante as orquídeas, os liquens, tudo. Sofrea o animal sem o sentir mas não pára. Vai parar diante, na Volta Fria, onde um broto d’água gelada, a fluir entremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caeté. Bebida a água, e dito que nas cidades não há daquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina o grotão. - Que raio de árvore é esta? – pergunta ele ao capataz, pasmado mais uma vez. E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvore assassina. Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada respondeu à terceira; – Não vê que é um mata-pau. - E que vem a ser o mata-pau? – Não vê que é uma árvore que mata outra. Começa, quer ver como? – disse ele escabichando as frondes com o olhar agudo em procura dum exemplar típico. Está ali um! – Onde? – perguntei, tonto. - Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele cedro – continuou o cicerone, apontando com dedo e beiço uma parasita mesquinha grudada na forquilha de um galho, com dois filamentos escorridos para o solo. – Começa assinzinho, meia dúzia de folhas piquiras; bota p’ra baixo esse fio de barbante na tenção de pegar a terra. E vai indo, sempre naquilo, nem p’ra mais nem p’ra menos, até que o fio alcança o chão. E vai então o fio vira raiz e pega a beber a sustância da terra. A parasita cria fôlego e cresce que nem embaúva. O barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau de caibro e acaba

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Page 1: Contos de Urupês

O Mata-pau

“Píncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de mataria virgem, sombria e úmida, tramada de taquaruçus, afestoada de taquaris, com grandes árvores velhas de cujos galhos pendem cipós e escorrem barbas-depau e musgos..Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, ao emboscar-se de chofre no frio túnel vegetal que é ali a estrada, inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco afeito aos aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. Extasia-se ante a graciosa copa dos samambaiuçus, ante as borboletas azuis, ante as orquídeas, os liquens, tudo.Sofrea o animal sem o sentir mas não pára. Vai parar diante, na Volta Fria, onde um broto d’água gelada, a fluir entremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caeté. Bebida a água, e dito que nas cidades não há daquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina o grotão.- Que raio de árvore é esta? – pergunta ele ao capataz, pasmado mais uma vez.E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvore assassina.Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada respondeu à terceira; – Não vê que é um mata-pau.- E que vem a ser o mata-pau? – Não vê que é uma árvore que mata outra. Começa, quer ver como? – disse ele escabichando as frondes com o olhar agudo em procura dum exemplar típico. Está ali um! – Onde? – perguntei, tonto.- Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele cedro – continuou o cicerone, apontando com dedo e beiço uma parasita mesquinha grudada na forquilha de um galho, com dois filamentos escorridos para o solo. – Começa assinzinho, meia dúzia de folhas piquiras; bota p’ra baixo esse fio de barbante na tenção de pegar a terra. E vai indo, sempre naquilo, nem p’ra mais nem p’ra menos, até que o fio alcança o chão. E vai então o fio vira raiz e pega a beber a sustância da terra. A parasita cria fôlego e cresce que nem embaúva. O barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau de caibro e acaba virando tronco de árvore e matando a mãe, como este guampudo aqui – concluiu, dando com o cabo do relho no meu mata-pau.- Com efeito! – exclamei admirado. – E a árvore deixa? – Que é que há de fazer? Não desconfia de nada, a boba. Quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que é parasita e não se precata. O fio, pensa que é cipó. Só quando o malvado ganha alento e garra de engrossar, é que a árvore sente a dor dos apertos na casca.Mas é tarde. O poderoso daí por diante é o mata-pau. A árvore morre e deixa dentro dele a lenha podre.Era aquilo mesmo! O lenho gordo e viçoso da planta facinorosa envolvia um tronco morto, a desfazer-se em carcoma. Viam-se por ele arriba, intervalados, os terríveis cíngulos estranguladores; inúteis agora, desempenhada já a missão constritora, jaziam frouxos e atrofiados.Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes de Laocoonte, na víbora aquecida no seio do homem da fábula, nas filhas do rei Lear, em todas as figuras clássicas da ingratidão. Pensei e calei, tanto o meu companheiro era criatura simples, pura dos vícios mentais que os livros inoculam. Encavalgamos de novo e partimos.Não longe dali a serra complana-se em rechã e a mata mingua em capoeira rala, no meio da qual, em terreiro descoivarado, entremostra-se uma tapera. Esverdece o melão-de-são-caetano por sobre o derruído tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-de-passarinho e uma ou outra planta doméstica marasmam agoniadas pelo mato sufocante.

Page 2: Contos de Urupês

- Antigo sítio do Elesbão do Queixo d’Anta, explicou o camarada.- Largado? – perguntei.- Há que anos! Des’que mataram o homem ficou assim.Bacorejou-me história como as quero.- Mataram-no? Conte lá isso como foi.O camarada contou a história que para aqui traslado com a possível fidelidade. O melhor dela evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por quem nunca aprendeu a colocação dos pronomes e por isso mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas inteiras, e gramáticas, na ânsia de adquirir o estilo. Grandes folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no dizer como ninguém.Elesbão morava com o pai no Queixo d’Anta, onde nascera. Quando a puberdade lhe engrossou a voz, disse ao velho: – Meu pai, quero casar.O pai olhou para o filho pensativamente; em seguida falou: – Passarinho cria pena é para voar. Se você já é homem, case.O rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.O pai refletiu e disse: – Derrube o jataí da grotinha, sem tomar fôlego.Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu o pau. Em toada de compasso, bateu firme a manhã inteira.À hora do almoço, o pan pan continuava sem esmorecimento. Só quando o sol aprumou no pino é que a madeira gemeu o primeiro estalido.- Está no chão – disse o pai, que se acercara do filho exausto mas vitorioso. – Pode casar. É homem.Elesbão trazia d’olho uma menina das redondezas, filha do balaieiro João Poca, a Rosinha, bilro sapiroquento de treze anos, feiosa como um rastolho.- Meu pai, eu quero a Rosinha Poca.- Case. Mas ouça o que digo. Os Pocas não são boa gente. Os machos ainda servem – o João é um coitado, o Pedro não é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. A mãe da Rosa é falada. Laranjeira azeda não dá laranja-lima. Você pense.- Meu pai, o futuro é de Deus. Eu quero casar com a Rosinha.- Pois case.Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se.Arrendou a rechã da tapera, roçou, derrubou, queimou, plantou, armou a choça. Barreadas que foram as paredes, pediu a menina e casou-se.Rosa só o era no nome. No corpo, simples botão inverniço, desses que melam aos frios extemporâneos de maio.Olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a mãe. Feia, mas da feiúra que o tempo às vezes conserta. Talvez se fiasse nisso o noivo.Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos três anos de labuta era já sitiante de monjolo, escaroçador e cevadeira,  com dois agregados no eito.Prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa.Mas resignavam-se já ao vazio da esterilidade quando certa noite soou choro de criança no terreiro.Não se conta o terror de ambos – aquilo era na certa alma penada de criança morta pagã. Como, entretanto, a pobre alma berrasse com pulmões muito da terra, e cada vez mais, Elesbão duvidou do bruxedo e, acendendo uma braçada de palha, lançou-a fora pela janela. O terreiro clareou até longe e eles viram, a pouca distância, uma criaturinha de gatas a berrar com desespero de quem é absolutamente deste mundo.

Page 3: Contos de Urupês

- E não é que é uma criança de verdade? – exclamou ele, saído de um assombro e entrado noutro. – E agora? – Pois é recolhê-la, disse Rosa, cujo instinto de mulher só via no caso um pobre enjeitadinho ao léu, a reclamar conchego.Recolheu-o Elesbão, depondo o chorincas no colo da esposa. Rosa o estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmo tempo que “assentava” o marido.- Se não aparecer a mãe, cria-se o aparecido. Faz tanta falta um chorinho por aqui…No dia seguinte bateram nas vizinhanças em indagações, sem nada colherem explicativo do estranho caso. Resolveram, pois, adotar o pequeno.o pai de Elesbão, consultado, ponderou: – Não presta criar filho alheio.Mas como o consulente armasse cara de vacilação, remendou logo a sua filosofia: – Também não é caridade enjeitar um enjeitado – e ficou-se nisso.Rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à força de leite de cabra e caldinhos.À medida, porém, que medrava, o menino punha a nu a má índole congenial. Não prometia boa coisa, não.- Eu avisei, recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da ruim casta do recolhido.- Meu pai disse também que não era caridade enjeitar um enjeitado…- É verdade, é verdade… – confirmou o filósofo de péno-chão, e calou-se.Manuel Aparecido era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados e cabelos louros de milho, denunciadores de origem estrangeira, puseram-lhe os vizinhos a alcunha de Ruço.Ganhou fama de madraço, e o era perfeito, inimigo de enxada e foice, só atento a negociatas, barganhas, espertezas. Amado pela Rosa como filho, livrava-o ela da sanha do esposo escondendo suas malandragens, porque Elesbão vivia ameaçando endireitá-lo a rabo de tatu.Não endireitou coisa nenhuma. Com dezoito anos era o Ruço a peste do bairro, atarantador dos pacíficos e traiçoeiro para com os escoradores.- É ruim inteirado! – dizia o povo.Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta anos.Como a não estragaram filhos, nem se estragou ela em grosseiros trabalhos de roça, valia muito mais do que em menina. O tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes a boa vida. De tal forma consertou que todo o mundo gabava o arranjo.- Ninguém perca a esperança. Olhem a mulher do Elesbão, aquela Poquinha sapiroquenta, como está chibante!…A sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura.Na roça, gordura é sinônimo de beleza – gordura e “olhos azuis que nem uma conta”…Além disso, Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida de boas chitas da sua cor, cabelos bem alisados para trás, torcidos em pericote lustroso à força de pomada de lima, não havia na serra pimpona assim nem moça de fazenda com pai coronel.Suas relações com o Ruço, maternais até ali, principiaram a mudar de rumo, como quer que espigasse em homem o menino. Por fim degeneraram em namoro – medroso no começo, descarado ao cabo. A má casta das Pocas, desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se em plena sazão calmosa. O verão das Pocas! Que forno…Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores. Boas línguas, e más, boquejavam o quase incesto.Quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo Elesbão; e como na porta dos seus ouvidos paravam os rumores do mundo, a vida das três criaturas corria-lhes na toada mansa a que se dá o nome de felicidade.Foi quando caiu de cama o pai de Elesbão, doente de velhice.

Page 4: Contos de Urupês

Mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quem está com o pé na cova: – Meu filho, abra os olhos com a Poca…- Por que fala assim, meu pai? O velho ouvira o zunzum da má vida; vacilava, entretanto, em abrir os olhos ao empulhado. Correu a mão trêmula pela cabeça do filho, afagou-a e morreu sem mais palavra. Sempre fora amigo de reticências, o bom velho.Elesbão regressou ao sítio com aquele aviso a verrumarlhe os miolos. Passou dias de cara amarrada, acastelando hipóteses.Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa caiu em guarda. Chamou de banda o Ruço e disse-lhe: – Lesbão, des’que morreu o pai, anda amode que ervado. Mas não é sentimento, não. Ele desconfia… As vezes pega de olhar para mim dum jeito esquisito, que até me gela o coração…Manuel segurou o queixo e refletiu. Continuar naquela vida era arriscado. Ir-se, pior; nada possuía de seu e trabalhar para outrem não era com ele. Se Elesbão morresse…Não se sabe se houve concerto entre os amásios. Mas Elesbão morreu. E como! Certa vez, de volta da vila próxima ali pelo escurecer, caiu de borco na Volta Fria, barbaramente foiçado na nuca.Descobriram-lhe o cadáver pela manhã, bem rente ao mata-pau.A justiça, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira… Desconfiou do Ruço – mas cadê provas? Era o Ruço mais fino que o delegado, o promotor, o juiz – mais até que o vigário da vila, um padre gozador da fama de enxergar através das paredes…A viúva chorou como mamoeiro lanhado – fosse de sentimento, de remorso ou para iludir aos outros. Talvez sem cálculo nenhum pelos três motivos.Manuel permaneceu na casa. Viviam como filho e mãe, dizia ela; como marido e mulher, resmungava o povo.O sítio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do plantado, sem lembrança de meter na terra novas sementes.O moço ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no Oeste, e como Rosa relutasse deu de maltratá-la.Estes amores serôdios são como a vide: mais judiam deles, mais reviçam. Às brutalidades do Ruço respondia a viúva com redobros de carinho. Seu peito maduro, onde o estio no fim anunciava o inverno próximo, chamejava em fogo bravo, desses que roncam nas retranças dos taquaruçuzais. E isso vingava Elesbão, esse amor sem jeito, sem conta, sem medida, duas vezes criminoso sobre sacrílego e, o que era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.- Coroca! Sapicuá de defunto! Cangalha velha! Não havia insulto com o pião do veneno plantado na nota da velhice que lhe não desfechasse, o monstro.Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus! Saias a ruflar tesas de goma, pericote luzidio recendente a lima, quando mais? – O Ruço dá cabo dela, como deu cabo do marido – e é bem-feito.Voz do povo…Um dia o Ruço ameaçou de largá-la, se não vendesse tudo, já e já; e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira prova de amor. Vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo esforço do defunto – a moenda, o monjolo, a casa, o canavial em soca. E combinaram para o outro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.Nessa noite Rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. A casa ardia. Saltou como louca da enxerga e berrou pelo Ruço. Ninguém lhe respondeu.Atirou-se contra a porta: estava fechada por fora. O instinto fê-la agarrar o machado e romper a furiosos golpes as tábuas rijas. Escapa-se da fornalha, rola para o terreiro com as vestes em fogo, precipita-se no tanque e, livre das chamas, cai inerte para um lado – justamente onde vinte anos atrás vira o enjeitadinho chorando ao relento…

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Quando de manhã passantes a recolheram, estava d’olhos pasmados, muda. Levaram-na em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas nunca mais do juízo.Foi feliz, Rosa. Enlouqueceu no momento preciso em que seu viver ia tornar-se puro inferno.- E o Ruço? – Abalou com o dinheiro…Aí parava a história do Elesbão, como a sabia o meu camarada. Um crime vulgar como os há na roça às dezenas, se a lembrança do mata-pau o não colorisse com tintas de símbolo.- Não é só no mato que há mata-paus!… – murmurei eu filosoficamente, à guisa de comentário.O capataz entreparou um momento, como quem não entende. Depois abriu na cara o ar de quem entendeu e gostou.- Não é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavra que merece escrita. É tal e qual…E calou-se, de olho parado, pensativo.”

Bocatorta (Monteiro Lobato) A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo acima um famoso pântano. Pego de insidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuíra de longo bico, e saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso, rãs, mimbuias pensativas e, a rabear nas poças verdinhentas de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo, enfim, como cem outros.

Notabiliza-o, porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura.

Dois, três bambus emendados que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se na lama sem alçar pé.

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Além de vários animais sumidos nele, conta-se o caso do Simas, português teimoso que, na birra de salvar um burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelo barro maldito. Desd'aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das bocas do próprio inferno.

Transposto o abismo, a vegetação encorpa, até formar a mata por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.

Na manhã daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta da cidade. Além do velho, de sua mulher Don'Ana e de Cristina a filha única, vinha a passeio o bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça. Chegaram e agora ouviam na varanda, da boca do Vargas, fiscal, a notícia do sucedido durante a ausência. Já contara Vargas do café, da puxada dos milhos e estava na criação.

- Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um capadete malhado dos "Polancham", há duas semanas que moita. Para mim - ninguém me tira da cabeça - o ladrão foi o negro, inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do maldelazento. Aquilo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não "querem" me acreditar...

O major sorriu àquele "querem". Vargas, com ojeriza velha ao mísero Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir malefícios e de estumar o patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa Senhora! até enguiçava uma fazenda...

Interessado, o moço indagou da estranha criatura.

- Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major. Filho duma escrava de meu pai, nasceu, o mísero, disforme e horripilante como não há memória de outro. Um monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho, escondido no mato, donde raro sai e sempre de noite, O povo diz dele horrores - que come crianças, que é bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime único é ser feio demais. Como perdeu a medida, está a pagar o crime que não cometeu...

Vargas interveio, cuspilhando com cara de asco: - Se o doutorzinho o visse!... É a coisa mais nojenta deste mundo.

- Feio como o Quasímodo? - Esse não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou jurando que o negro passa diante do... como é? Eduardo apaixonava-se pelo caso.

- Mas, amigo Vargas, feio como? Por que feio? Explique-me lá essa feiúra.

Grande parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e disse: - O doutor quer saber como é o negro? Venha cá.

Vossa Senhoria 'garre um juda de carvão e judie dele; cavoque o buraco dos olhos e afunde dentro duas brasas alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois; 'ranque os dentes e só deixe um toco; entorte a boca de viés na cara; faça uma coisa desconforme, Deus que me perdoe.

Page 7: Contos de Urupês

Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés. Quando cansar, descanse.

Corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o pior no estupor. Quando acabar 'garre no juda e ponha rente de Bocatorta. Sabe o que acontece? O juda fica lindo!...

Eduardo desferiu uma gargalhada.

- Você exagera, Vargas. Nem o diabo é tão feio assim, criatura de Deus! - Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se acredita. Aquilo é feiúra que só vendo! - Nesse caso quero vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.

Nesse momento surgiu Cristina à porta, anunciando café na mesa.

- Sabe? - disse-lhe o noivo. - Temos um belo passeio em perspectiva: desentocar um gorila que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.

- Bocatorta? - exclamou Cristina com um reverbero de asco no rosto. - Não me fale. Só o nome dessa criatura já me põe arrepios no corpo.

E contou o que dele sabia.

Bocatorta representara papel saliente em sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-na as mucamas com a cuca, e a cuca era o horrendo negro. Mais tarde, com ouvir às crioulinhas todos os horrores correntes à conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicável pavor ao notâmbulo. Houve tempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo a atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela, em transes, a fugir. Gritava por socorro, mas a voz lhe morria na garganta. Despertava arquejante, lavada em suores frios.

Curou-a o tempo, mas a obsessão vincara fundos vestígios em su'alma.

Eduardo, não obstante, insistia.

- É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru da realidade para desmanchar exageros de imaginação.

Vamos todos, em farrancho - e asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu dó.

Cristina consultou-se por uns momentos e: - Pode ser - disse. - Talvez vá. Mas não prometo! Na hora verei se tenho coragem...

A maturação do espírito em Cristina desbotara a vivacidade nevrótica dos terrores infantis. Inda assim vacilava.

Renascia o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosa de Jericó ao contato de uma gota d'água. Mas vexada de aparecer aos olhos do noivo tão infantilmente medrosa,

Page 8: Contos de Urupês

deliberou que iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível sombra anuviou-lhe o rosto.

Ao jantar foram o assunto as novidades do arraial - eternas novidades de aldeias, o Fulano que morreu, a Sicrana que casou. Casara um boticário e morrera uma menina de quatorze anos, muito chegada à gente do major. Particularmente condoída, Don'Ana não a tirava da idéia.

- Pobre da Luizinha! Não me sai dos olhos o jeito dela, tão galante, quando vinha aqui pelo tempo das jabuticabas.

Ali, naquela porta - "Dá licença, Don'Ana!" - tão cheia de vida, vermelhinha do sol... Quem diria...

- E ainda por cima a tal história de cemitério... interveio Cristina. Papai soube? Corriam no arraial rumores macabros. No dia seguinte ao enterramento o coveiro topou a sepultura remexida, como se fora violada durante a noite; e viu na terra fresca pegadas misteriosas de uma "coisa" que não seria bicho nem gente deste mundo. Já duma feita sucedera caso idêntico por ocasião da morte da Sinhazinha Esteves; mas todos duvidaram da integridade dos miolos do pobre coveiro sarapantado. Esses incréus não mofavam agora do visionário, porque o padre e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato, confirmavam-no.

Imbuído do ceticismo fácil dos moços da cidade, Eduardo meteu a riso a coisa muita fortidão de espírito.

- A gente da roça duma folha d'embaüva pendurada no barranco faz logo, pelo menos, um lobisomem e três mulas-sem-cabeça. Esse caso do cemitério: um cão vagabundo entrou lá e arranhou a terra. Aí está todo o grande mistério! Cristina objetou: - E os rastos? - Os rastos! Estou a apostar como tais rastos são os do próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco...

- E o padre Lisandro? - acudiu Don'Ana, para quem um testemunho tonsurado era documento de muito peso.

Eduardo cascalhou uma risada anticlerical e, trincando um rabanete, expectorou: - Ora, o padre Lisandro! Pelo amor de Deus, Don'Ana! O padre Lisandro é o próprio coveiro de batina e coroa! A propósito...

E contou a propósito vários casos daquele tipo, os quais no correr do tempo vieram a explicar-se naturalmente, com grande cara d'asno dos coveiros e lisandros respectivos.

Cristina ouviu, com o espírito absorto em cismas, a bela demonstração geométrica. Don'Ana concordou da boca para fora, por delicadeza. Mas o major, esse não piou sim nem não. A experiência da vida ensinara-lhe a não afirmar com despotismo, nem negar com "oras - Há muita coisa estranha neste mundo... - disse, traduzindo involuntariamente a safada réplica de Hamlet ao cabeça forte do Horacio.

Zangara o tempo quando à tarde o rancho se pôs de rumo ao casebre de Bocatorta.

Page 9: Contos de Urupês

Ventava. Rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimas nesgas do azul.

Os noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam comentando a boa composição do futuro casal. Não havia nisso exagero de pais. Eduardo, embora vulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor o encômio de rapagão, e Cristina era um ramalhete completo das graças que os dezoito anos sabem compor.

Donaire, elegância, distinção... pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso esse punhado de quês particularíssimos cuja soma a palavra "linda" totaliza? Lábios de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a noite, dentes de pérola...

as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não pintam melhor que o "linda!" dito sem mais enfeites além do ponto de admiração.

Vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueiro colhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era compreender a expressão dos roceiros: Linda que nem uma santa.

Olhos, sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém, as sombras de sua alma coavam neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia e inquietação. O amoroso enlevo de Eduardo esfriava amiúde ante suas repentinas fugas. Ele a percebia distante, ou pelo menos introspectiva em excesso, reticência que o amor não vê de boa cara. E à medida que caminhavam recrescia aquela esquisitice. Um como intáctil morcego diabólico riscava-lhe a alma de voejos pressagos. Nem o estimulante das brisas ásperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de natureza" exsolvido da terra, eram de molde a esgarçar a misteriosa bruma de lá dentro.

Eduardo interpelou-a: - Que tens hoje, Cristina? Tão sombria...

E ela, num sorriso triste: - Nada!.. Por quê? Nada... É sempre nada quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão do subconsciente, como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção telúrica. Mas esses nadas são tudo!...

- À esquerda, pelo trilho! A voz do major chamou-os à realidade. Um carreiro mal batido na macega esgueirava-se coleante até a beira dum córrego, onde se reuniram de novo.

O major tomou a frente, e guiou-os floresta adentro pelos meandros duma picada. Era ali o mato sinistro onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento, Merimbico, nome tresandante a satanismo para o faro do poviléu.

Às sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem e se punha de ronda ao cemitério, com lamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres almas penadas - coisa muito de arrepiar.

O sombrio da mata enoiteceu de vez o coração de Cristina.

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- Mas, afinal, para onde vamos, meu pai? Afundar no atoleiro, como o Simas? Meu pai já fez o testamento? - Já, minha filha - chasqueou o major -, e deixo o Bocatorta para você...

Cristina emudeceu. Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outrora, e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu o ladrido próximo de um cão.

- É Merimbico - disse o velho. - Estamos quase.

Mais cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qual Cristina entreviu a biboca do negro. Fez-se toda pequenina e achegou-se a Don'Ana, apertando-lhe nervosamente as mãos.

- Bobinha! Tudo isso é medo? - Pior que medo, mamãe; é... não-sei-quê! Não tinha feição de moradia humana a alfurja do monstro. À laia de paredes, paus-a-pique mal juntos, entressachados de ramadas secas. Por cobertura, presos, com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado e podre. Em redor, um terreirinho atravancado de latas ferrujentas, trapos e cacaria velha. A entrada era um buraco por onde mal passaria um homem agachado.

- Olá, caramujo! Sai da toca que estão cá o sinhô moço e mais visitas! - gritou o major.

Respondeu de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradável som, Cristina sentiu correr na pele o arrepio dos pesadelos antigos, e num incoercível movimento de pavor abraçou-se com a mãe.

O negro saiu da cova meio de rastos, com a lentidão de monstruosa lesma. A princípio surgiu uma gaforinha arruçada, depois o tronco e os braços e a traparia imunda que lhe escondia o resto do corpo, entremostrando nos rasgões o negror da pele craquenta.

Cristina escondeu o rosto no ombro de Don'Ana - não queria, não podia ver.

Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima.

À porta do casebre, Merimbico, cachorro à-toa, todo ossos, pele e bernes, rosnava contra os importunos.

Don'Ana e a filha afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram à nauseante vista, embora a Eduardo o tolhesse uma emoção jamais experimentada, misto de asco, piedade

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e horror. Aquele quadro de suprema repulsão, novo para seus nervos, desnorteava-lhe as idéias. Estarrecido como em face da Górgona, não lhe vinha palavra que dissesse.

O major, entretanto, trocava língua com o monstro, que em certo ponto, a uma pergunta alegre do velho, arregaçou na cara um riso. Eduardo não teve mão de si. Aquele riso naquela cara sobreexcedia a sua capacidade de horripilação. Voltou o rosto e se foi para onde as mulheres, murmurando: - É demais! É de fazer mal a nervos de aço...

Seus olhos encontraram os de Cristina e neles viram a expressão de pavor da preá engrifada nas puas da suindara - o pavor da morte...

Quando deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum vento precursor de chuva.

- Foi imprudência, Cristina, vires sem um xalinho de cabeça ao menos!... Queira Deus...

A moça não respondeu. D'olhos baixos, retransida, respirava a largos haustos, para desafogo dum aperto de coração nunca sentido fora dos pesadelos.

Generalizara-se o silêncio. Só o major tentava espanejar a impressão penosa, chasqueando ora o terror da filha, ora o asco do moço; mas breve calou-se, ganho também pelo mal-estar geral.

Triste anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo surdo revôo dos curiangos. O vento zunia, e numa lufada mais forte trouxe da mata o uivo plangente de Merimbico.

Ao ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major: - Diabo! Fechara-se a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram no alpendre do casarão.

Cristina sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como se a sacudisse a corrente elétrica.

No dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peito e tremuras amiudadas. Tinha as faces vermelhas e a respiração opressa.

O rebuliço foi grande na casa.

Eduardo, mordido de remorsos, compulsava com mão nervosa um velho Chernoviz, tentando atinar com a doença de Cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das moléstias. Nesse em meio, Don'Ana esgotava o arsenal da medicina anódina dos símplices caseiros.

O mal, entretanto, recalcitrava às chasadas e sudoríferos. Chamou-se o boticário da vila. Veio a galope o Eusébio Macário e diagnosticou pneumonia.

Quem já não assistiu a uma dessas subitâneas desgraças que de golpe se abatem, qual negro avejão de presa, sobre uma família feliz, e estraçoam tudo quanto nela representa a alegria, e esperança, o futuro? Noites em claro, o rumor dos passos abafados... E o doente a piorar... O médico da casa apreensivo, cheio de vincos na testa... Dias e dias de duelo mudo contra a moléstia incoercível... A desesperança, afinal, o irremediável antolhado iminente; a morte pressentida de ronda ao quarto...

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Ao oitavo dia Cristina foi desenganada; no décimo o sino do arraial anunciou o seu prematuro fim.

- Morta!...

Eduardo escondia as lágrimas entre as almofadas do leito, repetindo cem vezes a mesma palavra.

Alcançava-lhe o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes a ouvira como a um som oco de sentido! A imagem de Cristina morta, a esfervilhar na dissolução dentro da terra gelada, contrapunha-se às visões da Cristina viva, toda mimos d'alma e corpo, radiosa manhã humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando os olhos, revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos pressentimentos. Vinham-lhe à memória as suas palavras dúbias, a sua vacilação. E arrepelava-se por não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes de qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. Tais pensamentos, enxameantes como moscas em torno à carne viva da dor de Eduardo, coavam nele venenos cruéis.

Fora, o sol redoirava cruamente a vida.

Brutalidade!...

Morria Cristina e não se desdobravam crepes pelo céu, nem murchavam as folhas das árvores, nem se recobria de cinzas a terra...

Espezinhado pela fria indiferença das coisas, fechou-se na clausura de si próprio, torvo e dolorido, sentindo-se amarfanhar pela pata cega do destino.

Correram horas. Noite alta, acudiu-lhe a idéia de ir ao cemiterinho beijar num último adeus o túmulo da noiva.

Por sobre a vegetação adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante. Raras estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de um cão - Merimbico talvez - a escandir o concerto das untanhas que coaxavam glu-glus nas aguadas.

Eduardo alcançou o cemitério. Estava encadeado o portão. Apoiou a testa nos frios varões ferrujentos e mergulhou os olhos queimados de lágrimas por entre os carneiros humildes, em busca do que recebera Cristina.

No ar, um silêncio de eternidade.

Brisas intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridos na tristeza daquele cemitério da roça.

Seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de atinar com o sítio onde Cristina dormia o grande sono, quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. Direis um arranhar de chão em raspões cautelosos, ao qual se casava o resfolego duma criatura viva.

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Pulsou-lhe violento o sangue. Os cabelos cresceram-lhe na cabeça. Alucinação? Apurou os ouvidos: o rumor estranho lá continuava, vindo de um ponto sombreado de ciprestes. Firmou a vista: qualquer coisa agachava-se na terra.

Súbito, num relâmpago, fulgurou em sua memória a cena do jantar, o caso de Luizinha, as palavras de Cristina.

Eduardo sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum pânico desvairado, deitou a correr como um louco rumo à fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem fôlego, lavado em suor frio, despertando de sobressalto a família.

Com gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos dentes entrecortavam, exclamou entre arquejos: - Estão desenterrando Cristina... Eu vi uma coisa desenterrando Cristina...

- Que loucura é essa, moço? - Eu vi... - continuava Eduardo com os olhos desmesuradamente abertos. - Eu vi uma coisa desenterrando Cristina...

O major apertou entre as mãos a testa. Esteve assim imóvel uns instantes. Depois sacudiu a cabeça num gesto de decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta a si próprio: - Será possível, meu Deus? Vestiu-se de golpe, meteu no bolso o revólver e atirando três palavras enigmáticas à estarrecida Don'Ana, gritou para Eduardo com inflexão de aço na voz: - Vamos! Magnetizado pela energia do velho, o moço acompanhou-o qual sonâmbulo.

No terreiro apareceu-lhes o capataz.

- Venha conosco. A "coisa" está no cemitério.

Vargas passou mão de uma foice.

- Vai ver que é ele, patrão, até juro! O major não respondeu - e os três homens partiram a correr pelos campos em fora.

A meio caminho, Eduardo, exausto de tantas emoções, atrasou-se. Seus músculos recusaram-lhe obediência. Ao defrontar com o atoleiro, as pernas lhe fraquearam de vez e ele caiu, ofegante.

Entrementes, o major e o feitor alcançavam o cemitério, galgavam o muro e aproximavam-se como gatos do túmulo de Cristina.

Um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora do túmulo - abraçado por um vulto vivo, negro e coleante como o polvo.

O pai de Cristina desferiu um rugido de fera, e qual fera mal ferida arrojou-se para cima do monstro. A hiena, mau grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu. E, coxeando, cambaio, seminu, de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos com agilidade inconcebível em semelhante criatura, Bocatorta saltou o muro e fugiu, seguido de perto pela sombra esganiçante de Merimbico.

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Eduardo, que concentrara todas as forças para seguir de longe o desfecho do drama, viu passar rente de si o vulto asqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer mergulhando na massa escura dos guaiambés.

Voando-lhe no encalço, viu passar em seguida o vulto dos perseguidores.

Houve uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria. Depois, gritos de cólera, d'envolta a um grunhir de queixada caído em mundéu - e tudo se misturou ao barulho da luta que o uivo de Merimbico dominava lugubremente.

O moço correu a mão pela testa gelada: estaria nas unhas dum pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lho a voz alterada do feitor, esboçando o epílogo da tragédia: - Não atire, major, ele não merece bala. P'ra que serve o atoleiro? E logo após Eduardo sentiu recrudescer a luta, entre imprecações de cólera e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro. E ouviu farfalhar o mato, como se por ele arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convulsões violentas. E ouviu um rugido cavo de supremo desespero. E após, o baque fofo de um fardo que se atufa na lama.

Uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu pensamento adormeceu...

Quando voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rosto com água gelada. Encarou-os, marasmado. Ergueu-se, mal firme, apoiado a um deles. E reconheceu a voz do major, que entre arquejos de cansaço lhe dizia: - Seja homem, moço. Cristina já está enterrada, e o negro...

- ... está beijando o barro, concluiu sinistramente o Vargas.

Ao raiar do dia, Merimbico ainda lá estava, sentado nas patas traseiras, a uivar saudosamente com os olhos postos no sítio onde sumira o seu companheiro.

Nada mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo de lodo açaimador da boca hedionda que babujara nos lábios de Cristina o beijo único de sua vida.