monteiro lobato - urupês (1)

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Este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, não podendo ser utilizado com quaisquer fins lucrativos. Ignorar essa advertência significa violar a Lei nº 9610, que regulamenta os direitos autorais no Brasil. Urupês Monteiro Lobato OBRAS COMPLETAS DE MONTEIRO LOBATO Literatura geral Literatura infanto-juvenil América Aritmética da Emília A barca de Gleyre Caçadas de Pedrinho Cartas de amor A chave do tamanho Cartas escolhidas Dom Quixote das crianças 'Cidades mortas Os doze trabalhos de Hércules Conferências, artigos e crônicas Emília no país da gramática Críticas e outras notas Fábulas O escândalo do petróleo e ferro Geografia de Dona Benta Idéias de Jeca Tatu Hans Staden Literatura do minarete História das invenções Mr. Slang e o Brasil e o problema Histórias de Tia Nastácia vital Histórias diversas Mundo da lua e miscelânea Histórias do mundo para as crianças Na antevéspera Memórias da Emília Negrinha O minotauro A onda verde Peter Pan Prefácios e entrevistas O Picapau Amarelo O presidente negro O poço do Visconde Urupês A reforma da natureza Reinações de Narizinho O saci Serões de Dona Benta Viagem ao céu

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Est e l i vr o dest i na- se ao uso excl us i vo de def i c i ent es vi suai s, não podendo ser ut i l i zado com quai squer f i ns l ucr at i vos. I gnor ar essa adver t ênci a si gni f i ca v i ol ar a Lei nº 9610, que r egul ament a os di r ei t os aut or ai s no Br asi l . Ur upês Mont ei r o Lobat o OBRAS COMPLETAS DE MONTEI RO LOBATO Li t er at ur a ger al Li t er at ur a i nf ant o- j uveni l Amér i ca Ar i t mét i ca da Emí l i a A bar ca de Gl eyr e Caçadas de Pedr i nho Car t as de amor A chave do t amanho Car t as escol hi das Dom Qui xot e das cr i anças ' Ci dades mor t as Os doze t r abal hos de Hér cul es Conf er ênci as, ar t i gos e cr ôni cas Emí l i a no paí s da gr amát i ca Cr í t i cas e out r as not as Fábul as O escândal o do pet r ól eo e f er r o Geogr af i a de Dona Bent a I déi as de Jeca Tat u Hans St aden Li t er at ur a do mi nar et e Hi st ór i a das i nvenções Mr . Sl ang e o Br asi l e o pr obl ema Hi st ór i as de Ti a Nast áci a vi t al Hi st ór i as di ver sas Mundo da l ua e mi scel ânea Hi st ór i as do mundo par a as cr i anças Na ant evésper a Memór i as da Emí l i a Negr i nha O mi not aur o A onda ver de Pet er Pan Pr ef ác i os e ent r ev i s t as O Pi capau Amar el o O pr esi dent e negr o O poço do Vi sconde Ur upês A r ef or ma da nat ur eza Rei nações de Nar i z i nho O saci Ser ões de Dona Bent a Vi agem ao céu

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* * * MONTEI RO LOBATO URUPÊS edi t or a br asi l i ense Copyr i ght - by her dei r os de Mont ei r o Lobat o Nenhuma par t e dest a publ i cação pode ser gr avada, ar mazenada em s i s t emas el et r ôni cos, f ot ocopi ada, r epr oduzi da por mei os mecâni cos ou out r os quai squer sem aut or i zação pr évi a da edi t or a. I SBN 85- 11- 18042- 7 3 7. " edi ção r evi sada, 1994 4" r ei mpr essão, 1998 Revi são: Henr i que S. Neves, Renat o J. Bent o, Agnal do A. Ol i vei r a, I vet e B. Sant os Capa: Mar i a El i ana Pai va Dados I nt er naci onai s de Cat al ogação na Publ i cação ( CI P) ( Câmar a Br asi l ei r a do Li vr o, SP, Br asi l ) Lobat o, Mont ei r o, 1882- 1948 Ur upês / Mont ei r o Lobat o, - 37. " ed. r evi sada - São Paul o Br asi l i ense, 1994. I SBN 85- 11- 18042- 7 1. Cont os br asi l ei r os 1. Tí t ul o 94- 2845 CDD- 869. 935 Í ndi ces par a cat ál ogo s i st emát i co: 1. Cont os : Sécul o 20 : Li t er at ur a br asi l ei r a 869- 935 2. Sécul o 20 : Cont os : Li t er at ur a br asi l ei r a 869. 935 edi t or a br asi l i ense s. a. MATRI Z: Rua At ucur i , 318 - Tat uapé - São Paul o - SP cep: 03411- 000 Fone/ Fax: ( 011) 6942- 0545 VENDAS/ DEPÓSI TO: Rua Mar i ano de Souza, 664 - Tat uapé - São Paul o - SP cep: 03411- 090 Fones: ( 011) 293- 5858, 293- 0357, 6942- 8170, 6191- 2585 Fax: ( 011) 294- 0765 * * * Sumár i o Not a dos Edi t or es 7 Li gei r a not a sobr e a or t ogr af i a de Mont ei r o Lobat o 9 Mont ei r o Lobat o e a Academi a 13

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URUPÊS Os f ar ol ei r os 19 O engr açado ar r ependi do 33 A col cha de r et al hos 45 A v i ngança da per oba 55 Um supl í c i o moder no 71 Meu cont o de Maupassant 83 " Pol l i ce ver so" 87 Bucól i ca 99 O mat a- pau 107 Bocat or t a 117 O compr ador de f azendas 131 O est i gma 145 Pr ef ác i o da 2ª Edi ção de Ur u pês 157 Vel ha pr aga 159 Ur upês 165 Not a dos Edi t or es Est e l i vr o de Mont ei r o Lobat o, cuj a gênese vem descr i t a n' A BARCA DE GLEYRE, f oi baf ej ado pel as c i r cunst ânci as e t or nou- se em nossa l i t er at ur a mai s que um l i vr o do t i po comum, poi s emi t i u pseudópodos, i nf l uenci ou a i ndúst r i a, deu pal avr as e expr essões à l í ngua, hoj e di c i onar i zadas. Cândi do de Fi guei r edo aument ou o seu di ci onár i o com set ent a e t ant as expr essões da l í ngua br asi l ei r a t omadas de URUPêS, com as def i ni ções dadas por Lobat o; e a l í ngua no Br asi l enr i queceu- se com a pal avr a " j eca" e der i vados, j á nos di ci onár i os. O l i vr o t ambém af et ou a i ndúst r i a naci onal , dando mar gem à cr i ação duma empr esa i mpr essor a e edi t or a que se desenvol v i a ver t i gi nosament e, sof r eu um col apso e r essur gi u, t r ansf or mada na Companhi a Edi t or a Naci onal , a mai or do Br asi l e uma das mai or es da Amér i ca do Sul . Os ser v i ços que essas duas edi t or as, f i l has de URUPÊS, pr est ar am à cul t ur a naci onal são i nf i ni t os e se pr oj et ar ão i ndef i ni dament e, no f ut ur o. Cr emos que, em l i t er at ur a nenhuma, em t empo nenhum, um s i mpl es l i vr o de cont os deu de si t ant as conseqüênci as di r et as e i ndi r et as. Li gei r a not a sobr e a or t ogr af i a de Mont ei r o Lobat o ( Ent r evi s t a com os Edi t or es) Mont ei r o Lobat o pensa em t udo por s i pr ópr i o. Mui t o ant es de of i c i al i zada a at ual or t ogr af i a, j á el e t i nha r eagi do cont r a a et i mol ogi a - e agor a r eage cont r a os acent os. Em t udo quant o escr eve, e nas t r aduções, não usa acent os, af or a os ant i gos. Qual a r azão dessa oj er i za? I nt er pel amo- l o e a sua r espost a mer ece menção. - " Não é oj er i za. É o hor r or que eu t enho à i mbeci l i dade humana sob qual quer f or ma que se apr esent e. Há uma l ei nat ur al que or i ent a a evol ução de t odas as l í nguas: a l ei do menor esf or ço. Se eu posso di zer i s t o com o esf or ço de

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um qui l ogr âmet r o, por que di zê- l o com o esf or ço de doi s? Essa l ei nor t ei a a evol ução da l í ngua e f oi o que f ez com que caí ssem as i nút ei s l et r as dobr adas, os hh mudos, et c . A r ef or ma or t ogr áf i ca vei o apenas apr essar um pr ocesso em cur so. Por s i mesma a pal avr a pht hysi ca passou a t í s i ca, e o ph j á havi a si do desmont ado pel o f E assi m ser i a em t udo. Essa gr ande l ei do menor esf or ço conduz à si mpl i f i cação da or t ogr af i a, j amai s à compl i cação - e os t ai s acent os a t or t o e a di r ei t o que os r ef or mador es of i c i ai s i mpuser am à nova or t ogr af i a vêm compl i car , vêm cont r ar i ar a l ei da evol ução! São, poi s , uma coi sa i nc i ent í f i ca, t ol a, i mbeci l , cr et i ni zant e e que deve ser v i ol ent ament e r epel i da por t odas as pessoas decent es. Escr ever ' há' ou ' êsse' , ou ' ôut r o' , ou ' f r eqüênci a' , só por que uns i gnar í ssi mos ' al hos ' gr amat i cai s r esol ver am assi m, é ser covar de, bobo. Que é a l í ngua dum paí s? É a mai s bel a obr a col et i va desse paí s. Ouça est e pedaci nho da Car ol i na Mi chaël i s : ' A l í ngua é a mai s geni al , or i gi nal e naci onal obr a d' ar t e que uma nação cr i a e desenvol ve. Nest e desenvol ve est á a evol ução da l í ngua. Uma l í ngua est á sempr e se desenvol vendo no sent i do da s i mpl i f i cação, e a r ef or ma or t ogr áf i ca f oi apenas um s i mpl es apr essar o passo desse desenvol v i ment o. Mas a cr i ação de acent os novos, como o gr ave e o t r ema, bem como a i nút i l acent uação de quase t odas as pal avr as, não é desenvol vi ment o par a a f r ent e e si m compl i cação, i nvol ução e, por t ant o, coi sa que só mer ece pau, pau e mai s pau' . " - Nega ent ão a ut i l i dade do acent o? - " Est á c l ar o, homem! Poi s não vê que a mai or das l í nguas moder nas, a mai s r i ca em númer o de pal avr as, a mai s f al ada de t odas, a de mai s opul ent a l i t er at ur a - a l í ngua i ngl esa - não t em um só acent o? E i st o t eve sua par t e na vi t ór i a dos povos de l í ngua i ngl esa no mundo, do mesmo modo que a excessi va acent uação da l í ngua f r ancesa f oi par t e de vul t o na decadênci a e queda f i nal da Fr ança. O t empo que os f r anceses gast ar am em acent uar as pal avr as f oi t empo per di do - que o i ngl ês apr ovei t ou par a empol gar o mundo. Or a, depoi s dessa f or mi dável demonst r ação da coi sa desast r osa que é o acent o, vi r em os nossos gr amát i cos decupl i car a nossa acent uação, é coi sa que eu expl i co só dum modo: qui nt a- col uni smo! Essa gent e é suspei t a! Essa gent e quer ar r ast ar est e paí s a um i menso desast r e f ut ur o! Quer que t enhamos o i gnomi ni oso dest i no da Fr ança, a pobr e ví t i ma do excesso de acent os! " - Mas a acent uação j á est á i mpost a por l ei . - " Não há l ei humana que di r i j a uma l í ngua, por que l í ngua é um f enômeno nat ur al , como a of er t a e a pr ocur a, como o cr esci ment o das cr i anças, como a seni l i dade, et c. Se uma l ei i nst i t ui a obr i gat or i edade dos acent os, essa l ei vai f azer companhi a às l ei s i di ot as que t ent am r egul ar pr eços e mai s coi sas. Lei s assi m nascem mor t as e é um dever cí v i co i gnor á- l as, sej am l á quai s f or em os paspal hões que as assi nem. A l ei f i ca aí e nós, os donos da l í ngua, o povo, vamos f azendo o que a l ei nat ur al da s i mpl i f i cação manda. Tr ema! . . . Acent o gr ave! . . . ' Ôut r o' com acent o c i r cunf l exo, como se houvesse mei o de al guém enganar - se na pr onúnci a dessa pal avr a! . . . I mbeci l i dade pur a, meu car o. E a r eação cont r a o gr ot esco acent i smo j á começou. Os j or nai s não o acei t am e os escr i t or es mai s decent es i dem. A

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acei t ação do acent o est á f i cando como a mar ca, a car act er í st i ca do car nei r i smo, do ser vi l i smo a t udo quant o chei r a a of i c i al . Eu, de mi m, sol enement e o decl ar o, não sou ' mé' , e por t ant o não admi t o esses acent os em coi sa nenhuma que eu escr eva, nem l ei o nada que os t r aga. Se al guém me escr eve uma car t a chei a de acent os, encost o- a. Não l ei o. E se vem al guma com t r ema, devol vo- a, nobr ement e enoj ado. . . " At é a 36ª edi ção, a or t ogr af i a de Mont ei r o Lobat o f oi r espei t ada. A par t i r da 37ª edi ção, opt ou- se por segui r o Vocabul ár i o Or t ogr áf i co da Lí ngua Por t uguesa. MONTEI RO LOBATO E A ACADEMI A Em 1925, Mont ei r o Lobat o i nscr eveu- se candi dat o a uma vaga da Academi a Br asi l ei r a e obt eve 14 vot os. Mai s t ar de, i nscr eveu- se de novo mas ar r ependeu- se e, em car t a ao pr esi dent e Car l os de Laet , r et i r ou a sua apr esent ação. E nunca mai s pensou em Academi a. Em 1944, um gr upo de acadêmi cos t omou a i ni c i at i va de met er Mont ei r o Lobat o l á dent r o, pel o pr ocesso novo da i ndi cação espont ânea, pr ocesso que se havi a i naugur ado com a i ndi cação, por dez acadêmi cos, do sr . Get úl i o Var gas. E Múci o Leão, pr es i dent e da Academi a Br asi l ei r a, envi ou a Mont ei r o Lobat o a segui nt e comuni cação: " RI O DE JANEI RO, 9 de out ubr o de 1944. I l ust r e ami go dr . Mont ei r o Lobat o: Tenho o pr azer de comuni car - l he que, em document o apr esent ado à Pr esi dênci a da Academi a Br asi l ei r a de Let r as, em dat a de 7 do cor r ent e e subscr i t o pel os sr s. Ol egár i o Mar i ano, Menot t i del Pi cch i a, Vi r i at o Cor r ei a, Manuel Bandei r a, Al ceu Amor oso Li ma, Cassi ano Ri car do, Múci o Leão, Ol i vei r a Vi ana, Bar bosa Li ma Sobr i nho e Cl ement i no Fr aga, f oi o nome de v. exa. i ndi cado par a a subst i t ui ção do nosso saudoso e quer i do companhei r o Al c i des Mai a. De acor do com o Regi ment o em v i gor , cabe- me t r azer a v. exa. est a comuni cação. Ai nda de acor do com o Regi ment o, a i nscr i ção de v. exa. se t or nar á ef et i va, nos t er mos do ar t . 18, par ágr af o pr i mei r o, medi ant e car t a que v. exa. dent r o de dez di as, t er á a bondade de envi ar a est a pr esi dênci a, di zendo que acei t a a i ndi cação e que desej a por t ant o concor r er à vaga. Quei r a r eceber os pr ot est os de mi nha gr ande est i ma e si ncer a consi der ação. ( assi n. ) Múci o Leão Pr esi dent e da Academi a Br asi l ei r a de Let r as" . A r espost a de Mont ei r o Lobat o poder á const i t ui r uma sur pr esa par a mui t a gent e, mas não par a os que com el e pr i vam e sabem da sua ext r aor di nár i a coer ênci a e f i del i dade a s i mesmo. É a segui nt e: S. PAULO, 11 de out ubr o de 1944. Sr . Múci o Leão D. D. Pr esi dent e da Academi a Br asi l ei r a:

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Acuso o r ecebi ment o da car t a de 9 do cor r ent e, na qual me comuni ca que em document o apr esent ado à Academi a Br asi l ei r a, subscr i t o por dez acadêmi cos, f oi meu nome i ndi cado par a a subst i t ui ção de Al c i des Mai a; e que nos t er mos do Regi ment o devo decl ar ar que acei t o a i ndi cação e desej o concor r er à vaga. Esse gest o de dez acadêmi cos do mai s al t o val or i nt el ect ual comoveu- me i nt ensament e e a el es me escr avi zou. Val e- me por ac l amação - honr a com que j amai s sonhei e est á ac i ma de qual quer mer eci ment o que por acaso me at r i buam. Mas o Regi ment o i mpõe a decl ar ação de meu desej o de concor r er à vaga, e i sso me embar aça. Já concor r i às el ei ções acadêmi cas no bom t empo em que al guma vai dade subsi st i a dent r o de mi m. O per passar dos anos cur ou- me e hoj e só desej o o esqueci ment o de mi nha i ns i gni f i cant e pessoa. Submet er -me, poi s , ao Regi ment o ser i a i nf i del i dade par a comi go mesmo - dupl i c i dade a que não me at r evo. De f or ma nenhuma est a r ecusa s i gni f i ca desapr eço à Academi a, pequeni no demai s que sou par a menospr ezar t ão al t a i nst i t ui ção. No âni mo dos dez s i gnat ár i os não pai r e a menor suspei t a de que qual quer mot i vo subal t er no me l eva a est e passo. I ns i st o no pont o par a que ni nguém vej a dupl o sent i do nas r azões de meu gest o. . . Não é modést i a, poi s não sou modest o; não é menospr ezo, poi s na Academi a t enho gr andes ami gos e nel a vej o af i na f l or da nossa i nt el ect ual i dade. É apenas coer ênci a; l eal dade par a comi go mesmo e par a com os pr ópr i os s i gnat ár i os; r econheci ment o públ i co de que r ebel de nasci e r ebel de pr et endo mor r er . Pouco soci al que sou, a s i mpl es i déi a de me t er f ei t o acadêmi co por agênci a mi nha me desassossegar i a, me per t ur bar i a o doce ni r vani smo l edo e cego em que caí e me é o c l i ma f avor ável à i dade. Do f undo do cor ação agr adeço a gener osa i ni c i at i va; e em especi al agr adeço a Cassi ano Ri car do e Menot t i o s i ncer o empenho demonst r ado em me dar em t amanha pr ova de est i ma. Faço- me escr avo de ambos. E a t udo at endendo, consi der o- me el ei t o - mas numa nova si t uação de academi c i smo: o acadêmi co de f or a, sent adi nho na por t a do Pet i t Tr i anon com os ol hos r ever ent es pousados no bust o do f undador da casa e o nome dos dez s i gnat ár i os gr avados i ndel evel ment e em meu i mo. Fi co- me na sol ei r a do vest í bul o. Mal compor t ado que sou, r econheço o meu l ugar . O bom compor t ament o acadêmi co l á de dent r o me dá af l i ção. . . Peço, senhor pr es i dent e, que t r ansmi t a aos dez s i gnat ár i os os pr ot est os da mi nha mai s pr of unda gr at i dão e acei t e um af et uoso abr aço dest e seu Admi r ador e ami go MONTEI RO LOBATO Os f ar ol ei r os - Navi o? Dava azo à dúvi da uma l uz ver mel ha a pi scar na escur i dão da noi t e. Escur i dão, não di r ei de br eu, que não é o br eu de sobej o escur o par a r ef er i r um negr or daquel es. De

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cego de nascença, vá. Céu e mar f undi a- os um só car vão, sem f r est a nem pi que al ém da pi nt a ver mel ha que, súbi t o, se f ez amar el a. - Lá mudou de cor . E f ar ol . E, como er a f ar ol , a conver sa r ecai u sobr e f ar ói s. Eduar do i nt er pel ou- me de chof r e sobr e a i déi a que eu del es f az i a. - A i déi a de t oda a gent e, or a essa! - Quer di zer , uma i déi a f al sa. " Toda a gent e" é um monst r o com or el has d' asno e mi ol os de macaco, i ncapaz duma i déi a sensat a sobr e o que quer que sej a. Tens na cabeça, r espei t o a f ar ol , uma i déi a de r ua r ecebi da do vul go e nunca r ecur i hada na mat r i z das i mpr essões pessoai s. Er r o. - Conf esso- me capaz de abr i r a boca a um audi t ór i o de casaca, se me desse na t el ha di scur sar sobr e o t ema; mas não af i anço que o f ar ol descr i t o venha a par ecer - se com al gum. . . - Poi s eu t e assegur o, sem f azer pouco no t eu engenho, que t al conf er ênci a, ouvi da por um f ar ol ei r o, por i a o homem de ol ho par vo, a di zer como o out r o: Se per cebo, sebo! - Acr edi t o. Mas per ceber i a mel hor uma t ua? - r et or qui abespi nhado. - É de cr er . Já v i vi uma i nesquecí vel t empor ada no f ar ol dos Al bat r ozes e f al ar i a de cadei r a. - Vi vest e em f ar ol ?! . . . - exc l amei com espant o. - E l á f ui compar sa numa t r agédi a not ur na de ar r epi ar os cabel os. O escur o dest a noi t e evoca- me o t r emendo dr ama. . . Est ávamos ambos de br uços na amur ada do Or i on, em hor a pr opí c i a ao esbagoar dum dr amal hão i nédi t o. Espor eado na cur i os i dade, pr ovoquei - o. - Vamos ao caso, que est es negr umes cl amam por espect r os que os povoem. É cal ami dade à Shakespear e ou à I bsen? - Assi na o meu dr ama um nome mai or que o de Shakespear e. . . - ? ? ? - . . . a Vi da, meu car o, a gr ande mest r a dos shakespear es mai or es e menor es. Eduar do começou do pr i ncí pi o. - O f ar ol é um r omance. Um r omance i ni c i ado na ant i gui dade com as f oguei r as ar madas nos pr omont ór i os par a nor t ei o das embar cações de r emo e cont i nuado sécul os em f or a at é nossos possant es hol of ot es el ét r i cos. Enquant o subsi st i r no mundo o homem, o r omance " Far ol " não conhecer á epí l ogo. Monót ono como as cal mar i as, embr echam- se nel e, a espaços, capí t ul os de t r agédi a e l oucur a - pungent es gr avur as de Dor é quebr ando a monot oni a de um di ár i o de bor do. O caso dos Al bat r ozes f oi um del es. Ger ebi t a met eu- se no f ar ol aos v i nt e e t r ês anos. É r ar o i sso. - Quem é Ger ebi t a? - Sabê- l o- ás em t empo. É r ar o i sso por que no ger al só se met em nas t or r es homens madur os, quar ent ões bat i dos pel a v i da e descr ent es das suas i l usões. Dei xar a t er r a na quadr a ver dol enga dos v i nt e anos é apavor ant e. A t er r a! . . . Nós mal damos t ent o da nossa pr of unda adapt ação ao mei o t er r eno. A sua f i x i dez, o var i egado de aspect os, o bul í c i o humano, a c i dade, os campos, a mul her , as ár vor es. . . Conhecem os

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f ar ol ei r os mel hor do que ni nguém o val or dessas t ei as. Enl ur ados num bl oco de pedr a, t udo quant o par a nós é sensação de t odos os i nst ant es, nel es é saudade e desej o. Cessam os ouvi dos de ouvi r a músi ca da t er r a, r umor ej o de ar vor edo, vozes ami gas, bar ul ho de r ua, as mi l e uma not as duma pol i f oni a que nós sabemos que o é, e encant ador a, uni cament e quando a segr egação pr ol ongada nos ensi na a l he conhecer o val or . Cessam os ol hos de r ever as i magens que desde a meni ni ce l hes são habi t uai s . Par a os ouvi dos só há al i , di a e noi t e, ano e ano, o mar ul ho das ondas às chi cot adas no enr ocament o da t or r e; e par a a vi s t a, a et er na massa que ondul a, or a t or va, or a azul . Var i ant es úni cas, as vel as que passam de l ar go, donai r osas como gar ças, ou os t r ansat l ânt i cos penachados de f umo. Fi gur a a vi da de um homem ar r ancado à quer ênci a e assi m post o, qual t r i s t e gal é, dent r o duma t or r e de pedr a, gr udada como cr aca a um i l héu. Ter á poesi a de l onge; de per t o é al uci nant e. - Mas o Ger ebi t a. . . - Uma l ei t ur a de Ki pl i ng desper t ar a- me a cur i os i dade de conhecer um f ar ol por dent r o. - O Per t ur bador do Tr áf ego. . . - Par abéns pel a ar gúci a. Foi j ust ament e a hi s t ór i a do Dowse o pont o i ni c i al do meu dr ama. Esse desej o i ncubou- se- me cá dent r o à esper a d' ocasi ão par a br ot ar . Cer t o di a f ui espai r ecer ao cai s - e l á est ava, de mãos às cost as, a segui r o vôo dos j oão- gr andes e a not ar a gama dos ver des l uzent es que à sombr a dos bar cos ondei a na água r epr esada dos por t os, quando uma l ancha abi cou, e v i descer um homem de f ei ções dur as e pel e encor r eada. Ao passar por um magot e de cat r aei r os, um del es chasqueou em t om i nsi nuat i vo: - " Ger ebi t a, como vai a Mar i a Ri t a?" O desembar cadi ço r osnou um pal avr ão de gr osso cal i br e, e segui u cami nho, de sobr ecenho car r egado. I nt er essou- me aquel e t i po. - " Quem é?" , i ndaguei . - " Poi s quem há de ser senão o f ar ol ei r o dos Al bat r ozes? Não vê a l ancha?" De f at o, a l ancha er a do f ar ol . A vel ha i déi a deu- me cot ovel adas: é hor a! Fui - l he no encal ço. - " Sr . Ger ebi t a. . . " O homem ent r epar ou, como admi r ado de ouvi r - se nomear por boca desconheci da. Empar el hei - me com el e e, enquant o andávamos, f ui - l he expondo os meus pr oj et os. - " Não pode ser " , r espondeu; " o r egul ament o pr oí be sapos na t or r e. Só com or dem super i or . " Or a, eu t enho cor r i do mundo, sei que mar osca é essa de or dens super i or es. Met i a mão no bol so e cochi chei - l he o ar gument o deci s i vo. O f ar ol ei r o r el ut ou uns i nst ant es, mas cor r ompeu- se mai s depr essa do que esper ei . Guar dou o di nhei r o e di sse: - " Pr ocur e o Dunga, pat r ão da Gai vot a Br anca, t er cei r o ar mazém. Di ga- l he que j á f al ou comi go. De qui nt a- f ei r a em di ant e. E bi co, vej a l á! " Pr omet i - l ho cal adí ss i mo, e t or nei ao cai s à cat a do Dunga. Que si m - f oi a r espost a do cat r aei r o, i l héu pal avr oso, l ogo que expus o negóci o - ' j á f i zer a i sso cer t a vez a

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" out r o mal uco" e sabi a pr ender a l í ngua par a não at anazar a v i da aos ami gos. E como me i nf or masse do f ar ol ei r o: - " É o Ger ebi t a, d' apel i do ganho no Pur us, onde ser vi u como gr umet e. Ao depoi s se met eu na l ant er na, p' r ' amor d' amor es, o al ar ve, como se f al t assem el as por aí , e bem cat i t as. Mul her es! A mi m é que não me empecem, não, as songui r i has. O demo que as t ol ha que eu. . . E f oi pel as mul her es al ém, a dar de r i j o, com r azões nem mel hor es nem pi or es que as de Schopenhauer . No di a apr azado, ant emanhã, a Gai vot a l ar gou de r umo ao f ar ol . Sal t ei num r ude at r acadour o de di f í c i l abor dagem, e encont r ei o f ar ol ei r o ocupado em pol i r os met ai s da l ant er na. Recebeu-me de boa sombr a, l ar gando o esf r egão par a f azer as honr as da casa. Exami nei t udo, dos al i cer ces ao l ant er ni m, e à hor a do al moço j á ent endi a de f ar ol mai s que uma enci c l opédi a. Ger ebi t a deu t r el a à l í ngua e f al ou do of í ci o com mel ancól i ca psi col ogi a. Também cont ou sua v i da desde meni no, a gr umet agem no Pur us, sua pai xão pel o mar e por f i m a ent r ada par a o f ar ol aos v i nt e e t r ês anos de i dade. - " Por que assi m t ão moço?" - " Capr i chos do cor ação, má sor t e, coi sas. . . " , r espondeu com ar t r i s t e; e acr escent ou após uma pausa, mudando de t om: - " Poi s a v i da é cá i st o que vê. Boazi nha, hei n? Ent r et ant o, boa ou má, t emos, os f ar ol ei r os, um or gul ho: sem nós, essa bi char ada de f er r o que passei a nas águas f umando seus doi s, seus t r ês char ut os. . . " - " Lá vem um! " - i nt er r ompeu- se, f i sgando com a l unet a uma f umaça r emot a. - " Bandei r a al emã. . . duas chami nés. . . r umo sul . . . Há de ser um ' Cap' - o Tr af al gar , t al vez. Sej a l á que di abo f or , vá com Deus. Mas, como i a di zendo, sem os f ar ol ei r os a manobr ar em a ' ópt i ca' , esses comedor es de car vão havi am de r achar à t oi nha aí pel os bancos de ar ei a. Bast a cai r a cer r ação e j á se põem t ont os, a ur r ar de medo pel a boca das ser ei as, que é mesmo um cor t ar a al ma à gent e. Por que ent ão nem f ar ol nem car acol . É a ceguei r a. Navegam com a Mor t e no l eme. For a di sso, sal va- os o f ogui nho l á de c i ma. Pouco ant es de mi nha ent r ada par a aqui houve desgr aça. Um car guei r o da Br emen r achou o bi co al i no Capel ão. . . Quem é o Capel ão? Ah! ah! ah! O Capel ão. . . Poi s o Capel ão é o r ai o da t er cei r a pedr a a bor est e. São t r ês dest e l ado, a Meni na, que é a pr i mei r a, a Cur ut uba, que é a do mei o. A cr i mi nosa é o Capel ão, que r epont a mai s ao l ar go e só most r a a cor oa nas gr andes vazant es. Cá a bombor do ai nda há duas, a Vi r gem e a Mal di t a, onde bat eu o car guei r o Rot t er dam. " - " É aquel a l i s i nha, acol á?" - " Uma coi t ada que nem nome t em. É mansa, est á mui t o per t o da t er r a, não f az mal a navi o. Al i mor a um anequi m ( 2) , bi chanca de t amanho do di abo, que gost a de vi r ar canoas. Mas, aqui par a nós, moço, i sso é embr omação. Pei xe mor a em t odo o mar , não t em t oca como bi cho de t er r a. É abusão de pescador . Quando há mar , não se enxer ga nada por al i ; mas se a água é ser ena e vem y i ndo a vazant e, vai apar ecendo um l ombo de pedr a l i sa com j ei t o de pei xe. Passa um pescador at ol ambado, vê aqui l o de l onge. ' É anequi m! É anequi m! ' e t oca a saf ar , com o medão

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n' al ma. Se acont ece embr avecer a água, e dá t empor al , e a canoa vi r a: ' Qu' é de Ful ano?' Tá, t á, t á, f oi o anequi m! Toda a gent e pega, f ei t o mul her vel ha. ' Foi o anequi m do f ar ol ! ' Or a aí est á como são as coi sas. há mui t o anequi m e t i nt ur ei r a ( 3) por aqui . Onde é mar sem cação? Mas di zer que um t al mor a aqui ou al i , i sso é embr oma. " E na sua pi nt ur esca l i nguagem de mar í t i mo, que às vezes se t or nava pr odi gi osament e t écni ca, nar r ou- me t oda a hi s t ór i a daquel as par agens mal di t as. Fal ou de como, segundo a t r adi ção, se f or am bat i zando os ar r ec i f es; f al ou dos cr i mes de cada um; das hecat ombes per i ódi cas de aves not ur nas que, cegadas pel a l uz, bat em de pei t o cont r a os vi dr os da l ant er na, j uncando o chão de cor pi nhos l at ej ant es; das medonhas t or ment as nas quai s o f ar ol est r emece como a t i r i t ar de pavor . De que não f al ou Ger ebi t a naquel e i nesquecí vel di a? - " E o aj udant e? Tem- no cá?" , per gunt ei . O r ost o do meu f ar ol ei r o mudou de expr essão. Vi de r el ance que er am i ni mi gos. - " É aquel e est upor que l á pesca" , di sse, apont ando da j anel a um vul t o i móvel , acocor ado num penedo. " Est á a apanhar gar oupi nhas. É o Cabr ea. Mau companhei r o, mau homem. . . Ent r epar ou. Per cebi que mascava uma conf i dênci a di f í c i l . Mas a conf i dênci a denunci ou- se apenas. Ger ebi t a sacudi u a cabeça e mur mur ou como de s i par a s i : - " Est á cá de pouco, e é o úni co homem no mundo que não podi a cá est ar . Já r ec l amei do capi t ão do por t o, j á most r ei o per i go. Mas, qual ! . . . " Est r anha cr i at ur a, o homem! I nsul ados do mundo naquel a f r água, ambos náuf r agos da v i da, o ódi o os separ ava. . . Não f al t avam no f ar ol , ent r et ant o, acomodações par a as f amí l i as dos seus guar di ães. Por que não as t i nham al i ? Ser i a um bocado de mundo a l eni r as agr ur as do empar edament o. I nt er pel ei -o; Ger ebi t a r et r ucou- me de modo envi esado. - " Famí l i a não t enho, i s t o é, t enho e não t enho. Tenho, por que sou casado, e não t enho por que. . . Hi st ór i as! Est as coi sas de f amí l i a é bom que f i quem com a gent e. " Not ei de novo que a pi que duma r evel ação mascava o segr edo por desconf i ança ou pudor . Suas f ei ções endur ecer am. Sombr as más anuvi ar am- l he a f i s i onomi a. E mai s t or vo ai nda me par eceu quando Cabr ea ent r ou, sobr açando um bal ai o de pescado. Ti po de má car a, passou em di r ei t ur a à cozi nha sem nos vol ver um ol har . Mal se sumi u, Ger ebi t a excl amou: " Rai o do di abo! " - assent ando num cai xot e expi at ór i o um mur r o de f ender pi nho. Depoi s: - " O mundo é t ão gr ande, há t ant a gent e no mundo, e cai - me aqui j ust ament e o úni co aj udant e que eu não podi a t er . . . " - " Por quê?" - " Por quê?. . . Por que. . . é um l ouco. " Ent r e o pr i mei r o e o segundo " por quê" not ei t r ansi ção r adi cal . Dúbi o o pr i mei r o, o segundo af i gur ou- se- me r esol ut o, como i l umi nado pel o cl ar ão duma i déi a br ot ada no moment o. Desde esse di a nunca mai s o f ar ol ei r o abandonou o t ema da l oucur a do out r o. Demonst r ava- ma de mi l manei r as. - " E aqui onde at é os sãos per dem a t r amont ana" ,

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ar gument ava el e, " um j á assi m r achado de t el ha aos t r ês por doi s r ebent a como bomba no f ogo. Eu j ogo que el e não var a o mês. Não vê seus modos?" Met ade por sugest ão, met ade por obser vação l evi ana, r azoável me par eceu a pr of eci a; e como sem cessar Ger ebi t a mal hasse na mesma t ec l a, acabei por convencer - me de que o casmur r o aj udant e er a um f adado ao hospí ci o, com pouco t empo de equi l í br i o nos mi ol os. Um di a Ger ebi t a abor dou a quest ão nest es t er mos: - " Quer o que o senhor me r esol va um caso. Est ão doi s homens numa casa; de r epent e um enl ouquece e r ompe, como cação esf omeado, par a ci ma do out r o. Deve o out r o dei xar - se mat ar como car nei r o ou t em o di r ei t o de at ol ar a f aca na gar gant a do bi cho?" Er a por demai s cl ar a a consul t a. Respondi como um r ábul a posi t i vo: - " Se Cabr ea enl ouquecesse e o agr edi sse, mat á- l o ser i a um di r ei t o nat ur al de def esa - não havendo socor r o à mão. Mat ar par a não mor r er não é cr i me - mas i s t o só em úl t i mo caso, você compr eende. " - " Compr eendo, compr eendo" , r espondeu- me di s t r ai dament e, como quem l á segue os vol t ei os duma i déi a secr et a; e depoi s de l onga pausa: " Sej a o que Deus qui ser mur mur ou ent r e s i , suspi r ando e r ecai ndo em ci smas. Dei xei - me f i car à j anel a a ver cai r a noi t e. Nada mai s t r i st e do que as ave- mar i as no er mo. A t r eva espessava as águas e absor v i a no céu os der r adei r os pal or es da l uz. No poent e, um l eque al uar ado enr ubesci a nas var et as, com dedadas sangr ent as de nuvens a bar r á- l o de l i s t r ões hor i zont ai s . Tr i st e. . . A ar dósi a do mar ; as pr i mei r as est r el i nhas ent r el uz i ndo a medo; o mar ul ho na pedr a, t chá, t chá, compassado, et er no. . . A al ma conf r angeu- se- me de angúst i a. Vi - me náuf r ago, r et i do par a sempr e num navi o de pedr a, gr udado como desconf or me cr aca na pedr ancei r a da i l hot a. E pel a pr i mei r a vez na v i da sent i pr of undas saudades dessa coi sa sór di da, a mai s r el es de quant as i nvent ou a c i v i l i zação - o " caf é" , com o seu t umul t o, a sua poei r a, o seu baf i o a t abaco e a sua f r eguesi a habi t ual de vagabundí ss i mos " agent es de negóci os" . . . Cor r er am di as. Mi nt o. No vazi o daquel e dessabor i do vi ver no er mo o t empo não cor r i a - ar r ast ava- se com a l ent i dão da l esma por sobr e chão l i so e sem f i m. Ger ebi t a t or nar a- se enf adonho. Não mai s nar r ava pi nt ur escos i nc i dent es da sua vi da de mar uj o. Af er r ado à i déi a f i xa da l oucur a do Cabr ea, só cui dava de demonst r ar - me os seus pr ogr essos. For a desse t ema s i ni s t r o, sua ocupação er a segui r de ol hos os navi os que r epont avam ao l ar go, at é vê- l os sumi r em- se na cur va do hor i zont e. Vel as, poucas al vej avam, t i r ant e bar qui nhas de pescador es. Mas uma que sur gi sse l á nos l evava os ol hos e a i magi nação. Como se casa bem com o mar o bar co de vel a! E que sór di do bar at ão cr aquent o é ao pé del e o navi o a vapor ! Escunas, cor vet as, pequeni nos cut t er s, f r agat as, l ugr es, br i gues, i at es. . . O que l á vai passado de l eveza e gr aça! . . . Subst i t uem- nas, às gar ças l eves, os f ei os escar avel hos de f er r o e pi che; a el as, que vi v i am de br i sas, os negr os comedor es de car vão, bi char ocos que mugem r oncos de t our o

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enr ouqueci do. Pr ogr esso ami go, t u és cômodo, és del i c i oso, mas f ei o. . . Que f i zest e da coi sa l i nda que é a vel a enf unada? Do bar co à ant i ga, onde r essoavam canções de mar uj a, e t odo se enl eava de cor dame, e t r az i a gaj ei r o na gávea, e l endas de ser pent es mar i nhas na boca dos mar i nhei r os, e a Nossa Senhor a dos Navegant es em t odas as al mas, e o medo das ser ei as em t odas as i magi nações? Desf ez- se a poesi a do r ei no encant ado de Anf i t r i t e ao r onco do Lusi t âni as, hot éi s f l ut uant es com gar çons em vez de " l obos- do- mar " , i ncar act er í st i cos, cosmopol i t as, sem donai r e, sem capi t ães de suí ças, pi t or escos no f al ar como sei scent os mi l hões de car avel as. O f umo da hul ha suj ou a aquar el a mar avi l hosa que desde Hanon e Ul i sses v i nha o vel ei r o pi nt ando sobr e a t el a oceâni ca. . . - Se par as o caso dos l oucos e t e met es por i nt er mezzos l í r i cos par a uso de meni nas ol hei r udas, vou dor mi r . Vol t a ao f ar ol , r omant i cão de má mor t e. - Eu devi a cast i gar o t eu pr osaí smo sonegando- t e o epí l ogo do meu dr ama, ó f i l ho do " caf é" e do car vão! - Cont a, cont a. . . Cer t a t ar de, Ger ebi t a chamou mi nha at enção par a o agr avament o da l oucur a de Cabr ea, e aduzi u vár i as pr ovas concl udent es. - " Quei r a Deus não sej a hoj e! . . . " - " Tens medo?" - " Medo? Eu? De Cabr ea?" Quer i a que v i sses a est r anha expr essão de f er oc i dade que l he endur eceu o r ost o! . . . A conver sa par ou aí . Ger ebi t a chupava cachi mbadas ner vosas, f echado de sobr ecenho como quem r umi na uma i déi a f i xa. Dei xou- me, e l ogo em segui da subi u. Como anoi t ecesse, r ecol hi - me pouco depoi s e dei t ei - me. Dor mi e sonhei . Sonhei um sonho gui nhol esco, agi t adí ssi mo, com l ut as, f acadas, o di abo. Lembr o- me que, agr edi do por um f ací nor a, desf echei cont r a el e c i nco t i r os de r evól ver ; as bal as, por ém, gr udar am- se à par ede e der am de r essoar dum modo que me desper t ou. Mas acor dado cont i nuei a ouvi r o mesmo bar ul ho, v i ndo de c i ma, da l ant er na. Pr essi nt o a cat ást r of e esper ada. Sal t o da cama e aguço o ouvi do: bar ul ho de l ut a. Cor r o à escada, gal go- a aos t r ês degr aus e no t opo esbar r o com a por t a f echada. Tent o abr i La: não cede. Escut o: er a de f at o l ut a. Rol avam cor pos pel o chão, f azendo r et i ni r os v i dr os da l ant er na, e ouvi a- se um r esf ol ego sur do, ent r emeado de embat es cont r a os móvei s. Tr evas absol ut as. Nenhuma r ést i a de l uz coava par a a escada. Mi nha si t uação er a esquer da. Fi car al i , i nút i l , quando por t as adent r o doi s homens se ent r emat avam? Per maneci a eu nessa dubi edade, quando choque v i ol ent o escancar oume a por t a. Um cl ar ão de sol chof r ou- me os ol hos. Sent i nas per nas um t r anco - e r odei escada abai xo de cambul hada com doi s cor pos engal f i nhados. Er gui - me, t ont o, e v i em r ebol o no chão os doi s f ar ol ei r os. At i r ei - me à Lut a em auxí l i o de Ger ebi t a. - " Doi s cont r a um! " , gemeu Cabr ea, suf ocado. " É covar di a! " Pel a pr i mei r a vez l he ouvi a voz - e hoj e not o que nada nel a denunci ava l oucur a. No moment o pensei di ver sament e, se é que

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pensei al guma coi sa. Ger ebi t a, com gr ande assombr o meu, t ambém me r epel i u. - " Não! Não! Eu só! " Ni st o, um pegão de nor t ada, var r endo a t or r e, t r ancou a por t a do l ant er ni m com est r ondo. Envol veu- nos de novo a escur i dão. E começa aqui o hor r or . . . Os r ugi dos que ouvi , os ar r ancos e socões f or mi dávei s da l ut a nas t r evas, a mi nha ansi edade. . . Pavor osos mi nut os de v i da que não desej o r enovados. Per di a noção do t empo. Dur ou mui t o aqui l o? Não sei di zer . Só sei que a t ant as ouvi escapar - se ao pei t o de Ger ebi t a um ur r o de dor , e l ogo em segui da uma i mpr ecação, " Desgr açado! " , cuj as der r adei r as sí l abas mor r er am num t r i ncar de dent es at assal hando car nes. Cabr ea gr ugul ej ou uns r oncos que se casar am com o ar quej ar do pei t o de Ger ebi t a, e a l ut a esmor eceu. Sem pal avr as na boca, cegado pel a escur i dão, eu só ouvi a, f or a, os ui vos da nor t ada, e al i , aquel e ar quej o do vencedor exaust o caí do à bei r a do venci do. Com os ol hos da i magi nação eu v i a esse quadr o, que com os da car a enxer gava t ant o como se os t i ver a envol t os em vel udo negr o. Não t e cont o os por menor es do epí l ogo. Obt i ve l uz e o que v i não t e cont o. I mpossí vel pi nt ar o hedi ondo aspect o de Cabr ea com a car ót i da est r açal hada a dent e, caí do num l ago de sangue. Ao seu l ado Ger ebi t a, com a car a e o pei t o ver mel hos, a mão sangr ent a, est at el ava- se no chão, sem sent i dos. Os meus t r anses di ant e daquel es cor pos mar t i r i zados, àquel a hor a da noi t e - daquel a t er r í vel noi t e negr a como est a e sacudi da por um vent o do i nf er no! . . . Na manhã segui nt e, Ger ebi t a pousou- me a mão sobr e o ombr o e di sse: - " O mar não l eva daqui os cor pos à pr ai a e o mundo não pr eci sa saber de que mor r eu Cabr ea. Cai u n' água mor t e de mar i nhei r o - e o moço é t est emunha de que mat ei par a não mor r er . Foi def esa. Agor a vai j ur ar - me que i s t o f i car á par a sempr e ent r e nós. " Jur ei - o l eal ment e, t ocando de l eve a mão mut i l ada. E el e, num acesso de i nf i ni t o desal ent o, quedou- se i móvel , a ol har par a o chão, mur mur ando i ns i s t ent ement e: - " Eu bem avi sei . Não me acr edi t ar am. Agor a, est á aí , est á aí , est á aí . . . " Nesse mesmo di a vei o buscar - me o Dunga. Mal a Gai vot a l ar gou, nar r ei - l he a mor t e do f ar ol ei r o, r omanceando- a: Cabr ea, l ouco a despenhar - se t or r e abai xo e a sumi r - se par a sempr e no sei o das ondas. Dunga, assombr ado, sust eve no ar os r emos. - " Poi s mor r eu? E l ouco. " - " Est á c l ar o! " - " Cl ar o que l he par ece, que a mi m. . . - " Conheci a- o?" - " Não conheci a out r a coi sa. Des' que f ur t ou a Mar i a Ri t a. . . " - " Que Mar i a Ri t a?" - " Poi s a Mar i a Ri t a, mul her do Ger ebi t a, ent ão não sabe? Que el e seduzi u, hom' essa. " Abr i a mi nha mai or boca e ar r egal ei o que pude os ol hos.

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- " Como sabe di sso?" - " É boa! Sei por que sei , como sei que aquel a gai vot a que al i vai é uma e que est e mar é mar . A Mar i a Ri t a er a uma mor ena de t r uz, per i gosa como o demo. O t ol o do Ger ebi t a der r eou- se d' amor es pel a bi sca e l á casou. E vai el a, a songui nha, mal o homem saí a no Pur us, met i a em casa ao Cabr ea. E nesse j ogo v i ver am at é que um di a f ugi r am j unt os par a out r as t er r as. O pobr e Ger ebi t a se não acabou de pai xão é que é t eso. Mas ent r ou par a o f ar ol , o que é t ambém um modo de mor r er p' r ' o mundo. Poi s bem. A bol a vi r a, o t empo cor r e, e vai , senão quando, quem met e o Gover no no f ar ol em l ugar do def unt o Gabr i el ? Ao Cabr ea! Ao Cabr ea que t ambém andava descr ent e da v i da por que a Ri t a l he f ugi r a com t er cei r o. Coi sas do mundo. Di z- me agor a vossor i a que o homem enl ouqueceu, e r ol ou no penedo, e l á o r ói o pei xe. Est á bem. Ant es assi m, que do cont r ár i o er a em pont a de f aca que aqui l o acabar i a. . . " Cal ei - me. Há s i t uações na v i da que as i déi as embar al ham de t al f or ma que é de bom consel ho dei xar mo- l as se assent ar em por si . Ei s como. . . - . . . o meu gr ande ami go Eduar do f oi empul hado por um assassi no vul gar ! - Per dão. O f at o de se não manej ar em f l or et es não t i r a àquel e pugi l at o o car át er de duel o. - " Caval l er i a r ust i cana" , ent ão? - E por que não? Not as: 1. O cont o " Os Far ol ei r os" f oi publ i cado na Revi st a do Br asi l , nº 20, de agost o de 1917, sob o t í t ul o de: " Caval l er i a Rust i cana" . Numa car t a a Godof r edo Rangel , Lobat o expl i ca a mudança: " Mi nha Caval l er i a Rust i cana, que vou mudar par a Os Far ol ei r os por que t oda a gent e conf unde " caval er i a" com " caval ar i a" ( que caval os! ) . . . 2. Anequi m: Espéci e de t ubar ão. 3. Ti nt ur ei r a: Espéci e de t ubar ão. O engr açado ar r ependi do Fr anci sco Tei xei r a de Souza Pont es, gal ho bast ar do duns Souza Pont es de t r i nt a mi l ar r obas af azendados no Bar r ei r o, só aos t r i nt a e doi s anos de i dade ent r ou a pensar ser i ament e na v i da. Como f osse de nat ur al engr açado, vi ver a at é al i à cust a da vei a cômi ca, e com el a amanhar a casa, mesa, vest uár i o e o mai s. Sua moeda cor r ent e er a mi cagens, pi l hér i as, anedot as de i ngl ês e t udo quant o bol e com os múscul os f ac i ai s do ani mal que r i , vul go homem, r epuxando r i sos ou mat r acol ej ando gar gal hadas. Sabi a de cor a Enci c l opédi a do Ri so e da Gal hof a, de Fuão Pechi ncha, o aut or mai s dessabor i do que Deus bot ou no mundo; mas er a t al a ar t e do Pont es, que as sensabor i as mai s r el ambór i as ganhavam em sua boca um chi st e r ar o, de f azer os ouvi nt es babar em de pur o gozo. Par a ar r emedar gent e ou bi cho, er a um gêni o. A gama i nt ei r a das vozes do cachor r o, da acuação aos cai t i t us ao

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ui vo à l ua, e o mai s, r osnado ou l at i do, assumi a em sua boca per f ect i bi l i dade capaz de i l udi r aos pr ópr i os cães - e à l ua. Também gr unhi a de por co, cacar ej ava de gal i nha, coaxava de unt ar i ha, r al hava de mul her vel ha, chor ami ngava de f edel ho, si l enci ava de deput ado gover ni st a ou per or ava de pat r i ot a em sacada. Que vozei r o de bí pede ou quadr úpede não copi ava el e às mar avi l has, quando t i nha pel a f r ent e um audi t ór i o pr edi spost o? Desci a out r as vezes à pr é- hi s t ór i a. Como f osse d' al gumas l uzes, quando os ouvi nt es não er am pecos el e r econst i t uí a os vozei r ões pal eont ol ógi cos dos bi chos ext i nt os - r oncos de mast odont es ôu ber r os de mamut es ao av i st ar em- se com pel udos homos r epi mpados e f et os ar bór eos - coi sa mui t o de r i r e di vul gar a c i ênci a do sr . Bar r os Bar r et o. Na r ua, se pi l hava um magot e de ami gos par ados à esqui na, apr oxi mava- se de mansi nho e - nhoc! - ar r emessava um bot e de munheca à bar r i ga da per na mai s a j ei t o. Er a de ver o pi not e assust ado e o - passa! ner voso do i ncaut o, e l ogo em segui da as r i sadas sem f i m dos out r os, e a do Pont es, o qual gar gal hava dum modo t odo seu, est r epi t oso e musi cal - músi ca d' Qf f enbach. Pont es r i a par odi ando o r i so nor mal e espont âneo da cr i at ur a humana, úni ca que r i al ém da r aposa bêbada; e est acava de gol pe, sem t r ansi ção, cai ndo num sér i o de i r r es i st í vel cômi co. Em t odos os gest os e modos, como no andar , no l er , no comer , nas ações mai s t r i v i ai s da v i da, o r ai o do homem di f er ençava- se dos demai s no sent i do de amol ecá- l os pr odi gi osament e. E chegou a pont o de que escusava abr i r a boca ou esboçar um gest o par a que se t or cesse em r i sos a humani dade. Bast ava sua pr esença. Mal o avi s t avam, j á as car as r ef l or i am; se f az i a um gest o, espi r r avam r i sos; se abr i a a boca, espi gai t avam- se uns, out r os af r ouxavam os coses, t er cei r os desabot oavam os col et es. E se ent r eabr i a o bi co, Nossa Senhor a! , er am cascal hadas, er am r i nchavel hos, er am gui nchos, engasgos, f ungações e asf i x i as t r emendas. - É da pel e, est e Pont es! - Bast a, homem, você me af oga! E se o pândego se i nocent ava, com car a pal er ma: - Mas que est ou f azendo? Se nem abr i a boca. . . - Quá, quá, quá - a companhi a i nt ei r a, desmandi bul ada, chor ava no espasmo supr emo dos r i sos i ncoer cí vei s . Com o cor r er do t empo, não f oi pr ec i so mai s que seu nome par a def l agr ar a hi l ar i dade. Pr onunci ando al guém a pal avr a " Pont es" , acendi a- se l ogo o est opi m das f ungadel as pel as quai s o homem se al t ei a ac i ma da ani mal i dade que não r i . Assi m vi veu Pont es at é a i dade do Cr i s t o, numa par ábol a r i sonha, a r i r e f azer r i r , sem pensar em nada sér i o vi da de f i l ant e que dá momos em t r oca de j ant ar es e paga cont i nhas mi údas com pi l hér i as de t r uz. Um negoci ant e cal ot eado di sse- l he um di a ent r e f r ouxos de r i so babado: - Você ao menos di ver t e, não é como o maj or Car apuça que cal ot ei a de car r anca. Aquel e r eci bo sem sel o mor t i f i cou seu t ant o ao nosso pândego; mas a cont a subi a a qui nze mi l r éi s - val i a bem a pel ot ada. Ent r et ant o, l á f i cou a l embr ança del a espet ada

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como al f i net e na al mof adi nha do amor - pr ópr i o. Depoi s v i er am out r os e out r os, est es f i ncados de l eve, aquel es at é a cabeça. Tudo cansa. Far t o de t al v i da, ent r ou o hi l ar i ão a sonhar as del í c i as de ser t omado a sér i o, f al ar e ser ouvi do sem r epuxo de múscul os f aci ai s , gest i cul ar sem pr omover a quebr a da compost ur a humana, at r avessar uma r ua sem pr essent i r na peugada um cor o de " Lá vem o Pont es! " em t om de quem se espr eme na cont enção do r i so ou se aj ei t a par a uma bar r i gada das boas. Reagi ndo, t ent ou Pont es a ser i edade. Desast r e. Pont es sér i o mudava de t ec l a, caí a no humor i smo i ngl ês. Se ant es di ver t i a como o Cl own, passava agor a a di ver t i r como o Tony. O est r ondoso êxi t o do que a t oda a gent e se af i gur ou uma f acet a nova da sua vei a cômi ca ver t eu mai s sombr a na al ma do engr açado ar r ependi do. Er a cer t o que não poder i a t r açar out r o cami nho na vi da al ém daquel e, or a odi oso? Pal haço, ent ão, et er nament e pal haço à f or ça? Mas a vi da de um homem f ei t o t em exi gênci as s i sudas, i mpõe gr avi dade e at é casmur r i ce di spensávei s nos anos ver des. O car go mai s modest o da admi ni s t r ação, uma si mpl es ver eança, r equer na car a a i mobi l i dade da i di ot i a que não r i . Não se concebe ver eador r i sonho. Fal t a ao di t o de Rabel ai s uma excl usão: o r i so é pr ópr i o à espéci e humana, f or a o ver eador . Com o dobar dos anos a r ef l exão amadur eceu, o br i o cr i st al i zou- se, e os j ant ar es cavados der am a saber - l he a azedo. A moeda pi l hér i a t or nou- se- l he dur a ao cunho; j á a não f undi a com a f r escur a ant i ga; j á usava del a como expedi ent e de v i da, não por f ogança despr eocupada, como out r or a. Compar ava- se ment al ment e a um pal haço de c i r co, vel ho e achacoso, a quem a mi sér i a obr i ga a t r ansf or mar r eumat i smo em car et as hí l ar es como as quer o públ i co pagant e. Ent r ou a f ugi r dos homens e despendeu bons meses no est udo da t r ansi ção necessár i a ao consegui ment o de um empr ego honest o. Pensou no bal cão, na i ndúst r i a, na f ei t or i a duma f azenda, na mont agem dum bot equi m - que t udo er a pr ef er í vel à paspal hi ce cômi ca de at é al i . Um di a, bem mat ur ados os pl anos, r esol veu mudar de vi da. Foi a um negoci ant e ami go e s i ncer ament e l he expôs os pr opósi t os r egener ador es, pedi ndo por f i m um l ugar na casa, de var r edor que f osse. Mal acabou a exposi ção, o gal ego e os que espi avam de l onge à esper a do desf echo t or cer am- se em est r ondoso gar gal har , como sob cócegas. - Est a é boa! E de pr i mei r í ss i ma! Quá! quá! quá! Com que ent ão. . . Quá! quá! quá! Você me ar r ui na os f í gados, homem! Se é pel a cont i nha dos ci gar r os, vá embor a que me dou por bem pago! Est e Pont es t em cada uma. . . E a cai xei r ada, os f r egueses, os sapos de bal cão e at é passant es que par ar am na cal çada par a " apr ovei t ar o espí r i t o" , desbocar am- se em quás de mat r aca at é l hes doer em os di af r agmas. At ar ant ado e ser i í ss i mo, Pont es t ent ou desf azer o engano. - Fal o sér i o, e o senhor não t em o di r ei t o de r i r - se. Pel o amor de Deus, não zombe de um pobr e homem que pede t r abal ho e não gar gal hadas.

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O negoci ant e desabot oou o cós da cal ça. - Fal a sér i o, pf f ! Quá! quá! quá! Ol ha Pont es, você. . . Pont es l ar gou- o em mei o da f r ase, e se f oi com a al ma at enazada ent r e o desesper o e a cól er a. Er a demai s. A soci edade o r epel i a, ent ão? I mpunha- l he uma comi ci dade et er na? Cor r eu out r os bal cões, expl i cou- se como mel hor pôde, i mpl or ou. Mas por voz unâni me, o caso f oi j ul gado como uma das mel hor es pi l hér i as do " i ncor r i gí vel " - e mui t a gent e o coment ou com a obser vação de cost ume: - Não se emenda o r ai o do r apaz! E ol hem que j á não é cr i ança. . . Bar r ado no comér c i o, vol t ou- se par a a l avour a. Pr ocur ou um vel ho f azendei r o que despedi r a o f ei t or e expôs- l he o seu caso. Depoi s de ouvi r - l he at ent ament e as al egações, concl usas com o pedi do do l ugar de capat az, o cor onel expl odi u num at aque de hi l ar i dade. - O Pont es capat az! 1h! 1h! 1h! - Mas. . . - Dei xe- me r i r , homem, que cá na r oça i st o é r ar o. 1h! 1h! 1h! É mui t o boa! Eu sempr e di go: gr aça como o Pont es, ni nguém! E ber r ando par a dent r o: - Mar i cot a, venha ouvi r est a do Pont es. 1h! 1h! 1h! Nesse di a, o i nf el i z engr açado chor ou. Compr eendeu que não se desf az do pé p' r ' a mão o que l evou anos a cr i st al i zar - se. A sua r eput ação de pândego, de i mpagável , de monument al , de homem do chi f r e f ur ado ou da pel e, est ava const r uí da com mui t o boa cal e r i j o c i ment ado par a que assi m esbor oasse de chof r e. Ur gi a, ent r et ant o, mudar de t ecl a, e Pont es vol veu as vi s t as par a o Est ado, pat r ão cômodo e úni co possí vel nas ci r cunst ânci as, por que abst r at o, por que não sabe r i r nem conhece de per t o as cél ul as que o compõem. Esse pat r ão, só el e, o t omar i a a sér i o - o cami nho da sal vação, poi s, embi cava por al i . Est udou a possi bi l i dade da agênci a do cor r ei o, dos t abel i onat os, das col et or i as e do r est o. Bem ponder ados os pr ós e cont r as, os t r unf os e nai pes, f i xou a escol ha na col et or i a f eder al , cuj o ocupant e, maj or Bent es, por avel hant ado e car dí aco, er a de cr er não dur asse mui t o. Seu aneur i sma andava na ber r a públ i ca, com r ebent ament o esper ado par a qual quer hor a. O ás de Pont es er a um par ent e do Ri o, suj ei t o de posses, em vi a de i nf l uenci ar a pol í t i ca no caso da r eal i zação de cer t a r ev i r avol t a no gover no. Lá cor r eu at r ás del e e t ant as f ez par a movê- l o à sua pr et ensão que o par ent e o despedi u com pr omessa f or mal . - Vai sossegado que, em a coi sa ar r ebent ando por cá e o t eu col et or r ebent ando por l á, ni nguém mai s há de r i r - se de t i . Vai , e avi sa- me da mor t e do homem sem esper ar que esf r i e o cor po. Pont es vol t ou r adi oso de esper ança e pací ent ement e aguar dou a sucessão dos f at os, com um ol ho na pol í t i ca e out r o no aneur i sma sal vador . A cr i se af i nal vei o; caí r am mi ni s t r os, subi r am out r os e ent r e est es um pol i t i cão negoci st a, sóci o do t al par ent e. Mei o cami nho j á er a andado. Rest ava apenas a segunda par t e.

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I nf el i zment e, a saúde do maj or encr uar a, sem si nai s pat ent es de decl í ni o r ápi do. Seu aneur i sma, na opi ni ão dos médi cos que mat avam pel a al opat i a, er a coi sa gr ave, de est our ar ao menor esf or ço; mas o pr ecavi do vel ho não t i nha pr essa de i r - se par a mel hor , dei xando uma vi da onde os f ados l he conchegavam t ão f of o ni nho, e l á engambel ava a doença com um r egi me ul t r amet ódi co. Se o mat ar i a um esf or ço v i ol ent o, sossegassem, el e não f ar i a t al esf or ço. Or a, Pont es, ment al ment e dono daquel a s i necur a, i mpaci ent ava- se com o equi l í br i o desequi l i br ador dos seus cál cul os. Como desembar açar o cami nho daquel a t r avanca? Leu no Cher novi z o capí t ul o dos aneur i smas, decor ou- o; andou em i ndagações de t udo quant o se di z i a ou se escr eveu a r espei t o; chegou a ent ender da mat ér i a mai s que o dout or I odur et o, médi co da t er r a, o qual , sej a di t o aqui à pur i dade, não ent endi a de coi sa nenhuma dest a v i da. O pomo da c i ênci a, assi m comi do, i nduzi u- o à t ent ação de mat ar o homem, f or çando- o a est our ar . Um esf or ço o mat ar i a? Poi s bem, Souza Pont es o l evar i a a esse esf or ço! - A gar gal hada é um esf or ço, f i l osof ava sat ani cament e de si par a s i . A gar gal hada, por t ant o, mat a. Or a, eu sei f azer r i r . . . Longos di as passou Pont es al hei o ao mundo, em di ál ogo ment al com a ser pent e. - Cr i me? Não! Em que códi go f azer r i r é cr i me? Se di sso mor r esse o homem, cul pa er a da sua má aor t a. A cabeça do mar ot o v i r ou pi cadei r o de l ut a onde o " pl ano" se bat i a em duel o cont r a t odas as obj eções mandadas ao encont r o pel a consci ênci a. Ser vi a de j ui z a sua ambi ção amar ga e Deus sabe quant as vezes t al j ui z pr evar i cou, l evado de escandal osa par c i al i dade por um dos cont endor es. Como er a de pr ever , a ser pent e venceu, e Pont es r essur gi u par a o mundo um t ant o mai s magr o, de ol hei r as cavadas, por ém com um est r anho br i l ho de r esol ução vi t or i osa nos ol hos. Também not ar i a nel e o ner voso dos modos quem o obser vasse com ar gúci a - mas a ar gúci a não er a v i r t ude sobej a ent r e os seus cont er r âneos, al ém de que est ados d' al ma do Pont es er am coi sa de somenos, por que o Pont es. . . - Or a o Pont es. . . o f ut ur o f unci onár i o f or j i cou, ent ão, met i cul osos pl anos de campanha. Em pr i mei r o er a mi st er apr oxi mar - se do maj or , homem r ecol hi do consi go e pouco ami go de l ér i as; i nsi nuar - se- l he na i nt i mi dade; est udar suas venet as e cachaci nhas at é descobr i r em que zona do cor po t i nha el e o cal canhar - de- aqui l es. Começou f r eqüent ando com assi dui dade a col et or i a, sob pr et ext os vár i os, or a par a sel os, or a par a i nf or mações sobr e i mpost os, que t udo er a ensej o de um par ol ar manhoso, habi l í ss i mo, cal cul ado par a combal i r a r i spi dez do vel ho. Também i a a negóci os al hei os, pagar coi sas, ext r ai r gui as, coi si nhas; f i zer a- se mui t o ser vi çal par a os ami gos que t r az i am negóci os com a f azenda. O maj or est r anhou t ant a assi dui dade e di sse- l ho, mas Pont es escamot eou- se à i nt er pel ação mont ado numa pi l hér i a de t r uz, e per sever ou num bem cal cul ado dar t empo ao t empo que f osse desbast ando as ar est as agr essi vas do

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car dí aco. Dent r o de doi s meses j á se habi t uar a Bent es àquel e ser el epe, como l he chamava, o qual , em f i m de cont as, l he par eci a um bom moço, si ncer o, ami go de ser vi r e sobr et udo i nof ensi vo. . . Daí a l á em di a d' acúmul o de ser v i ço pedi r - l he um obséqui o, e depoi s out r o, e t er cei r o, e t ê- l o af i nal como espéci e de adi do à r epar t i ção, f oi um passo. Par a cer t as comi ssões não havi a out r o. Que di l i gênci a! Que f i nur a! Que t at o! Adver t i ndo cer t a vez o escr event e, o maj or puxou aquel a di pl omaci a como l embr et e. - Gr ande pasmado! Apr enda com o Pont es, que t em j ei t o par a t udo e ai nda por c i ma t em gr aça. Nesse di a, convi dou- o par a j ant ar . Gr ande exul t ação na al ma do Pont es! A f or t al eza abr i a- l he as por t as. Aquel e j ant ar f oi o i ní c i o duma sér i e em que o ser el epe, agor a f act ót um i ndi spensável , t eve campo de pr i mei r a or dem par a evol uções t át i cas. O maj or Bent es, ent r et ant o, possuí a uma i nvul ner abi l i dade: não r i a, l i mi t ava suas expansões hí l ar es a sor r i sos i r ôni cos. Pi l hér i a que l evava out r os comensai s a er guer em- se da mesa at abaf ando a boca nos guar danapos, encr espava apenas os seus l ábi os. E se a gr aça não er a de super f i na agudeza, el e desmont ava sem pi edade o cont ador . - I sso é vel ho, Pont es, j á num al manaque Laemmer t de 1850 me l embr o de o t er l i do. Pont es sor r i a com ar venci do; mas l á por dent r o consol ava- se, di zendo, dos f í gados par a o r i m, que se não pegar a daquel a, dout r a pegar i a. Toda a sua sagaci dade enf ocava no f i t o de descobr i r o f r aco do maj or . Cada homem t em pr edi l eção por um cer t o gêner o de humor i smo ou chal aça. Est e mor r e por pi l hér i as f esceni nas de f r ades boj udos. Aquel e pél a- se pel o chi s t e bonachei r ão da chacot a ger mâni ca. Aquel ' out r o dá a vi da pel a pi ment a gaul esa. O br asi l ei r o ador a a chal aça onde se põe a nu a bur r i ce t amancuda de gal egos e i l héus. Mas o maj or ? Por que não r i a à i ngl esa, nem à al emã, nem à f r ancesa, nem à br asi l ei r a? Qual o seu gêner o? Um t r abal ho si s t emát i co de obser vação, com a met ódi ca excl usão dos gêner os j á pr ovados i nef i c i ent es, l evou Pont es a descobr i r a f r aqueza do r i j o adver sár i o: o maj or l ambi a as unhas por casos de i ngl eses e f r ades. Er a pr eci so, por ém, que v i essem j unt os. Separ ados, negavam f ogo. Esqui s i t i ces do vel ho. Em sur gi ndo bi f es ver mel hos, de capacet e de cor t i ça, r oupa enxadr ezada, sapat ões f or mi dol osos e cachi mbo, j unt ament e com f r ades r edondos, namor ados da pi pa e da pol pa f emi ni na, l á abr i a o maj or a boca e i nt er r ompi a o ser vi ço da mast i gação, como cr i ança a quem acenam com cocada. E quando o l ance cômi co chegava, el e r i a com gost o, aber t ament e, embor a sem exager o capaz de l he dest r ui r o equi l í br i o sangüí neo. Com i nf i ni t a paci ênci a, Pont es bancou nesse gêner o e não mai s sai u dal i . Aument ou o r eper t ór i o, a gr adação do sal , a dose de mal í c i a, e s i s t emat i cament e bombar deou a aor t a do maj or com os pr odut os dessa hábi l mani pul ação. Quando o caso er a l ongo, por que o nar r ador o f or j a no i nt ent o de esconder o desf echo e r eal çar o ef ei t o, o vel ho i nt er essava- se vi vament e, e nas pausas manhosas pedi a escl ar ec i ment o ou

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cont i nuação. - " E o r ai o do bi f e?" " E daí ?" " Mi st er John api t ou?" Embor a t ar dasse a gar gal hada f at al , o f ut ur o col et or não desesper ava, conf i ando no apól ogo da bi l ha que de t ant o i r à f ont e l á f i cou. Não er a mau o cál cul o. Ti nha a ps i col ogi a por s i - e t eve t ambém por si a quar esma. Cer t a vez, f i ndo o car naval , r euni u o maj or os ami gos em t or no a uma enor me pi abanha r echeada, pr esent e dum col ega. O ent r udo desmazor r ar a a al ma dos comensai s e a do anf i t r i ão, que est ava naquel e di a cont ent e de s i e do mundo, como se houver a enxer gado o passar i nho ver de. O chei r o v i ndo da cozi nha, val endo por t odos os aper i t i vos de gar r af ar i a, punha nas car as um ent er neci ment o est omacal . Quando o pei xe ent r ou, c i nt i l ar am os ol hos do maj or . Pescado f i no er a com el e, i nda mai s cozi do pel a Ger t r udes. E naquel e br ódi o, pr i mar a a Ger t r udes num t emper o que excedi a as r ai as da cul i nár i a e se gui ndava ao mai s pur o l i r i smo. Que pei xe! Vat el o assi nar i a com a pena da i mpot ênci a mol hada na t i nt a da i nvej a, di sse o escr event e, suj ei t o l i do em Br i l l at - Savar i n e out r os pr axi st as do pal adar . Ent r e gol es de r i ca v i nhaça, i a a pi abanha sendo i nt r oduzi da nos est ômagos com r el i gi osa unção. Ni nguém se at r ev i a a quebr ar o s i l ênci o da br omat ol ógi ca beat i t ude. Pont es pr essent i u opor t uno o moment o do gol pe. Tr azi a engat i l hado o caso dum i ngl ês, sua mul her e doi s f r ades bar badi nhos, anedot a que el abor ar a à cust a da mel hor mat ér i a c i nzent a de seu cér ebr o, aper f ei çoando- a em l ongas noi t es de i nsôni a. Já de di as a t i nha de t ocai a, só aguar dando o moment o em que t udo concor r esse par a l evá- l a a pr oduzi r o ef ei t o máxi mo. Er a a der r adei r a esper ança do f ací nor a, seu úl t i mo car t ucho. Negasse f ogo e, est ava r esol vi do, met i a duas bal as nos mi ol os. Reconheci a i mpossí vel mani pul ar - se t or pedo mai s engenhoso. Se o aneur i sma l he r es i st e ao embat e, ent ão é que o aneur i sma er a uma pot oca, a aor t a uma f i cção, o Cher novi z um pal avr ór i o, a medi ci na uma mi sér i a, o dout or I odur et o uma caval gadur a e el e, Pont es, o mai s chapado sensabor ão ai nda aqueci do pel o sol - i ndi gno, por t ant o, de v i ver . Mat ut ava assi m o Pont es, negaceando com os ol hos da ps i col ogi a a pobr e ví t i ma, quando o maj or vei o ao seu encont r o: pi scou o ol ho esquer do - s i nal de pr edi sposi ção par a ouvi r . - E agor a! - pensou o bandi do. E com i nf i ni t a nat ur al i dade, pegando como por acaso uma gar r af i nha de mol ho, pôs- se a l er o r ót ul o. - Per r i ns; Lea and Per r i ns. Ser á par ent e daquel e l or de Per r i ns que bi godeou os doi s f r ades bar badi nhos? I nebr i ado pel os amavi os do pei xe, o maj or al umi ou um ol ho concupi scent e, gul oso de chul i ce. - Doi s bar badi nhos e um l or de! A pat i f ar i a deve ser mar ca X. P. T. O. Cont a l á, ser el epe. E, mast i gando maqui nal ment e, absor veu- se no caso f at al . A anedot a cor r eu capci osa pel os f i os nat ur ai s at é as pr oxi mi dades do desf echo, nar r ada com ar t e de mest r e, segur a e f i r me, num andament o est r at égi co em que havi a gêni o. Do mei o par a o f i m, a mar anha empol gou de t al

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f or ma o pobr e vel ho que o pôs suspenso, de boca ent r eaber t a, uma azei t ona no gar f o det i da a mei o cami nho. Um ar de r i so - r i so par ado, r i so est opi m, que não er a senão o ar mar bot e da gar gal hada, i l umi nou- l he o r ost o. Pont es vaci l ou. Pr essent i u o est our o da ar t ér i a. Por uns i nst ant es a consci ênci a br ecou- l he a l í ngua, mas Pont es deul he um pont apé e com voz f i r me puxou o gat i l ho. O maj or Ant oni o Per ei r a da Si l va Bent es desf er i u a pr i mei r a gar gal hada da sua v i da, f r anca, est r ondosa, de ouvi r se no f i m da r ua, gar gal hada i gual à de Teuf el sdr ock di ant e de João Paul o Ri cht er . Pr i mei r a e úl t i ma, ent r et ant o, por que no mei o del a os convi vas, at ôni t os, vi r am- no cai r de bor co sobr e o pr at o, ao t empo que uma onda de sangue aver mel hava a t oal ha. o assassi no er gueu- se al uc i nado; apr ovei t ando a conf usão, esguei r ou- se par a a r ua, qual out r o Cai m. Escondeu- se em casa, t r ancou- se no quar t o, bat eu dent es a noi t e i nt ei r a, suou gel ado. Os menor es r umor es r et r ansi am- no de pavor . Pol í c i a? Semanas depoi s é que ent r ou a decl i nar aquel e t r anst or no que t oda a gent e l evar a à cont a de mágoa pel a mor t e do ami go. Não obst ant e, t r azi a sempr e nos ol hos a mesma vi são: o col et or de br uços no pr at o, gol f ando sangue, enquant o no ar vi br avam os ecos da sua der r adei r a gar gal hada. E f oi nesse depl or ável est ado que r ecebeu a car t a do par ent e do Ri o. Ent r e out r as coi sas, di zi a o ás: " Como não me avi sast e a t empo, conf or me o combi nado, só pel as f ol has v i m a saber da mor t e do Bent es. Fui ao mi ni s t r o mas er a t ar de, j á est ava l avr ada a nomeação do sucessor . A t ua l ev i andade f ez- t e per der a mel hor ocasi ão da vi da. Guar da par a t eu gover no est e l at i m: t ar de veni ent i bus ossa, quem chega t ar de só encont r a os ossos - e sê mai s esper t o par a o f ut ur o. " Um mês depoi s, descobr i r am- no pendent e duma t r ave, com a l í ngua de f or a, r í gi do. Enf or car a- se numa per na de cer oul a. Quando a not í c i a deu vol t a pel a c i dade, t oda a gent e achou gr aça no caso. O gal ego do ar mazém coment ou par a os cai xei r os: - Vej am que cr i at ur a! At é mor r endo f ez chal aça. Enf or car - se na cer oul a! Est a só mesmo do Pont es. . . E r eedi t ar am em cor o mei a duzi a de - úni co epi t áf i o que l he deu a soci edade. Not a: O cont o " O Engr açado Ar r ependi do" f oi publ i cado na Revi st a do Br asi l , nº 16, de abr i l de 1917, com o t í t ul o de " A Gar gal hada do Col ect or " . A col cha de r et al hos - Upa! Caval go e par t o. Por est es di as de mar ço a nat ur eza acor da t ar de. Passa as manhãs embr ul hada num r oupão de nebl i na e é com espr egui çament os de mul her vadi a que despe os véus da cer r ação par a o banho de sol . A névoa esmai a o r el evo da pai sagem, desbot a- l he as cor es. Tudo par ece coado at r avés dum cr i s t al despol i do.

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Vej o a or l a de capi m t uf ada como debr um pel o f i o dos bar r ancos; vej o o r oxo- t er r a da est r ada esmaecer l ogo adi ant e; e nada mai s vej o senão, a espaços, o vul t o got ej ant e dal guns angi quei r os mar gi nai s. Agor a, uma por t ei r a. Al i , a encr uzi l hada do Labr ego. Tomo à dest r a, em di r ei t ur a ao sí t i o do José Al vor ada. Est e bar ba- r al a mor a- me a j ei t o de empr ei t ar um r oçado no capoei r ão do Bi l u, nat a da t er r a que pel as bocas do caet é l egí t i mo, ( 1) da unha- de- vaca( 2) e da caquer a( 3) est á a pedi r f oi ce e covas de mi l ho. Não é di f í c i l a puxada: com c i nqüent a br aças de car r eador bot o a r oça no cami nho. Tr ês al quei r es, só no bom. Tal vez quat r o. A novent a por um - nove vezes quat r o t r i nt a e sei s ; t r ezent os e sessent a al quei r es de oi t o mãos. Descont adas as bandei r as ( 4) que o por co est r aga e o que comem a paca e o r at o. . . Ser á a f i l ha do Al vor ada? - Bom di a, meni na! O pai est á em casa? É a f i l ha úni ca. Pel o j ei t o não vai al ém de quat or ze anos. Que f r escur a! Lembr a os pés d' avenca v i çados nas gr ot as nor uegas. Mas ar r edi a e i t ê ( 5) como a f r ut a do gr avat á. Ol hem como se acanhou! D' ol hos bai xos, f i nge ar r umar a r odi l ha. ( 6) Vei o pegar água a est e cor r ego e é mi l agr e não se haver esguei r ado por det r ás daquel a moi t a de t aquar i s , ao ver - me. - O pai est á l á? - i nsi s t i . Respondeu um " est á" enl eado, sem er guer os ol hos da r odi l ha. Como a v i da no mat o assel vaj a est as veadi nhas! Not e- se que os Al vor adas não são cai pi r as. Quando compr ou a si t uação dos Per i qui t os, o vel ho vi nha da ci dade; l embr o- me at é que ent r ava em sua casa um j or nal . Mas a vi da l hes cor r eu ásper a na l ut a cont r a as t er r as ensapezadas e secas, que encur t am a r enda por mai s que dê de si o homem. For am r ar eando as i das à c i dade e ao cabo de t odo se supr i mi r am. Depoi s que l hes nasceu a meni na, r ebent o f l or al em anos out oni ços, e que a geada quei mou o caf é novo - uma t ami na, ( 7) t r ês mi l pés - o vel ho, amuado, nunca mai s espi chou o nar i z f or a do sí t i o. Se o mar i do deu assi m em ur umbeva, a mul her , essa enr ai zou de peão par a o r est o da vi da. Cost umava di zer : mul her na r oça vai à vi l a t r ês vezes - uma a bat i zar , out r a a casar , t er cei r a a ent er r ar . Com t ai s casmur r i ces na cabeça dos vel hos, er a nat ur al que a pobr ezi nha da Pi ngo d' Água ( t i nha esse apel i do a Mar i a das Dor es) se t ol hesse na desenvol t ur a ao ext r emo de ganhar medo às gent es. For a uma vez à v i l a com v i nt e di as, a bat i zar . E j á l á i a nos quat or ze anos sem nunca mai s t er - se ar r edado dal i . Ler ? Escr ever ? Pat acoadas, f al t a de ser vi ço, di z i a a mãe. Que l he val eu a el a l er e escr ever que nem uma pr of essor a, se des ' que casou nunca mai s t eve j ei t o de abr i r um l i vr o? Na r oça, como na r oça. Dei xei a meni na às vol t as com a r odi l ha e embr enhei me por um at al ho conducent e à mor ada. Que descal abr o! . . . Da casa vel ha al uí r a uma al a, e o r est ant e, al ém da

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cumeei r a sel ada, t i nha o oi t ão f or a do pr umo. O vel ho pomar , r oí do de f or mi ga, mor r er a de i nani ção; na ânsi a de sobr evi ver , t r ês ou quat r o l ar anj ei r as maci l ent as, f ur adas de br oca e sopesando o pol vo r et r ançado da er va- de- passar i nho, ai nda abr ol havam r ebent os chei os de compr i dos acúl eos. For a di sso, mamoei r os, a s i l vest r e goi aba e ar açás, pr omi scuament e com o mat o i nvasor que só r espei t ava o t er r ei r i nho bat i do, f r ont ei r o à casa. Taper a quase e, enl ur adas nel a, o que é mai s t r i s t e, al mas humanas em t aper a. Bat i pal mas. - Ó de casa! Apar eceu a mul her . - Est á seu Zé? - I nda agor i nha sai u, mas não demor a. Foi quei mar um mel na massar anduva do past o. Apei e e ent r e. Amar r ei o caval o a um moi r ão de cer ca e ent r ei . Acabadi nha, a Si nh' Ana. Toda r ugas na car a - e uma cor . . . Est r anhei - l he aqui l o. - Doença! - gemeu. - Est ou no f i m. Est ômago, f í gado, uma dor aqui no pei t o que r esponde na cacunda. Casa vel ha, é o que é. - Met ade é c i sma - di sse- l he par a consol o. - Eu é que sei ! - r et r ucou- me suspi r ando. Ent r ement es, sur gi u da cozi nha uma vel hot a bem- apessoada, no ceme, r i j a e t esa, que saudou e: - Est á espant ado do j ei t o de Nhana? Est a gent e de agor a não pr est a par a nada. Ol he, eu com set ent a no l ombo não me t r oco por el a. Cr i ei mi nha net a e i nda l avo, cozi nho e coso. Admi r a- se? Coso, s i m! . . . - Mecê é gabol a por que nunca padeceu doença - nem dor de dent e! Mas eu? Pobr e de mi m! Só admi r o ai nda est ar f or a da cova. . . Aí vem o Zé. Chegava o Al vor ada. Ao ver - me, abr i u a car a. - Or a vi va quem se l embr a dos pobr es! Não pego na sua mão por que est ou assi m. . . É só mel ado. Boni t o, hei n? Est ava di f í c i l , num oco mui t o al t o e sem j ei t o. Mas sempr e t i r ei . Não é j i t i , não! É mel - de- pau. Depôs num mocho a cuj a dos f avos e se f oi à j anel a, l avar as mãos à caneca d' água que a mul her despej ava. Pôs os ol hos no meu caval o. - Hoj e vei o no pi caço. . . Bom bi cho! Eu sempr e di go: ani mai s aqui no r edor , só est e pi caço e a r uana do I zé* 48 de Li ma. O mai s é eguada de moenda. Nest e moment o ent r ou a meni na de pot e à cabeça. Ao vê- l a, o pai apont ou par a a cuj a de mel . - Est á aí , f i l ha, o doce da apost a. Per di , paguei . Que apost a? Ah! ah! Br i ncadei r a. A gent e cá na r oça, quando não t em ser v i ço com qual quer coi sa se di ver t e. Vi nha passando um bando de mar i t acas. Eu di sse à l oa: " São mai s de dez! " Pi ngo negou: " Não chega l á! " Apost amos. Er am nove. El a ganhou o doce. Doce da r oça mel é. Est a songui r i ha só vendo; não é o que par ece, não. . . A l oquaci dade daquel e homem não desmedr ar a com o at r aso da v i da. Em se l he dando cor da, r essur gi a nel e o t agar el a da ci dade. Expus- l he o negóci o. Al vor ada enr ugou a t est a; r ef l et i u

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um bocado, de quei xo pr eso. Depoi s: - Eu hoj e, f r anqueza, não val ho mai s nada. Des' que caí daquel a amal di çoada pont e do Labr ego, f i quei ass i m como quebr ado por dent r o. Não escor o ser v i ço, e par a l i dar com camar adas no ei t o não bast a t er boca. Sem puxar a enxada de par com el es, a coi sa não vai , não! Lembr a- se da empr ei t ada do ano r et r asado? Poi s saí per dendo. O t r anca do João Mi na me quebr ou um machado e f ur t ou uma f oi ce. Com esses pr ej uí zos, não l i vr ei o j or nal . Desde ent ão f i z cr uz em ser vi ço al hei o. Se ai nda t ei mo nest e sapezal amal di çoado é por v i a da meni na; senão, l ar gava t udo e i a v i ver no mat o, como bi cho. É Pi ngo que i nda me dá um pouco de cor agem, concl ui u com t er nur a. A vel hi nha sent ar a- se à l uz da j anel a e, abr i ndo uma cai xet a, puser a- se a coser , de ócul os na pont a do nar i z. Apr oxi mei - me, admi r at i vo. - Si m, senhor a! Com set ent a anos! Sor r i u, l i sonj eada. - É par a ver . E i s t o aqui t em coi sa. É uma col cha de r et al hos que venho f azendo há quat or ze anos, des ' que Pi ngo nasceu. Dos vest i di nhos del a vou guar dando cada r et al ho que sobej a e um di a os coso. Vej a que gal ant ar i a de ser vi ço. . . Est endeu- me ant e os ol hos um pano var i egado, de quadr i nhos mai or es e menor es, t odos de chi t a, cada qual de um padr ão. - Est a col cha é o meu pr esent e de noi vado. O úl t i mo r et al ho há de ser do vest i do de casament o, não é, Pi ngo? Pi ngo d' Água não r espondeu. Met i da na cozi nha, per cebi que nos espi ava por uma f r est a. Mai s doi s dedos de pr osa com Al vor ada, um caf ezi nho r al o - escol ha ( 8) com r apadur a - e: - Est á bem - r emat ei , l evant ando- me do mocho de t r ês per nas. - Como não pode ser , paci ênci a. Apesar di sso acho que deve pensar um bocado. Ol he que est e ano se est ão pagando os r oçados a oi t ent a mi l r éi s o al quei r e. Dá par a ganhar , não? - Que dá, sei que dá - mas t ambém sei par a quem dá. Um per r engue como eu não pensa mai s ni sso, não. Quando er a gent e, mui t os peguei a sessent a e não me ar r ependi . Mas hoj e. . . - Nesse caso. . . Tr anscor r er am doi s anos sem que eu t or nasse aos Per i qui t os. Nesse i nt er val o Si nh' Ana f al eceu. Er a f at al a dor que r espondi a na cacunda. E não mai s me af l or ava à memór i a a i magem daquel es humi l des ur upês, quando me chegou aos ouvi dos o zunzum cor r ent e no bai r r o, uma coi sa apenas cr í vel : o f i l ho de um s i t i ant e v i z i nho, r apaz de t odo pancada, f ur t ar a Pi ngo d' Água aos Per i qui t os. - " Como i sso? Uma meni na t ão acanhada! . . . " - " É par a ver ! Desconf i em das sonsas. . . Fugi u, e l á r odou com el e par a a ci dade - não par a casar , nem par a ent er r ar . Foi ser ' moça' , a pombi nha. . . " O i nc i dent e f i cou a azoi nar - me o best unt o. À noi t e per di o sono, r ev i vendo cenas da mi nha úl t i ma v i si t a ao sí t i o, e nasceu- me a i déi a de l á t or nar . Par a? Conf esso: mer a cur i os i dade, par a ouvi r os coment ár i os da t r i st e vel hi nha. Que

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gol pe! Dest a f ei t a i a- se- l he a r i j eza de cer ne. Fui . Set embr o ent umeci a gomos em cada ar bust o. Nenhuma nebl i na. A pai sagem desenhava- se ní t i da at é aos cabeços dos mor r os di s t ant es. Por amor à s i met r i a, mont ava eu o mesmo pi caço. Tr anspus a mesma por t ei r a. At al hei pel o mesmo t r i l ho. No cór r ego v i , com os ol hos da i magi nação, o vul t o da meni na enver gonhada com o pot e em r epouso na l aj e e t oda às vol t as com a r odi l ha. Mai s uns passos e a t aper a ant ol hou- se- me, deser t a. As t r ês ár vor es do pomar ext i nt o er am j á gal haça r esseca e poent a. Só os mamoei r os subsi st i am, mai s cr esci dos, sempr e api nhados de f r ut os. O r est o pi or ar a, descambando par a o l úgubr e. Ruí r a o oi t ão e o t er r ei r i nho pi nt al gar a- se de moi t as de guanxuma, cor dão- de- f r ade e j oás. - O de casa! - gr i t ei . Si l ênci o. Tr ês vezes r epet i o apel o. Por f i m sur gi u dos f undos uma sombr a acur vada e t r êmul a. - Bom di a, nhá Joaqui na. Est á seu Zé? Não me r econheceu a vel hi nha. Zé f or a à v i l a, vender a si t i oca par a mudar de t er r a. Fez- me ent r ar , l ogo que me dei a conhecer , pedi ndo escusas da má v i s t a. - Tem cor agem de est ar aqui sozi nha? - Eu? Sozi nha est ou em t oda par t e. Mor r eu- me t udo, a f i l ha, a net a. . . Sent e- se - mur mur ou apont ando par a o mocho de doi s anos at r as. Sent ei - me, com um nó na gar gant a. Não sabi a o que di zer . Por f i m: - O que é a vi da, nhá Joaqui na! Par ece que f oi ont em que est i ve aqui . Apesar das doenças, i am v i vendo f el i zes. Hoj e. . . A vel ha l i mpou no canhão da manga uma l ágr i ma. - Vi ver set ent a e doi s anos par a acabar assi m. . . Fel i zment e a mor t e não t ar da. Já a si nt o cá dent r o. Conf r angi a- me o cor ação aquel e er mo onde t udo er a passado - a t er r a, as l ar anj ei r as, a casa, as v i das, sal vo t r êmul o espect r o sobr evi vent e como a al ma da t aper a - a t r i st e vel hi nha encaneci da, cuj os ol hos poucas l ágr i mas est i l avam, t ant as chor ava. - Que mai s agor a? - mur mur ou pausadament e em voz de quem j á não é dest e mundo. - At é à " desgr aça" , eu não quer i a mor r er . Vel ha e i nút i l , i nda gost ava do mundo. Mor r eu- me a f i l ha, mas r est ava a net a - que er a duas vezes f i l ha e o meu consol o. Desencami nhar am a pobr ezi nha. . . Agor a, que mai s? Só peço a Deus que me r et i r e, l ogo e l ogo. Rel anceei um ol har pel a sal a vazi a. A cai xet a de cost ur a i nda est ava sobr e a ar ca no l ugar de sempr e. Meus ol hos pousar am al i , mar asmados. A vel ha adi v i nhou- me o pensament o e, l evant ando- se, t omou- a nas mãos mal f i r mes. Abr i u- a. Ti r ou de dent r o a col cha i nacabada, cont empl ou- a l ongament e. Depoi s, com t r emur as na voz: - Dezessei s anos - e não pude acabar a col cha. . . Ni nguém i magi na o que é par a mi m est a pr enda. Cada r et al ho t em sua hi s t ór i a e me l embr a um vest i di nho de Pi ngo d' Água. Aqui l ei o a vi di nha del a des' que nasceu.

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Est e, ol he, f oi da pr i mei r a cami set a que vest i u. . . Tão gal ant i nha! Est ou a vê- l a no meu br aço, t ent ando pegar os ócul os com a mãozi nha gor da. . . Est e azul , de l i s t r as, l embr a um vest i do que a madr i nha l he deu aos t r ês anos. El a j á andava pel a casa i nt ei r a ar mando r ei nações, per segui ndo o Romão - que um di a, por si nal , l he met eu as unhas no r ost i nho. Chamava- me " ÓÓ aqui na Est e ver mel ho de r os i nhas f oi quando compl et ou os ci nco anos. Est ava com el e por ocasi ão do t ombo na pedr a do cór r ego, donde l he vei o aquel a mar qui nha no quei xo, não r epar ou? Est e cá, de xadr ezi nho, f oi pel os set e anos, e eu mesma o f i z , e o f i z de sai a compr i da e pal et ó de quar t i nho. Fi cou t ão engr açada, f ei t a uma mul her z i nha! Pi ngo d' Agua j a sabi a t emper ar um v i r ado, quando usou est e aqui , de ar gol i nhas r oxas em f undo br anco. Di go i st o por que f oi com el e que ent or nou uma panel a e quei mou as mãos. Est e cor de bat at a f oi quando t i nha dez anos e cai u com sar ampo, mui t o mal zi nha. Os di as e as noi t es que passei ao pé del a, a cont ar hi s t ór i as! Como gost ava da Gat a Bor r al hei r a! . . . A vel ha enxugou na col cha uma l ágr i ma per di da e cal ou- se. - E est e? - per gunt ei par a av i vá- l a, apont ando um r et al ho amar el o. Pausou um bocado a t r i s t e avó, em cont empl ação. Depoi s: - Est e é novo. Já t i nha f ei t o qui nze anos quando o vest i u pel a pr i mei r a vez num mut i r ão ( 9) do Labr ego. Não gost o del e. Par ece que a desgr aça começa aqui . Fi cou um vest i do mui t o assent adi nho no cor po, e gal ant e, mas pel as mi nhas cont as f oi o cul pado do Labr egui nho engr açar - se da coi t ada. Hoj e sei di sso. Naquel e t empo de nada suspei t ava. - Est e - di sse- l he eu, f i ngi ndo r ecor dar - me - é o que el a vest i a quando cá est i ve. - Engano seu. Er a, quer ver qual ? Er a est e de pi nt as ver mel has, r epar e bem. - É ver dade, é ver dade! ment i . Agor a me l embr o, i sso mesmo. E est e úl t i mo? Após uma pausa dor i da, a pobr e cr i at ur a osci l ou a cabeça e bal buci ou: - Est e é o da desgr aça. Foi o der r adei r o que f i z . Com el e f ugi u. . . e me mat ou. Cal ou- se, a l acr i mej ar , t r êmul a. Cal ei - me t ambém, opr esso dum i nf i ni t o aper t ão d' al ma. Que quadr o i mensament e t r i s t e, aquel e f i m de vi da machucado pel a moci dade l ouca! . . . E f i camos ambos assi m, i móvei s, de ol hos pr esos à col cha. El a por f i m quebr ou o s i l ênci o. - I a ser o meu pr esent e de noi vado. Deus não qui s. Ser á agor a a mi nha mor t al ha. Já pedi que me ent er r assem com el a. E guar dou- a dobr adi nha na cai xa, envol t a num suspi r o ar r ancado ao i mo do cor ação. Um mês depoi s mor r i a. Vi m a saber que l he não cumpr i r am a úl t i ma vont ade. Que i mpor t a ao mundo a vont ade úl t i ma duma pobr e vel hi nha da r oça? Pi egui ces. . .

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Not as: 1, 2, 3. Padr ões de t er r a boa. 4. Bandei r a de mi l ho, di z- se de qual quer t r echo do mi l har al 5. I t ê: Sabor agr est e, adst r i ngent e, ác i do. 6. Rodi l ha: Rodel a de pano t or ci do que os car r egador es de água usam ent r e a cabeça e o pot e ou a l at a. 7. Tami na: Ni nhar i a, coi sa de nada. 8. Escol ha: Caf é de í nf i ma qual i dade - r esí duo do " caf é escol hi do" . 9. Aj unt ament o de vi z i nhos num ser v i ço de r oça. A v i ngança da per oba A c i dade duvi dar á do caso. Não obst ant e, aquel e monj ol o do João Nunes no Var j ão f oi dur ant e meses o pal haço da zona. Sobr et udo no bai r r o dos Por ungas, onde assi s t i a Pedr o Por unga, mest r e monj ol ei r o de l ar ga f ama, f ungavam- se à cont a do engenho r i sos sem f i m. Si t i ant es ambos em t er r as pr ópr i as, convi z i nhavam separ ados pel o espi gão do Nheco - e por mal quer ença ant i ga. Levant ar a Nunes uma paca, cer t o domi ngo; mas ao dobr ar o mor r o a bi cha esbar r ou de f r ent e com um Por ungui nha que casual ment e l enhava por al i . Zás! Cer t ei r o gol pe de f oi ce dá com el a em t er r a. At é aí nada. Mas comer am- na, sem ao menos mandar em um quar t o de pr esent e ao l egí t i mo dono. Legí t i mo, s i m, por que, af i nal de cont as, aquel a paca er a uma paca nomeada. Sabi da como um vi gár i o, di z i a o Nunes, nem cachor r o- mest r e, nem mundéu, podi am com a vi da del a. Escapul i a sempr e. A gent e do out r o l ado não i gnor ava i sso. Paca vel ha e mat r ei r a t em sempr e a bi ogr af i a na boca dos caçador es. Paca mui t o conheci da, por t ant o; mor ador a em suas t er r as. Paca do Nunes, homessa. Or a, j ust ament e no di a em que, numa bat i da f el i z , el e a apanhar a despr eveni da, f azer aqui l o o Por ungui nha? - " Mas é uma cr i ança! " Si m, mas o pai não apr ovou? Não di sse, ent r e r i sadas, " o Nunes que se f oment e?" Havi am de pagar ! Vei o daí a mal quer ença. O espi gão v i nha do per í odo um pouco mai s r emot o em que a cr ost a da t er r a se sol i di f i cou. Agr avava a di ssensão uma r i val i dade quase de cast a. Per t enci a Nunes à cl asse dos que decaem por f or ça de mui t a cachaça na cabeça e mui t a sai a em casa. Fi l ho homem só t i nha o José Benedi t o, d' apel i do Per nambi , um passar i co dest a al t ur i nha, apesar de bem ent r ado nos set e anos. O r est o er a uma r écul a de " f amí l i as mul her es" Mar i a Benedi t a, Mar i a da Concei ção, Mar i a da Gr aça, Mar i a da Gl ór i a, um r osár i o de oi t o mar i qui nhas de sai a compr i da. Tant a mul her em casa amar gava o âni mo do Nunes, que nos di as de cachaça ameaçava af ogá- l as na l agoa como se f ossem uma ni nhada de gat os. O seu consol o er a mi mar Per nambi , que aquel e ao menos l ogo est ar i a no ei t o, a aj udá- l o no cabo da enxada, enquant o o mul her i o i nút i l mampar r ear i a por al i a espi ol har - se ao sol . Pegava, ent ão, do meni no e dava- l he pi nga. A pr i ncí pi o com car et as que mui t o di ver t i am o pai , o engr i manço pegou l est o no ví c i o. Bebi a e f umava mui t o sor na,

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com ar es pal er mas de quem não é dest e mundo. Também usava f aca de pont a à c i nt a. Homem que não bebe, não pi t a, não t em f aca de pont a, não é homem, di z i a o Nunes. E cônsci o de que j á er a homem o pi qui r i nha bat i a nas i r mas, cuspi l hava de esgui cho, di zi a nomes à mãe, al ém de mui t as out r as coi sas pr ópr i as de homem. Do out r o l ado t udo cor r i a pel o i nver so. Comedi do na pi nga, Pedr o Por unga casar a com mul her sensat a, que l he der a sei s " f amí l i as" , t udo homem. Er a nat ur al que pr osper asse, com t ant a gent e no ei t o. Pl ant ava cada set embr o t r ês al quei r es de mi l ho; t i nha doi s monj ol os, moenda, sua mandi oqui nha, sua cana, al ém duma égua e duas por cas de cr i a. Caçava com espi ngar da de doi s canos, " i mi t ação Lapor t e" , boa de chumbo como não havi a out r a. Mor ava em casa nova, bem cober t a de sapé de boa l ua, apar ado a l i nha, com mest r i a, no bei r al ; os est ei os e por t ai s er am de madei r a l avr ada; e as par edes, r ebocadas à mão por dent r o, coi sa mui t o f i na. Já o Nunes - pobr e do Nunes! - não punha na t er r a nem um al quei r e de sement e. Teve égua, mas bar ganhou- a por um capadet e e uma espi ngar da vel ha. Comi do o por qui nho, sobr ou do negóci o o caco da pi ca- pau, dum cano só e manhosa de t ar dar f ogo. Sua casa, de est ei os com casca e por t as de embaúba r achada, mui t o encar di da de pi cumã, pr enunci ava t aper a pr óxi ma. Capado, nenhum. Gal i nhada escassa. Ao cachor r o Br i nqui nho não l he val i a ser mest r e paquei r o de f ama; andava de bar r i ga às cost as, com ber nes no t out i ço. O pobr ezi nho não cami nhava dez passos sem que par asse, pondo- se aos r odopi os sobr e os quar t os t r asei r os, t ent ando i nut i l ment e abocar o par asi t a i nat i ngí vel . Que pr easse. Cachor r o é bi cho l adi no e o mat o anda chei o de pr eás at ol ambadas. E t udo mai s no Vai j ão af i nava pel a mesma t ec l a. Cer t a vez cont ar am ao Nunes que Pedr o Por unga t r az i a negóci o duma best a ar r eada. Best a ar r eada, o Por unga! Doeul he aqui l o no f undo da al ma. Er a at r epar demai s. - Quê! Já r oncam assi m? - br avat eou. - Poi s hei de most r ar à Por ungada quem é o João Nunes Eusébi o dos Sant os, da Pont e Al t a! E ent r ou- se, desd' aí , de gr andes at ar ef ament os. A mul her pasmava na súbi t a r ev i r avol t a do mar i do, duvi dando e esper ando. - Dur ar á esse f ogo? Quem sabe? Pl aneava Nunes gr andes coi sas, r oça de t r ês al quei r es, conser t o da casa, monj ol o. . . Aqui a mul her r epuxou os l ábi os num muxoxo de dúvi da. - Monj ol o? Ché, qu' esper ança! Nunes, met i do em br i os, r oncou: - Bot o, mul her , bot o monj ol o, bot o moenda, bot o at é moi nho! Hei de f azer a por ungada mor der a munheca de i nvej a. Vai ver ! . . . Com assombr o de t odos não f i cou em pr osa f i ada a pr omessa. Nunes r emendou mal e mal a casa, der r ubou um capoei r ão descansado de oi t o anos e, num esf or ço de mour o, met eu na t er r a nove quar t as de mi l ho.

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Pedr o Por unga soube l ogo da br avat a. Ri u- se e pr of et i zou: - Eh! Aqui l o é f ogo de j acá vel ho. Cal or de pi nguço não dur a. . . O ano cor r eu bem. Vi er am chuvas a t empo, de modo que em j anei r o o mi l ho desembr ul hava pendão, mui t o medr ado de espi gas. Nunes não cabi a em s i . Vi s i t ava as r oças mui t o cont ent e da vi da, ur t hando os caul es v i çosos j á em pl eno ar r eganhament o da dent uça ver mel ha, ou apal pando as bonecas t enr as, a madei xar em- se da cabel ugem l our o- t r ansl úc i da. Segur ava ent ão a bar bi ca do quei xo e sonhava opul ênci as f ut ur as, bal anceando pr ós e cont r as. Os cont r as j á est avam de f or a. Só havi a pr ós. E concl uí a, ent r ando em casa, par a a mul her : - Est e ano quebr o um mi l hão desgr amado! Car eci a, poi s, de ar mar monj ol o. Desdobr ado em f ar i nha o mi l ho, v i nham dobr ados os l ucr os. Não f oi o que empol ou os Por ungas, a f ar i nha? Uma r esol ução de t al vul t o, por ém, não se t oma assi m do pé pr ' a mão: er a pr eci so medi t ar , cal cul ar . E Nunes " magi nava" . . . O chóó- pan do f ut ur o engenho bat i a- l he na cabeça como um r i t or nel o de músi ca do céu. - Hei de most r ar ao Por unga que el e não é o úni co monj ol ei r o do mundo. Empr ei t o o ser v i ço com o compadr e Tei xei r i nha da Pont e Al t a. A mul her bot ou as mãos na cabeça. - Nossa Vi r gem! É coi sa de l ouco! Poi s o compadr e nem br aço t em. . . - Bééé! - ur r ou Nunes, est omagado. - Cal e essa boca! Mul her não ent ende das coi sas. . . E el a, nas encol has: - Tá bom. Depoi s não se quei xe. - Bééé! - r emat ou o mar i do. Est a t r oada er a o ar gument o deci s i vo de Nunes nas r el ações f ami l i ar es. Quando al i r oncava o " bééé" , mul her , f i l has, Per nambi , Br i nqui nho, t odos se escoavam em si l ênci o. Sabi am por dol or osa exper i ênci a pessoal que o pont o ac i ma er a o por r et i nho de sapuva. Se a mul her emudeci a, emudeci a com el a a r azão, por que o Tei xei r i nha Manet a er a um car api na r ui m i nt ei r ado, dos que v i vem de bi scat es e r emendos. Só a um bêbado como o Nunes bacor ej ar i a a i déi a de met er a monj ol ei r o um t ar amel a daquel es, manet a e, i nda por c i ma, cego duma vi s t a. Mas er a compadr e e acabou- se. Bééé! Uma nova semana passou Nunes em t r abal hos de " magi nação" . Coçava l ent ament e a cabeça, pi t ava enor mes ci gar r ões, mui t o absor t o, com os ol hos no mi l har al e o sent i do em coi sas f ut ur as. Deci di u- se, por f i m. Rumou à Pont e Al t a e t r ouxe de l á o vel ho car api na, com a f er r ament a capenga. Só r est ava r esol ver o pr obl ema da madei r a. Nas suas t er r as não havi a senão pau de f oi ce. Pau de machado, capaz de monj ol o, só a per oba da di v i sa, vel ha ár vor e mor t a que er a o mar co ent r e os doi s s í t i os, t aci t ament e r espei t ada de l á e cá. Dei t á- l a- i a por t er r a sem dar cont as ao out r o l ado - como l he f i zer am à paca. Boa peça! Nunes gozava- se da pi cui nha, pl aneando der r ubar a ár vor e à noi t e, de modo que pel a madr ugada, quando os Por ungas dessem pel a coi sa, nem Sant o Ant ôni o r emedi ar i a o mal .

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- Est á r esol vi do: der r ubo a per oba! Di t o e f ei t o. Doi s machados r oncar am no pau al t a noi t e, e ai nda não r ai ava a manhã quando a per oba est r ondeou por t er r a, t ombada do l ado do Nunes. Mal r ompeu o di a, os Por ungas, adver t i dos pel a r onquei r a, saí r am a sondar o que f or a. Der am l ogo com a mar osca, e Pedr o, à f r ent e do bando, i nt er pel ou: - Com or dem de quem, seu. . . - Com or dem da paca, ouvi u? - r ev i dou Nunes pr ovocat i vament e. - Mas paca é paca e essa per oba er a o mar co do r umo, mei a mi nha, mei a sua. - Poi s eu quer o gast ar a mi nha par t e. Dei xo a sua p' r ' aí ! . . . - r et r ucou Nunes apont ando com o bei ço a cavacana cor - de- r osa. Pedr o cont i nha- se a cust o. - Ah, cachor r o! Não sei onde est ou que não. . . - Poi s eu sei que est ou em mi nha casa e que bat o f ogo na pr i mei r a " cui a" que passar o r umo! . . . Esquent ou o bat e- boca. Houve nome f ei o a val er . O mul her i o i nt er vei o com gr ande descabel ament o de pal avr ões. De espi ngar di nha na mão, r adi ant e no mei o da bar ul hada, Nunes di z i a ao Manet a: - Vá l avr ando, compadr e, que eu sozi nho escor o est e cui ame! . . . ( 2) A Por ungada, af i nal , abandonou o campo - par a não haver sangue. - Você f i ca com o pau, cachacei r o à- t oa, mas i nda há de chor ar mui t a l ágr i ma p' r ' amor di sso. . . - Bééé! . . . - est r ugi u Nunes t r i unf al ment e. Os Por ungas descer am r esmoneando em conci l i ábul o, segui dos do ol har vi t or i oso do Nunes. - Ent ão, compadr e, v i u que cui ada choca? É só chá de l í ngua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a ar r uda pel o chei r o! E assombr ou o vel ho com mui t os l ances her ói cos, quebr ament os de car a, escor as de t r ês e quat r o, o di abo. - O di a est á ganho, compadr e, l ar gue di sso e vamos mol har a gar gant a. A mol hadel a da gar gant a excedeu a quant a bebedei r a t i nham na memór i a. Nunes, Manet a e Per nambi conf r at er ni zar am num bol o acachaçado, comemor at i vo do t r i unf o, at é que uma sonei r a l et ár gi ca os der r eou pel o chão. Com a der r adei r a Mar i a pendur ada do sei o magr o, a mul her ol hava par a aqui l o sacudi ndo a cabeça, a c i smar . . . - Que monj ol o sai r á di s t o, mãe do céu! . . . Esvaí dos os f umos da pi nga, t or nar am no di a segui nt e à per oba, mui t o acamar adados. A cachaça c i ment ar a o compadr esco ant i go, e a f ei t ur a do monj ol o t eve i ní ci o com gr ande quebr ei r a de cor po. Nunes passava os di as na obr a, vendo o compadr e desbast ar a madei r a com um br aço só. Pasmava daqui l o, e do aj ut ór i o que ao br aço per f ei t o dava o t oco al ei j ado. O vel ho Manet a sabi a casos e casos, que Nunes r espondi a com out r os, sempr e t endent es a pat ent ear a r ui ndade dos Por ungas. Fal quej ado o t or o, cor r er am um bar bant e embebi do num mi ngau de car vão. " Pegue nest a pont a, compadr e, di z i a o vel ho; agor a est i que; i sso. " E t omando ent r e os dedos o

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cor del pel o mei o, pl af , chi cot eava a madei r a, r i scando nel a um t r aço negr o. Nunes r evel ou gr ande vocação par a esf ni a- ver r uma. Esf ni a- ver r umas são os " empal i ador es" dos car api nas. Sent am- se com uma nádega à bei r a da banca e dur ant e hor as pasmam do r ebot e cor r er na t ábua encar acol ando f i t as, ou do f or mão i r l ent ament e abr i ndo uma f ur a. Or a pegam da enxó, exami nam- na, passam o dedo pel o f i o e per gunt am: " É Gni ve? ( Gr eaves) Quant o cust ou?" E quando sai da madei r a a ver r uma, quent e da f r i cção, pegam- na e põem- se a sopr á- l a mui t o sér i os. Enquant o i sso, mui t o desaj ei t adament e i a o Manet a escavando o cocho ( 3) a machado e enxó. Depoi s r asgou as f ur as f ur as da hast e ( 4) e af ei çoou a munheca. ( 5) Pr ont as que f or am, at acou o pi l ão. ( 6) Escava que escava, em t r ês di as pô- l o de banda, concl uso. Rest ava soment e apar el har a " v i r gem" . ( 7) - O compadr e sabe a hi s t ór i a do pau de f ei t i ço? Nunes não sabi a. Nunes não sabi a coi sa al guma, t i r ant e embor car o gar gal o e di f amar os Por ungas. Sem i nt er r omper o esquadr ej ament o da v i r gem, Manet a nar r ou o caso que ouvi r a ao pai , o Tei xei r ão ser r ador , madei r ei r o de f ama. - Em cada ei t o de mat o, di z i a o meu vel ho, há um pau vi ngat i vo que pune a mal f ei t or i a dos homens. Vi v i no mat o t oda a v i da, l i dei t oda cast a de ár vor e, desdobr ei desde embaúva e embi r uçu at é bál samo, que é r ar o por aqui . Dor mi no est al ei r o quant as noi t es! Homem, f ui um bi cho- do- mat o. E de t ant o l i dar com paus, f i quei na suposi ção de que as ár vor es t êm al ma, como a gent e. - T' esconj ur o! - espi r r ou Nunes. - I st o di zi a l á o vel ho; eu por mi m não dou opi ni ão. E t êm al ma, di z i a el e, por que sent em a dor e chor am. Não vê como gemem cér t os paus ao caí r em? E out r os como chor am t ant a l ágr i ma ver mel ha, que escor r e e v i r a r esi na? Or a poi s t êm al ma, por que nest e mundo t udo é cr i at ur a de Deus. - Lá i sso. . . - Ent ão, di z i a el e, há em cada mat o um pau que ni nguém sabe qual é, a modo que pei t ado p' r ' a desf or r a dos mai s. É o pau de f ei t i ço. O desgr açado que acer t a met er o machado no cer ne desse pau pode encomendar a al ma p' r ' o di abo, que est á per di do. Ou est r epado ou de cabeça r achada por um gal ho seco que despenca de ci ma, ou mai s t ar de por ar t es da obr a f ei t a com a madei r a, de t odo j ei t o não escapa. Não ' di ant a se pr ecat ar : a desgr aça peal a mesmo, mai s hoj e, mai s amanhã, a cr i at ur a mar cada. I s t o di z i a o vel ho - e eu por mi m t enho v i st o mui t a coi sa. Na der r ubada do Fi guei r ão, al embr a- se? mor r eu o f i l ho do Chi co Pi r es. Est ava cor t ando um guami r i m quando, de r epent e, sol t ou um gr i t o. Acode que acode, o moço est ava com o pei t o var ado at é as cost as. Como f oi ? Como não f oi ? Ni nguém ent endeu aqui l o. Eu f i quei c i smando e di sse: " É f ei t i ço de pau. . . " Como est e um, quant os casos? O mundo est á chei o. O Sebast i ãozi nho da Pont e Al t a f ez uma casa, o pau da cumeei r a el e mesmo o der r ubou. Poi s não é que a cumeei r a ar r ei a e est r onda a cabeça do r apaz? Por i sso meu pai , sabi do que er a, especul ava pr i mei r o se por al i per t o não t i nha havi do desgr aça. Er a par a ver se o f ei t i ço est ava sol t o ou pr eso, e pr ecat ar - se.

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Com est as e out r as i a Manet a f l or ej ando de l ér i as as hor as de ser vi ço, enquant o dava os der r adei r os r et oques no engenho. Est ava pr ont o o monj ol o. Jubi l oso, v i a Nunes quase r eal i zado o pr i mei r o sonho das f ut ur as gr andezas. Fal t ava apenas o assent ament o, que é pouco - e el e bat i a t apas ami gos na per oba ver mel ha. - Aí , mi nha vel ha! Mansi nha, hei n? Há de chamar - se Ti r a- pr osa de Por ungas, Cabaças e Cui as, eh! eh! Recol her am cedo nesse di a par a sol eni zar o f ei t o à cust a dum ancor ot e ( 8) de cachaça, que esvazi ar am a mei o. Di as depoi s, bem f i ncado, bem socado o pi l ão, o monj ol o r ecebeu água. Aber t a a bi ca, um j or r o d' enxur r o espumej ou no cocho, encheu- o, desbor dou par a o " i nf er no" . ( 9) A engenhoca gemeu na v i r gem e al çou o pescoço. O cocho despej ou a aguacei r a - chóó! A munheca bat eu f i r me no pi l ão - pan! Nunes pul ava d' al egr i a. - Conheceu, Por ungada choca, quem é João Nunes Eusébi o da Pont e Al t a? Mas não l he bast ou aquel e bar ul ho, nem a gr i t ar i a da meni nada a pal mear , nem os l adr i dos do Br i nqui nho que, espant ado da mal uquei r a, l at i a de l onge, a sal vo de pont apés. Quer i a mai s. Cor r eu à espi ngar da, espol et ou- a e, er guendo- a 64 MONTEI RO LOBATO par a o " out r o l ado" , desf echou. Mas o caco vel ho da pi ca- pau não compar t i l hou da sua al egr i a, r ebent ou a espol et a e cal ou- se. Nunes i nda a mant eve uns segundos al çada, esper ando o t i r o. Como o f ogo t ar dasse demai s, r emessou com el a par a l onge, embr ul hada num pal avr ão. Lembr ou- se depoi s de t r ês f oguet es sobej ados de uma r eza; f oi buscá- l os; at acou- os em di r eção aos Por ungas. - Chei r a essa pól vor a, cui ada! I nf el i zment e as bombas, mui t o úmi das, negar am f ogo por sua vez. - Tudo nega, compadr e! Vamos ver se o ancor ot e nega t ambém. Não negou. E a pr ova f oi r oncar em l ogo p' r ' al i como doi s gambás. No out r o di a par t i u Manet a par a a Pont e Al t a, com gr ande sent i ment o do Nunes que per di a nel e um companhei r ão. Quant o ao monj ol o, como não houvesse mi l ho a pi l ar , f i cou sua est r éi a par a quando se quebr asse a r oça. Cessar am as chuvas de ver ão. Ent r ou o out ono, r ef r escado, l i mpo. Amar el ar am as f ol has do mi l har al , as espi gas pender am, madur as. Começou a quebr a. Mui t o i mpaci ent e, Nunes debul hou o pr i mei r o j acá r ecol hi do e at ochou o pi l ão. Ai ! Não há f el i c i dade compl et a no mundo. O engenho pr ovou mal . Não r endi a a canj í ca. Despr opor c i onada ao cocho, a hast e não dava o j ogo da r egr a. A mão, por mui t o l eve ou por def ei t o de esquadr i a na vi r gem, gui nava à esquer da ao bat er , espi r r ando mi l ho par a f or a. Por mal dos pecados, à pr i mei r a chuvi nha o pi l ão ent r ou a r ever agua. For a escavado em madei r a vent ada. ( 10) Não pr est ava. Nunes, de má sombr a, r epr esando a cól er a, met eu- se a

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r epar ar t ant as " t or t ur as" . Di mi nui u o peso ao macaco, ( 11) engr ossou as águas, amar r ou al i , especou acol á, cal af et ou f endas. Consumi u di as em l ut a sur da cont r a as manhas do mal - engonçado. Mas a pest e do monst r engo r espondi a a cada ar r anj o com uma r ei nc i dênci a de desal ent ar . O pobr e homem expl odi u, ent ão. Da boca l he espi r r ar am i nj úr i as sem f i m cont r a o pat i f e do car api na. - Excomungado do di abo de mal del azent o de manet a. . . I mpossí vel met er no papel t odas as cont as do r osár i o; as mi údas i nda cabem, mas as gr aúdas não podem sai r do Var j ão. Al ém de i nj úr i as, ameaças. Que i r i a à Pont e Al t a r achar o compadr e à f oi ce; que l he vazava a out r a vi s t a; que. . . Num desses desabaf os, a t ol a da mul her met eu a col her t or t a no mei o. - Eu bem di sse, eu bem avi sei . Mas o " quei xo dur o" não f ez caso. . . Ai ! Nunes, que só esper ava por aqui l o, passou a mão na sapuva ( 12) e encar nando na esposa o odi ado manet a desl ombou- a numa sova de conser t ar negr o l adr ão. - Toma, cachor r o! Toma, excomungado do i nf er no! Apr ende a f azer monj ol o, por co suj o! e mal hava. . . A mul her sumi u- se aos pi not es mat a adent r o, segui da do mul her i o mi údo; e por oi t o di as andou em esf r egações de sal mour a pel a pol pa aver goada. Nunes, por ém, mel hor ou consi der avel ment e com o der i vat i vo. Mundi f i cou- se da bí l i s . A nova de t ai s sucessos chegou à Por ungada. Pedr o, exul t ant e, não t eve mão de si , qui s ver com os pr ópr i os ol hos a car anguej ol a que o vi ngava t ão a pi que. Medi t ou um pl ano, e l á um di a t r anspôs o espi gão, r umo à casa do r i val . Vol t ou uma hor a depoi s espr emendo r i sos f ungados. - Eh, eh, mi nha gent e! Vocês não cal cul am. Quando vi r ei o espi gão j a ouvi o bar ul ho - chóó- pan - , uma r onquei r a dos di abos! Di sse comi go: r oncar , el e r onca, eh, eh! Fui chegando. O Nunes, j ur ur u, est ava debul hando mi l ho na por t a. Quando me vi u ent r epar ou, amode que assombr ado. - " É de paz! " eu di sse, e me pl ant ei di ant e del e. " Doi s chef es de f amí l i a, ai nda mai s vi z i nhos, não podem vi ver t oda a v i da assi m de f oc i nho " t r uci do" um p' r ' o out r o. O que f oi , f oi . Acabou- se. Toque. " El e r el anceou os ol hos p' r ' o l ado da r onquei r a - eh, eh! - e mui t o desconchavado me espi chou a mão sem abr i r o bi co. - " Tr aga um caf é! " , gr i t ou p' r a dent r o. Enf i ei os ol hos pel a casa: est ava " assi m" de mul her ada na cozi nha! Peguei de pr osa. El e f oi r espondendo. Conver sa sem gr aça, amar r adi nha. Por f i m especul ei : " E o monj ol o, v i zi nho, f i cou na or dem?" Nunes amar el ou que nem est a f ol ha! - " É bonzi nho, r ende bem. . . " - " Quer o ver " , di sse eu, " se não é cur i os i dade. . . " - " Poi s vá" , r espondeu sem se mexer do l ugar . E f ui . Nossa Vi r gem! Aqui l o nunca f oi monj ol o, nem aqui nem na casa do di abo! Só se vê amar r i l hos de c i pó e espeques e

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macacos. A hast e t em nove pal mos e o cocho a mó que t em dez! . . . - Qui á! qui á! qui á! - cacar ej ou a r oda, que em mat ér i a de monj ol o er a ent endi dí ss i ma. - A mão não pesa, homem, não pesa nem ar r oba e mei a! A v i r gem est á er r ada e f or a do pr umo. Mi l ho est á que est á al vej ando o chão. A mão pi ncha duma banda. Os Por ungui nhas babavam. - Ent ão, r oncar el e r onca? - Nossa! Ronca que nem uma t r ument a. Mas, socar ? O boi soca! Nem t r ês l i t r os r ende por di a. Homem, gent es, aqui l o é coi sa que só vendo! A car a dos Por ungas, anuvi ada desde o i nc i dent e da per oba, r ef l or i u dal i por di ant e nos saudávei s r i sos escar ni nhos do despi que. As nuvens f or am escur ent ar os céus do Var j ão. Er a um nunca se acabar de t r oças e pi l hér i as de t oda or dem. I nvent avam t r aços cômi cos, exager avam as t r apal hi ces do mundéu. Enf ei t avam- no como se f az ao mast r o de São João. Sobr e as l i nhas ger ai s debuxadas pel o vel ho, os Por ungui nhas i am at ando cada qual o seu buquê, de modo a t or nar o pobr e monj ol o uma coi sa pr odi gi osament e cômi ca. A pal avr a Ronquei r a ent r ou a gi r ar nas v i z i nhanças como t er mo compar at i vo de t udo quant o é r i sí vel ou sem pé nem cabeça. Aos ouvi dos do Nunes f or am bat er t ai s r umor es. O or gul ho, mui t o medr ado no per í odo dos sonhos de gr andeza, mur char a- l he como f r ut a ver de col hi da ant es do t empo. Mas, i mpossi bi l i t ado de vi ngar - se, deu de cr i ar um r ancor sur do cont r a a Ronquei r a, que, t r ôpega, l á i a mal hando, di a e noi t e, chóô- pan, mui t o l er da, mui t o par ca de r endi ment o. Par a acal mar a bí l i s , Nunes dobr ou as doses de cachaça. A mul her amanhava a casa num gr ande desconsol o da vi da, esmol ambada, sem mai s esper anças d' ar r anj o p' r ' aquel e homem. Sempr e r ent ando o pai , somí ssi mo, Per nambi par eci a um vel hi nho i di ot a. Não t i r ava da boca o pi t o e cada vez bat i a mai s f or t e no mul her i o mi údo. Br i nqui nho desnor t ear a. Sent ado nas pat as t r asei r as ol hava, i nc l i nando a cabeça, or a par a um, or a par a out r o, sem saber o que pensar da sua gent e. E assi m, meses. Af i nal , vei o a desgr aça. Fei t i ço de pau ou não, o caso f oi que o i nocent e pagou o cr i me do pecador , como é da j ust i ça bí bl i ca. Cer t o di a soube Nunes que o José Cui t el o da Pedr a Br anca, out r o compadr e, puser a nome a uma égua l azar ent a de Ronquei r a. Er a demai s. - At é aquel e cachor r o do Cui t el o! - gemeu o mí ser o, passando a mão na gar r af a. Sor veu um gol e e: - Per nambi z i nho, vem cá. Bebe com t eu pai , meu f i l ho. O meni no não esper ou novo convi t e: bebeu, um, doi s e t r ês gol es, est al ando a l í ngua. O r est o da gar r af a sover t eu- se no bucho do cabocl o. Mal t ont eado pel os ef l úv i os do ál cool , o meni no banzou um bocado por al i e depoi s sai u. Nunes est i r ou- se ao sol par a dor mi r . Er a um di a f ei o de agost o. Céu t ur vo do f umo das quei madas. Sol de cobr e, sem br i l ho, a modor r ar no ocaso. Fol hi nhas

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car boni zadas a descer em l ent as do al t o, r egi r ant es. Tr anscor r i da uma hor a, o bêbedo acor dou, r el anceou em t or no os ol hos mor t i ços. - Quedel e Per nambi ? - di sse às f i l has acocor adas à sol ei r a da por t a. As meni nas não sabi am do i r mão. - Chamem Per nambi , engr ol ou o bêbedo, r ecai ndo em cochi l o. Uma das pequenas sai u no encal ço do meni no. Os ol hos de Nunes a cust o se abr i am; sua cabeça osci l ava, como se l he houvessem desossado o pescoço. Da boca escor r i a- l he baba, e mol hadas nel a as pal avr as v i nham vagas, mal at adas. Súbi t o, um gr i t o l anci nant e ao l onge al vor ot ou a casa. A mul her , est ont eada, sur ge de dent r o do casebr e, pár a à por t a, or i ent a- se e cor r e par a onde a voz. As f i l has di spar am- l he at r ás, r umo ao monj ol o. Si l ênci o t r ági co. Depoi s novos gr i t os - gr i t os em cor o - , gr i t os de desesper o. - Coi t adi nho do meu f i l ho! - ui vava l á l onge a mãe. Nunes soer gue- se, ampar ado ao por t al . - Que é i sso? - gr unhe. Ni nguém l he r esponde. Não há ni nguém por al i . Mas no monj ol o r ecr udesce a gr i t a. Par a l á segue o bêbedo, cambal eant e. Em cami nho dá de car a com a mul her , que vol t ava descabel ada, a f al ar sozi nha. - Que é que f oi , mul her ? Ar r ost ando com o mar i do, a pobr e mãe af uz i l a nos ol hos um r ai o de cól er a i ncoer cí vel . - O que é? É t ua obr a, cachacei r o do i nf er no! É a t ua pi nga, homem à- t oa, est er co i mundo! Vá ver , vá ver , vá ver , desgr açado! . . . Nunes al cança o monj ol o com di f i cul dade. E t opa um quadr o hor r endo. No mei o das f i l has em gr i t a, o cor pi nho magr o de Per nambi de bor co no pi l ão. Par a f or a, pendent es, duas per nas f r anzi nas - e o monj ol o i mpassí vel , a subi r e a descer , chóó- pan, pi l ando uma past a ver mel ha de f ar i nha, mi ol os e pel anca. . . Esvaem- se- l he os vapor es do ál cool e em semi demênci a Nunes cor r e ao machado, r i ngi ndo os dent es, aos ui vos. - Chegou t eu di a, desgr açado! Cena l úgubr e f oi aquel a! Ent r e r ugi dos de cól er a, o l ouco ar r emessava gol pes t r emendos cont r a o engenho assassi no. Uma pancada na mão - t oma Bar bazu! Out r a na hast e - r ebent a demôni o! Out r a no pi l ão - est our a f ei t i cei r o do di abo! - E pan, pan, pan - dez, v i nt e, cem machadadas como nunca as desf er i u der r ubador nenhum com t al r i j eza de pul so. Cavacos sal t avam par a l onge, r óseos cavacos da per oba assassi na. E l ascas. E achas. . . Longo t empo dur ou o duel o t r ági co da demênci a cont r a a mat ér i a br ut a. Por f i m, quando o monj ol o mal di t o er a j á um mont e escavado de peças em desmant el o, o mí ser o cabocl o t ombou por t er r a, ar quej ant e, abr açado ao cor po i ner t e do f i l ho. I nst i nt i vament e, sua mão t r êmul a apal pava o f undo do pi l ão em pr ocur a da cabeci nha que f al t ava.

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Not as: 1. O cont o " A Vi ngança da Per oba" f oi publ i cado na pr i mei r a edi ção de Ur u pês, com o t í t ul o de " Chóóó! Pan! " . 2. Cui ame: Por ção de cui as. Jogo de pal avr as; as cui as se f azem das cabaças, ou por ungas. 3. Cocho: Par t e t r asei r a do monj ol o, que r ecebe a água. 4. Hast e: Madei r o compr i do que const i t ui a par t e pr i nc i pal do monj ol o. 5. Munheca: Mão de monj ol o, peça que ser ve par a pi l ar . 6. Pi l ão: Reci pi ent e de madei r a ( t r onco escavado) que r ecebe o mi l ho a ser pi l ado. 7. Vi r gem: Peça em cuj a f or qui l ha gi r a a hast e. 8. Ancor ot e: Bar r i l et e pr ópr i o par a t r anspor t ar pi nga em Lombo de bur r o. 9. I nf er no: Lugar onde a água que move o monj ol o despej a depoi s de enchi do o cocho. 10. Madei r a vent ada: Madei r a nat ur al ment e r achada. 11. Macaco: Cont r apeso dest i nado a assegur ar o bom equi l í br i o de hast e do monj ol o. 12. Sapuva: Madei r a de que se f azem bons por r et es. Um supl í c i o moder no Todas as cr uel dades de que f oi usei r a a I nqui si ção par a r eduzi r her ét i cos, as t or t ur as r equi nt adas da " quest ão" medi eval , o empal ament o ot omano, o supl í c i o chi nês dos mi l pedaços, o chumbo em f usão met i do a f uni l gor gomi l os adent r o - t oda a vel ha c i ênci a de mar t i r i zar subsi st e ai nda hoj e encapot ada sob hábei s di s f ar ces. A humani dade é sempr e a mesma cr uel chaci nador a de si pr ópr i a, numer em- se os sécul os ant er i or ou post er i or ment e ao Cr i s t o. Mudam de f or ma as coi sas; a essênci a nunca muda. Como pr ova denunci a- se aqui um avat ar moder no das ant i gas t or t ur as: o est af et ament o. Est e supl í c i o val e o t or ni quet e, a f oguei r a, o gar r ot e, a pol é, o t our o de br onze, a empal ação, o bacal hau, o t r onco, a r oda hi dr ául i ca de sur r ar . A di f er ença é que est as engenhar i as mat avam com cer t a r api dez, ao passo que o est af et ament o pr ol onga por anos a agoni a do paci ent e. Est af et a- se um homem da segui nt e manei r a: o gover no, por mal évol a i ndi cação dum chef e pol í t i co, hodi er no sucedâneo do " f ami l i ar " do Sant o Of í c i o, nomei a um c i dadão est af et a do cor r ei o ent r e duas c i dades convi z i nhas não l i gadas por v i a f ér r ea. O i ngênuo vê no caso honr ar i a e negóci o. É honr a penet r ar na f al ange gor da dos car r apat os or çament í vor os que paci ent ement e devor am o paí s; é negóci o l ambi scar ao t er mo de cada mês um or denado f i xo, t endo ar r umadi nha, no f ut ur o, a cama f of a da aposent ador i a. Not e- se aqui a di f er ença ent r e os omi nosos t empos medi evos e os sobr eexcel ent es da democr aci a de hoj e. O absol ut i smo agar r ava às br ut as a ví t i ma e, sem t i r - t e nem habeas- cor p os, t r uc i dava- a; a democr aci a oper a com manhas de Tar t uf o, ar ma ar apucas, met e dent r o r odel as de l ar anj a e esper a al ei vosament e que, spont e sua, cai a no l aço o passar i nho. Quer ví t i mas ao acaso, não escol he. Chama- se a i s t o - ar t e pel a ar t e. . .

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Nomeado que é o homem, não per cebe a pr i ncí pi o a sua desgr aça. Só ao cabo de um mês ou doi s é que ent r a a desconf i ar ; desconf i ança que por gr aus se vai f azendo cer t eza, cer t eza hor r í vel de que o empal ar am no l ombi l ho dur o do pi or mat ungo das r edondezas, com, pel a f r ent e, c i nco, sei s, set e l éguas de t or t ur a a engol i r por di a, de mal a post al à gar upa. Ei s as puas do apar el ho de t or ment o, as t ai s l éguas! Par a o comum dos mor t ai s , uma l égua é uma l égua; é a medi da duma di s t ânci a que pr i nci pi a aqui e acaba l á. Quem vi aj a, f ei t o o per cur so, chega e é f el i z. As l éguas do est af et a, por ém, mal acabam vol t am da capo, como nas músi cas. Venci das as sei s ( suponhamos um caso em que sej am só sei s) r enascem na sua f r ent e de vol t a. É f azê- l as e desf azê- l as. Tei a de Penél ope, r ochedo de Sí si f o, há de per mei o ent r e o i r e o v i r a má di gest ão do j ant ar r equent ado e a noi t e mal dor mi da; e assi m um mês, um ano, doi s , t r ês, c i nco, enquant o l hes r est ar em, a el e nádegas, e ao sendei r o l ombo. Quando cr uza um v i andant e a j or nadear , mor de- o a i nvej a: aquel e br eve " chegar á" , ao passo que par a o est af et a t al ver bo é uma i r r i são. Mal apei a, der r eado, com o cor anchi m em f ogo, ao t er mo dos t r i nt a e sei s mi l met r os da cami nhei r a, come l á o mau f ei j ão, dor me l á a má soneca e a aur or a do di a segui nt e est i r a- l he à f r ent e, à gui sa de " Bom di a! " , os mesmos t r i nt a e sei s mi l met r os da vésper a, agor a espi chados ao cont r ár i o. . . Br eve o ani mal , pi sado, dá de si , f r aquej a. Já os t opes o caval ei r o gal ga a pé. Não possui mei os de adqui r i r out r a mont ada. O or denado vai - se- l he em mi l ho e " r apador " ( 1) par a a al i már i a, água de sal par a os semi cúpi os e mai s r emédi os às pi sadur as de ambos, caval gant e e caval gado. Não sobej a sequer par a r oupa. Dá- l he o Est ado - o mesmo que cust ei a enxundi osas t at ur anas bur ocr át i cas a cont os por mês, e bai t acas par l ament ar es a 200 mi l r éi s por di a - dá- l he o gener oso Est ado. . . cem mi l r éi s mensai s. Quer di zer " um r eal " por nove br aças de t or ment o. Com um vi nt ém paga- l he t r ezent os e t r i nt a met r os de supl í ci o. Vem a sai r a sessent a r éi s o qui l ômet r o de mar t í r i o. Dor mai s bar at a é i mpossí vel . O est af et a ent r a a def i nhar de cansei r a e f ome. Vão- se- l he as car nes, as bochechas encovam, as per nas v i r am par ênt eses dent r o dos quai s mor a a bar r i ga do desvent ur ado r oc i m. Al ém das cal ami dades f i s i ol ógi cas, econômi cas e soci ai s, chovem- l he em ci ma as met eor ol ógi cas. O t empo i nc l ement e não l he poupa j udi ar i as. No ver ão não se dói o sol de assá- l o como se assam pi nhões nas ci nzas. Se chove, de nenhuma got a se l i vr a. Pel os f i ns de mai o, à ent r ada do f r i o, é ent angui do como um súdi t o de Ni col au ex i l ado nas Si bér i as que devor a as l éguas i nf er nai s. No di a de S. Bar t ol omeu, agar r ado de unhas à cr i na da escanzel ada égua, é por mi l agr e que não os despej a a ambos, pi r ambei r a abai xo, o endemoni nhado vent o. O pat r ão- gover no pr essupõe que el e é de f er r o e suas nádegas são de aço; que o t empo é um per manent e céu com " br i sas f aguei r as" ocupadas em sopr ar sobr e os cami nhant es os ol or es da " bal sami na em f l or " . Pr essupõe ai nda que os cem mi l r éi s do sal ár i o são uma

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paga r eal de l amber as unhas. E, nest as angel i cai s pr essuposi çÕes, quando há cr i ses f i nancei r as e l he l embr am economi as, cor t a seus c i nco, seus dez mi l r éi s no pi ngue or denado, par a que haj a sobr as per mi t i dor as d' i r à Eur opa um genr o em comi ssão de est udos sobr e " a i nf l uênci a z i gomát i ca do per i él i o sol ar no r egi me zar at úst r i co das democr aci as l at i nas" . E assi m o exér c i t o dos est af et as, di a a di a mai s encani f r ado, encal acr ado de dí v i das, enchagado de pi sadur as, ao sol de dezembr o ou à gar oa ent anguent e de j unho, t r ot a, t r ot a sem cessar , mor r o ac i ma, mor r o abai xo, por at ol ei r os e ar eões, cal dei r ões e escor r egadoi r os, sacudi do pel a mi ser anda caval gadur a que de t ant o padecer , coi t ada, j á nem j ei t o de caval o t em. O l ombo del as é t odo uma chaga v i va; as cost el as, um r i pado. Car i cat ur as cont r i s t ador as do nobr e Equus, um di a r ebent am de f ome, exaust as, a mei o de v i agem. O est af et a t oma às cost as os ar r ei os, a mal a, e concl ui a cami nhei r a a pé. Nesse di a chega f or a de hor as, e o agent e do cor r ei o of i c i a ao cent r o sobr e a " i r r egul ar i dade" . O cent r o move- se; f az cor r er um papel ór i o at r avés de vár i as sal as onde, comodament e espapaçada em pol t r onas car as, a bur ocr aci a gor da pal est r a sobr e espi ões al emães. Depoi s de demor ada v i agem, o papel ór i o chega a um gabi net e onde i mpa em secr et ár i a de i mbui a, f umegando o seu char ut o, um suj ei t o de boas car nes e ót i mas cor es. Est e vence doi s cont os de r éi s por mês; é f i l ho d' al go; é cunhado, sogr o ou genr o d' al go; ent r a às onze e sai às t r ês, com f ol ga de per mei o par a uma " bat i da" no f r ege da esqui na. O canast r ão cor r e os ol hos mor t i ços de l ombei r a por sobr e o papel e gr unhe: - Est es est af et as, que mal andr os! E assi na a demi ssão daquel e a bem do ser v i ço públ i co. ( E se i sso não acont ece, acont ece pi or . Cer t a vez o agent e do cor r ei o duma c i dadezi nha paul i s t a of i c i ou ao cent r o quei xando- se do est af et a. O cent r o r espondeu aut or i zando- o a " puni r com sever i dade o f al t oso" . O agent e medi t a a sér i o sobr e o caso; depoi s, most r ando o of í ci o ao est af et a, e com mui t a dor de cor ação, f er r a- l he em nome do Gover no a mai or sova de chi cot e de que há memór i a no l ugar . Em segui da, of i c i a ao cent r o dando cont a do desempenho da mi ssão e decl ar ando que o ser v i ço f i car i a i nt er r ompi do por uma qui nzena, v i s t o o paci ent e est ar de cama, a cur ar - se com sal mour a. . . ) O supl i c i ado, post o no ol ho da r ua, sem saúde, sem caval o, sem nádegas, cober t o de dí v i das, com o f í gado e mai s v í scer as f or a do l ugar em v i r t ude do mui t o que " chacoal har am" , vê- se l ogo r odeado pel a chusma de cr edor es, áv i dos como ur ubus de char queada. Como est á nu, mai s nu que Job, não pode pagar a nenhum - e ganha f ama de cal ot ei r o. - Par eci a um homem sér i o, e no ent ant o r oubou- me ci nco al quei r es de mi l ho, di z o da venda, cal abr ês gor do, enr i cado no passament o de not as f al sas. - Tomou- me empr est ados cem mi l r éi s par a a compr a de um caval o, a j ur i nho d' ami go ( ci nco por cent o ao mês) , j á l á vão c i nco anos, e por mui t o f avor pagou- me o pr emi ozi nho e deu os ar r ei os por cont a. Que l adr ão! di z o onzenei r o, sóci o do out r o na not a

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f al sa. A l oj a de f azenda chor a umas cal ças de al godão mi nei r o que l he f i ou em t empo. A f ar máci a, um qui l o de sal - amar go f al si f i cado. Abeber ado de i nsul t os, o már t i r só vê pel a f r ent e uma saí da: f i ncar o pé na est r ada e f ugi r . . . f ugi r par a uma t er r a qual quer onde o desconheçam e o dei xem mor r er em paz. Dest ' ar t e, o moder no supl í c i o do est af et ament o, al ém de char quear as car nes duma cr i at ur a humana l i mpa de cr i mes, dá- l he ai nda de l ambuj a uma bel a mor t ez i nha mor al . Tudo i st o a f i m de que não f al t e aos sol et r ador es de t ai s bi bocas do ser t ão o pábul o di ár i o de gr axa pr et a em f undo br anco, por mei o do qual se est ampam em l í ngua bunda as f acadas que Pé Espal hado deu no Cami sa Pr et a, o quei j o que f ur t ou o Bai ani nho ao Manoel da Venda, o r omance t r aduzi do de Jor ge Ohnet , o sal vament o da pát r i a pel a al t a vol at ar i a naci onal , o pal avr eado gor do das l i gas di st o e daqui l o, a descober t a de espi ões onde nada há que espi ar , a pol i cul t ur a, o zebu, o anal f abet i smo, o al i adi smo, o ger mani smo, as pot ocas da Havas e quant a papal v i ce gr el a por massapés e t er r as r oxas dest e paí s das ar ábi as. A pol í t i ca do cor onel Evandr o em I t aoca deu com o r abo na cer ca des ' que em t al pl ei t o o compet i dor Fi dênci o, t ambém cor onel , gui ndou a cot ação dos vot os de gr avat a a qui nhent os mi l r éi s, e a dos vot os de pé- no- chão a doi s par el hos de r oupa, mai s um chapéu. O pr i mei r o at o do vencedor f oi cor r er a vassour a do Ol ho da Rua em t udo quant o er a ol hodar r uável em mat ér i a de f unci onal i smo públ i co. Ent r e os var r i dos est ava a gent e do cor r ei o, i nc l us i ve o est af et a, par a cuj a subst i t ui ção i ncul cou- se ao gover no o I zé Bi r i ba. Er a est e Bi r i ba um car anguej o humano, l er do de manei r as e at ol ambado de i déi as, com doi s per cal ços t r emendos na vi da - a pol í t i ca e o t opet e. O t opet e consi st i a num pal mo de gr enha t ei mosa em l he cai r sobr e a t est a, e t ão i ns i st ent e ni st o que gast ava el e met ade do di a er guendo a mão esquer da à al t ur a da f r ont e par a, num movi ment o maqui nal , bot ar p' r ' ar r i ba a cr i na r ebel de. A pol í t i ca escusa di zer o que é. Col i gados ambos, t opet e e pol í t i ca comi am- l he o t empo i nt ei r o, de j ei t o a não l he dei xar f ol ga nenhuma par a o amanho do sí t i o, que, af i nal , r oí do pel o cupi m da hi pot eca, l á f oi par ar nas unhas dum onzenei r o l adr ão. Mont ou em segui da bot equi m mas f al i u. Enquant o Bi r i ba ar r umava o t opet e, os f r egueses sur r upi avam- l he os mat a- bi chos; e nas cavaquei r as pol í t i cas, os cor r el i gi onár i os, de passo que expel i am di at r i bes cont r a o gover no, sor v i am capi l és r ef r escant es e mascavam bol i nhos de pei xe por cont a da vi t ór i a f ut ur a. Al ém do t opet e t i nha Bi r i ba o sest r o do " s i m senhor " al çado às f unções de ví r gul a, pont o- e- ví r gul a, doi s- pont os e pont o f i nal de t odas as par voi çadas emi t i das pel o par cei r o; e às vezes, pel o hábi t o, quando o f r eguês par ando de f al ar ent r ava a comer , cont i nuava el e escandi ndo a " s i m senhor es" a mast i gação do bol i nho f i l ado. - q URUPÊS 77

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Ao t empo da queda do out r o e subi da de sua gent e, andava Bi r i ba r eduzi do à conspí cua posi ção de " f ósf or o" el ei t or al . No pl ei t o t r abal har a como nenhum. Der am- l he as pi or es mi ssões - acuar el ei t or es t abar éus embi bocados nos socavões das ser r as, negoci ar - l hes a consci ênci a, debat er pr eço de vot os, bar ganhá- l os com éguas l azar ent as e pr ovar aos desconf i ados, com ar gument os de cochi cho ao ouvi do, que o gover no est ava com el es. Após a v i t ór i a, sent i u pel a pr i mei r a vez um gozo i nt egr al de cor ação, cabeça e est ômago. Vencer ! Oh, néct ar ! Oh, ambr osi a i ncompar ável ! O nosso homem r egal ou as ví scer as com o pet i sco dos deuses. At é que enf i m os negr or es da v i da de mi sér i as l he al vor ej avam em aur or a. Comer à f ar t a, ser r ar de ci ma. . . Del í c i as do t r i unf o! Que l he dar i a o chef e? No ant egozo da pepi nei r a i mi nent e, v i veu a r ebol ar - se em cama de r osas at é que r ebent ou sua nomeação par a o car go de est af et a. Sem queda par a aqui l o, qui s r el ut ar , pedi r mai s; na conf er ênci a que t eve com o chef e, ent r et ant o, as obj eções que l he v i nham à boca t r ansmut avam- se no habi t ual " si m senhor " , de modo a convencer o cor onel de que er a aqui l o o seu i deal . - Vej a, Bi r i ba, quant o val e a f el i c i dade! Pi l ha um empr egão! Vai o Regi no par a agent e e você par a est af et a. O mai s que el e pôde al egar f oi que não t i nha caval gadur a. - Ar r anj a- se, r esol veu de pr ont o o cor onel ; t enho l á uma égua moi r a l egí t i ma, de passo pi cado, que val e duzent os mi l r éi s . Por ser par a você, dou- a por met ade. O di nhei r o? É o de menos. Você t oma- o de empr ést i mo ao Leandr i nho. Ar r anj a- se t udo, homem. O ar r anj o f oi adqui r i r Bi r i ba uma égua t r ot ona pel o dobr o do val or , com di nhei r o t omado a t r ês por cent o ao t al Leandr o, que out r a coi sa não er a senão o t est a- de- f er r o do pr ópr i o Fi dênci o. Dest ' ar t e, car ambol ando, o mat r ei r o chef e punha a j ur os o pi or sendei r o da f azenda, al ém de conser var pel o cabr est o da gr at i dão ao i di ot a est af et ado. I ni ci ou Bi r i ba o ser v i ço: sei s l éguas di ár i as a f azer hoj e e a desf azer amanhã, sem out r a f ol ga al ém do úl t i mo di a dos meses í mpar es. I nda bem se f or a devor ar as l éguas na só companhi a da chupada mal a post al . Mas não l he sai u ser ena assi m a empr esa. Como I t aoca não passasse de mesqui nho l ugar ej o empol ei r ado no espi nhaço da ser r a e despr ovi do de t udo, não t r anscor r i a vez sem que os ami gos pol í t i cos não v i essem com encomendas a av i ar na c i dade. À hor a de par t i r , sur gi am apr ovei t ador es com l i s t i nhas de mi udezas, ou mol eques com r ecados. - Si nhá di sse assi m p' r a suncê compr ar t r ês car r et éi s de l i nha ci nqüent a, um papel de agul has, uma peça de cadar ço br anco, c i nco maços de gr ampo mi údo e, se sobej ar um t ost ão, p' r a t r azer uma bal a de api t o p' r ' o seu Juqui nha. Todos aquel es ar t i gos ex i s t i am em I t aoca, um t ant i nho mai s car os, por ém o encomendá- l os f or a vi sava apenas a economi a do t ost ão da bal a de api t o. - Si m senhor , s i m senhor ! . . . Não l he escapava da boca out r o som, embor a o exasper asse a cont í nua

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r epet i ção do abuso. Al ém das pequenas encomendas, pouco t r abal hosas, sur gi am out r as de vul t o, como l evar um caval o ar r eado ao sr . Ful ano que v i nha em t al di a, acompanhar a mul her de Et cet r ano, e que t ai s . A Ti búr ci a, cozi nhei r a pr et a do col et or , cada vez que i a de f ér i as descansar à c i dade er a o Bi r i ba o i ndi cado par a conduzi - l a. Foi como o conheci , guar dando cost a às amazonas. De vi agem par a I t aoca, a mei o cami nho t opo um homem encaval gado na mai s avar i ada égua que j amai s meus ol hos vi r am. à gar upa i am mal as do cor r ei o e vár i os pi cuás; no sant o- ant ôni o, mai s pi cuás al ém duma vassour a nova enganchada nos ar r ei os com a pal ha par a c i ma. Est ava par ado, em at i t ude i di ot i zada, segur ando pel o cabr est o um caval i nho de si l hão. Abor dei - o, pedi ndo f ogo. Aceso o ci gar r o, i ndaguei de quem mont ava a caval gadur a vazi a. - " Não vê" que est ou acompanhando a dona Engr áci a, que é par t ei r a em I t aoca. El a apeou um bocadi nho e. . . Ouvi r umor at r ás: saí a do mat o uma mul her aça r úbi da, de sai as t uf adas de goma, t endo na cabeça um t oucadi nho coevo de 5. M. Fi del í ss i ma. . . Par a não vexá- l a, pus- me a cami nho, não sem, vol t ando a car a de sosl ai o, r egul ar - me com os apur os do est af et a par a ent al ar nas andi l has as ci nco ar r obas da par t ei r a al i v i ada. E descompost ur as. . . - Seu Bi r i ba, não f oi l i nha 40 que eu encomendei . O senhor par ece bobo! Quando a f azenda er a má: - Não vi u que a chi t a desbot ava? Que moda! Doí a- l he, sobr et udo, car r et ear par a a execr ável gent e da oposi ção. O cor onel cont r ár i o não se pej ava de por i nt r omi ssão de t er cei r o, neut r o ou oposi c i oni st a encapot ado, abusar da boa- f é do már t i r . Lembr ava- se Bi r i ba, com dor d' al ma, de um bode de r aça que l he der a gr andes t r abal hos pel o cami nho - e vár i as mar r adas de l ambuj a; af i nal , chegando, ver i f i cou que v i nha par a o i ni mi go. Toda a gent e gozou do caso, ent r e espi r r os de r i so e gal hof a. - É um pax vobi s o Bi r i ba! Tr azer o bode da oposi ção! Qui á! Qui á! Qui á! Est as e out r as f or am- l he azedando os f í gados e as ví scer as ci r cunvi z i nhas. Bi r i ba emagr eceu. Bi r i ba amar el ou. A égua, coi t ada, per deu a f ei ção caval ar . Seu l ombo sel ar a em mei a- l ua, de modo que por um nadi nha não r aspavam o chão os pés do caval ei r o. Mont ado, Bi r i ba af undava. Sua cabeça caí a quase ao ní vel duma l i nha t i r ada da anca às or el has da égua. Hor r endament e pi sada, t r az i a a bi cha nos ol hos per manent es l ágr i mas de dor ; mas em vez de t ant a mazel a mover ao dó o cor ação dos i t aoquenses, r egal ava- os, e er am chuf as sem f i m e pi adas i di ot as acer ca do " Est af et a da Tr i s t e Fi gur a mai s a sua Bucéf al a" , como os bat i zou um engr açado l ocal . Lazar ent o como el es, só o Cunegundes, cão sem dono, cober t o de sar na, que per ambul ava a esmo pel a c i dade, f ugi ndo a moscas e pont apés. Poi s não l he mudar am o nome par a Bi r i bi nha? Cachor r ada! Não t ar dou mui t o v i esse o gover no dar sua vol t a ao t or ni quet e, cor t ando dez mi l r éi s no or denado dos est af et as

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- par a sal var - se em cer t a ocasi ão de apur os f i nancei r os. E sal vou- se, est a é que é! . A r oupa no f i o. A ent r ada das chuvas uma al ma car i dosa deu- l he uma vel ha capa de bor r acha; mas no pr i mei r o aguacei r o ver i f i cou Bi r i ba que t al capot e vazava como penei r a, de modo a pi or ar - l he a s i t uação com a sobr ecar ga dum panej ament o absor vedor de l i t r os d' água. Bi r i ba, per di da a paci ênci a, mur mur ou. Ai ! Soube- o l ogo o chef e e f ê- l o vi r a cont as. - É cer t o que o senhor me anda ar r enegando do empr ego que l he demos? Quer i a, acaso, ser el ei t o senador ou vi ce- pr esi dent e? Um pedaço de por cal hão que andava aí l ambendo embi r a, mor r e não mor r e de f ome, passa, por gener osi dade nossa, a ocupar um car go f eder al com or denado r el at i vament e bom ( aqui Bi r i ba t oss i u um. . . s i m senhor " ) , encont r a t odas as f ac i l i dades, r ecebe um bom ani mal e ai nda se quei xa? Que quer ent ão Vossa Excel ênci a? Bi r i ba i nt umesceu- se de cor agem e decl ar ou quer er uma coi sa só: a demi ssão. Est ava doent e, sur r adí ssi mo, ameaçado de per der de um moment o par a out r o a égua e as nádegas. Quer i a mudar de v i da. Muda- se, ent ão, de v i da assi m do pé par a a mão? Quer abandonar os ami gos? E a di sci pl i na par t i dár i a onde f i ca, meu car o pal er ma? Não convi nha a ni nguém a saí da do Bi r i ba. Quem mai s ser vi çal ? Lembr avam- se dos est af et as ant er i or es, mal cr i ados, i ni mi gos de t r azer um papel d' agul ha f osse par a quem f osse. Não sai r i a. I t aoca i mpunha- l he o sacr i f í c i o de f i car . Mas a t or t ur a do di ár i o chocal har por set e l éguas das ví scer as do Bi r i ba acabou por desconj unt ar nel e o c i ment o da l eal dade par t i dár i a. O már t i r abr i u os ol hos. Lembr ou- se com saudades dos omi nosos t empos do cor onel Evandr o, das del í c i as do bot equi m e at é do cal ami t oso per í odo da degr adação " f osf ór i ca" . Pi or ar a após o t r i unf o, não havi a dúvi da. Est e l i vr e exame de consci ênci a - cr ede- me, f oi o i ní c i o da queda do cor onel Fi dênci o em I t aoca. Bi r i ba, o f i r me est ei o, apodr eci a pel o nabo; v i r i a abai xo, e com el e a cumeei r a do par di ei r o pol í t i co. A ví bor a da t r ai ção ar mar a ni nho em sua al ma. Como o novo pl ei t o se apr oxi masse, nova v i t ór i a l he ser i a novo t r i êni o de mar t í r i o. Bi r i ba ponder ou de si par a sua égua que a sal vação de ambos est ava na der r ot a. Demi t i am- no, e el e, vet er ano e már t i r do f i denci smo, cont i nuar i a com j us ao apoi o do par t i do, sem padecer por vi a cocci gi ana o cont at o odi oso das set e hor as di ár i as de socado. Del i ber ou t r ai r . Na vésper a da el ei ção i ncumbi u- o Fi dênci o de t r azer da ci dade um papel i mpor t ant í ssi mo par a o t r i bof e das ur nas. Sei l á o que er a! Um " papel " . A pal avr a " papel " di t a assi m em t om de mi st ér i o t r az no boj o coi sas Fi dênci o f r i sou a gr avi dade da i ncumbênci a - a mai or pr ova de conf i ança j amai s dada por el e a um cabo el ei t or al . - Vej a l á! A nossa sor t e est á nas suas mãos. I s t o é que é conf i ança, hei n? Par t i u Bi r i ba. Recebeu na c i dade o " papel " e r odou par a t r ás. A mei o cami nho, por ém, t omou por uma er r ada,

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f oi t er à bi boca dum negr o vel ho, sol t ou a égua, pegou de pr osa com o gor i l a. Cai u a noi t e: Bi r i ba dei xou- se f i car . Al vor eceu o di a segui nt e: Bi r i ba qui et o. Dez di as se passar am assi m. Ao cabo, ar r eou a égua, mont ou e bot ou- se par a I t aoca como se nada houver a acont eci do. Foi um assombr o a sua apar i ção. Bal dadas as t ent at i vas par a apanhá- l o no di a do pl ei t o e nos post er i or es, der am- no como papado pel as onças, el e, égua, mal a post al e " papel " . Vê- l o agor a sur gi r sãozi nho da s i l va f oi um abr i r de boca e um pasmar à vi l a i nt ei r a. Que houve? Que não houve? A t odas as per gunt as Bi r i ba ar mava na car a a supr ema expr essão da i di ot i a. Nada expl i cava. Não sabi a de nada. Sono cat al épt i co? Fei t i ço? Não compr eendi a o sucedi do. Af i gur ava- se- l he t er par t i do na vésper a e est ar de vol t a no di a cer t o. Fi car am t odos mar avi l hados, com asní ss i mas car as. Fi dênci o del i r ava na cama, com f ebr e cer ebr al . Per der a a el ei ção r edondament e. " Der r ot a f edi da" , ar r ot avam os vencedor es, at ochando f oguet es de assobi o. Em conseqüênci a do i nexpl i cável ecl i pse do est af et a senhor eou- se do r ebenque o ex- omi noso Evandr o. Começou a der r ubada. O ol ho- da- r ua r ecebeu em seu sei o t udo quant o chei r ava a f i denci smo. A vassour a da demi ssão, por ém, poupou a. . . Bi r i ba. O novo caci que apr oxi mou- se del e e di sse: - Demi t i t oda a canal ha, Bi r i ba, menos a você. Você é a úni ca coi sa que se sal va da quadr i l ha do Fi dênci o. Fi que sossegado, que do seu l ugar zi nho ni nguém o ar r anca, nem que o céu chova t or queses. Pel a der r adei r a vez em I t aoca, Bi r i ba bal buci ou o " si m senhor " . À noi t e deu um bei j o no f oc i nho da égua e sai u de casa pé ant e pé. Ganhou a est r ada e sumi u. E nunca mai s ni nguém l he pôs a v i st a em c i ma. . . Not a: Rapador : Past o de al uguel mui t o sovado; r apado. Meu cont o de Maupassant Conver savam no t r em doi s suj ei t os. Apr oxi mei - me e ouvi : - " Anda a v i da chei a de cont os de Maupassant ; i nf el i zment e há pouquí ss i mos Guys. . . " - " Por que Maupassant e não Ki pl i ng, por exempl o?" - " Por que a vi da é amor e mor t e, e a ar t e de Maupassant é nove em dez um enquadr ament o engenhoso do amor e da mor t e. Mudam- se os cenár i os, var i am os at or es, mas a subst ânci a per s i s t e - o amor , sob a úni ca f ace i mpr essi onant e, a que cul mi na numa posse v i ol ent a de f auno i ncendi do de l uxúr i a, e a mor t e, o est er t or da vi da em t r anse, o qui nt o at o, o epí l ogo f i s i ol ógi co. A mor t e e o amor , meu car o, são os doi s úni cos moment os em que a j ogr al i ce da vi da ar r anca a máscar a e f r eme num del í r i o t r ági co. " - " Não t e r i as. Não componho f r ases. Just i f i co- me. Na vi da, só dei xamos de ser uns pal haços i nconsci ent es a ment i r mos à nat ur eza quando est a, r eagi ndo, põe a nu o i nst i nt o hi r sut o ou acena o ' bast a' f i nal que r ecol he o mau at or ao pó. Só há gr andeza, em suma, e ' ser i edade' , quando

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cessa de agi r o pobr e j ogr al que é o homem f ei t o, gui ado e di r i gi do por mor ai s, r el i gi ões, códi gos, modas e mai s post i ços de sua i nvenção - e ent r a em cena a nat ur eza br ut a. " - " A pr opósi t o de que t ant a f i l osof i a, com est e cal or de j anei r o?. . . " O comboi o cor r i a ent r e São José e Qui r i r i m. Regi ão ar r ozei r a em pl ena f ai na do cor t e. Os campos em sega t i nham o aspect o de cabel os l our os t osados à escovi nha. Pur a pai sagem eur opéi a de t r i gai s. A espaços f er i am nossos ol hos quadr os de Mi l l et , em f uga l ent a, se l onge, ou r ápi da, se per t o. Vul t os f emi ni nos de cest a à cabeça, que par avam a ver passar o t r em. Vul t os de homens amont oando f ei xes de espi gas par a a mal hação do di a segui nt e. Car r oções t i r ados a boi s r ecol hendo o cer eal ensacado. E como caí a a t ar de e a Mant i quei r a j á er a uma pi ncel ada opaca de í ndi go a bar r ar a i mpr i madur a evanescent e do azul , v i mos em cer t o t r echo o or i gi nal do " Angel us" . . . - " Já t e di go a pr opósi t o de que vem t ant a f i l osof i a. " E, enf i ando os ol hos pel a j anel a, cal ou- se. Houve uma pausa de mi nut os. Súbi t o, apont ando um vel ho saguar aj i avul t ado à mar gem da l i nha e l ogo sumi do par a t r ás, di sse: - " A pr opósi t o dessa ár vor e que passou. Foi el a compar sa no ' meu cont o de Maupassant " ' . - " Cont a l á, se é cur t o. " O pr i mei r o suj ei t o não se aj ei t ou no banco, nem l i mpou o pi gar r o, como é de est i l o. Sem t r ansi ção f oi l ogo nar r ando. - " Havi a um i t al i ano, mor ador dest as bandas, que t i nha vendol a na est r ada. Ti po mal - encar ado e r ui m. Bebi a, j ogava, e por vár i as vezes andou às vol t as com as aut or i dades. Cer t o di a - eu er a del egado de pol í c i a - uns pi r aquar as v i er am di zer - me que em t al par t e j az i a o ' cor po mor t o' de uma vel ha, pi cado à f oi ce. Or gani zei a di l i gênci a e acompanhei - os. ' É l á naquel e saguar aj i ' , di sser am ao apr oxi mar em- se da ár vor e que passou. Espet ácul o r epel ent e! Ai nda t enho na pel e o ar r epi o de hor r or que me cor r eu pel o cor po ao dar uma t opada bal of a num cor po mol e. Er a a cabeça da vel ha, semi - ocul t a sob f ol has secas. Por que o mal vado a decepar a do t r onco, l ançando- a a al guns met r os de di st ânci a. Como por si s t ema eu desconf i asse do i t al i ano, pr endi - o. Havi a cont r a el e i ndí ci os f or t es. Vi r am- no sai r com a f oi ce, a l enhar , na t ar de do cr i me. Ent r et ant o, por f al t a de pr ovas, f oi r est i t uí do à l i ber dade, mau gr ado meu, poi s cada vez mai s me capaci t ava da sua cul pabi l i dade. Eu pr essent i a naquel e sór di do t i po - e negue- se val or ao pr essent i ment o! - o mi ser ável mat ador da pobr e vel ha" . - " Que i nt er esse t i nha no cr i me?" - " Nenhum. Er a o que al egava. Er a como ar gument ava a l ogi cazi nha t r i v i al de t oda a gent e. Não obst ant e, eu o t r azi a de ol ho, cer t o de que er a o homi ci da. " O pat i f e, não demor ou mui t o, t r aspassou o negóci o e sumi u- se. Eu do meu l ado dei xei a pol í c i a e do cr i me só me f i cou, ní t i da, a sensação da t opada mol e na cabeça da vel ha. Anos depoi s o caso r evi veu. A pol í c i a obt eve i ndí c i os

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veement es cont r a o i t al i ano, que andava por São Paul o num gr au ext r emo de decadênci a mor al , pensi oni st a do xadr ez por f ur t os e bebedi ces. Pr ender am- no e r emet er amno par a cá, onde o j úr i i r i a deci di r da sua sor t e. - " Os t eus pr essent i ment os. . . " O suj ei t o sor r i u com mal í c i a e cont i nuou. - " Não r esi s t i u, não r eagi u, não pr ot est ou. Tomou o t r em no Br ás e vei o de cabeça bai xa, sem pr of er i r pal avr a, at é São José; daí por di ant e ( quem o cont a é um sol dado da escol t a) met i a ami úde os ol hos pel a j anel a, como pr eocupado em ver qual quer coi sa na pai sagem, at é que def r ont ou o saguar aj i . Nesse pont o ar mou um pi ncho de gat o e despej ou- se pel a j anel a f or a. Apanhar am- no mor t o, de cr âni o r achado, a escor r er a couve- f l or dos mi ol os per t o da ár vor e f at al . " - " O r emor so! " - " Est á aqui o ' meu cont o de Maupassant ' . Ti ve a i mpr essão del e nas pal avr as do sol dado da escol t a: ' vei o de cabeça bai xa at é São José, daí por di ant e enf i ou os ol hos pel a j anel a at é enxer gar a ár vor e e pi nchou- se' . No pr ogr esso i ngênuo da nar r at i va, l i t oda a t r agédi a í nt i ma daquel e cér ebr o, sent i t odo um dr ama psi col ógi co que nunca ser á escr i t o. . . " - " É cur i oso! " , coment ou o out r o, pensat i vament e. Mas o pr i mei r o suj ei t o acendeu o ci gar r o e concl ui u sor r i dent e, com pausada l ent i dão: - " O cur i oso é que mai s t ar de um dos pi r aquar as denunci ador es do cr i me, e f i l ho da vel ha, pr eso por pi car um companhei r o a f oi çadas, conf essou- se t ambém o assassi no da vel hi nha, sua mãe. . . " " Meu car o, aquel e pobr e Oscar Fi ngal l O' Fl aher t i e Wi l l s Wi l de di sse mui t a coi sa, quando di sse que a v i da sabe mel hor i mi t ar a ar t e do que a ar t e sabe i mi t ar a vi da. " Not a: Na pr i mei r a edi ção de Ur upês, o t r abal ho " Meu Cont o de Maupassant " t i nha o ar t i go pr ecedendo o possessi vo: " O Meu Cont o de Maupassant " . " Pol l i ce ver so" Dos dezessei s f i l hos do cor onel I náci o da Gama, cedo r evel ou o caçul a s i ngul ar es apt i dões par a médi co. Pel o menos assi m j ul gar a o pai , como quer que o encont r asse na hor t a i nt er essadí ssi mo em dest r i par um passar i nho agoni zant e. - Descobr i a vocação do Ni co, di sse o ar gut o suj ei t o à mul her . Dá um ót i mo escul ápi o. I nda agor i nha o v i l á f or a di ssecando um sanhaço v i vo. Hão de duvi dar os nat ur al i s t as est r emes que o homem di ssesse di ssecar . Um cor onel i ndí gena f al ar ass i m com est e r i gor de gl ót i ca é coi sa i nadmi ssí vel aos que aval i am o gêner o i nt ei r o pel a mei a dúzi a de paf ur í c i os agal oados do seu conheci ment o. Poi s di sse. Est e cor onel Gama abr i a exceção à r egr a; t i nha suas l uzes, l i a seu j or nal , devor ar a em moço o Rocambol e, as Memór i as de um Médi co e acompanhava debat es da Câmar a com gr ande admi r ação pel o Rui Bar bosa, o Bar bosa Li ma, o Ni l o e out r os. Vi nha- l he daí um

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cer t o apur o na l i nguagem, dest oant e do achavascado ambi ent e gl óss i co da f azenda, onde mor ava. Quem nada per cebeu f oi dona Joaqui ni nha, a aval i ar pel o ar empar veci do que deu à car a. - Di ssecando - expl i cou super i or ment e o mar i do - quer di zer dest r i pando. - E dei xou você que el e comet esse semel hant e mal vadeza? - excl amou a excel ent e senhor a, compadeci da. - Lá vens com a pi egui ce! . . . Dei xa- o br i ncar , que é da i dade, eu em pequeno f az i a pi or es e nem por i sso v i r ei nenhum ogr e. ( Out r a vez! " Ogr e! " O homem nascer a pr eci oso. Est e ogr e devi a ser r emi ni scênci a do Ogr e da Cór sega, Napol eão chamado. Per doem- l ho à gui sa de compensação à par c i môni a da esposa, cuj o vocabul ár i o er a dos mai s r est r i t os. ) Dona Joaqui na f echou a car a, e quando o pequeno f ací nor a ent r ou no qui nt al pedi u- l he cont as da per ver s i dade, asper ament e. O cor onel , que nesse moment o l i a na r ede as f ol has r ecém- chegadas, houve por bem i nt er r omper a i ngest ão de um f l amant e di scur so sobr e a quest ão do Amapá par a acudi r em apoi o ao f edel ho. - Uma vez que ser á médi co, não vej o mal em i r - se f ami l i ar i zando com a anat omi a. . . - A anat omi a est á al i ! - r emat ou a encol er i zada senhor a apont ando a var a de mar mel o ocul t a at r ás da por t a. - Eu que sai ba que o senhor me anda com j udi ar i as aos pobr es ani mai z i nhos, que t e di sseco o l ombo com aquel a anat omi a, ouvi u, seu car ni cei r o? o meni no r aspou- se; o cor onel r et omou r es i gnado o f i o do di scur so; e o caso do sanhaço f i cou por al i . Mas não f i cou por al i a mal vadez do Ni co. Acaut el ava- se agor a. Er a às escondi das que " depenava" moscas, br i nquedo mui t o cur i oso, consi st ent e em ar r ancar - l hes t odas as per nas e asas par a gozar o sof r i ment o dos cor pi nhos i ner t es. Aos gr i l os cor t ava as sal t adei r as, e r i a- se de ver os mut i l ados cami nhar em como qual quer bi chi nho de somenos. Gat os e cães f ar ej avam- no de l onge, at er r or i zados. For a el e quem cor t ar a o r abo ao mí ser o Jol i da agr egada Emi l i ana, e er a quem descadei r ava t odos os gat os da f azenda. I sso, l onge. Em casa, um anj i nho. E assi m, anj o i nt er nament e e demôni o ext r amur os, cr esceu at é a mudança de voz. Ent r ou nesse per í odo par a um col égi o, e dest e pul ou par a o Ri o, mat r i cul ado em medi c i na. O empr ego que l á deu aos sei s anos do cur so soube- o el e, os ami gos e as ami gas. Os pai s sempr e v i ver am empul hados, cr ent es de que o f i l ho er a uma águi a a pl umar - se, f ut ur o Tor r es Homem de I t aoca, onde, vendi da a f azenda, ent ão mor avam. Nest a ci dade t i nham em ment e encar r ei r ar o meni no, par a desbanque dos quat r o escul ápi os l ocai s, uns onagr os, di z i a o cor onel , cuj a vet er i nár i a r ebai xava os i t aoquenses à cat egor i a de caval os. Pel as f ér i as o dout or ando apar eci a por l á, cada vez " mai s out r o" , desempenado, com t i ques de car i oca, " ss" s i bi l ant es, r oupas car as e uns pal avr eados t écni cos de embasbacar . Quando se f or mou e vei o de vez, est ava j á def i ni t i vo, nos v i nt e e quat r o anos. Não se l he descr eve aqui a car a, por que r et r at os por mei o de pal avr as t êm a pr opr i edade de f azer i magi nar f ei ções às vezes opost as às descr i t as. Di r se- á uni cament e

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que er a um r apaz espi gado, ent r e l our o e cast anho, boni t o mas ant i pát i co - com o ol har do St uar t Hol mes, di z i am as meni nas dout or as em c i nemas. No quei xo t r azi a bar ba de médi co f r ancês, coi sa que mui t o avul t a a c i ênci a do pr opr i et ár i o. Doent es há que ent r e um dout or bar budo e um gl abr o, ambos desconheci dos, pegam sem t i r - t e no pel udo, convi ct os de que pegam no mel hor . O dout or I naci nho, ent r et ant o, abor r ec i a aquel e mei o acanhado " onde não havi a campo - " I s t o aqui " , cont ava em car t a aos col egas do Ri o, " é um pur o degr edo. Cl í ni ca escassa e mal pagant e, sem mar gem par a gr andes l ances, e i nda assi m r epar t i da por quat r o cur andei r os que se di zem médi cos, per f ei t as vacas de Hi pócr at es, est r agador es de pepi nei r a com suas consul t i nhas de ci nco mi l r éi s. O c i r ur gi ão da t er r a é um Doyen de sessent a anos, emér i t o ext r at or de bi chos- de- pé e cor t ador de ver r ugas com f i o de l i nha. Dá i odur et o a t odo o mundo e t em a i mbeci l i dade de ar r ot ar cet i c i smo, di zendo que o que cur a é a Nat ur eza. Est es r ábul as é que est r agam o negóci o" , et c . Negóci o, pepi nei r a, gr andes l ances - est á aqui a ps i col ogi a do novo médi co. Quer i a pano ver de par a as bol adas gor das. - " Al ém di sso" , cont i nuava, É- me i nsupor t ável a ausênci a de Yvonne e de vocês. Não há cá mul her es, nem gent e com quem uma pessoa pal est r e. Uma poci l ga! As boas pândegas do nosso t empo, hei n?" Or a aqui est á: Yvonne, os ami gos, as pândegas f or am o mel hor do cur so. Com mão di ur na e not ur na manuseou- os a est es t r at adi st as de anat omi a, da f i s i ol ogi a, da cal açar i a, e agor a t or t ur avam- no saudades. Yvonne vol t ar a à pát r i a, dei xando cá a mei a dúzi a de amant es que depenar a a mor r er em de saudades dos seus encant os. Ant es de i r - se, deu a cada par vo uma est r el i nha do céu, par a que, a t ant as, se encont r assem nel a os amor osos ol har es. Os sei s i di ot as t odas as noi t es f er r avam os ol hos, um no " Taur eau" ( el a di st r i buí r a as const el ações em f r ancês) , out r o na " Écr evi sse" , out r o na " Chevel ur e de Bér eni ce" , o quar t o, no " Bél i er " , o qui nt o em " Ar i t ar és" , e o der r adei r o na " Épi de l a Vi èr ge" . A gar ot a mor r i a de r i r no col o dum apache monmar t r i no, cont ando- l he a hi s t ór i a cômi ca dos sei s par vos br asi l ei r os e das sei s const el ações r espect i vas. Li am j unt os as sei s car t as r ecebi das a cada vapor , nas quai s os pr ot est os amor osos em t emper at ur a de ebul i ção f az i am per doar a i ngr amat i cal i dade do f r ancês ant ár t i co. E r espondi am de col abor ação, em car t a c i r cul ar , onde só var i ava o nome da est r el a e o ender eço. Est a c i r cul ar er a o que havi a de t er no. Quei xava- se a r apar i ga de saudades, " essa pal avr a t ão poét i ca que f or a apr ender no Br asi l , o bel o paí s das pal mei r as, do céu azul , e dos mi chês" . Acoi mava- os de i ngr at os, j á em novos amor es, ao passo que a pobr ezi nha, sol i t ár i a e t r i s t e " comme l a j ur i t i " , consagr ava os di as a r ememor ar o doce passado. Ei s expl i cada a r azão pel a qual , nas noi t es l í mpi das, f i cava I naci nho à j anel a, pensat i vo, de ol hos post os na " Chevel ur e de Bér eni ce" .

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o sonho do moço er a enr i quecer às r ápi das par a r eat ar a gost osur a do i dí l i o i nt er r ompi do. - Par i s! . . . - bal buci ava a mei a- voz nos moment os de devanei o, semi cer r ando os ol hos no ant egozo do par aí so. Sonhava- se l á, r i qui nho, com Yvonne pel o br aço, f l amando no " Boi s" , t al qual nos r omances; e a r eal i zação dest e sonho er a o al vo de t odos os seus anel os. Jur ar a à ami ga i r t er com el a l ogo que a pr osper i dade l he abast asse mei os. O t empo, ent r et ant o, cor r i a sem que nenhuma pi abanha de vul t o l he caí sse na r ede. Tar dava a boi ada. . . Ent r e os médi cos ant i gos de I t aoca, o dout or I naci nho gozava péssi mo r enome - se r enome péssi mo pode ser coi sa de gozo. - Uma best i nha! - di z i a um. - Eu f i co pasmado mas é de saí r em da Facul dade caval gadur as daquel e por t e! É médi co no di pl oma, na bar bi cha e no anel do dedo. For a d' aí , que caval o! - E que t opet e! - acr escent ava out r o. - Pr esumi do e pomadi st a como não há segundo. Não di z humor es ou sí f i l i s; é mal l uét i co. Eu o que quer i a er a pi l há- l o numa conf er ênci a, par a escachar . . . O pai , j á v i úvo ent ão, esse babava- se d' or gul ho. Fi l ho médi co, e ai nda por c i ma dest abocado e bem f al ant e como aquel e. . . Er a de moer de i nvej a aos mai s. Enl evava- o, sobr et udo, aquel e modo ai candor ado de expr i mi r - se. Revi a- se no f i l ho, o cor onel . . . - A t er mi nol ogi a i nt ei r a da c i ênci a al opat a, coi sas em gr ego e l at i m, ci r cunvol ve naquel a cabeci nha - di sse el e uma vez ao v i gár i o, que o ol hou de r evés, por c i ma dos ócul os, ao som daquel e mi r í f i co c i r cunvol ve. E assi m cor r i a o t empo; ent r e as di at r i bes das duas ci ênci as, a moça e vel ha, com ent r emei o dos bel os vocábul os que o cor onel nunca per di a de met er na f al ação. Ent r ement es adoeceu o maj or Mendanha, capi t al i s t a aposent ado com t r ezent as apól i ces f eder ai s , o Rockef el l er de I t aoca. Deu- l he uma súbi t a af l i ção, uma cansei r a, e a mul her al vor oçou-se. - Não é nada, i st o passa, acal mou el e. - Passar á ou não! . . . O mel hor é chamar um médi co. - Qual , médi co! I s t o é nada. Não er a t ão nada assi m, como pr et endi a. À noi t e agr avou- se- l he o mal -est ar , e o vel ho, apr eensi vo, cedeu às i nst ânci as da esposa. Chamar a qual del es, por ém? - Poi s o Mour a, di sse a mul her , par a quem o da sua conf i ança er a est e Mour a. - Deus me l i vr e! - r et r ucou o doent e. - Aqui l o é homem mal - azar ado. Poi s não f oi quem t r at ou o Zeca, o Pei xot o, o Jer ôni mo? E não est i car am a canel a t odos t r ês? - O dout or For t unat o, ent ão. . . - O For t unat o! Já esqueceu você do que me el e f ez por ocasi ão do j úr i , o t r anca? Cobr ar c i nqüent a mi l r éi s por um at est ado f al so? Não me pi l ha mai s um v i nt ém, o pi r at a. . . No dout or El esbão não se f al ou: er a adver sár i o pol í t i co. - Chama- se o Gal eno. . . - É t ão mosca- mor t a o Gal eno. . . - gemeu o doent e com car a de desconsol o. - Andou anos a t r at ar o Far i a do Hot el como di abét i co, e j á o dava por mor t o quando um

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cur andei r o da r oça o pôs saní ssi mo com um coco da Bahi a comi do em j ej um. Er am sol i t ár i as o di abet es do homem. . . Só se vi ver o f i l ho do I náci o?! Aqui f oi a mul her quem pr ot est ou. - Eu, a f al ar a ver dade, pr ef i r o a r ui ndade do Gal eno, a má sor t e do Mour a, e at é o El esbão. . . - Esse, nunca! . . . - i nt er r ompeu o vel ho, num assomo de r ancor pol í t i co. - . . . do que a ant i pat i a do t al dout or z i nho. Os out r os ao menos t êm a exper i ênci a da vi da, ao passo que est e. . . - Est e, quê? - Est e, Mendanha, é moço boni t o, que o que quer é di nhei r o e pândega, você não vê? - Qual ! . . . - ember r i nchou o t ei moso. - Sempr e há de saber um pouco mai s que os vel hos; apr endeu coi sas novas. No caso de Nhazi nha Leandr o, não a pôs boa num ápi ce? - Também que doença! Pr i são de vent r e. . . URUPÊS 93 - Sej a pr i são ou sol t ur a, o caso f oi que a cur ou. Mande chamar o meni no. - Ol he, ol he! Depoi s não se ar r ependa! . . . - Mande, mande chamá- l o e j á, que não me est ou sent i ndo bem. I naci nho vei o. I nt er r ogou det i dament e o maj or , t omoul he o pul so, auscul t ou- o com o sembl ant e car r egado e di sse, depoi s de l onga pausa: - Não di agnost i co por enquant o, por que não sou l ev i ano como " cer t os" por aí . Sem auscul t ação est et oscópi ca nada posso di zer . Vol t ar ei mai s t ar de. - Vê? - di sse Mendanha à esposa l ogo que o moço par t i u. - Fosse o Mour a, ou qual quer dos t ai s , e j á dal i da por t a vi nha ber r ando que er a i st o mai s aqui l o. Est e é consci enci oso. Quer f azer uma auscul t ação, quê? - Est er eoscópi ca, par ece. - Sej a o que f or . Quer f azer a coi sa pel o di r ei t o, é o que é. Vol t ou o moço l ogo depoi s e com gr ande cer i moni al apl i cou o i nst r ument o no pei t o magr o do doent e. Vi ncou de novo a f i s i onomi a das r ugas da concent r ação e concl ui u com i mponent e sol eni dade. - É uma per i car di t e aguda agr avada por uma f l egmasi a hepát i co- r enal . O doent e ar r egal ou o ol ho. Nunca i magi nar a que dent r o de si mor assem doenças t ão boni t as, embor a i ncompr eensí vei s . - E é gr ave dout or ? - per gunt ou a mul her , assust ada. - É e não é! - r espondeu o sacer dot e. - Ser i a gr ave se, modést i a de l ado, em vez de me chamar em a mi m chamassem a um desses mat assanos que por aí r abul ej am. Comi go é di f er ent e. Ti ve no Ri o, na cl í ni ca hospi t al ar , numer osos casos mai s gr aves e a nenhum per di . Fi que descansada que por ei o seu mar i do compl et ament e são dent r o de um mês. - Deus o ouça! - r emat ou a mul her , acompanhando- o at é a por t a e j á mei o r econci l i ada com a " ant i pat i a" . - Ent ão? - per gunt ou- l he o doent e. - Fi z ou não f i z bem em chamar est e moço?

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- Par ece. . . Deus quei r a t enhamos acer t ado, por que i st o de médi cos é sor t e. - Não é t ant o assi m - r egui ngou o vel ho. - Os que sabem, conhecem- se por mei a dúzi a de pal avr as, e est e moço, ou mui t o me engano ou sabe o que di z . Fosse o For t unat o. . . E r i u- se l á consi go ao i magi nar as doenci nhas casei r as que o For t unat o descobr i r i a nel e. . . A doença do maj or Mendanha ni nguém soube qual f osse. O l i ndo di agnóst i co de I naci nho não passava de mer a sonor i dade pel i nt r a. Bacor ej ar a ao moço que o vel ho t i nha o cor ação f r aco e qual quer mar omba no f í gado. I s t o por que l he doí a, a el e, aqui no " vazi o" ; aqui l o por ser nat ur al . Conf essá- l o com est a sem- cer i môni a, por ém, ser i a f azer c l í ni ca à moda do For t unat o, e desmor al i zar - se. Al ém do mai s, quem sabe l á se não est ar i a al i o sonhado l ance? Pr ol ongar a doença. . . Engor dar a maqui a. . . I náci o não enxer gava em Mendanha o doent e, mas uma boi ada mai or ou menor , conf or me a habi l i dade do seu j ogo. A saúde do vel ho i mpor t ava- l he t ant o como as est r el as do céu - exceção f ei t a à " Cabel ei r a de Ber eni ce" . Como desador asse a medi c i na, não vendo nel a mai s que um mei o r ápi do de enr i quecer , nem sequer l he i nt er essava o " caso cl í ni co" em si , como a mui t os. Quer i a di nhei r o, por que o di nhei r o l he dar i a Par i s , com Yvonne de l ambuj a. Or a, o maj or t i nha t r ezent as apól i ces. . . Dependi a poi s da sua ar t i manha mal abar i zar aquel e f í gado, aquel e cor ação, aquel as pal avr as gr egas e, num pr est i di gi t ar manhoso, r eduzi r t udo a uns t ant os cont os de r éi s bem sonant es. Mandou car t a à f r ancesi nha: " Os negóci os mel hor ar am. Est ou met i do em uma empr esa que se me af i gur a r endosa. Sai ndo t udo a cont ent o, t enho esper anças de i nda est e ano bei j ar - t e sob a l uz da t er na conf l uent e dos nossos ol har es. . . " O vel ho pi or ou com a medi cação. I nj eções hi podér mi cas, cápsul as, pí l ul as, poções, não houve t er apêut i ca que se não exper i ment asse desast r osament e. - É mai s gr ave o caso do que eu supunha - di sse o dout or à mul her - e os escr úpul os do meu sacer dóci o aconsel ham- me a pedi r conf er ênci a médi ca. Os col egas da t er r a são o que a senhor a sabe; ent r et ant o, submet o- me a ouvi - l os. - Não, dout or ! Mendanha não quer ouvi r f al ar nos seus col egas; só t em conf i ança no dout or I náci o Gama. - Nesse caso. . . I naci nho vol t ou par a casa esf r egando as mãos. Est ava só em campo, com t odos os vent os f avor ávei s. Par i s cor r i al he ao encont r o. . . Mau gr ado seu, na semana segui nt e, i nesper adament e, o r ai o do maj or apr esent ou mel hor as. Sar ava, o pat i f e! E a I náci o pal pi t ou que com mai s uma qui nzena daquel a ar r i bação o homem se punha de pé. Fez os cál cul os: t r i nt a vi s i t as, t r i nt a i nj eções e t al e t al : t r ês cont os. Uma mi sér i a! Se mor r esse, j á o caso mudava de f i gur a, poder i a ex i gi r v i nt e ou t r i nt a. Er a cost ume dos t empos f azer em- se os médi cos her dei r os dos c l i ent es. Ser vi ços pagos em caso de cur a aí com cent enas de mi l r éi s , em caso de mor t e r eput avam- se em cont os. Se os i nt er essados r el ut avam no pagament o, a quest ão subi a aos

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t r i bunai s, com base no ar bi t r ament o. Os ár bi t r os, mest r es do mesmo of í ci o, sust ent avam o pedi do por col egui smo, di zendo em l at i m: Hodi e mi hi , cr as t i bi , cuj a t r adução médi ca é: pr epar e- se você par a me f azer o mesmo, que t ambém pr et endo dar a mi nha car t ada. I náci o ponder ou t udo i s t o. Medi u pr ós e cont r as. Consul t ou acór dãos. E t ão absor vi do no pr obl ema andou que à noi t e se dei xava f i car à j anel a at é t ar de, mer gul hado em ci smas, sem er guer os ol hos par a a Ber eni ce est el ar . O que a sua cabeça pensou ni nguém o saber á j amai s. Têm as i déi as par a escondê- l as a cai xa cr ani ana, o cour o cabel udo, a gr enha: i sso por c i ma; pel a f r ent e t êm a ment i r a do ol har e a hi pocr i s i a da boca. Assi m ent r i nchei r adas, el as, j á de si i mat er i ai s, f i cam i nexpugnávei s à ar gúci a al hei a. E vai ni sso a pouca de f el i c i dade exi st ent e nest e mundo subl unar . Fosse possí vel l er nos cér ebr os cl ar os como se l ê no papel e a humani dade cr i spar - se- i a de hor r or ant e s i pr ópr i a. . . Posi t i vo como er a I naci nho, supomos que met eu em equação o pr obl ema das duas v i das. Pr i mei r a hi pót ese: Cur a do maj or = t r ês cont os. Tr ês cont os = I t aoca, pasmacei r a, et c. . . Segunda hi pót ese: Mor t e do maj or = t r i nt a cont os. Tr i nt a cont os = Par i s , Yvonne, " Boi s" . . . Depoi s dest a sól i da mat emát i ca, est a anaval hant e f i l osof i a. " A mor t e é um pr econcei t o. Não há mor t e. Tudo é v i da. Mor r er é t r ansi t ar de um est ado par a out r o. Quem mor r e, t r ansf or ma- se. Cont i nua a v i ver i nor gani cament e, t r ansmut ado em gases e sai s, ou or gani cament e, f ei t o l ucí l i as, necr óf or as e uma cent ena de out r as v i di nhas esvoaçant es. Que i mpor t a par a a uni ver sal har moni a das coi sas est a ou aquel a f or ma? Tudo é v i da. A v i da nasce da mor t e. Eu pr eci so, eu ' quer o' v i ver a mi nha v i da. Há óbi ces no cami nho? Af ast o- os. . . " Fi quemos por aqui . Não há t empo par a f i l osof i as, por que o maj or Mendanha pi or ou subi t ament e e l á agoni za. Mor r eu. O at est ado de óbi t o deu como causa mor t i s f l egmat i t e compl i cada com necr ose el i psoi dal . Podi a bat i zá- l a de embol i a est our ada, nó cego na t r i pa, t uber cul ose mesent ér i ca, est upor gr anul oso per i s t ál t i co ou qual quer out r o dos cem mi l modos de mor r er à gr ega. Mor r eu, e est á di t o t udo. Mor r eu, e o dout or I naci nho apr esent ou no i nvent ár i o uma cont a de chegar : t r i nt a e ci nco cont os de r éi s . Os her dei r os i mpugnar am o pagament o. Move- se a t r aqui t ana da Just i ça. Mói - se o pal avr eado t abel i onesco. Saem das est ant es car unchosos t r abucos r omanos. Pr ocede- se ao ar bi t r ament o. Os ár bi t r os são For t unat o e Mour a, os quai s di sser am ent r e si : - Que gr ande vel haco! Mat a o homem e ai nda por ci ma quer f i car - se her dei r o! O t r at ament o, al t o- e- mei o, não

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val e cem mi l r éi s . Que val ha duzent os. Que val ha um cont o ou t r ês. Mas t r i nt a e c i nco? É ser l adr ão! . . . No l audo, ent r et ant o, achar am r el at i vament e módi co o pedi do - sem di zer r el at i vo a quê. A Just i ça engol i u aquel e papel , gest ou- o com out r os i ngr edi ent es da pr axe e, a cabo de pr azos, par t ej ou um monst r oz i nho chamado sent ença, o qual obr i gava o espól i o a al i v i ar - se de t r i nt a e c i nco cont os de r éi s em pr ovei t o do médi co, mai s cust as da esvur madei a f or ense. I naci nho, r adi ant e, embol sou os cobr es e r econci l i ou- se com os doi s col egas que, af i nal de cont as, não er am os cr et i nos que supuser a. - Col egas, o passado, passado; agor a, par a a vi da e par a a mor t e! - Poi s est á vi s t o! - di sse For t unat o. - Tol o andou você em abr i r l ut a com os que aj udam o negóci o. O col egui smo: ei s a nossa gr ande f or ça! . . . - Tem r azão, t em r azão. Cr i ançada mi nha, i l usões, f ar of as que a i dade cur a. . . Que mai s? Que voou a Par i s? É cl ar o. Voou e l á est á sob o pál i o da gr enha ast r al , a passear com a Yvonne no " Boi s" . k Ao pai escr eveu: - I st o é que é vi da! Que c i dade! Que povo! Que c i v i l i zação! Vou di ar i ament e à Sor bonne ouvi r as l i ções do gr ande Doyen e oper o em t r ês hospi t ai s . Vol t ar ei não sei quando. Fi co por cá dur ant e os t r i nt a e c i nco cont os, ou mai s, se o pai ent ender de auxi l i ar - me nest e aper f ei çoament o de est udos. A Sor bonne é o apar t ament o em Mont mar t r e onde compar t i l ha com o apache da Yvonne o di a da r apar i ga. Os t r ês hospi t ai s são os t r ês cabar és mai s à mão. Não obst ant e, o pai c i smou naqui l o chei o d' or gul ho, embor a pesar oso: não est ar vi va a Joaqui ni nha par a ver em que al t ur a pai r ava o Ni co - o Ni co do sanhaço est r i pado. . . Em Par i s ! Na Sor bonne! . . . Di scí pul o quer i do do Doyen, o gr ande, o i menso Doyen! . . . Most r ou a car t a aos médi cos r econci l i ados. - I sso de hospi t ai s - gemeu o i nvej oso For t unat o - é uma mi na. Dá nome. Par a bot ar nos anúnci os é de pr i mei r í ssi ma. - E o Doyen? - mur mur ou, baboso, o embeveci do pai . - Não há como a gent e apr opi nquar - se das cel ebr i dades. . . - É i sso mesmo, concl ui u o Mour a, r el anceando um ol har ao For t unat o num coment ár i o mudo àquel e mi r í f i co apr opi nquament o. E os doi s enxugar am, à uma, os copos da cer vej a comemor at i va mandada abr i r pel o bem- avent ur ado cor onel . Bucól i ca Tant a chuva ont em! . . . O cedr ão do past o f endi do pel o r ai o - e hoj e, que manhã! A nat ur eza or val hada t em a f r escur a de uma cr i anci nha ao dei xar o banho. I nda há r ol os de cer r ação vadi a nas gr ot as. O sol j á nado e el a com t ant a pr egui ça de r ecol her os véus de nebl i na. . . A veget ação t oda a pi ngar or val ho, bi sbi l hant e de got as que caem e t r emel i cam, sor r i como em êxt ase. Há em cada ver gônt ea f ol hi nhas de esmer al da t enr a

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br ot adas dur ant e a noi t e. A mão de quem passa não r es i st e: col he- as de al cance, por que é um gost o mor di scar - l he a pol pa maci a. Meu Deus! O que vai de ar anhói s pel a r el va - nos gal hi nhos de j oveva, nas f l echas de capi m, gr andes e pequeni nos, t odos mi mosos de desenho, t ec i dos a f i o de seda. . . Compr az- se a noi t e em agr umar nel es mi l hões de di amant ezi nhos que a l uz da manhã i r i sa. Mal mequer es por t oda a par t e - amar el os, br ancos. E t ant a f l or sem nome. . . - Fl or à- t oa, di z a gent e r ocei r a. São, coi t adi nhas, a pl ebe humí l i ma. A nobr eza f l or al mor a nos j ar di ns, espl endendo cor es de dança ser pent i na sob f or mas l uxur i osas de odal i scas. A duquesa Dál i a, sua maj est ade a Rosa, o samur ai Cr i sânt emo - que f i dal gui a! Bem l onge est ão dest as aqui , azul egui nhas, um pouco mai or es do que uma cont a de r osár i o. Não obst ant e, vej o nest as mai s al ma. Lei o mi l coi sas na sua modést i a. Lut ar am sem t r éguas cont r a o sol o t r amado de r aí zes concor r ent es, cont r a as l agar t as, cont r a os bi chos que past am. Que t enaci dade, que pr odí gi o de economi a não r epr esent am est as i scas de pét al as, e o per f ume agr est e que as ol or i za, e a cor - t ent at i va de azul - com que se enf ei t am, as f ei t i cei r i nhas! São bel as, s i m - da sua bel eza, a bel eza sel vát i ca das coi sas que j amai s sof r er am a domest i cação do homem. As f l or es de j ar di m: escr avas de har ém. . . Adubo f ar t o, t er r a l i vr e, t ut or es par a a hast e, cui dados mi l - cui dados do homem par a com a r ês na ceva. . . As agr est es mor r em l i vr es no hast i l mat er no; as f i dal gas, na gui l hot i na da t esour a. Fábul a do l obo e do cão. . . Que ar ! A gent e das c i dades, af ei t a a sor ver um i ndecor oso gás f ei t o de pó em suspensão num mi st o de mau azot o e pi or ox i gêni o, i gnor a o pr azer sadi o que é sent i r os pul mões bor bul hant es dest e f l ui do v i t al em est ado de v i r gi ndade. O oxi gêni o f r esqui nho f oi el abor ado naquel e moment o pel a veget ação v i çosa. Respi r á- l o é sor ver v i da à nascent e. Al i , o r i o. I ngazei r os desgal hados pendem sobr e el e as f r anças, cuj as pont as l he ar r epi am o espel ho das águas. Caem na cor r ent e f l or es mor t as. O movedi ço esqui f e condul as com mi mo at é a bar ul hent a cor r edei r a pr óxi ma; l á i r r i t ado, amar f anha- as, f á- l as pedaços - e as coi t adi nhas vi r am babugem. Mar gei a o r i o a est r ada, or a d' ocr e amar el o, or a r oxot er r a; aqui , t únel sob a ver dur a pi cada no al t o de nesgões de l uz; al ém, escampa. Nos bar r ancos há t ocos de r aí zes decepadas pel o enxadão e covas de f or mi guei r os mor t os onde as cor r uí r as ar mam ni nho. Sur gem casebr es de pal ha. Lá na aguada bat e r oupa uma mul her . Rumor no mat o. . . Sai del e, de l enha ao ombr o, uma cabocl a. - Si r i nh' Ana, bom di a! Que é do Lui z? - No ei t o, coi t ado. - Sar ou bem? - Chê que esper ança! Mel hor zi nho. Panar í c i o é uma f est a! . . . Bai t acas em bando, bul hent as, a sumi r em- se num

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capão d' anj i co. Bor bol et as amar el as nos úmi dos. Par ece um debul ho de f l or es de i pê. Uma pr eá que cor t a o cami nho. - Pega, Vi nagr e! Out r a casi nha, l á l onge. E a t oca do Ur unduva, cabocl o mal ei t ei r o. Est e di abo t em no sí t i o a coi sa mai s bel a da zona - a pai nei r a gr ande. Di r i j o- me par a l á. Um car r ei r i nho ent r e r oças, a pi nguel a, um val o a sal t ar . . . Ei - l a! Que mar avi l ha! Der r eada de f l or es cor - de- r osa, par ece uma só i mensa r osa cr espa. Bei j a- f l or es como al i ni nguém j amai s v i u t ant os. Mi l hei r os não di go - mas cent enas, uma cent ena pel o menos l á est á zuni ndo. Chegam de l onge t odas as manhãs enquant o dur a a f est a f l or al da pai nei r a mãe. Voej am r ápi dos como o pensament o, or a l i br ados no ar , sugando uma cor ol a, or a r i scando cur vas vel ocí ssi mas, em t r abal hos de amor . Que l i ndo amor - al ado, r ut i l ant e de pedr ar i as! Respi r o um ar chei r oso, adoci cado, e f i co- me em enl evo a ver as f l or es que caem r egi r ant es. Se af i a mai s f or t e a br i sa, despegam- se em bando e r ecamam o chão. Devem ser assi m as ár vor es do paí s das f adas. . . O Ur unduva? É el e mesmo. Amar el o, i nchado a ar r ast ar a per na. . . - Ent ão, meu vel ho, na mesma? - Mel hor z i nho. A qui na sempr e é r emédi o. - I sso mesmo, qui na, qui na. - É. . . mas est á car a, pat r ão! Um vi dr i nho assi m, t r ês cr uzados. Est ou vendo que t enho de vender a pai nei r a. - Não vê que o Chi co Bast i ão dá dezoi t o mi l r éi s por el a - e i nda um capadi nho de chor o. Como est e ano car r egou demai s, vem pai na p' r ' ar r obas. El e quer apr ovei t ar ; der r uba o. . . Der r uba! . . . - Der r uba e. . . - Por que não col he a pai na com var a, homem de Deus? - Não vê que é mai s f ác i l de der r ubar . . . - Der r uba! . . . Fuj o dal i com est e hor r í vel som a azoi nar - me a cabeça. Aquel a mal ei t a ambul ant e é " dona" da ár vor e. O Ur unduva est á c l ass i f i cado no gêner o " Homo" . Goza de di r ei t os. É r ei da cr i ação e di zem que f ei t o à i magem e semel hança de Deus. Roças de mi l ho. A t er r a cal ci nada, com as ci nzas escor r i das pel o aguacei r o da vésper a, i nça- se de t ocos car boni zados, e ár vor es enegr eci das at é mei a al t ur a, e paul ama em car vão. Ent r emei o, covas de mi l ho j á espont ando f ol hi nhas t enr as. - Der r uba! . . . Adi ant e, f ei j ão. O t er r eno var r i do, cor de sépi a, pont i l hado pel o ver de das pl ant as r ecém- vi ndas, l embr a chi t a de vel ha: as vel has gost am de chi t as escur as com pi nt as ver des. É aqui o sí t i o da Mar i a Veva. Tem r ui m f ama est a mul her papuda. Má at é al i , di zem. O mar i do - coi t ado - um bobo que anda pel o cabr est o - Pedr o Suã. Ganhou est e apel i do desde o cél ebr e di a em

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que a mul her o sur r ou com um suã de por co. Lá vem el e, de espi ngar di nha. . . - Vai caçar ? - Ant es f osse. Vou cui dar do ent er r o. - Ent er r o?. . . - Poi s mor r eu l á a meni na, a Ani ca. - Pobr ezi nha! De quê? - A gent e sabe? Mor r eu de mor t e. . . Est úpi do! Sem quer er , di r i j o- me par a a casa del e. Não gost o da Veva. É hor r enda, bei ço r achado, ol har mau - e aquel e papo! - Ent ão, Nhá, mor r eu a meni na? Soube- o i nda agor a pel o Suã. . . - É. Que r espost a seca! - E de que mor r eu? - Deus é que sabe. Pest e! E como a at r ev i daça me ol ha dur o! Si nt o- me mal em sua pr esença. - Adeus, Si cor ax! Par a al guma coi sa si r va a l i t er at ur a. . . Ar r epi o cami nho, ent r i s t ec i do. A manhã vai al t a, j á cr ua de l uz. O sol , est úpi do; o azul , de i r r i t ar . Que é dos ar anhói s? Sumi r am-se com o or val ho que os vi s i bi l i za. Est ão agor a i nv i s í vei s, a apanhar i nset i nhos i ncaut os que Nhá Veva Ar anha devor a. A pai sagem per deu o encant o da f r escur a e da br uma. Est á um l ugar comum. Não vej o f l or es nem pássar os. O excesso de l uz di l ui as f l or es, o cal or esconde as aves. Só um car acar á r es i st e ao mor maço, empol ei r ado num t r onco seco de per oba. Est á de t ocai a aos pi nt os do Ur unduva, o r api nant e. Um vul t o. . . É mul her . . . Ser á a I náci a? Vem de t r ouxa à cabeça. É el a mesma, a pr et a agr egada aos Suãs. - Ent ão, r apar i ga? - Ai , seu moço, vou- me embor a. Al guém há de t er dó da vel ha. Na casa da pest e papuda, nem mai s um di a! Ant es mor r er de f ome. . . - Que coi sa houve? - Não sabe que mor r eu a al ei j adi nha? Poi s é, mor r eu. Mor r eu, a pobr e, só por que ont em est a sua negr a f oi no bai r r o do Li bór i o e a chuva me pr endeu l á. Se eu pudesse adi vi nhar . . . - Mas de que mor r eu a meni na, cr i at ur a? - Sabe do que mor r eu? Mor r eu. . . de sede! Mor r eu, s i m, eu j ur o, um r ai o me par t a pel o mei o se a coi t adi nha não mor r eu. . . Aqui sol uços de chor o cor t ar am- l he a voz. - . . . de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gent e não vê nest e mundo! A meni na er a ent r evada e a mãe, má como a i r ar a. Di zi a sempr e: Pest i nha, por que não mor r e? Boca à- t oa, a comer , a comer . Est i ca o cambi t o, di abo! I s t o di z i a a mãe - mãe, hei n? A I náci a, ent r et ant o, mor ava l á só par a zel ar da al ei j adi nha. Er a quem a vest i a, e a l avava, e ar r umava o pr at i nho daquel e passar i co enf er mo. Set e anos assi m. Excel ent e negr a! - Coi sa de t r ês di as ' gar r ou uma doenci nha, dor de

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cabeça, f ebr e. Dei chá de hor t el ã; nada. Dei ci dr ei r a; nada. Sempr e a quent ur a da f ebr e. Di sse comi go: " Vou l á no bai r r o e t r ago uma dose. " Fui , é l ongi nho, t r ês quar t os de l égua. O cur ador me deu a dose, mas quem di sse de poder vol t ar ? Uma chuvar ada. . . Pousei no Li bór i o. Hoj e, manhãzi nha, v i m. Ent r ei al egr e, pensando: a coi t adi nha vai sar ar . Eu que pi sei na al cova, dou com a meni na espi chada na est ei r a, f r i a. Ani ca! Ani ca! Quando vi bem que est ava mor t a de ver dade, ah, seu moço, ber r ei como nunca na mi nha v i da. - " Nhá Veva, de que j ei t o mor r eu Ani ca, cont e, cont e! " Nhá Veva qui et a, r epuxando a boca. Uma pedr a! Caí em ci ma da meni na, bei j ei , chor ei . Ni st o, uma cut ucada er a o Zi co, aquel e negr i nho, sabe? Ol hei p' r a el e: f ez j ei t o de me f al ar l onge da t at ur ana. Lá f or a me cont ou t udo. A meni na, des ' que eu saí pi or ou. Mas qui et i nha sempr e. Noi t e al t a, gemeu. - " Cal a a boca, pest e! " , gr i t ou do out r o quar t o a mãe - mãe, vej a! - " Quer o água, nhá mãe. " - " Cal a a boca, pest e! " A meni na cal ou. Mai s t ar de gemeu out r a vez, bai x i nho. - " Quer o água! Quer o água! " Ni nguém se mexeu. - " E t u, negr i nho saf ado, por que não acudi u a meni na?" - " Não vê! Eu conheço Nhá Veva! . . . " Seu Pedr o, aquel e t r apo, esse est ava na pi nga de t odo di a. Ni nguém na casa par a chegar uma caneca d' água à boca da doent i nha. El a, um chor i nho ai nda; depoi s, mai s nada. De manhã. . . Lágr i mas escor r i am a f i o pel a car a da pr et a e sol uços de dor cor t avam- l he as pal avr as. - De manhã f or am encont r ar a meni na mor t a na cozi nha, r ent e ao pot e d' água. Ar r ast ou- se at é l á, o anj i nho que nem se mexer na cama podi a - e mor r eu de sede di ant e da água! . . . - Quem sabe se. . . - Não bebeu, não! O pot e, em c i ma da cai xa, f i cava al t o, e a caneca est ava t al e qual no l ugar z i nho do cost ume. Não bebeu, não! Mor r eu de sede, o anj o! Enxugou as l ágr i mas na manga. - Agor a vou no Li bór i o. Se el e me qui ser , f i co. Se não, sou bem capaz de me pi nchar nesse r i o. Est e mundo não paga a pena. . . Sol a pi no. Desâni mo, l ass i dão i nf i ni t a. . . O mat a- pau Pí ncar os ar r i ba e pi r ambei r as abai xo, a ser r a do Pal mi t al escur ece de mat ar i a v i r gem, sombr i a e úmi da, t r amada de t aquar uçus, af est oada de t aquar i s , com gr andes ár vor es vel has de cuj os gal hos pendem ci pós e escor r em bar bas- depau e musgos. . Quem sobe da vár zea, depoi s de t r anspost as as capoei r as da r ai z , ao emboscar - se de chof r e no f r i o t únel veget al que é al i a est r ada, i nevi t avel ment e espi r r a. E se é homem das c i dades, pouco af ei t o aos aspect os br avi os do ser t ão, depoi s do espi r r o abr e a boca, pasmado da paul ama. Ext as i a- se ant e a gr aci osa copa dos samambai uçus, ant e as bor bol et as azui s, ant e as or quí deas, os l i quens, t udo.

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Sof r ea o ani mal sem o sent i r mas não pár a. Vai par ar di ant e, na Vol t a Fr i a, onde um br ot o d' água gel ada, a f l ui r ent r emei o às pedr as, o t ent a a sor ver um gol e apar ado em f ol ha de caet é. Bebi da a água, e di t o que nas c i dades não há daqui l o, l eva- l he a v i s t a o sober bo mat a- pau que domi na o gr ot ão. - Que r ai o de ár vor e é est a? - per gunt a el e ao capat az, pasmado mai s uma vez. E t em r azão de par ar , admi r ar e per gunt ar , por que é duvi doso exi st i r naquel as ser t ani as exempl ar mai s t r ucul ent o da ár vor e assassi na. Eu, de mi m, conf esso, f i z as t r ês coi sas. O camar ada r espondeu à t er cei r a; - Não vê que é um mat a- pau. - E que vem a ser o mat a- pau? - Não vê que é uma ár vor e que mat a out r a. Começa, quer ver como? - di sse el e escabi chando as f r ondes com o ol har agudo em pr ocur a dum exempl ar t í pi co. Est á al i um! - Onde? - per gunt ei , t ont o. - Aquel e f i api nho de pl ant a, al i no gancho daquel e cedr o - cont i nuou o c i cer one, apont ando com dedo e bei ço uma par asi t a mesqui nha gr udada na f or qui l ha de um gal ho, com doi s f i l ament os escor r i dos par a o sol o. - Começa assi nz i nho, mei a dúzi a de f ol has pi qui r as; bot a p' r a bai xo esse f i o de bar bant e na t enção de pegar a t er r a. E vai i ndo, sempr e naqui l o, nem p' r a mai s nem p' r a menos, at é que o f i o al cança o chão. E vai ent ão o f i o v i r a r ai z e pega a beber a sust ânci a da t er r a. A par asi t a cr i a f ôl ego e cr esce que nem embaúva. O bar bant i nho engr ossa t odo di a, passa a cor del , passa a cor da, passa a pau de cai br o e acaba vi r ando t r onco de ár vor e e mat ando a mãe, como est e guampudo aqui - concl ui u, dando com o cabo do r el ho no meu mat a- pau. - Com ef ei t o! - excl amei admi r ado. - E a ár vor e dei xa? - Que é que há de f azer ? Não desconf i a de nada, a boba. Quando vê no seu gal ho uma i sca de quat r o f ol hi nhas, i magi na que é par asi t a e não se pr ecat a. O f i o, pensa que é ci pó. Só quando o mal vado ganha al ent o e gar r a de engr ossar , é que a ár vor e sent e a dor dos aper t os na casca. Mas é t ar de. O poder oso daí por di ant e é o mat a- pau. A ár vor e mor r e e dei xa dent r o del e a l enha podr e. Er a aqui l o mesmo! O l enho gor do e v i çoso da pl ant a f ac i nor osa envol v i a um t r onco mor t o, a desf azer - se em car coma. Vi am- se por el e ar r i ba, i nt er val ados, os t er r í vei s c í ngul os est r angul ador es; i nút ei s agor a, desempenhada j á a mi ssão const r i t or a, j az i am f r ouxos e at r of i ados. I magi nação envenenada pel a l i t er at ur a, pensei l ogo nas ser pent es de Laocoont e, na ví bor a aqueci da no sei o do homem da f ábul a, nas f i l has do r ei Lear , em t odas as f i gur as cl áss i cas da i ngr at i dão. Pensei e cal ei , t ant o o meu companhei r o er a cr i at ur a si mpl es, pur a dos ví c i os ment ai s que os l i vr os i nocul am. Encaval gamos de novo e par t i mos. Não l onge dal i a ser r a compl ana- se em r echã e a mat a mi ngua em capoei r a r al a, no mei o da qual , em t er r ei r o descoi var ado, ent r emost r a- se uma t aper a. Esver dece o mel ão- de- são- caet ano por sobr e o der r uí do t apume do qui nt al ej o, onde l ar anj ei r as com er va- de-

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passar i nho e uma ou out r a pl ant a domést i ca mar asmam agoni adas pel o mat o suf ocant e. - Ant i go sí t i o do El esbão do Quei xo d' Ant a, expl i cou o camar ada. - Lar gado? - per gunt ei . - Há que anos! Des' que mat ar am o homem f i cou assi m. Bacor ej ou- me hi st ór i a como as quer o. - Mat ar am- no? Cont e l á i sso como f oi . O camar ada cont ou a hi s t ór i a que par a aqui t r as l ado com a possí vel f i del i dade. O mel hor del a evapor ou- se, a f r escur a, o cor r ent i o, a i ngenui dade de um caso nar r ado por quem nunca apr endeu a col ocação dos pr onomes e por i sso mesmo nar r a mel hor que quant os por aí sor vem l i t er at ur as i nt ei r as, e gr amát i cas, na ânsi a de adqui r i r o est i l o. Gr andes f ol het i ni st as andam por est e mundo de Deus per di dos na gent e do campo, i ngr amat i cal í ssi ma, por ém pi t or esca no di zer como ni nguém. El esbão mor ava com o pai no Quei xo d' Ant a, onde nascer a. Quando a puber dade l he engr ossou a voz, di sse ao vel ho: - Meu pai , quer o casar . O pai ol hou par a o f i l ho pensat i vament e; em segui da f al ou: - Passar i nho cr i a pena é par a voar . Se você j á é homem, case. O r apaz pedi u- l he que pusesse em pr ova a sua vi r i l i dade. O pai r ef l et i u e di sse: - Der r ube o j at aí da gr ot i nha, sem t omar f ôl ego. El esbão af i ou o machado, ar r egaçou as mangas e f er i u o pau. Em t oada de compasso, bat eu f i r me a manhã i nt ei r a. À hor a do al moço, o pan pan cont i nuava sem esmor eci ment o. Só quando o sol apr umou no pi no é que a madei r a gemeu o pr i mei r o est al i do. - Est á no chão - di sse o pai , que se acer car a do f i l ho exaust o mas vi t or i oso. - Pode casar . É homem. El esbão t r az i a d' ol ho uma meni na das r edondezas, f i l ha do bal ai ei r o João Poca, a Rosi nha, bi l r o sapi r oquent o de t r eze anos, f ei osa como um r ast ol ho. - Meu pai , eu quer o a Rosi nha Poca. - Case. Mas ouça o que di go. Os Pocas não são boa gent e. Os machos ai nda ser vem - o João é um coi t ado, o Pedr o não é má bi sca; mas as sai as nunca val er am nada. A mãe da Rosa é f al ada. Lar anj ei r a azeda não dá l ar anj a- l i ma. Você pense. - Meu pai , o f ut ur o é de Deus. Eu quer o casar com a Rosi nha. - Poi s case. Del i ber ado com t al f i r meza, El esbão t r at ou de s i t i ar - se. Ar r endou a r echã da t aper a, r oçou, der r ubou, quei mou, pl ant ou, ar mou a choça. Bar r eadas que f or am as par edes, pedi u a meni na e casou- se. Rosa só o er a no nome. No cor po, si mpl es bot ão i nver ni ço, desses que mel am aos f r i os ext empor âneos de mai o. Ol hos cozi dos e nar i z ar r ebi t ado, t al qual a mãe. Fei a, mas da f ei úr a que o t empo às vezes conser t a. Tal vez se f i asse ni sso o noi vo. El esbão, r i j o no t r abal ho, pr osper ou. Aos t r ês anos de l abut a er a j á s i t i ant e de monj ol o, escar oçador e cevadei r a, ( 1) com doi s agr egados no ei t o.

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Pr ol e, at é esse t empo nenhuma; e i sso ent r i s t ec i a a casa. Mas r esi gnavam- se j á ao vazi o da est er i l i dade quando cer t a noi t e soou chor o de cr i ança no t er r ei r o. Não se cont a o t er r or de ambos - aqui l o er a na cer t a al ma penada de cr i ança mor t a pagã. Como, ent r et ant o, a pobr e al ma ber r asse com pul mões mui t o da t er r a, e cada vez mai s, El esbão duvi dou do br uxedo e, acendendo uma br açada de pal ha, l ançou- a f or a pel a j anel a. O t er r ei r o c l ar eou at é l onge e el es v i r am, a pouca di st ânci a, uma cr i at ur i nha de gat as a ber r ar com desesper o de quem é absol ut ament e dest e mundo. - E não é que é uma cr i ança de ver dade? - exc l amou el e, saí do de um assombr o e ent r ado nout r o. - E agor a? - Poi s é r ecol hê- l a, di sse Rosa, cuj o i nst i nt o de mul her só vi a no caso um pobr e enj ei t adi nho ao l éu, a r ec l amar conchego. Recol heu- o El esbão, depondo o chor i ncas no col o da esposa. Rosa o est r ei t ou ao sei o, acal mando- o, ao mesmo t empo que " assent ava" o mar i do. - Se não apar ecer a mãe, cr i a- se o apar eci do. Faz t ant a f al t a um chor i nho por aqui . . . No di a segui nt e bat er am nas v i zi nhanças em i ndagações, sem nada col her em expl i cat i vo do est r anho caso. Resol ver am, poi s, adot ar o pequeno. o pai de El esbão, consul t ado, ponder ou: - Não pr est a cr i ar f i l ho al hei o. Mas como o consul ent e ar masse car a de vaci l ação, r emendou l ogo a sua f i l osof i a: - Também não é car i dade enj ei t ar um enj ei t ado - e f i cou- se ni sso. Rosa conser vou o pequeno e deu com el e cr i ado à f or ça de l ei t e de cabr a e cal di nhos. À medi da, por ém, que medr ava, o meni no punha a nu a má í ndol e congeni al . Não pr omet i a boa coi sa, não. - Eu avi sei , r ecor dou o vel ho, como El esbão se quei xasse um di a da r ui m cast a do r ecol hi do. - Meu pai di sse t ambém que não er a car i dade enj ei t ar um enj ei t ado. . . - É ver dade, é ver dade. . . - conf i r mou o f i l ósof o de péno- chão, e cal ou-se. Manuel Apar eci do er a o nome do r apazi nho. Como t i vesse ol hos gat eados e cabel os l our os de mi l ho, denunci ador es de or i gem est r angei r a, puser am- l he os vi z i nhos a al cunha de Ruço. Ganhou f ama de madr aço, e o er a per f ei t o, i ni mi go de enxada e f oi ce, só at ent o a negoci at as, bar ganhas, esper t ezas. Amado pel a Rosa como f i l ho, l i v r ava- o el a da sanha do esposo escondendo suas mal andr agens, por que El esbão v i vi a ameaçando endi r ei t á- l o a r abo de t at u. Não endi r ei t ou coi sa nenhuma. Com dezoi t o anos er a o Ruço a pest e do bai r r o, at ar ant ador dos pací f i cos e t r ai çoei r o par a com os escor ador es. - É r ui m i nt ei r ado! - di zi a o povo. Por esse t empo navegava Rosa na casa dos t r i nt a anos. Como a não est r agar am f i l hos, nem se est r agou el a em gr ossei r os t r abal hos de r oça, val i a mui t o mai s do que em meni na. O t empo cur ou- l he a sapi r oca, e deu- l he car nes a boa v i da. De t al f or ma conser t ou que t odo o mundo gabava o ar r anj o.

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- Ni nguém per ca a esper ança. Ol hem a mul her do El esbão, aquel a Poqui nha sapi r oquent a, como est á chi bant e! . . . A sua boni t eza r es i di a na saúde dos ol hos e na gor dur a. Na r oça, gor dur a é s i nôni mo de bel eza - gor dur a e " ol hos azui s que nem uma cont a" . . . Al ém di sso, Rosi nha cui dava de s i . Vi r ou f acei r a. Sempr e l i mpa, vest i da de boas chi t as da sua cor , cabel os bem al i sados par a t r ás, t or c i dos em per i cot e l ust r oso à f or ça de pomada de l i ma, não havi a na ser r a pi mpona assi m nem moça de f azenda com pai cor onel . Suas r el ações com o Ruço, mat er nai s at é al i , pr i nc i pi ar am a mudar de r umo, como quer que espi gasse em homem o meni no. Por f i m degener ar am em namor o - medr oso no começo, descar ado ao cabo. A má cast a das Pocas, desment i da no decur so da pr i maver a, r eaf i r mava- se em pl ena sazão cal mosa. O ver ão das Pocas! Que f or no. . . Tudo t r anspi r a. Tr anspi r ou nas r edondezas a f ei a mar omba daquel es amor es. Boas l í nguas, e más, boquej avam o quase i ncest o. Quem de nada nunca suspei t ou f oi o honr adí ss i mo El esbão; e como na por t a dos seus ouvi dos par avam os r umor es do mundo, a vi da das t r ês cr i at ur as cor r i a- l hes na t oada mansa a que se dá o nome de f el i c i dade. Foi quando cai u de cama o pai de El esbão, doent e de vel hi ce. Mandou chamar o f i l ho e f al ou- l he com voz de quem est á com o pé na cova: - Meu f i l ho, abr a os ol hos com a Poca. . . - Por que f al a assi m, meu pai ? O vel ho ouvi r a o zunzum da má vi da; vaci l ava, ent r et ant o, em abr i r os ol hos ao empul hado. Cor r eu a mão t r êmul a pel a cabeça do f i l ho, af agou- a e mor r eu sem mai s pal avr a. Sempr e f or a ami go de r et i cênci as, o bom vel ho. El esbão r egr essou ao sí t i o com aquel e avi so a ver r umar l he os mi ol os. Passou di as de car a amar r ada, acast el ando hi pót eses. Vendo o mar i do assi m demudado, casmur r o, de pr azent ei r o que er a, Rosa cai u em guar da. Chamou de banda o Ruço e di sse- l he: - Lesbão, des' que mor r eu o pai , anda amode que er vado. Mas não é sent i ment o, não. El e desconf i a. . . As vezes pega de ol har par a mi m dum j ei t o esqui s i t o, que at é me gel a o cor ação. . . Manuel segur ou o quei xo e r ef l et i u. Cont i nuar naquel a vi da er a ar r i scado. I r - se, pi or ; nada possuí a de seu e t r abal har par a out r em não er a com el e. Se El esbão mor r esse. . . Não se sabe se houve concer t o ent r e os amási os. Mas El esbão mor r eu. E como! Cer t a vez, de vol t a da v i l a pr óx i ma al i pel o escur ecer , cai u de bor co na Vol t a Fr i a, bar bar ament e f oi çado na nuca. Descobr i r am- l he o cadáver pel a manhã, bem r ent e ao mat a- pau. A j ust i ça, coi t adi nha, apal pou daqui e dal i , numa ceguei r a. . . Desconf i ou do Ruço - mas cadê pr ovas? Er a o Ruço mai s f i no que o del egado, o pr omot or , o j ui z - mai s at é que o v i gár i o da vi l a, um padr e gozador da f ama de enxer gar at r avés das par edes. . . A v i úva chor ou como mamoei r o l anhado - f osse de sent i ment o, de r emor so ou par a i l udi r aos out r os. Tal vez

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sem cál cul o nenhum pel os t r ês mot i vos. Manuel per maneceu na casa. Vi v i am como f i l ho e mãe, di z i a el a; como mar i do e mul her , r esmungava o povo. O sí t i o, por ém, ent r ou l ogo a desmedr ar . Comi am do pl ant ado, sem l embr ança de met er na t er r a novas sement es. O moço ambi c i onava vender as benf ei t or i as par a mer gul har no Oest e, e como Rosa r el ut asse deu de mal t r at á- l a. Est es amor es ser ôdi os são como a vi de: mai s j udi am del es, mai s r ev i çam. Às br ut al i dades do Ruço r espondi a a vi úva com r edobr os de car i nho. Seu pei t o madur o, onde o est i o no f i m anunci ava o i nver no pr óxi mo, chamej ava em f ogo br avo, desses que r oncam nas r et r anças dos t aquar uçuzai s. E i sso vi ngava El esbão, esse amor sem j ei t o, sem cont a, sem medi da, duas vezes cr i mi noso sobr e sacr í l ego e, o que er a pi or , abor r ec i do pel o f ací nor a, j á f ar t o. - Cor oca! Sapi cuá de def unt o! Cangal ha vel ha! Não havi a i nsul t o com o pi ão do veneno pl ant ado na not a da vel hi ce que l he não desf echasse, o monst r o. Rosa deper eceu a gal ope. Adeus, gor dur a! Boni t eza out oni ça, adeus! Sai as a r uf l ar t esas de goma, per i cot e l uz i di o r ecendent e a l i ma, quando mai s? - O Ruço dá cabo del a, como deu cabo do mar i do - e é bem- f ei t o. Voz do povo. . . Um di a o Ruço ameaçou de l ar gá- l a, se não vendesse t udo, j á e j á; e a pobr e mul her deu ao bandi do essa der r adei r a pr ova de amor . Vendeu por uma bagat el a o que r est ava acumul ado pel o esf or ço do def unt o - a moenda, o monj ol o, a casa, o canavi al em soca. E combi nar am par a o out r o di a o ambi c i onado mer gul ho na t er r a r oxa. Nessa noi t e Rosa desper t ou suf ocada por v i ol ent a f umacei r a. A casa ar di a. Sal t ou como l ouca da enxer ga e ber r ou pel o Ruço. Ni nguém l he r espondeu. At i r ou- se cont r a a por t a: est ava f echada por f or a. O i nst i nt o f ê- l a agar r ar o machado e r omper a f ur i osos gol pes as t ábuas r i j as. Escapa- se da f or nal ha, r ol a par a o t er r ei r o com as vest es em f ogo, pr ec i pi t a- se no t anque e, l i v r e das chamas, cai i ner t e par a um l ado - j ust ament e onde v i nt e anos at r ás vi r a o enj ei t adi nho chor ando ao r el ent o. . . Quando de manhã passant es a r ecol her am, est ava d' ol hos pasmados, muda. Levar am- na em maca par a o hospi t al , onde sar ou das quei madur as, mas nunca mai s do j uí zo. Foi f el i z , Rosa. Enl ouqueceu no moment o pr eci so em que seu v i ver i a t or nar - se pur o i nf er no. - E o Ruço? - Abal ou com o di nhei r o. . . Aí par ava a hi s t ór i a do El esbão, como a sabi a o meu camar ada. Um cr i me vul gar como os há na r oça às dezenas, se a l embr ança do mat a- pau o não col or i sse com t i nt as de sí mbol o. - Não é só no mat o que há mat a- paus! . . . - mur mur ei eu f i l osof i cament e, à gui sa de coment ár i o. O capat az ent r epar ou um moment o, como quem não ent ende. Depoi s abr i u na car a o ar de quem ent endeu e gost ou. - Não é por gabar , mas vosmecê di sse aí uma pal avr a

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que mer ece escr i t a. É t al e qual . . . E cal ou- se, de ol ho par ado, pensat i vo. 1915 Not a: Cei f adei r a: Apar el ho r úst i co de r al ar mandi oca. Bocat or t a A quar t o de l égua do ar r ai al do At ol ei r o começam as t er r as da f azenda de i gual nome, per t encent e ao maj or Zé Lucas. A mei o ent r e o povoado e o est i r ão das mat as v i r gens dor mi a de papo aci ma um f amoso pânt ano. Pego de i ns i di osa ar gi l a negr a f r al dej ado de vel hos guai ambés nodosos, a t aboa esbel t a cr esce- l he à t ona, vi çosa na f ol hagem er éct i l que as br i sas t r emel i cam. Pel a i nf l or escênci a, l ongas var as soer guem- se a pr umo, sust endo no ápi ce um chour i ço cor de t el ha que, mat ur ado, se esbr uga em pai na esvoaçant e. Cor r e ent r e seus t al os a bat uí r a de l ongo bi co, e sal t i t a pel as hast es a cor r uí r a- do- br ej o, cuj o ni nho boj udo se our i ça nos espi nhei r os mar gi nai s. For a di sso, r ãs, mi mbui as pensat i vas e, a r abear nas poças ver di nhent as de al gas, a t r aí r a, esse vor az esqual oz i nho do l odo. Um br ej o, enf i m, como cem out r os. Not abi l i za- o, por ém, a pr of undi dade. Ni nguém ao vê- l o t ão cal mo sonha o abi smo t r ai dor ocul t o sob a ver dur a. Doi s, t r ês bambus emendados que l he t ent em al cançar o f undo subver t em- se na l ama sem al çar pé. Al ém de vár i os ani mai s sumi dos nel e, cont a- se o caso do Si mas, por t uguês t ei moso que, na bi r r a de sal var um bur r o j á at ol ado a mei o, se v i u engol i do l ent ament e pel o bar r o mal di t o. Desd' aí f i cou o at ol ei r o gr avado na i magi nat i va popul ar como uma das bocas do pr ópr i o i nf er no. Tr anspost o o abi smo, a veget ação encor pa, at é f or mar a mat a por cuj o sei o cor r e a est r ada mest r a da f azenda. Na manhã daquel e di a passar a por al i o t r ol e do f azendei r o, de vol t a da ci dade. Al ém do vel ho, de sua mul her Don' Ana e de Cr i s t i na a f i l ha úni ca, v i nha a passei o o bachar el Eduar do, pr i mo l onge e noi vo da moça. Chegar am e agor a ouvi am na var anda, da boca do Var gas, f i scal , a not í c i a do sucedi do dur ant e a ausênci a. Já cont ar a Var gas do caf é, da puxada dos mi l hos e est ava na cr i ação. - Por cos t êm sumi do al guns. Uma l ei t oa r abi có e um capadet e mal hado dos " Pol ancham" , há duas semanas que moi t a. Par a mi m - ni nguém me t i r a da cabeça - o l adr ão f oi o negr o, i nda mai s que essa cr i ação cost umava se al ongar das bandas do br ej o. Eu est ou sempr e di zendo: é pr eci so t ocar de l á o r ai o do mal del azent o. Aqui l o, Deus me per doe, é bi cho r ui m i nt ei r ado. Mas não " quer em" me acr edi t ar . . . O maj or sor r i u àquel e " quer em" . Var gas, com oj er i za vel ha ao mí ser o Bocat or t a, não per di a ensanchas de l he at r i bui r mal ef í ci os e de est umar o pat r ão a cor r ê- l o das t er r as que aqui l o, Nossa Senhor a! at é engui çava uma f azenda. . . I nt er essado, o moço i ndagou da est r anha cr i at ur a. - Bocat or t a é a mai or cur i osi dade da f azenda, r espondeu o maj or . Fi l ho duma escr ava de meu pai , nasceu, o

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mí ser o, di s f or me e hor r i pi l ant e como não há memór i a de out r o. Um monst r o, de t ão f ei o. Há anos que v i ve sozi nho, escondi do no mat o, donde r ar o sai e sempr e de noi t e, O povo di z del e hor r or es - que come cr i anças, que é br uxo, que t em par t e com o demo. Todas as desgr aças acont eci das no ar r ai al cor r em- l he por cont a. Par a mi m, é um pobr e- di abo cuj o cr i me úni co é ser f ei o demai s. Como per deu a medi da, est á a pagar o cr i me que não comet eu. . . Var gas i nt er vei o, cuspi l hando com car a de asco: - Se o dout or z i nho o vi sse! . . . É a coi sa mai s noj ent a dest e mundo. - Fei o como o Quasí modo? - Esse não conheço, seu dout or , mas est ou aqui est ou j ur ando que o negr o passa di ant e do. . . como é? Eduar do apai xonava- se pel o caso. - Mas, ami go Var gas, f ei o como? Por que f ei o? Expl i que- me l á essa f ei úr a. Gr ande par ol a quando l he davam t r el a, Var gas ent r epar ou um bocado e di sse: - O dout or quer saber como é o negr o? Venha cá. Vossa Senhor i a ' gar r e um j uda de car vão e j udi e del e; cavoque o bur aco dos ol hos e af unde dent r o duas br asas al umi ando; met a a f aca nos bei ços e saque f or a os doi s; ' r anque os dent es e só dei xe um t oco; ent or t e a boca de v i és na car a; f aça uma coi sa desconf or me, Deus que me per doe. Depoi s, como di z o out r o, vá j udi ando, vá ent or t ando as per nas e espar r amando os pés. Quando cansar , descanse. Cor r a o mundo campeando f ei úr a br aba e apl i que o pi or no est upor . Quando acabar ' gar r e no j uda e ponha r ent e de Bocat or t a. Sabe o que acont ece? O j uda f i ca l i ndo! . . . Eduar do desf er i u uma gar gal hada. - Você exager a, Var gas. Nem o di abo é t ão f ei o assi m, cr i at ur a de Deus! - Homem, seu dout or , quer saber ? Cont ando não se acr edi t a. Aqui l o é f ei úr a que só vendo! - Nesse caso quer o vê- l a. Um hor r or desse nai pe mer ece uma per nada. Nesse moment o sur gi u Cr i st i na à por t a, anunci ando caf é na mesa. - Sabe? - di sse- l he o noi vo. - Temos um bel o passei o em per spect i va: desent ocar um gor i l a que, di z o Var gas, é o bi cho mai s f ei o do mundo. - Bocat or t a? - exc l amou Cr i st i na com um r ever ber o de asco no r ost o. - Não me f al e. Só o nome dessa cr i at ur a j á me põe ar r epi os no cor po. E cont ou o que del e sabi a. Bocat or t a r epr esent ar a papel sal i ent e em sua i magi nação. Pequeni t a, amedr ont avam- na as mucamas com a cuca, e a cuca er a o hor r endo negr o. Mai s t ar de, com ouvi r às cr i oul i nhas t odos os hor r or es cor r ent es à cont a dos seus br uxedos, ganhou i nexpl i cável pavor ao not âmbul o. Houve t empo no col égi o em que, noi t es e noi t es a f i o, o mesmo pesadel o a at r opel ou. Bocat or t a a t ent ar bei j á- l a, e el a, em t r anses, a f ugi r . Gr i t ava por socor r o, mas a voz l he mor r i a na gar gant a. Desper t ava ar quej ant e, l avada em suor es f r i os. Cur ou- a o t empo, mas a obsessão v i ncar a f undos vest í gi os em su' al ma. Eduar do, não obst ant e, i ns i st i a. - É o mei o de t e cur ar es de vez. Nada como o aspect o cr u da r eal i dade par a desmanchar exager os de i magi nação.

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Vamos t odos, em f ar r ancho - e assegur o- t e que a pi edade t e f ar á ver no espant al ho, em vez dum monst r o, um s i mpl es desgr açado di gno do t eu dó. Cr i st i na consul t ou- se por uns moment os e: - Pode ser - di sse. - Tal vez vá. Mas não pr omet o! Na hor a ver ei se t enho cor agem. . . A mat ur ação do espí r i t o em Cr i st i na desbot ar a a vi vaci dade nevr ót i ca dos t er r or es i nf ant i s . I nda assi m vaci l ava. Renasci a o medo ant i go, como r enasce a encar qui l hada r osa de Jer i có ao cont at o de uma got a d' água. Mas vexada de apar ecer aos ol hos do noi vo t ão i nf ant i l ment e medr osa, del i ber ou que i r i a; desde esse i nst ant e, por ém, uma i mper cept í vel sombr a anuvi ou- l he o r ost o. Ao j ant ar f or am o assunt o as novi dades do ar r ai al - et er nas novi dades de al dei as, o Ful ano que mor r eu, a Si cr ana que casou. Casar a um bot i cár i o e mor r er a uma meni na de quat or ze anos, mui t o chegada à gent e do maj or . Par t i cul ar ment e condoí da, Don' Ana não a t i r ava da i déi a. - Pobr e da Lui z i nha! Não me sai dos ol hos o j ei t o del a, t ão gal ant e, quando v i nha aqui pel o t empo das j abut i cabas. Al i , naquel a por t a - " Dá l i cença, Don' Ana! " - t ão chei a de vi da, ver mel hi nha do sol . . . Quem di r i a. . . - E ai nda por c i ma a t al hi st ór i a de cemi t ér i o. . . i nt er vei o Cr i st i na. Papai soube? Cor r i am no ar r ai al r umor es macabr os. No di a segui nt e ao ent er r ament o o covei r o t opou a sepul t ur a r emexi da, como se f or a vi ol ada dur ant e a noi t e; e vi u na t er r a f r esca pegadas mi st er i osas de uma " coi sa" que não ser i a bi cho nem gent e dest e mundo. Já duma f ei t a suceder a caso i dênt i co por ocasi ão da mor t e da Si nhazi nha Est eves; mas t odos duvi dar am da i nt egr i dade dos mi ol os do pobr e covei r o sar apant ado. Esses i ncr éus não mof avam agor a do vi s i onár i o, por que o padr e e out r as pessoas de boa cabeça, chamadas a t est emunhar o f at o, conf i r mavam- no. I mbuí do do cet i c i smo f ác i l dos moços da c i dade, Eduar do met eu a r i so a coi sa mui t a f or t i dão de espí r i t o. - A gent e da r oça duma f ol ha d' embaüva pendur ada no bar r anco f az l ogo, pel o menos, um l obi somem e t r ês mul as- sem- cabeça. Esse caso do cemi t ér i o: um cão vagabundo ent r ou l á e ar r anhou a t er r a. Aí est á t odo o gr ande mi st ér i o! Cr i st i na obj et ou: - E os r ast os? - Os r ast os! Est ou a apost ar como t ai s r ast os são os do pr ópr i o covei r o. O t er r or i mpedi u- l he de r econhecer o mol de do casco. . . - E o padr e Li sandr o? - acudi u Don' Ana, par a quem um t est emunho t onsur ado er a document o de mui t o peso. Eduar do cascal hou uma r i sada ant i c l er i cal e, t r i ncando um r abanet e, expect or ou: - Or a, o padr e Li sandr o! Pel o amor de Deus, Don' Ana! O padr e Li sandr o é o pr ópr i o covei r o de bat i na e cor oa! A pr opósi t o. . . E cont ou a pr opósi t o vár i os casos daquel e t i po, os quai s no cor r er do t empo v i er am a expl i car - se nat ur al ment e, com gr ande car a d' asno dos covei r os e l i sandr os r espect i vos. Cr i st i na ouvi u, com o espí r i t o absor t o em ci smas, a bel a demonst r ação geomét r i ca. Don' Ana concor dou da boca par a f or a, por

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del i cadeza. Mas o maj or , esse não pi ou si m nem não. A exper i ênci a da v i da ensi nar a- l he a não af i r mar com despot i smo, nem negar com " or as - Há mui t a coi sa est r anha nest e mundo. . . - di sse, t r aduzi ndo i nvol unt ar i ament e a saf ada r épl i ca de Haml et ao cabeça f or t e do Hor aci o. Zangar a o t empo quando à t ar de o r ancho se pôs de r umo ao casebr e de Bocat or t a. Vent ava. Reboj os de nuvens pr enhes sor v i am as úl t i mas nesgas do azul . Os noi vos br eve se di st anci ar am dos vel hos que, a passos t ar dos, segui am coment ando a boa composi ção do f ut ur o casal . Não havi a ni sso exager o de pai s. Eduar do, embor a vul gar , t i nha a esbel t eza necessár i a par a ouvi r sem f avor o encômi o de r apagão, e Cr i s t i na er a um r amal het e compl et o das gr aças que os dezoi t o anos sabem compor . Donai r e, el egânci a, di s t i nção. . . pi nt am l á vocábul os esbei çados pel o uso esse punhado de quês par t i cul ar í ssi mos cuj a soma a pal avr a " l i nda" t ot al i za? Lábi os de pi t anga, a magnól i a da pel e acesa em r osas nas f aces, ol hos sombr i os como a noi t e, dent es de pér ol a. . . as vel has t i nt as de uso em r et r at os f emi ni nos desde a Sul ami t a não pi nt am mel hor que o " l i nda! " di t o sem mai s enf ei t es al ém do pont o de admi r ação. Vê- l a mor di scando o hast i l duma f l or de cat i nguei r o col hi da à bei r a do cami nho, or a r i sonha, or a sér i a, a cor das f aces mor di da pel o vent o f r i o, madei xas l our as a br i ncar em- l he nas t êmpor as, vê- l a assi m f or mosa no quadr o agr est e duma t ar de de j unho, er a compr eender a expr essão dos r ocei r os: Li nda que nem uma sant a. Ol hos, sobr et udo, t i nha- os Cr i st i na de al t a bel eza. Naquel a t ar de, por ém, as sombr as de sua al ma coavam nel es penumbr as de est r anha mel ancol i a. Mel ancol i a e i nqui et ação. O amor oso enl evo de Eduar do esf r i ava ami úde ant e suas r epent i nas f ugas. El e a per cebi a di s t ant e, ou pel o menos i nt r ospect i va em excesso, r et i cênci a que o amor não vê de boa car a. E à medi da que cami nhavam r ecr esci a aquel a esqui s i t i ce. Um como i nt áct i l mor cego di aból i co r i scava- l he a al ma de voej os pr essagos. Nem o est i mul ant e das br i sas ásper as, nem a t er nur a do noi vo, nem o " chei r o de nat ur eza" exsol v i do da t er r a, er am de mol de a esgar çar a mi st er i osa br uma de l á dent r o. Eduar do i nt er pel ou- a: - Que t ens hoj e, Cr i s t i na? Tão sombr i a. . . E el a, num sor r i so t r i s t e: - Nada! . . Por quê? Nada. . . É sempr e nada quando o que quer que é l uci l a av i sos i nf or mes na escur i dão do subconsci ent e, como sut i l í ss i mos zi guezagues de si smógr af o em pr enúnci o de r emot a comoção t el úr i ca. Mas esses nadas são t udo! . . . - À esquer da, pel o t r i l ho! A voz do maj or chamou- os à r eal i dade. Um car r ei r o mal bat i do na macega esguei r ava- se col eant e at é a bei r a dum cór r ego, onde se r euni r am de novo. O maj or t omou a f r ent e, e gui ou- os f l or est a adent r o pel os meandr os duma pi cada. Er a al i o mat o s i ni s t r o onde se al apavam Bocat or t a e o seu cachor r o l azar ent o, Mer i mbi co, nome t r esandant e a sat ani smo par a o f ar o do povi l éu. Às sext as- f ei r as, na voz cor r ent e do ar r ai al , Mer i mbi co v i r ava l obi somem

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e se punha de r onda ao cemi t ér i o, com l ament osos ui vos à l ua e abocament os às pobr es al mas penadas - coi sa mui t o de ar r epi ar . O sombr i o da mat a enoi t eceu de vez o cor ação de Cr i st i na. - Mas, af i nal , par a onde vamos, meu pai ? Af undar no at ol ei r o, como o Si mas? Meu pai j á f ez o t est ament o? - Já, mi nha f i l ha - chasqueou o maj or - , e dei xo o Bocat or t a par a você. . . Cr i st i na emudeceu. Ret r ansi a- a em doses cr escent es o vel ho medo de out r or a, e f oi com um est r emeci ment o ar r epi ado que ouvi u o l adr i do pr óxi mo de um cão. - É Mer i mbi co - di sse o vel ho. - Est amos quase. Mai s cem passos e a mat a r asgou- se em c l ar ei r a, na qual Cr i st i na ent r ev i u a bi boca do negr o. Fez- se t oda pequeni na e achegou- se a Don' Ana, aper t ando- l he ner vosament e as mãos. - Bobi nha! Tudo i sso é medo? - Pi or que medo, mamãe; é. . . não- sei - quê! Não t i nha f ei ção de mor adi a humana a al f ur j a do monst r o. À l ai a de par edes, paus- a- pi que mal j unt os, ent r essachados de r amadas secas. Por cober t ur a, pr esos, com pedr as chat as, mol hos de sapé no f i o, def umado e podr e. Em r edor , um t er r ei r i nho at r avancado de l at as f er r uj ent as, t r apos e cacar i a vel ha. A ent r ada er a um bur aco por onde mal passar i a um homem agachado. - Ol á, car amuj o! Sai da t oca que est ão cá o s i nhô moço e mai s v i si t as! - gr i t ou o maj or . Respondeu de dent r o um gr unhi do cavo. Ao ouvi r t ão desagr adável som, Cr i st i na sent i u cor r er na pel e o ar r epi o dos pesadel os ant i gos, e num i ncoer cí vel movi ment o de pavor abr açou- se com a mãe. O negr o sai u da cova mei o de r ast os, com a l ent i dão de monst r uosa l esma. A pr i ncí pi o sur gi u uma gaf or i nha ar r uçada, depoi s o t r onco e os br aços e a t r apar i a i munda que l he escondi a o r est o do cor po, ent r emost r ando nos r asgões o negr or da pel e cr aquent a. Cr i st i na escondeu o r ost o no ombr o de Don' Ana - não quer i a, não podi a ver . Bocat or t a excedeu a t oda pi nt ur a. A hedi ondez per soni f i car a- se nel e, avul t ando, sobr et udo, na monst r uosa def or mação da boca. Não t i nha bei ços, e as gengi vas l ar gas, vi ol áceas, com r ar os cot os de dent es best i ai s f i ncados às t ont as, most r avam- se cr uas, como enor me chaga v i va. E t or t a, post a de v i és na car a, num esgar di aból i co, r esumi ndo o que o f ei o pode compor de hor r i pi l ant e. Embor a se l he est ampasse na boca o quant o f osse pr eci so par a f azer daquel a cr i at ur a a cul mi nânci a da ascosi dade, a nat ur eza mal vada f or a al ém, dando- l he per nas cambai as e uns pés def or mados que nem r emot ament e l embr avam a f or ma do pé humano. E ol hos v i ví ssi mos, que pul avam das ór bi t as empapuçadas, vei ados de sangue na escl er ót i ca amar el a. E pel e gr umosa, escamada de escar as c i nzent as. Tudo nel e quebr ava o equi l í br i o nor mal do cor po humano, como se a t er at ol ogi a capr i chasse em cr i ar a sua obr a- pr i ma. À por t a do casebr e, Mer i mbi co, cachor r o à- t oa, t odo ossos, pel e e ber nes, r osnava cont r a os i mpor t unos. Don' Ana e a f i l ha af ast ar am- se, engul hadas. Só os homens r es i s t i r am à nauseant e v i st a, embor a a Eduar do o t ol hesse uma emoção j amai s exper i ment ada, mi st o de asco,

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pi edade e hor r or . Aquel e quadr o de supr ema r epul são, novo par a seus ner vos, desnor t eava- l he as i déi as. Est ar r eci do como em f ace da Gór gona, não l he v i nha pal avr a que di ssesse. O maj or , ent r et ant o, t r ocava l í ngua com o monst r o, que em cer t o pont o, a uma per gunt a al egr e do vel ho, ar r egaçou na car a um r i so. Eduar do não t eve mão de s i . Aquel e r i so naquel a car a sobr eexcedi a a sua capaci dade de hor r i pi l ação. Vol t ou o r ost o e se f oi par a onde as mul her es, mur mur ando: - É demai s! É de f azer mal a ner vos de aço. . . Seus ol hos encont r ar am os de Cr i s t i na e nel es v i r am a expr essão de pavor da pr eá engr i f ada nas puas da sui ndar a - o pavor da mor t e. . . Quando dei xar am a f l or est a, mor r i a a t ar de sob o chi cot e dum vent o pr ecur sor de chuva. - Foi i mpr udênci a, Cr i s t i na, v i r es sem um xal i nho de cabeça ao menos! . . . Quei r a Deus. . . A moça não r espondeu. D' ol hos bai xos, r et r ansi da, r espi r ava a l ar gos haust os, par a desaf ogo dum aper t o de cor ação nunca sent i do f or a dos pesadel os. Gener al i zar a- se o si l ênci o. Só o maj or t ent ava espanej ar a i mpr essão penosa, chasqueando or a o t er r or da f i l ha, or a o asco do moço; mas br eve cal ou- se, ganho t ambém pel o mal - est ar ger al . Tr i st e anoi t ecer o daquel e di a, pi cado a espaços pel o sur do r evôo dos cur i angos. O vent o zuni a, e numa l uf ada mai s f or t e t r ouxe da mat a o ui vo pl angent e de Mer i mbi co. Ao ouvi - l o, um coment ár i o apenas escapou da boca do maj or : - Di abo! Fechar a- se a noi t e e vi nham as pr i mei r as got as de chuva quando pi sar am no al pendr e do casar ão. Cr i st i na sent i u pel o cor po i nt ei r o um cal af r i o, como se a sacudi sse a cor r ent e el ét r i ca. No di a segui nt e amanheceu f ebr i l , com ar dor es no pei t o e t r emur as ami udadas. Ti nha as f aces ver mel has e a r espi r ação opr essa. O r ebul i ço f oi gr ande na casa. Eduar do, mor di do de r emor sos, compul sava com mão ner vosa um vel ho Cher novi z, t ent ando at i nar com a doença de Cr i st i na; mas per di a- se sem bússol a no bár at r o das mol ést i as. Nesse em mei o, Don' Ana esgot ava o ar senal da medi c i na anódi na dos sí mpl i ces casei r os. O mal , ent r et ant o, r ecal ci t r ava às chasadas e sudor í f er os. Chamou- se o bot i cár i o da v i l a. Vei o a gal ope o Eusébi o Macár i o e di agnost i cou pneumoni a. Quem j á não assi s t i u a uma dessas subi t âneas desgr aças que de gol pe se abat em, qual negr o avej ão de pr esa, sobr e uma f amí l i a f el i z , e est r açoam t udo quant o nel a r epr esent a a al egr i a, e esper ança, o f ut ur o? Noi t es em c l ar o, o r umor dos passos abaf ados. . . E o doent e a pi or ar . . . O médi co da casa apr eensi vo, chei o de vi ncos na t est a. . . Di as e di as de duel o mudo cont r a a mol ést i a i ncoer cí vel . . . A desesper ança, af i nal , o i r r emedi ável ant ol hado i mi nent e; a mor t e pr essent i da de r onda ao quar t o. . . Ao oi t avo di a Cr i s t i na f oi desenganada; no déci mo o si no do ar r ai al anunci ou o seu pr emat ur o f i m. - Mor t a! . . .

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Eduar do escondi a as l ágr i mas ent r e as al mof adas do l ei t o, r epet i ndo cem vezes a mesma pal avr a. Al cançava- l he o s i gni f i cado t r emendo e, no ent ant o, quant as vezes a ouvi r a como a um som oco de sent i do! A i magem de Cr i st i na mor t a, a esf er v i l har na di ssol ução dent r o da t er r a gel ada, cont r apunha- se às v i sões da Cr i st i na vi va, t oda mi mos d' al ma e cor po, r adi osa manhã humana de cuj a l uz t oda se i mpr egnar a sua al ma. Cer r ando os ol hos, r evi a- se dur ant e o passei o f at al , envol t a nas br umas de vagos pr essent i ment os. Vi nham- l he à memór i a as suas pal avr as dúbi as, a sua vaci l ação. E ar r epel ava- se por não t er adi v i nhado na r epul sa da moça os avi sos i nf or mes de qual quer coi sa secr et a que t enazment e a def endi a. Tai s pensament os, enxameant es como moscas em t or no à car ne vi va da dor de Eduar do, coavam nel e venenos cr uéi s. For a, o sol r edoi r ava cr uament e a v i da. Br ut al i dade! . . . Mor r i a Cr i s t i na e não se desdobr avam cr epes pel o céu, nem mur chavam as f ol has das ár vor es, nem se r ecobr i a de ci nzas a t er r a. . . Espezi nhado pel a f r i a i ndi f er ença das coi sas, f echou- se na cl ausur a de si pr ópr i o, t or vo e dol or i do, sent i ndo- se amar f anhar pel a pat a cega do dest i no. Cor r er am hor as. Noi t e al t a, acudi u- l he a i déi a de i r ao cemi t er i nho bei j ar num úl t i mo adeus o t úmul o da noi va. Por sobr e a veget ação ador meci da coava- se o pal or c i nér eo da mi nguant e. Rar as est r el as no céu, e na t er r a nenhum r umor ej o al ém do r emot o ui var de um cão - Mer i mbi co t al vez - a escandi r o concer t o das unt anhas que coaxavam gl u- gl us nas aguadas. Eduar do al cançou o cemi t ér i o. Est ava encadeado o por t ão. Apoi ou a t est a nos f r i os var ões f er r uj ent os e mer gul hou os ol hos quei mados de l ágr i mas por ent r e os car nei r os humi l des, em busca do que r eceber a Cr i s t i na. No ar , um s i l ênci o de et er ni dade. Br i sas i nt er mi t ent es car r eavam o ol or acr e dos cr avos- de- def unt o f l or i dos na t r i st eza daquel e cemi t ér i o da r oça. Seu ol har per vagava de cr uz em cr uz na t ent at i va de at i nar com o sí t i o onde Cr i st i na dor mi a o gr ande sono, quando um r umor suspei t o l he f er i u os ouvi dos. Di r ei s um ar r anhar de chão em r aspões caut el osos, ao qual se casava o r esf ol ego duma cr i at ur a v i va. Pul sou- l he v i ol ent o o sangue. Os cabel os cr escer am- l he na cabeça. Al uc i nação? Apur ou os ouvi dos: o r umor est r anho l á cont i nuava, vi ndo de um pont o sombr eado de ci pr est es. Fi r mou a v i s t a: qual quer coi sa agachava- se na t er r a. Súbi t o, num r el âmpago, f ul gur ou em sua memór i a a cena do j ant ar , o caso de Lui z i nha, as pal avr as de Cr i st i na. Eduar do sent i u ar r epi ar em- se- l he os cabel os e, ganho dum pâni co desvai r ado, dei t ou a cor r er como um l ouco r umo à f azenda, em cuj o casar ão penet r ou de pancada, sem f ôl ego, l avado em suor f r i o, desper t ando de sobr essal t o a f amí l i a. Com gr i t os de espant o, que o cansaço e o bat er dos dent es ent r ecor t avam, excl amou ent r e ar quej os: - Est ão desent er r ando Cr i s t i na. . . Eu v i uma coi sa desent er r ando Cr i st i na. . . - Que l oucur a é essa, moço? - Eu v i . . . - cont i nuava Eduar do com os ol hos desmesur adament e aber t os. -

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Eu vi uma coi sa desent er r ando Cr i st i na. . . O maj or aper t ou ent r e as mãos a t est a. Est eve assi m i móvel uns i nst ant es. Depoi s sacudi u a cabeça num gest o de deci são e, hor r i vel ment e cal mo, mur mur ou ent r e dent es, como em r espost a a si pr ópr i o: - Ser á possí vel , meu Deus? Vest i u- se de gol pe, met eu no bol so o r evól ver e at i r ando t r ês pal avr as eni gmát i cas à est ar r eci da Don' Ana, gr i t ou par a Eduar do com i nf l exão de aço na voz: - Vamos! Magnet i zado pel a ener gi a do vel ho, o moço acompanhou- o qual sonâmbul o. No t er r ei r o apar eceu- l hes o capat az. - Venha conosco. A " coi sa" est á no cemi t ér i o. Var gas passou mão de uma f oi ce. - Vai ver que é el e, pat r ão, at é j ur o! O maj or não r espondeu - e os t r ês homens par t i r am a cor r er pel os campos em f or a. A mei o cami nho, Eduar do, exaust o de t ant as emoções, at r asou- se. Seus múscul os r ecusar am- l he obedi ênci a. Ao def r ont ar com o at ol ei r o, as per nas l he f r aquear am de vez e el e cai u, of egant e. Ent r ement es, o maj or e o f ei t or al cançavam o cemi t ér i o, gal gavam o mur o e apr oxi mavam- se como gat os do t úmul o de Cr i st i na. Um quadr o hedi ondo ant ol hou- se- l hes de gol pe: um cor po br anco j az i a f or a do t úmul o - abr açado por um vul t o vi vo, negr o e col eant e como o pol vo. O pai de Cr i st i na desf er i u um r ugi do de f er a, e qual f er a mal f er i da ar r oj ou- se par a ci ma do monst r o. A hi ena, mau gr ado a sur pr esa, escapou ao bot e e f ugi u. E, coxeando, cambai o, semi nu, de t r opeços nas cr uzes, a gal gar t úmul os com agi l i dade i nconcebí vel em semel hant e cr i at ur a, Bocat or t a sal t ou o mur o e f ugi u, segui do de per t o pel a sombr a esgani çant e de Mer i mbi co. Eduar do, que concent r ar a t odas as f or ças par a segui r de l onge o desf echo do dr ama, vi u passar r ent e de s i o vul t o asquer oso do necr óf i l o, par a em segui da desapar ecer mer gul hando na massa escur a dos guai ambés. Voando- l he no encal ço, v i u passar em segui da o vul t o dos per segui dor es. Houve uma pausa, em que só l he f er i u o ouvi do o r umor da cor r er i a. Depoi s, gr i t os de cól er a, d' envol t a a um gr unhi r de quei xada caí do em mundéu - e t udo se mi st ur ou ao bar ul ho da l ut a que o ui vo de Mer i mbi co domi nava l ugubr ement e. O moço cor r eu a mão pel a t est a gel ada: est ar i a nas unhas dum pesadel o? Não; não er a sonho. Di sse- l ho a voz al t er ada do f ei t or , esboçando o epí l ogo da t r agédi a: - Não at i r e, maj or , el e não mer ece bal a. P' r a que ser ve o at ol ei r o? E l ogo após Eduar do sent i u r ecr udescer a l ut a, ent r e i mpr ecações de cól er a e os gr unhi dos cada vez mai s l ament osos do monst r o. E ouvi u f ar f al har o mat o, como se por el e ar r ast assem um cor po mani et ado, a debat er - se em convul sões vi ol ent as. E ouvi u um r ugi do cavo de supr emo desesper o. E após, o baque f of o de um f ar do que se at uf a na l ama.

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Uma ver t i gem escur eceu- l he a v i s t a; seus ouvi dos cessar am de ouvi r ; seu pensament o ador meceu. . . Quando vol t ou a s i , doi s homens bor r i f avam- l he o r ost o com água gel ada. Encar ou- os, mar asmado. Er gueu- se, mal f i r me, apoi ado a um del es. E r econheceu a voz do maj or , que ent r e ar quej os de cansaço l he di zi a: - Sej a homem, moço. Cr i s t i na j á est á ent er r ada, e o negr o. . . - . . . est á bei j ando o bar r o, concl ui u s i ni st r ament e o Var gas. Ao r ai ar do di a, Mer i mbi co ai nda l á est ava, sent ado nas pat as t r asei r as, a ui var saudosament e com os ol hos post os no sí t i o onde sumi r a o seu companhei r o. Nada mai s l embr ava a t r agédi a not ur na nem denunci ava o t úmul o de l odo açai mador da boca hedi onda que babuj ar a nos l ábi os de Cr i st i na o bei j o úni co de sua v i da. O compr ador de f azendas Pi or f azenda que a do Espi gão, nenhuma. Já ar r ui nar a t r ês donos, o que f az i a di zer aos pr aguent os: Espi ga é o que aqui l o é! O det ent or úl t i mo, um Davi Mor ei r a de Souza, ar r emat ar a- a em pr aça, convi ct o de negóci o da Chi na; j á l á andava, t ambém el e, escal avr ado de dí v i das, coçando a cabeça, num desâni mo. . . Os caf ezai s em var a, ano s i m ano não bat i dos de pedr a ou est ur r ados de geada, nunca der am de s i col hei t a de ent upi r t ul ha. Os past os ensapezados, enguanxumados, ensamambai ados nos t opes, er am acampament os de cupi ns com ent r emei os de macegas mor t i ças, f or mi gant es de car r apat os. Boi ent r ado al i punha- se l ogo de cost el as à most r a, encar oçado de ber nes, t r i st e e dol or i do de met er dó. As capoei r as subst i t ut as das mat as nat i vas r evel avam pel a i ndi scr i ção das t abocas a mai s saf ada das t er r as secas. Em t al sol o a mandi oca br acej ava a medo var et i nhas nodosas; a cana- cai ana assumi a aspect o de cani nha, e est a v i r ava um t aquar i ço magr el a dos que passam i ncól umes ent r e os ci l i ndr os moedor es. Pi or avam os caval os. Os por cos escapos à pest e encr uavam na magr ém f ar aôni ca das vacas egí pci as. Por t odos os cant os i mper ava o f er r ão das saúvas, di a e noi t e ent r egues à t osa dos capi ns par a que em out ubr o se t ol dasse o céu de nuvens de i çás, em sar acot ei os amor osos com enamor ados savi t us. Cami nhos por f azer , cer cas no chão, casas d' agr egador es engot ei r adas, combal i das de cumeei r a, pr enunci ando f ei as t aper as. At é na mor adi a senhor i al i nsi nuava- se a br oca, al ui ndo panos de r eboco, car comendo assoal hos. Vi dr aças sem v i dr o, mobí l i a capengant e, par edes l agar t eadas. . . i nt act o que é que havi a l á? Dent r o dessa esbor ci nada mol dur a, o f azendei r o avel huscado por f or ça das sucessi vas decepções e, a mai s, r oí do pel o cancr o f er oz dos j ur os, sem esper ança e sem conser t o, coçava cem vezes ao di a a cor oa da cabeça gr i sal ha. Sua mul her , a pobr e dona I saur a, per di do o v i ço do out ono, agr umava no r ost o quant a sar da e pé- de- gal i nha i nvent am os anos de mãos dadas à t r abal hosa v i da.

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Zi co, o f i l ho mai s vel ho, saí r a- l hes um pul ha, ami go de er guer - se às dez, ensebar a past i nha at é às onze e consumi r o r est o do di a em namor i cos mal - azar ados. Af or a est e mal andr o t i nham a Zi l da, ent ão nos dezesset e, meni na gal ant e, por ém sent i ment al mai s do que manda a r azão e pede o sossego da casa. Er a um l er Escr i ch, a moça, e um c i smar amor es de Espanha! . . . Em t al s i t uação só havi a uma aber t a: vender a f azenda mal di t a par a r espi r ar a sal vo de cr edor es. Coi sa di f í c i l , ent r et ant o, em quadr a de caf é a c i nco mi l r éi s, bot ar unhas num t ol o das di mensões r equer i das. I l udi dos por anúnci os manhosos al guns pr et endent es j á havi am abi cado ao Espi gão; mas f r anzi am o nar i z , i ndo- se a ar r enegar da per nada sem abr i r of er t a. - De gr aça é car o! - cochi chavam de si par a consi go. O r edemoi nho capi l ar do Mor ei r a, a cabo de coçadel as, suger i u- l he um engenhoso pl ano mi st i f i cat ór i o: ent r ever ar de caet és, cambar ás, unhas- de- vaca e out r os padr ões de t er r a boa, t r anspl ant ados das vi z i nhanças, a f í mbr i a das capoei r as e uma ou out r a ent r ada acessí vel aos v i s i t ant es. Fê- l o, o mal uco, e mai s: met eu em cer t a gr ot a um paud' al ho t r az i do da t er r a r oxa, e adubou os caf eei r os mar geant es ao cami nho suf i c i ent e par a encobr i r a mazel a do r est o. Onde um r ai o de sol denunci ava com mai s v i veza um ví c i o da t er r a, al i o al uc i nado vel ho bot ava a penei r i nha. . . Um di a r ecebeu car t a de um agent e de negóci os anunci ando novo pr et endent e. " Você t emper e o homem, aconsel hava o pi r at a, e sai ba manobr ar os padr ões que est e cai . Chama- se Pedr o Tr ancoso, é mui t o r i co, mui t o moço, mui t o pr osa, e quer f azenda de r ecr ei o. Depende t udo de você espi gá- l o com ar t e de bar ganhi st a l adi no. " Pr epar ou- se Mor ei r a par a a empr esa. Adver t i u pr i mei r o aos agr egados par a que est i vessem a post os, af i adí ssi mos de l í ngua. I ndust r i ados pel o pat r ão, est es homens r espondi am com manha consumada às per gunt as dos vi s i t ant es, de j ei t o a t r ansmut ar em mar avi l has as r ui ndades l ocai s. Como l hes é suspei t a a i nf or mação dos pr opr i et ár i os, cost umam os pr et endent es i nt er r ogar à socapa os encont r adi ços. Al i , se i sso acont eci a - e acont eci a sempr e, por que er a Mor ei r a em pessoa o maqui ni s t a do acaso - havi a di ál ogos dest a or dem: - " Gei a por aqui ?" - " Coi si nha, e i sso mesmo só em ano br abo. " - " O f ei j ão dá bem?" - " Nossa Senhor a! I nda est e ano pl ant ei ci nco quar t as e mal hei ci nqüent a al quei r es. E que f ei j ão! " - " Ber nei a o gado?" - " Qual o quê! Lá um ou out r o car oci nho de vez em quando. Par a cr i ar , não exi st e t er r a mel hor . Nem er va nem f ei j ão- br avo. ( 1) O pat r ão é por que não t em f or ça. Ti vesse el e os mei os e i st o v i r ava um f azendão. " Avi sados os espol et as, debat er am- se à noi t e os pr epar at i vos da hospedagem, al egr es t odos com o r ev i çar das esper anças emur checi das. - Est ou com pal pi t e que dest a f ei t a a " coi sa" vai ! di sse o f i l ho mar ot o. E decl ar ou necessi t ar , à sua par t e, de t r ês cont os de r éi s par a est abel ecer - se.

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- Est abel ecer - se com quê? - per gunt ou admi r ado o pai . - Com ar mazém de secos e mol hados na Vol t a Redonda. . . - Já me est ava espant ando uma i déi a boa nessa cabeça de vent o. Par a vender f i ado à gent e da Tudi nha, não é? O r apaz, se não cor ou, cal ou- se; t i nha r azões par a i sso. Já a mul her quer i a casa na ci dade. De há mui t o t r az i a d' ol ho uma de por t a e j anel a, em cer t a r ua humi l de, casa bar at i nha, d' ar r anj ados. Zi l da, um pi ano - e cai xões e mai s cai xões de r omances. . . Dor mi r am f el i zes essa noi t e e no di a segui nt e mandar am cedo à v i l a em busca de gul odi ces de hospedagem - mant ei ga, um quei j o, bi scoi t os. Na mant ei ga houve debat e. - Não val e a pena! - r egui ngou a mul her . - Sempr e são sei s mi l r éi s . Ant es se compr asse com esse di nhei r o a peça de al godãozi nho que t ant a f al t a me f az. - É pr eci so, f i l ha! As vezes uma coi sa de nada engambel a um homem e f ac i l i t a um negóci o. Mant ei ga é gr axa e a gr axa engr axa! Venceu a mant ei ga. Enquant o não v i nham os i ngr edi ent es, met eu dona I saur a unhas à casa, var r endo, espanando e ar r umando o quar t o dos hóspedes; mat ou o menos magr o dos f r angos e uma l ei t oa manqui t ol a; t emper ou a massa do past el de pal mi t o, e est ava a f ol heá- l a quando: - " Ei , vem el e! " - gr i t ou Mor ei r a da j anel a, onde se post ar a desde cedo, mui t o ner voso, a devassar a est r ada por um vel ho bi nócul o; e sem dei xar o post o de obser vação f oi t r ansmi t i ndo à ocupadí ssi ma esposa os por menor es di v i sados. - É moço. . . Bem t r aj ado. . . Chapéu panamá. . . Par ece o Chi co Canhambor a. . . Chegou, af i nal , o homem. Apeou- se. Deu car t ão: Pedr o Tr ancoso de Car val hai s Fagundes. Bem- apessoado. Ar es de mui t o di nhei r o. Mocet ão e bem- f al ant e, mai s que quant os at é al i apar eci dos. Cont ou l ogo mi l coi sas com o desembar aço de quem no mundo est á de pi j ama em sua casa - a v i agem, os ac i dent es, um mi co que v i r a pendur ado num gal ho d' embaúva. Ent r ados que f or am par a a sal et a de esper a, Zi co, i ncont i nent i , gr udou- se de ouvi do ao bur aco da f echadur a, a cochi char par a as mul her es ocupadas na ar r umação da mesa o que i a pi l hando à conver sa. Súbi t o, esgani çou par a a i r mã, numa car et a sugest i va: - É sol t ei r o, Zi l da! A meni na l ar gou di sf ar çadament e os t al her es e sumi u- se. Mei a hor a depoi s vol t ava t r azendo o mel hor vest i do e no r ost o duas r edondi nhas r osas de car mi m. Quem a ess' hor a penet r asse no or at ór i o da f azenda not ar i a nas ver mel has r osas de papel de seda que enf ei t avam o Sant o Ant ôni o a ausênci a de vár i as pét al as, e aos pés da i magem uma vel i nha acesa. Na r oça, o r uge e o casament o saem do mesmo or at ór i o. Tr ancoso di sser t ava sobr e var i ados t emas agr í col as. - O canast r ão? Pf f ! Raça t ar di a, meu car o senhor , mui t o agr est e. Eu sou pel o Pol and Chi ne. Também não é mau, não, o Lar ge Bl ack. Mas o Pol and! Que pr ecoci dade! Que r aça! Mor ei r a, chucr o na mat ér i a, só conhecedor das pel hancas f ami nt as, sem nome nem r aça, que l he gr unhi am nos

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past os, abr i a i nsensi vel ment e a boca. - Como em mat ér i a de pecuár i a bovi na - cont i nuou Tr ancoso - ' t enho par a mi m que, de Bar r et o a Pr ado, andam t odos er r adí ss i mos. Poi s não! Er - r a- dí s- s i - mos! Nem sel eção, nem cr uzament o. Quer o a adoção i - me- di - a- t a das mai s f i nas r aças i ngl esas, o Pol l ed Angus, o Red Li r t col n. Não t emos past os? Façamo- l os. Pl ant emos al f af a. Penemos. Ensi l emos. O Assi s ( 2) conf essou- me uma vez. . . O Assi s! Aquel e homem conf essava os mai s al t os par edr os da agr i cul t ur a! Er a í nt i mo de t odos el es - o Pr ado, ( 3) o Bar r et o, ( 4) o Cot r i m. . . ( 5) E de mi ni s t r os! " Eu j á al eguei i sso ao Bezer r a. . . ( 6) Nunca se honr ar a a f azenda com a pr esença de caval hei r o mai s di st i nt o, ass i m bem r el ac i onado e t ão v i aj ado. Fal ava da Ar gent i na e de Chi cago como quem vei o ont em de l á. Mar avi l hoso! A boca de Mor ei r a abr i a, abr i a, e acusava o gr au máxi mo de aber t ur a per mi t i da a ângul os maxi l ar es, quando uma voz f emi ni na anunci ou o al moço. Apr esent ações. Mer eceu Zi l da l ouvor es nunca sonhados, que a puser am de cor ação aos pi not es. Também os t eve a gal i nha ensopada, o t ut u com t or r esmos, o past el e at é a água do pot e. - Na c i dade, senhor Mor ei r a, uma água assi m, pur a, cr i st al i na, absol ut ament e pot ável , val e o mel hor dos v i nhos. Fel i zes os que podem bebê- l a! A f amí l i a ent r eol hou- se; nunca i magi nar am possui r em casa semel hant e pr eci os i dade, e cada um i nsensi vel ment e sor veu o seu gol ez i nho, como se naquel e i nst ant e t r avassem conheci ment o com o pr eci oso néct ar . Zi co chegou a est al ar a l í ngua. . . Quem não cabi a em si de gozo er a dona I saur a. Os el ogi os à sua cul i nár i a puser am- na r endi da; por met ade daqui l o j á se dar i a por bem paga da t r abal hei r a. - Apr enda, Zi co - cochi chava el a ao f i l ho - ' o que é educação f i na. Após o caf é, br i ndado com um " del i c i oso! " , convi dou Mor ei r a o hóspede par a um gi r o a caval o. - I mpossí vel , meu car o, não mont o em segui da às r ef ei ções; dá- me cef al al gi a. Zi l da cor ou. Zi l da cor ava sempr e que não ent endi a uma pal avr a. À t ar de sai r emos, não t enho pr essa. Pr ef i r o agor a um passei oz i nho pedest r e pel o pomar , a bem do qui l o. Enquant o os doi s homens em pausados passos par a l á se di r i gi am, Zi l da e Zi co cor r er am ao di c i onár i o. - Não é com s - di sse o r apaz. - Vej a com C - al v i t r ou a meni na. Com al gum t r abal ho encont r ar am a pal avr a cef al al gi a. - " Dor de cabeça! " Or a! Uma coi sa t ão s i mpl es. . . À t ar de, no gi r o a caval o, Tr ancoso admi r ou e l ouvou t udo quant o i a vendo, com gr ande espant o do f azendei r o que, pel a pr i mei r a vez, ouvi a gabos às coi sas suas. Os pr et endent es em ger al mal si nam de t udo, com ol hos aber t os só par a def ei t os; di ant e de uma bar r oca, abr em- se em excl amações quant o ao per i go das t er r as f r ouxas; acham más e poucas as águas; se enxer gam um boi , não despr egam a

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vi s t a dos ber nes. Tr ancoso, não. Gabava! E quando Mor ei r a, nos t r echos mi st i f i cados, com dedo t r êmul o assi nal ou os padr ões, o moço abr i u a boca. - Caquer a? mas i s t o é f ant ást i co! . . . Em f ace do pau- d' al ho cul mi nou- l he o assombr o. - é mar avi l hoso o que vej o! Nunca supus encont r ar nest a zona vest í gi os de semel hant e ár vor e! - di sse, met endo na car t ei r a uma f ol ha como l embr ança. Em casa abr i u- se com a vel ha. - Poi s, mi nha senhor a, a qual i dade dest as t er r as excedeu de mui t o à mi nha expect at i va. At é pau- d' al ho! I st o é posi t i vament e f amoso! . . . Dona I saur a bai xou os ol hos. A cena passava- se na var anda. Er a noi t e. Noi t e t r i l ada de gr i l os, coaxada de sapos, com mui t as est r el as no céu e mui t a paz na t er r a. Ref est el ado numa cadei r a pr egui çosa, o hóspede t r ansf ez o sopor da di gest ão em quebr ei r a poét i ca. - Est e cr i - cr i de gr i l os, como é encant ador ! Eu ador o as noi t es est r el adas, o bucól i co vi ver campesi no, t ão sadi o e f el i z. . . - Mas é mui t o t r i s t e! . . . - avent ur ou Zi l da. - Acha? Gost a mai s do cant o est r i dent e da ci gar r a, modul ando cavat i nas em pl ena l uz? - di sse el e, amel açando a voz. - É que no seu cor açãozi nho há qual quer nuvem a sombr eá- l o. . . Vendo Mor ei r a assi m at i çado o sent i ment al i smo, e dessa f ei t a passí vel de conseqüênci as mat r i moni ai s , houve por bem dar uma pancada na t est a e ber r ar : " Oh, di abo! Não é que i a me esquecendo do. . . " Não di sse do que, nem er a pr eci so. Sai u pr eci pi t adament e, dei xando- os sós. Pr ossegui u o di ál ogo, mai s mel e r osas. - O senhor é um poet a! - excl amou Zi l da a um r egor j ei o dos mai s sucados. - Quem o não é debai xo das est r el as do céu, ao l ado duma est r el a da t er r a? - Pobr e de mi m! - suspi r ou a meni na, pal pi t ant e. Também do pei t o de Tr ancoso subi u um suspi r o. Seus ol hos al çar am- se a uma nuvem que f az i a no céu as vezes da Vi a Láct ea, e sua boca mur mur ou em sol i l óqui o um r abo- d' ar r ai a desses que der r ubam meni nas. - O amor ! . . . A Vi a Láct ea da v i da! . . . O ar oma das r osas, a gaze da aur or a! Amar , ouvi r est r el as. . . Amai , poi s só quem ama ent ende o que el as di zem. Er a zur r apa de cont r abando; não obst ant e, ao pal adar i nexper t o da meni na soube a f i no moscat el . Zi l da sent i u subi r à cabeça um vapor . Qui s r et r i bui r . Deu busca aos r ami l het es r et ór i cos da memór i a em pr ocur a da f l or mai s bel a. Só achou um bogar i humí l i mo: - Li ndo pensament o par a um car t ão- post al ! Fi car am no bogar i ; o caf é com bol i nhos de f r i gi dei r a vei o i nt er r omper o i dí l i o nascent e. Que noi t e aquel a! Di r - se- i a que o anj o da bonança di s t ender a suas asas de our o por sobr e a casa t r i s t e. Vi a Zi l da r eal i zar - se t odo o Escr i ch degl ut i do. Dona I saur a gozava- se da possi bi l i dade de casá- l a r i ca. Mor ei r a sonhava qui t ações de dí v i das, com sobr as f ar t as a t i l i nt ar - l he no bol so. E i magi nar i ament e t r ansf ei t o em comer c i ant e, Zi co f i ou, a

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noi t e i nt ei r a, em sonhos, à gent e da Tudi nha, que, cat i va de t ant a gent i l eza, l he concedi a af i nal a ambi c i onada mão da pequena. Só Tr ancoso dor mi u o sono das pedr as, sem sonhos nem pesadel os. Que bom é ser r i co! No di a i medi at o v i si t ou o r est o da f azenda, caf ezai s e past os, exami nou cr i ação e benf ei t or i as; e como o gent i l mancebo cont i nuasse no enl evo, Mor ei r a, del i ber ado na vésper a a pedi r quar ent a cont os pel a Espi ga, j ul gou de bom avi so el evar o pr eço. Após a cena do pau- d' al ho, suspendeu- o ment al ment e par a quar ent a e c i nco; f i ndo o exame do gado, j á est ava em sessent a. E quando f oi abor dada a magna quest ão, o vel ho decl ar ou cor aj osament e, na voz f i r me de um al ea j act a: - Sessent a e c i nco! - e esper ou de pé at r ás a vent ani a. Tr ancoso, por ém, achou r azoável o pr eço. - Poi s não é car o - di sse - , est á um pr eço bem mai s r azoável do que i magi nei . O vel ho mor deu os l ábi os e t ent ou emendar a mão. - Sessent a e c i nco, s i m, mas. . , o gado f or a! . . . - é j ust o, r espondeu Tr ancoso. - . . . e f or a t ambém os por cos! . . . - Per f ei t ament e. - . . . e a mobí l i a! - É nat ur al . O f azendei r o engasgou; não t i nha mai s o que excl ui r e conf essou de s i par a consi go que er a uma caval gadur a. Por que não pedi r a l ogo oi t ent a? I nf or mada do caso, a mul her chamou- l he pax vobi s. - Mas, cr i at ur a, por quar ent a j á er a um negoci ão! j ust i f i cou- se o vel ho. - Por oi t ent a ser i a o dobr o mel hor . Não se def enda. Eu nunca vi Mor ei r a que não f osse pal er ma e sar ambé. É do sangue. Você não t em cul pa. Amuar am um bocado; mas a ânsi a de ar qui t et ar cast el os com a i mpr evi s t a di nhei r ama var r eu par a l onge a nuvem. Zi co apr ovei t ou a aur a par a i ns i s t i r nos t r ês cont os do est abel ec i ment o - e obt eve- os. Dona I saur a desi s t i u de t al casi nha. Lembr ava agor a out r a mai or , em r ua de pr oci ssão - a casa do Eusébi o Lei t e. - Mas essa é de doze cont os, adver t i u o mar i do. - Mas é out r a coi sa que não aquel e casebr e! Mui t o mai s bem r epar t i da. Só não gost o da al cova pegada à copa; escur a. . . - Abr e- se uma c l ar abói a. - Também o qui nt al pr ec i sa de r ef or ma; em vez do cer cado das gal i nhas. . . At é noi t e al t a, enquant o não v i nha o sono, f or am r emendando á casa, pi nt ando- a, t r ansf or mando- a na mai s del i c i osa v i venda da ci dade. Est ava o casal nos úl t i mos r et oques, dor me- não- dor me, quando Zi co bat eu à por t a. - Tr ês cont os não bast am, papai , são pr eci sos c i nco. Há a ar mação, de que não me l embr ei , e os di r ei t os, e o al uguel da casa, e mai s coi s i nhas. . . Ent r e doi s bocej os, o pai concedeu- l he gener osament e sei s. E Zi l da? Essa vogava em al t o- mar dum r omance de f adas. Dei xemo- l a vogar . Chegou enf i m o moment o da par t i da. Tr ancoso despedi u- se. Sent i a mui t o não

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poder pr ol ongar a del i c i osa v i si t a, mas i nt er esses de mont a o chamavam. A v i da do capi t al i st a não é l i vr e como par ece. . . Quant o ao negóci o, consi der ava- o quase f ei t o; dar i a a pal avr a def i ni t i va dent r o de semana. Par t i u Tr ancoso, l evando um pacot e de ovos - gost ar a mui t o da r aça de gal i nhas cr i ada al i ; e um saqui t o de car ás - pet i sco de que er a mui gul oso. Levou ai nda uma boni t a l embr ança, o r osi l ho do Mor ei r a, o mel hor caval o da f azenda. Tant o gabar a o ani mal dur ant e os passei os, que o f azendei r o se v i u na obr i gação de r ecusar uma bar ganha pr opost a e dar - l ho de pr esent e. - Vej am vocês! - di sse Mor ei r a, r esumi ndo a opi ni ão ger al . - Moço, r i quí ssi mo, di r ei t ão, i nst r uí do como um dout or e no ent ant o amável , gent i l , i ncapaz de t or cer o f oc i nho como os pul has que cá t êm v i ndo. O que é ser gent e! À vel ha agr adar a sobr et udo a sem- cer i môni a do j ovem capi t al i s t a. Levar ovos e car ás! Que mi mo! Todos concor dar am, l ouvando- o cada um a seu modo. E assi m, mesmo ausent e, o gent i l r i caço encheu a casa dur ant e a semana i nt ei r a. Mas a semana t r anscor r eu sem que vi esse a ambi c i onada r espost a. E mai s out r a. E out r a ai nda. Escr eveu- l he Mor ei r a, j á apr eensi vo e nada. Lembr ou- se dum par ent e mor ador na mesma c i dade e ender eçou- l he car t a pedi ndo que obt i vesse do capi t al i st a a sol ução def i ni t i va. Quant o ao pr eço, abat i a al guma coi sa. Dava a f azenda por c i nqüent a e c i nco, por ci nqüent a e at é por quar ent a, com cr i ação e mobí l i a. O ami go r espondeu sem demor a. Ao r asgar do envel ope, os quat r o cor ações da Espi ga pul sar am v i ol ent ament e: aquel e papel encer r ava o dest i no de t odos quat r o. Di z i a a car t a: " Mor ei r a. Ou mui t o me engano ou est ás i l udi do. Não há por aqui nenhum Tr ancoso Car val hai s capi t al i st a. Há o Tr ancosi nho, f i l ho de Nhá Veva, vul go Sacat r apo. É um esper t al hão que vi ve de bar ganhas e sabe i l udi r aos que o não conhecem. Ul t i mament e t em cor r i do o Est ado de Mi nas, de f azenda em f azenda, sob vár i os pr et ext os. Fi nge- se às vezes compr ador , passa uma semana em casa do f azendei r o, a cacet eá- l o com passei os pel as r oças e exames de di vi sas; come e bebe do bom, namor a as cr i adas, ou a f i l ha, ou o que encont r a - é um vassour a de mar ca! - e no mel hor da f est a some- se. Tem f ei t o i s t o um cent o de vezes, mudando sempr e de zona. Gost a de var i ar de t emper o, o pat i f e. Como aqui Tr ancoso só há est e, dei xo de apr esent ar ao pul ha a t ua pr opost a. Or a o Sacat r apo a compr ar f azenda! Ti nha gr aça. . . " O vel ho cai u numa cadei r a, apar val hado, com a mi ss i va sobr e os j oel hos. Depoi s o sangue l he aver mel hou as f aces e seus ol hos chi spar am. - Cachor r o! As quat r o esper anças da casa r uí r am com f r agor , ent r e l ágr i mas da meni na, r ai va da vel ha e cól er a dos homens. Zi co pr opôs- se a par t i r i ncont i nent i na peugada do bi l t r e, a f i m de quebr ar - l he a car a. - Dei xe, meni no! O mundo dá vol t as. Um di a cr uzo- me com o l adr ão e j ust o cont as. Pobr es cast el os! Nada há mai s t r i st e que est es r epent i nos desmor onament os de i l usões. Os f or mosos pal ác i os d' Espanha, er i gi dos dur ant e um mês à

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cust a da mi r í f i ca di nhei r ama, f i zer am- se t aper as sombr i as. Dona I saur a chor ou at é os bol i nhos, a mant ei ga e os f r angos. Quant o a Zi l da, o desast r e oper ou como pé- de- vent o at r avés de pai nei r a f l or i da. Cai u de cama, f ebr i ci t ant e. Encovar am- se- l he as f aces. Todas as passagens t r ági cas dos r omances l i dos desf i l ar am- l he na memór i a; r ev i u- se na ví t i ma de t odos el es. E di as a f i o pensou no sui c í di o. Por f i m, habi t uou- se a essa i déi a e cont i nuou a vi ver . Teve azo de ver i f i car que i sso de mor r er de amor es, só em Escr i ch. Acaba- se aqui a hi st ór i a - par a a pl at éi a; par a as t or r i nhas segue ai nda por mei o pal mo. As pl at éi as cost umam i mpar umas t ant as f i nur as de bom gost o e t om mui t o de r i r ; ent r am no t eat r o depoi s de começada a peça e saem mal as ameaça o epí l ogo. Já as gal er i as quer em a coi sa pel o compr i do, a j ei t o de apr ovei t ar o r i co di nhei r i nho at é o der r adei r o v i nt ém. Nos r omances e cont os, pedem esmi uçament o compl et o do enr edo; e se o aut or , l evado por f ór mul as de escol a, l hes ar r uma par a ci ma, no mel hor da f est a, com a caudi nha r et i cenci ada a que chama " not a i mpr essi oni st a" , f r anzem o nar i z . Quer em saber - e f azem mui t o bem - se Ful ano mor r eu, se a meni na casou e f oi f el i z, se o homem af i nal vendeu a f azenda, a quem e por quant o. Sã, humana e r espei t abi l í ss i ma cur i osi dade! - Vendeu a f azenda o pobr e Mor ei r a? Pesa- me conf essá- l o: não! E não a vendeu por ar t es do mai s i nconcebí vel qüi pr oquó de quant os t em ar mado nest e mundo o di abo - s i m, por que af or a o di abo, quem é capaz de i nt r i ncar os f i os da meada com l aços e nós cegos, j ust ament e quando vai a f el i z r emat e o cr ochê? O acaso deu a Tr ancoso uma sor t e de ci nqüent a cont os na l ot er i a. Não se r i am. Por que mot i vo não havi a Tr ancoso de ser o escol hi do, se a sor t e é cega e el e t i nha no bol so um bi l het e? Ganhou os c i nqüent a cont os, di nhei r o que par a um pé- at r ás daquel a mar ca er a si gni f i cat i vo de gr ande r i queza. De posse do bol o, após semanas de t ont ei r a, del i ber ou af azendar - se. Quer i a t apar a boca ao mundo r eal i zando uma coi sa j amai s passada pel a sua cabeça: compr ar f azenda. Cor r eu em r evi s t a quant as v i si t ar a dur ant e os anos de mal andr agem, pr opendendo, af i nal , par a a Espi ga. I a ni sso, sobr et udo, a l embr ança da meni na, dos bol i nhos da vel ha e a i déi a de met er na admi ni s t r ação ao sogr o, de j ei t o a f ol gar - se uma v i da vadi a de r egal os, embal ado pel o amor de Zi l da e os r equi nt es cul i nár i os da sogr a. Escr eveu, poi s ao Mor ei r a anunci ando- l he a vol t a, a f i m de f echar - se o negóci o. Ai , ai , ai ! Quando t al car t a penet r ou na Espi ga houve r ugi dos de cól er a, ent r emei o a buf os de v i ngança. - É agor a! - ber r ou o vel ho. - O l adr ão gost ou da pândega e quer r epet i r a dose. Mas dest a f ei t a cur o- l he a bal da, or a se cur o! - concl ui u, esf r egando as mãos no ant egozo da vi ngança. No mur cho cor ação da pál i da Zi l da, ent r et ant o, bat eu um r ai o de esper ança. A noi t e de su' al ma al vor ej ou ao l uar

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de um " Quem sabe?" Não se at r eveu, t odavi a, a ar r ost ar a cól er a do pai e do i r mão, concer t ados ambos num t r emendo aj ust e de cont as. Conf i ou no mi l agr e. Acendeu out r a vel i nha a Sant o Ant ôni o. . . O gr ande di a chegou. Tr ancoso r ompeu à t ar de pel a f azenda, car acol ando o r os i l ho. Desceu Mor ei r a a esper á- l o embai xo da escada, de mãos às cost as. Ant es de sof r ear as r édeas, j á o amável pr et endent e abr i a- se em excl amações. - Or a vi va, car o Mor ei r a! Chegou enf i m o gr ande di a. Dest a vez, compr o- l he a f azenda. Mor ei r a t r emi a. Esper ou que o bi l t r e apeasse e mal Tr ancoso, l ançando as r édeas, di r i gi u- se- l he de br aços aber t os, t odo r i sos, o vel ho saca de sob o pal et ó um r abo de t at u e r ompe- l he par a ci ma com í mpet o de quei xada. - Quer es f azenda, gr andí ss i mo t r anca? Toma, t oma f azenda, l adr ão! - e l ept e, l ept e, f i nca- l he r i j as r abadas col ér i cas. O pobr e r apaz, t ont eando pel o i mpr evi s t o da agr essão, cor r e ao caval o e mont a às cegas, de passo que Zi co l he sacode no l ombo nova sér i e de l ambadas de agr avadí ssi mo ex- quase- cunhado. Dona I saur a at i ça- l he os cães: - Pega, Br i nqui nho! Fer r a, Jol i ! O mal - azar ado compr ador de f azendas, acuado como r aposa em t er r ei r o, dá de espor as e f oge à t oda, sob uma chuva de i nsul t os e pedr as. Ao cr uzar a por t ei r a i nda t eve ouvi dos par a di st i ngui r na gr i t a os desaf or os esgani çados da vel ha: - Comedor de bol i nhos! Papa- mant ei ga! Toma! Em out r a não hás de cai r , l adr ão de ovo e car á! . . . E Zi l da? At r ás da vi dr aça, com os ol hos pi sados do mui t o chor ar , a t r i s t e meni na v i u desapar ecer par a sempr e, envol t o em uma nuvem de pó, o caval ei r o gent i l dos seus dour ados sonhos. Mor ei r a, o cai por a, per di a assi m naquel e di a o úni co negóci o bom que dur ant e a v i da i nt ei r a l he depar ar a a For t una: o dupl o descar t e - da f i l ha e da Espi ga. . . Not as: 1. Fei j ão- br avo: Pl ant as venenosas par a o gado. 2. Assi s Br asi l ; 3. Ant ôni o Pr ado; 4. Lui z Per ei r a Bar r et o; 5. Eduar do Cot r i m, homens de mui t a aut or i dade em assunt os de pecuár i a, na época; 6. José Bezer r a, mi ni st r o da Agr i cul t ur a. O est i gma Fui um di a a I t aoca l evado pel as si mpl es i ndi cações do suj ei t o que me al ugou a caval gadur a. - Não t em er r ada, é i r andando. Em caso de dúvi da, pegue a t r i l ha dos car r os que vai cer t o. Assi m f i z e l á cheguei sem novi dade.

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No di a da vol t a, por ém, choveu à noi t e como só chove por aquel es socavões, e na pr i mei r a encr uzi l hada par ei desnor t eado. Como o enxur r o houvesse di l uí do t odos os sul cos da car r ar i a, al i f i quei al guns mi nut os f ei t o o asno de Bur i dan, à esper a d' al gum passant e que me abr i sse os ol hos. Não apar eceu v i v ' al ma, e mi nha i mpaci ênci a empur r ou- me ao acaso por uma das per nas do V embar açador . Cami nhei cer ca de hor a na dúvi da, at é que a v i s t a duma f azenda desconheci da me deu a cer t eza do t r ansvi o. Resol v i por t ar . Abei r o- me do por t ão e gr i t o o " ó de casa" . Abr e- mo um negr o vel ho, ocupado em abanar f ei j ão no t er r ei r o. - O pat r ãozi nho é l á em ci ma, na casa- gr ande. Di r i j o- me par a l á, depoi s de ent r egue o caval o, e subo a escadar i a de pedr a f r ont ei r i ça ao casar ão senhor i al . Um gr upo de cr i anças br i ncava por al i , em t or no de uma f oguei r i nha de cavacos f umar ent os. - Fumaça par a l á, sant i nha par a cá! Ao avi st ar em- me, cal ar am- se e f ugi r am, com exceção da mai s t al uda, que per maneceu no l ugar , esf r egando os ol hos aver mel hados e l acr i mosos do f umo. - Papai est á? Est ava e i a chamá- l o r espondeu, esguei r ando- se pel a casa adent r o. As out r as, com o dedi nho na boca, v i a- as a me espi ar em da por t a, à qual l ogo assomou esbel t a meni na aí ent r e quat or ze e dezessei s anos, de avent al azul e cor ada como quem est eve a l i dar em f or no. - Faça o f avor de ent r ar ! - di sse- me com l i nda voz, sor r i dent e, de passo que seus ol hos vi vos t odo me exami navam d' al t o a bai xo, num r el ance. - Sent e- se e esper e um bocadi nho. - A meni na é f i l ha do. . . - Não, senhor . Pr i ma. Mas mor o aqui des ' que mor r er am meus pai s. - Tão nova e j á ór f ã! . . . - De pai e mãe. Ti nha sei s anos quando os per di na f ebr e amar el a de Campi nas. O pr i mo t r ouxe- me de l á e. . . Aqui r angeu a por t a e enquadr ou- se nel a o dono da casa. Reconhecemo- nos i ncont i nent i , com i gual espant o. - Br uno! - ber r ou el e. - Que mi l agr e! - E t u, Faust o, onde t e vi m desent ocar , eu que esper ava ver sur gi r um mat ut ão desconf i ado! Abr aços, expl i cações, per gunt as at r opel adas. Faust o não cessava de admi r ar a coi nci dênci a. - Há quant os anos não nos vemos? Dez, no mí ni mo. . . - Desd' a opa da col ação de gr au. Como passa o t empo! . . . Poi s, meu car o, pr endo- t e por cá. Já não t e vai s daqui sem conhecer o meu sei o de Abr aão e mat ar bem mat adas as saudades. Dur ant e est as expansões, a meni na do avent al não ar r edou pé da sal a, e eu, vol t a e mei a r egal ava meus ol hos na l i nda cr i at ur a que el a er a. Faust o, per cebendo- o, apr esent ou- ma. - Laur i t a, mi nha pr i ma. . . - Já nos conhecemos - di sse eu. - Donde? - exc l amou Faust o sur pr eso.

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- Daqui mesmo, de há ci nco mi nut os. - Far s i s t a! Ol ha, Laur a, vê l á que nos t r agam o caf é par a aqui ! A meni na, ao r et i r ar - se, pôs no andar esse r equebr o que o i nst i nt o aconsel ha às moças na pr esença de um homem casadoi r o. - Gal ant i nha, hei n? - di sse Faust o, mal se f echou a por t a. - Li nda! - exc l amei , car r egando com f úr i a o i . - Que f r escur a! Que cor ado! - O cor ado cor r e à cont a do f or no. Est ão l á t odos a assar bol i nhos de mi l ho. Não conheces mi nha mul her ? Famí l i a Leme, da Pedr a Fr i a. Casei - me l ogo depoi s de f or mado, e aqui v i vo al t er nando sei s meses de r oça com out r os t ant os de capi t al . - Excel ent e vi da! É o sonho de t oda a gent e. - Não me quei xo, nem quer o out r a. - Col hest e, ent ão, o pomo da f el i c i dade? Faust o não r espondeu, e como o caf é ent r asse no moment o, a conver sa mudou de r umo. Tr ouxe- o Laur a, com bol i nhos quent es. - Est ou adi v i nhando, dona Laur i t a, que est e f oi enr ol ado pel as suas mãos! - gal ant eei eu, t omando um del es. - Qual ? - acudi u a meni na. - Esse que t em mar ca de car r et i l ha? - Si m! El a desf er i u a mai s sonor a das r i sadi nhas. - Just ament e os que t êm mar ca são da Lucr éci a. . . - Or a você, cascal hou Faust o, a conf undi r as ar t es da pr i ma com as da pr et a! - Os meus são est es - di sse Laur a, apont ando os não car r et i l hados. Pr ovei um, e: - Real ment e, a di f er ença é enor me. Novo pi zz i cat o da meni na. - Poi s a massa é a mesma e t udo t emper o da Lucr éci a. . . Faust o pôs f i m aos meus desazos convi dando- me par a sai r . - Est ás mui t o chucr o no gal ant ei o. Vem daí ver a cr i ação, que é o mel hor . Saí mos e per cor r emos t oda a f azenda, o chi quei r ão dos canast r ões, o cer cado das aves de r aça, o t anque dos Peki ns; vi mos as cabr as Toggenbur g, o gado Jer sey, a máqui na de caf é, t odas essas coi sas comuns a t odas as f azendas e que no ent ant o exami namos sempr e com r eal pr azer . Faust o er a f azendei r o amador . Tudo al i demonst r ava l ogo di spêndi o de di nhei r o sem a pr eocupação da r enda pr opor ci onal ; t r az i a- a no pé de quem não necessi t a da pr opr i edade par a vi ver . Ao j ant ar apr esent ou- me a sua mul her . Não condi sse com o mol de que cá t enho de boa mul her a esposa do meu ami go. De f ei ções dur as, ol har d' ave de r api na, nar i z agudo, er a posi t i vament e f ei a e pr ovavel ment e ma. Compr eendi o caso do meu Faust o: casar a r i co. A f azenda v i er a- l he às mãos por i nt er médi o da esposa. Na pr esença del a Faust o mudava de t om. De nat ur al br i ncal hão, embezer r ava- se numa s i sudez que me er a est r anha; i sso me di sse que casar am os bens, os cor pos, mas não as al mas. Também Laur i t a se coi bi a, e as cr i anças most r avam um

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odi oso bom compor t ament o de met er dó. A mul her gel ava- os a t odos com o ol har dur o e mau de senhor a absol ut a. Foi um al í v i o o er guer - nos da mesa. Faust o l embr ar a um gi r o pel os caf ezai s e como j á est i vessem ar r eadas as caval gadur as, par t i mos. Sem demor a vol t ou o meu ami go à expansi bi l i dade ant er i or , com a al egr e despr eocupação dos anos acadêmi cos. A conver sa cor r eu por mi l ver edas e por f i m embi cou par a o t ema casament o. - Aquel e nosso hor r or à col ei r a mat r i moni al ! Como esbanj ávamos di at r i bes cont r a o amor sacr ament o, benzi do pel o padr e, gat af unhado pel o escr i vão. . . Lembr as- t e? - E est amos a pagar a l í ngua. É sempr e assi m na vi da: a l i bér r i ma t eor i a por c i ma e a t r ama f ér r ea das i nj unções por bai xo. O casament o! . . . Não o def i no hoj e com o pet ul ant e ent ono de sol t ei r o. Só di go que não há casament o - há casament os. Cada caso é um especi al . - Tendo al i ás de comum - di sse eu - um mesmo t r aço: r est r i ção da per sonal i dade. - Si m. é mi st er que o homem ceda ci nqüent a por cent o e a mul her out r os t ant os par a que haj a o equi l í br i o r azoável a que chamamos f el i c i dade conj ugal . - " Fel i c i dade conj ugal " , di zes bem, r est r i ngi ndo com o adj et i vo a ampl i dão do subst ant i vo. A v i s t a do caf ezal i nt er r ompeu- nos as conf i dênci as. Er a set embr o, e o aspect o das ár vor es est r el ej adas de f l or i nhas dava uma sensação f ar t a de r i queza e f ut ur o. Cor r emo- l o em par t e, gozando o " pr azer paul i st a" de ver ondul ar por espi gões e gr ot as a onda ver de- escur a dos caf eei r os al i nhados. - No t eu caso - per gunt ei - f ost e f el i z? Faust o r et ar dou a r espost a, mast i gando- a. - Não sei . Cedi os c i nqüent a, e esper o que mi nha mul her i mi t e a mi nha abnegação. El a por ém, mai s t enaz, embi r r a em não chegar a t ant o. Pr ocur amos o equi l í br i o ai nda. . . - E Laur a? - per gunt ei est ouvadament e. . . Faust o vol t ou- se de gol pe, f er i do pel a per gunt a. Encar ou- me a f i t o, vaci l ant e em r evel ar - me o f undo de sua al ma. Depoi s, como at r avessássemos um sombr i o t r echo de cami nho, com, bar r ancos aci ma, avencas vi çosas, samambai as e begôni as agr est es, di sse apont ando par a aqui l o: - Sabes o que é uma f ace nor uega? Cá t ens uma. Não bat e o sol . Mui t a f ol ha, mui t o v i ço, ver des car r egados, mas nada de f l or es ou f r ut as. Sempr e est a f r i al dade úmi da. Laur a. . . É como um r ai o de sol mat ut i no que f ol ga e r i na f ace nor uega da mi nha v i da. . . Cal ou- se, e at é à casa não mai s pr onunci ou uma só pal avr a. Compr eendi a s i t uação do meu quer i do Faust o, e não l he i nvej ei as r i quezas adqui r i das por semel hant e pr eço. Dei xei o Par aí so, que assi m se chamava a f azenda, com t r ês i mpr essões n' al ma: del i c i osa, a da meni na dos bol i nhos, no seu avent al azul , cor ada como as r omãs; penosa, a da meger a ent r evi s t a na cr i at ur a f ei a e má, r i ca o suf i c i ent e par a adqui r i r mar i do como quem adqui r e um ani mal de l uxo. A t er cei r a não a def i ne aí qual quer adj et i vo espi pado - compl exa, sut i l em demasi a par a caber em mol des vul gar es. Er a o vago pr essent i r duma equação sent i ment al cuj os t er mos o r ai o de sol , a f ace nor uega e o meu Faust o - vagament e per ambul avam dent r o da mi nha i magi nat i va, às cabr i ol as.

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Nunca t or nei àquel as bandas, nem o acaso me f ez encont r adi ço com qual quer das t r ês per sonagens. Est e mundo, ent r et ant o, é uma bol a pequeni na. Vol v i dos v i nt e anos, est ava eu par ado di ant e duma v i t r i na no Ri o de Janei r o, quando al guém me cut ucou as cost el as. - Tu, Faust o! - Eu s i m, Br uno! Envel hecer a Faust o quar ent a anos naquel es vi nt e de desencont r o, e o t empo mur char a- l he a expansi bi l i dade f ol gazã. Enquant o pal est r ávamos, uma a uma subi am- me à t ona da memór i a as cenas e pessoas do Par aí so, a f asc i nant e Laur i t a à f r ent e. Per gunt ei por el a em pr i mei r o. - Mor t a! - f oi a r espost a seca e t or va. Como nas hor as cl ar as do ver ão nuvem er r adi a t apando às súbi t as o sol põe na pai sagem manchas mor macent as de sombr as, ass i m aquel a pal avr a nos vel ou a ambos a al egr i a do encont r o. - E t ua mul her ? Os f i l hos? - Também mor t a, a mul her . Os f i l hos, por aí , casados uns, o úl t i mo ai nda comi go. Meu car o Br uno, o di nhei r o não é t udo na v i da, e pr i nc i pal ment e não é pár a- r ai os que nos ponha a sal vo de cor i scos a cabeça. Mor o na r ua t al ; apar ece l á à noi t e que t e cont ar ei a mi nha hi st ór i a - e gaba- t e, poi s ser ás a úni ca pessoa a quem r evel ar ei o i nf er no que me sai u o Par ai so. . . Ei s o que ouvi : - Quando a f ebr e amar el a em Campi nas or f anou Laur i t a, eu, como o par ent e mai s bem condi ci onado, t r ouxe- a a mor ar conosco. Ti nha el a c i nco anos e j á pr enunci ava nas gr aças i nf ant i s a encant ador a meni na que ser i a. Eu est ava casado de f r esco e er r ar a no casament o. Mi nha mul her - não o suspei t ast e naquel e j ant ar ? - er a uma cr i at ur a vi scer al ment e má. O " má" na mul her di z t udo; di spensa mai or gast o de expr essões. Quando ouvi r es de uma mul her que é má, não peças mai s: f oge a set e pés. Se eu f or a r ef azer o I nf er no, acabar i a com t ant os cí r cul os que l á pôs o Dant e, e em l ugar met er i a de guar da aos pr eci t os uma dúzi a de meger as. Havi am de ver que par aí so er am, em compar ação, os cí r cul os. . . Conf esso que não casei por amor . Est ava bachar el e pobr e. Vi pel a f r ent e o mar asmo da magi st r at ur a e a v i t ór i a r ápi da do casament o r i co. Opt ei pel a v i t ór i a r ápi da, descur i oso de sondar par a onde me l evar i a a áur ea ver eda. O dot e, gr ande, val i a, ou par eceu- me val er , o sacr i f í c i o. Er r ei . Com a exper i ênci a de hoj e, agar r ava a mai s r el es das pr omot or i as. O v i ver que l evamos não o desej o como cast i go ao pi or cel er ado. - A f ace nor uega! . . . - Er a exat a a compar ação, gél i da como nos cor r i a o vi ver conj ugal no per í odo em que, i l udi dos, cont empor i závamos, t ent ando um equi l í br i o i mpossí vel . Depoi s t or nou- se- nos i nf er nal . Laur a, à pr opor ção que desabr ochava, r euni a em s i quant a f or mosur a de cor po, al ma e espí r i t o um poet a concebe em sonhos par a met er em poemas. Conl ui ava- se nel a a bel eza do Di abo, pr ópr i a da i dade, com a bel eza de Deus, per manent e - e o pobr e do t eu Faust o, um exi l ado em f r i a Si bér i a mat r i moni al , cor ação v i r gem de amor , não t eve mão

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de si , sucumbi u. No pei t o que supunha cal c i nado vi çou o per i gosí ssi mo amor dos t r i nt a anos. O vê- l a desl i zando por al i como a f ada mi mosa da t r i s t e mansão, or a a f l or i r um vaso, or a a amei gar os pequenos, j á cur ando os doent es pobr es da f azenda, sempr e i r r adi ando bel eza, f el i c i dade e gr aça, f oi - se- me t or nando a r azão do vi ver . Todas as gener osi dades e t odas as cor agens dos anos adol escent es bor bul har am em meu pei t o. Compr eendi a mi nha desgr aça: er a um cego a quem r est i t uí am os ol hos e que, desl umbr ado, vi a do f undo de um cár cer e, at r avés das r ei xas encr uzadas, a aur or a, a l uz, a v i da, t udo i nacessí vel . . . Vi t i mava- me a pi or cast a de amor - o amor secr et o. . . Cor r er am meses. Ao cabo, ou por que me t r aí sse o f ogo i nt er no ou por que o ci úme desse à mi nha mul her uma v i são de l i nce, t udo l eu el a dent r o de mi m, como se o cor ação me pul sasse num pei t o de cr i st al . Conheci , ent ão, um l úgubr e pedaço de al ma humana: a caver na onde mor am os dr agões do ci úme e do ódi o. O que escabuj ou mi nha mul her cont r a os " amási os" ! A cani nana envol v i a no mesmo i nsul t o a i nocênci a i gnor ant e e a nobr eza dum sent i ment o pur í ss i mo, r ecal cado no f undo do meu ser . I nt i mou- me a expul sá- l a i ncont i nent i . Resi st i . Af ast ar i a Laur a, mas não com a br ut eza exi gi da e de modo a me t r ai r per ant e el a e t odo o mundo. Er a a pr i mei r a vez que eu depoi s de casado r esi s t i a, e t al f i r meza encheu de assombr o a " senhor a" . Tenho cá na v i são o r i so de desaf i o que nesse moment o l he cr i spou a boca, e t enho n' al ma as c i cat r i zes das áscuas que espi r r ar am aquel es ol hos. Apanhei a l uva. Est as guer r as conj ugai s por t as adent r o! . . . Não há aí l ut a ci v i l que se l he compar e em cr ueza. Na f r ent e de est r anhos, de Laur a e dos f i l hos, cont i nha- se. Mal t r at ava a pobr e meni na, mas sem r evel ar a ver dadei r a causa da per segui ção. A sós comi go, por ém, que i nf er no! Dur ou pouco i sso. Escr evi a par ent es, e dava os pr i mei r os passos par a a ar r umação de Laur a, quando. . . Não t e r ecor das do bosque de pi nhei r os pl ant ados em segui ment o ao pomar ? - O pi nhal d' Azambuj a! - Foi o nome que l he pus, como andassem uns l agar t ões, seus f r egueses, a me pi l har em as capoei r as. Esse pi nhal er a o passei o f avor i t o de Laur a. Emboscava- se nel e com um l i vr o, ou com a cost ur a, e dess ' ar t e sossegava um moment o da i nf er nei r a domést i ca. Um di a em que saí à caça, menos pel a caçada do que par a r et emper ar - me da guer r a casei r a na paz das mat as, ao mont ar a caval o v i - a di r i gi r - se par a l á com o cest i nho de cost ur a. Demor ei - me mai s do que o usual , e em vez de paca t r ouxe uma l onga medi t ação desani mador a, f ei t a de papo aci ma, i nda me l embr o, sob a f r ont e de enor me guabi r obei r a. Ao pi sar no t er r ei r o, v i as cr i anças a me esper ar em na escada, assust adi nhas. - " Papai não v i u Laur a?"

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- " Laur a?" Est r anhei a per gunt a, e mai s ai nda vendo apr oxi mar - se a vel ha Lucr éci a, que di sse: - " Não vá t er acont eci do al guma par a Nhá Laur i t a, pat r ão! Sai u cedo, ant es do caf é, j á é quase noi t e e nada de vol t ar . " - " A senhor a. . . " , comecei eu a per gunt ar não sabi a ai nda o que. - " Si nhá est á no quar t o. Andou pel o pomar , vol t ou e se t r ancou por dent r o. Não quer enxer gar ni nguém, par ece que comeu cobr a. . . " O cor ação pal pi t ou- me v i ol ent o e saí em pr ocur a de Laur i nha. I ndaguei no t er r ei r o: ni nguém a vi r a. Lembr ei me do pi nhal e or gani zei uma al vor oçada bat i da ao bosque. Com f achos i ncendi dos de gal haça mor t a quebr amos a escur i dão r ei nant e. - " Nada! " Eu desani mava j á de encont r á- l a por al i , quando um capat az, desgar r ado à f r ent e, gr i t ou: - Cer t o bosque de Por t ugal onde se j unt avam bandi dos. - " Est á aqui um cest i nho! " Cor r emos t odos. Est ava l á o cest i nho de cost ur a, mai s adi ant e. . . o cor po f r i o da meni na. Mor t a, à bal a! A bl usa ent r eaber t a most r ava no ent r essei o uma f er i da: um pequeno f ur o negr o donde f l uí a par a as cost el as f i na esf r i a de sangue. Ao l ado da mão di r ei t a i ner t e, o meu r evól ver . Sui ci dar a- se. . . Não t e di go o meu desesper o. Esqueci mundo, conveni ênci as, t udo, e bei j ei - a l ongament e ent r e ar quej os e sacões de angúst i a. Tr ouxer am- na a br aços. Em casa, mi nha mul her , ent ão gr ávi da, r ecusou- se a ver o cadáver com pr et ext o do est ado, e Laur a desceu à cova sem que el a por um só moment o dei xasse a c l ausur a. Not e você i s t o: " Mi nha mul her não v i u o cadáver da meni na. Di as depoi s, humani zou- se. Dei xou a cel a, vol t ando à vi da do cost ume, mui t o mudada de gêni o, ent r et ant o. Cessar a a exal t ação ci umosa do ódi o, sobr evi ndo em l ugar um mut i smo sombr i o. Pouquí ssi mas pal avr as l he ouvi daí por di ant e. A mi m, o sui cí di o de Laur a, sobr e sacudi r - me o or gani smo como o pi or dos t er r emot os, pr eocupava- me como i nsol úvel eni gma. Não compr eendi a aqui l o. . Suas úl t i mas pal avr as em casa, seus úl t i mos at os, nada i nduzi a o hor r í vel desenl ace. Por que se mat ar i a Laur a? Como consegui r a o r evól ver , guar dado sempr e no meu quar t o, em l ugar só de mi m e de mi nha mul her sabi do? Uma i nspeção nos seus guar dados não me escl ar eceu mel hor ; nenhuma car t a ou escr i t o j udi c i oso. Mi st ér i o! Mas cor r er am os meses e um bel o di a mi nha mul her deu à l uz um meni no. Que t r agédi a! Dói - me a cabeça o r ecor dá- l a. A vel ha Lucr éci a, auxi l i ar da par t ei r a, f oi quem vei o à sal a com a not í ci a do bom sucesso. - " Dest a vez f oi um meni não! " , di sse el a. " Mas nasceu mar cado. . . "

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- " Mar cado?" - " Tem uma mar ca no pei t o, uma cobr i nha cor al de cabeça pr et a. " I mpr essi onado com a esqui s i t i ce, di r i gi - me par a o quar t o. Acer quei - me da cr i ança e desf i z as f ai xas o necessár i o par a exami nar - l he o pei t i nho. E v i . . . v i um est i gma que r epr oduzi a com exat i dão o f er i ment o de Laur i nha: um núcl eo negr o, i mi t ant e ao f ur o da bal a, e a " cobr i nha" , uma est r i a envi esada pel as cost el as abai xo. Um r ai o de l uz i nundou- me o espí r i t o. Compr eendi t udo. O f et o em f or mação nas ent r anhas da mãe f or a a úni ca t est emunha do cr i me e, mal nasci do, denunci ava- o com esmagador a ev i dênci a. - " El a j á v i u i st o?" - per gunt ei à par t ei r a. - " Não! Nem é bom que vej a ant es de sar ada. " Não me cont i ve. Escancar ei as j anel as, der r amei ondas de sol no aposent o, despi a cr i ança e er gui - a ant e os ol hos da mãe; di zendo com f r i eza de j ui z: - " Ol ha, mul her , quem t e denunci a! " A par t ur i ent e er gueu- se de gol pe, r ecuou da t est a as madei xas sol t as e cr avou os ol hos no est i gma. Esbugal houos como l ouca, à medi da que l he al cançava a si gni f i cação. Depoi s er gueu- se de gol pe, e pel a pr i mei r a vez aquel es ol hos dur os se t ur var am ant e a f i x i dez i nexor ável dos meus. Em segui da mol eou o cor po, descai ndo par a os t r avessei r os, venci da. Sobr evei o- l he uma cr i se à noi t e. Acudi r am médi cos. Er a f ebr e puer per al sob f or ma gr aví ss i ma. Mi nha mul her r ecusou obst i nadament e qual quer medi cação e mor r eu sem uma pal avr a, f or a as i nconsci ent es escapas nos moment os de del í r i o. . . Mal concl uí r a Faust o a conf i dênci a daquel es hor r or es, abr i u- se a por t a e ent r ou na sal a um r apazi nho i mber be. - Meu f i l ho - di sse el e - , most r a ao Br uno a t ua cobr i nha. O moço desabot oou o col et e; ent r eabr i u a cami sa. Pude ent ão ver o est i gma. Er a per f ei t a i l usão: l á est ava a i magem do or i f í c i o aber t o pel o pr oj ét i l e o do f i o de sangue escor r i do. Vej a você, concl ui u o meu t r i s t e ami go, os capr i chos da Nat ur eza. . . - Capr i chos de Nêmesi s. . . - i a eu di zendo, mas o ol har do pai cor t ou- me a pal avr a: o moço i gnor ava o cr i me de que f or a el e pr ópr i o el oqüent e del at or . Pr ef ác i o da 2ª edi ção de URUPÊS Esgot ada num mês a pr i mei r a edi ção dest e l i vr o, sai agor a a segunda, aument ada, r evi s t a e com vár i os pr onomes r ecol ocados pel o sr . Adal gi so Per ei r a, excel ent e ami go que ai nda a enr i queceu de numer osas ví r gul as, aspas, hí f ens e out r as mi udezas cuj a ausênci a empobr eci a o or i gi nal . E par a el a ent r a mai s uma, como di r ei ? - o gêner o é i nc l assi f i cável - uma " i ndi gnação" : " Vel ha pr aga" . E t ambém o ar t i go " Ur upês" . Expl i ca- se. " Vel ha pr aga" é a ver dadei r a mãe dest e l i vr o, e não ser i a j ust o separ ar a mãe do f i l ho. Foi assi m o caso. Em 1914, nos pr i mei r os meses da

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guer r a, o aut or não passava de humi l de l avr ador , i ncr ust ado na ser r a da Mant i quei r a. Ter r í vel ano de seca f oi aquel e! O f ogo l avr ou dur ant e doi s meses a f i o, com f úr i a i nf er nal . céu t ol dado, o ar espesso, o cr epi t ar per manent e das mat as em chama, a f umar ada i nvadi ndo a casa, os ol hos a ar der em. . . Um f i m de mundo. E sempr e not í c i as más, a t oda hor a. - Rebent ou out r o f ogo no Var j ão! - v i nha di zer um agr egado. . ( 1) Mal se i a aquel e, vi nha out r o: - Pat r ão, o Tr abi j u est á quei mando! - Ent ão, j á sei s? - É ver dade. Há o f ogo do Tei xei r i nha, o f ogo do Manet a, o f ogo do Jeca. . . - Fogos s i gnés! . . . Que pat i f es! Mas hão de pagar . Denunci o- os t odos à pol í ci a. O capat az sor r i u. - Não val e a pena. São el ei t or es do gover no; o pat r ão não ar r anj a nada. - Mas não haver á ao menos um i ncendi ár i o oposi c i oni st a que possa pagar o pat o? - Não vê! Cabocl o é al i f i r me no gover no j ust ament e p' r ' amor do f ogo. Ti nha r azão o homem. Er am t odos do gover no. E o el ei t or da r oça, em paga da f i del i dade par t i dár i a, goza- se do di r ei t o de quei mar o mat o al hei o. I mpossi bi l i t ado de agi r cont r a el es por mei o da j ust i ça, o pobr e f azendei r o l i mi t ou- se a " t ocar " al guns que er am seus agr egados e. . . a " v i r pel a i mpr ensa" . Escr eveu e mandou par a as " Quei xas e Recl amações" d' O Est ado de S. Paul o, a t al cat i l i nár i a mãe dos " Ur upês" . Esse j or nal , publ i cando- a f or a da seção de quei xas, est i mul ou o f azendei r o a r ei nci di r . Rei nc i di u. E quando deu acor do de s i , v i r ar a o que os not i c i ar i s t as gr avement e chamam um " homem de l et r as" . Or a aí est á como as coi sas se ar r umam, e como, por obr a e gr aça de mei a dúzi a de Ner os de pé- no- chão, ent r a a cor r er mundo mai s um l i vr o. Set embr o, 1918 Not a: Agr egado: Cat egor i a dos que l avr am por cont a pr ópr i a um pedaço de t er r a duma f azenda, pagando o uso do t er r eno com por cent agem nas col hei t as; meei r o. Vel ha pr aga O ar t i go " Vel ha pr aga" com que o t al f azendei r i nho " vei o pel a i mpr ensa" , er a o segui nt e: Andam t odos em nossa t er r a por t al f or ma est ont eados com as pr oezas i nf er nai s dos bel ací ssi mos " vons" al emães, que não sobr am ol hos par a enxer gar mal es casei r os. Venha, poi s , uma voz do ser t ão di zer às gent es da c i dade que se l á f or a o

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j ogo da guer r a l avr a i mpl acável , f ogo não menos dest r ui dor devast a nossas mat as, com f ur or não menos ger mâni co. Em agost o, por f or ça do excessi vo pr ol ongament o do i nver no, " von Fogo" l ambeu mont es e val es, sem um moment o de t r éguas, dur ant e o mês i nt ei r o. Vi er am em começos de set embr o chuvi nhas de apagar poei r a e, br eve, novo " ver ão de sol " se est i r ou por out ubr o adent r o, dando azo a que se t or r asse t udo quant o escapar a à sanha de agost o. A ser r a da Mant i quei r a ar deu como ar dem al dei as na Eur opa, e é hoj e um c i nzei r o i menso, ent r emeado aqui e acol á de manchas de ver dur a - as r est i ngas úmi das, as gr ot as f r i as, as nesgas sal vas a t empo pel a caut el a dos acei r os. Tudo o mai s é cr epe negr o. À hor a em que escr evemos, f i ns de out ubr o, chove. Mas que chuva cai nha! Que mi sér i a d' água! Enquant o caem do céu pi ngos homeopát i cos, medi dos a cont a- got as, o f ogo, amor t eci do mas não domi nado, amoi t a- se i ns i di oso nas pi úcas, ( 1) a f umegar i mper cept i vel ment e, pr ont o par a r ebent ar em chamas mal se l i mpe o céu e o sol l he dê a mão. Pr eocupa à nossa gent e c i v i l i zada o conhecer em quant o f i ca na Eur opa por di a, em f r ancos e cênt i mos, um sol dado em guer r a; mas ni nguém cui da de cal cul ar os pr ej uí zos de t oda sor t e advi ndos de uma assombr osa quei ma dest as. As vel has camadas de húmus dest r uí das; os sai s pr ec i osos que, br eve, as enxur r adas dei t ar ão f or a, r i o abai xo, vi a oceano; o r ej uvenesci ment o f l or est al do sol o par al i sado e r et r ogr adado; a dest r ui ção das aves s i l vest r es e o possí vel advent o de pr agas i nset i f or mes; a al t er ação par a o pi or do cl i ma com a agr avação cr escent e das secas; os vedos e ar amados per di dos; o gado mor t o ou depr eci ado pel a f al t a de past os; as cent o e uma par t i cul ar i dades que di zem r espei t o a est a ou aquel a zona e, dent r o del as, a est a ou aquel a " si t uação" agr í col a. I s t o, bem somado, dar i a al gar i smos de apavor ar ; i nf el i zment e, no Br asi l subt r ai - se; somar ni nguém soma. . . É pecul i ar de agost o, e t í pi ca, est a desast r osa quei ma de mat as; nunca, por ém, assumi u t amanha v i ol ênci a, nem al cançou t al ext ensão, como nest e t or t í ssi mo 1914 que, benza- o Deus, par ece apar ent ado de per t o como o cél ebr e ano 1000 de macabr a memór i a. Tudo nel e cul mi na, vai l ogo às do cabo, sem cont a nem medi da. As quei mas não f ugi r am à r egr a. Razão sobej a par a, dest a f ei t a, encar ar mos a sér i o o pr obl ema. Do cont r ár i o, a Mant i quei r a ser á em pouco t empo t oda um sapezei r o sem f i m, er i s i pel ado de samambai as esses doi s t ér mi nos à uber dade das t er r as mont anhosas. Qual a causa da r eni t ent e cal ami dade? É mi st er um r odei o par a chegar l á. A nossa mont anha é ví t i ma de um par asi t a, um pi ol ho da t er r a, pecul i ar ao sol o br asi l ei r o como o Ar gas o é aos gal i nhei r os ou o Sar copt es mut ans à per na das aves domést i cas. Poder í amos, anal ogi cament e, c l ass i f i cá- l o ent r e as var i edades do Por r i go decal vans, o par asi t a do cour o cabel udo

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pr odut or da " pel ada" , poi s que onde el e assi s t e ( 2) se vai despoj ando a t er r a de sua coma veget al at é cai r em mor na decr epi t ude, nua e descal vada. Em quat r o anos, a mai s uber t osa r egi ão se despe dos j equi t i bás magní f i cos e das per obei r as mi l enár i as - seu or gul ho e gr andeza, par a, em achi ncal he cr escent e, cai r em capoei r a, passar dest a à humi l dade da vassour i nha e, descendo sempr e, encr uar def i ni t i vament e na desdi t a do sapezei r o - sua t or t ur a e ver gonha. Est e f unest o par asi t a da t er r a é o CABOCLO, espéci e de homem bal di o, semi nômade, i nadapt ável à c i vi l i zação, mas que v i ve à bei r a del a na penumbr a das zonas f r ont ei r i ças. A medi da que o pr ogr esso vem chegando com a v i a f ér r ea, o i t al i ano, o ar ado, a val or i zação da pr opr i edade, vai el e r ef ugi ndo em s i l ênci o, com o seu cachor r o, o seu pi l ão, a pi ca- pau ( 3) e o i squei r o, de modo a sempr e conser var - se f r ont ei r i ço, mudo e sor na. Encoscor ado numa r ot i na de pedr a, r ecua par a não adapt ar - se. É de vê- l o sur gi r a um sí t i o novo par a nel e ar mar a sua ar apuca de " agr egado" ; nômade por f or ça de vagos at av i smos, não se l i ga à t er r a, como o campôni o eur opeu " agr ega- se" t al qual o " sar copt e" , pel o t empo necessár i o à compl et a sucção da sei va convi z i nha; f ei t o o que, sal t a par a di ant e com a mesma bagagem com que al i chegou. Vem de um sapezei r o par a cr i ar out r o. Coexi st em em í nt i ma s i mbi ose; sapé e cabocl o são vi das associ adas. Est e i nvent ou aquel e e l he di l at a os domí ni os; em t r oca, o sapé l he cobr e a choça e l he f or nece f achos par a quei mar a col méi a das pobr es abel has. Chegam si l enci osament e, el e e a " sar copt a" f êmea, est a com um f i l hot e no út er o, out r o ao pei t o, out r o de set e anos à our el a da sai a - est e j á de pi t i nho na boca e f aca à c i nt a. Compl et am o r ancho um cachor r o sar nent o - Br i nqui nho - a f oi ce, a enxada, a pi ca- pau, o pi l ãozi nho de sal , a panel a de bar r o, um sant o encar di do, t r ês gal i nhas pevas e um gal o í ndi o. Com est es s i mpl es i ngr edi ent es, o f azedor de sapezei r os per pet ua a espéci e e a obr a de est er i l i zação i ni ci ada com os r emot í ss i mos avós. Acampam. Em t r ês di as uma choça, que por euf emi smo chamam casa, br ot a da t er r a como um ur upê. Ti r am t udo do l ugar , os est ei os, os cai br os, as r i pas, os bar r ot es, o c i pó que os l i ga, o bar r o das par edes e a pal ha do t et o. Tão í nt i ma é a comunhão dessas pal hoças com a t er r a l ocal , que dar i am i déi a de coi sa nasci da do chão por obr a espont ânea da nat ur eza - se a nat ur eza f osse capaz de cr i ar coi sas t ão f ei as. Bar r eada a casa, pendur ado o sant o, est á l avr ada a sent ença de mor t e daquel a par agem. Começam as r equi s i ções. Com a pi ca- pau, o cabocl o l i mpa a f l or est a das aves i ncaut as. Pól vor a e chumbo adqui r e- os vendendo pal mi t os no povoado v i z i nho. É est e um t r aço cur i oso da v i da do cabocl o e expl i ca o seu l ar go di spêndi o de pól vor a; quando o pal mi t o escassei a, r ar ei am os t i r os, só a caça gr ande mer ecendo sua car ga de chumbo; se o pal mi t al se ext i ngue, exul t am as pacas: est á encer r ada a est ação venat ór i a.

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Depoi s at aca a f l or est a. Roça e der r uba, não per doando ao mai s bel o pau. Ár vor es di ant e de cuj a maj est osa bel eza Ruski n chor ar i a de comoção, el e as der r i ba, i mpassí vel , par a ext r ai r um mel - de- pau escondi do num oco. Pr ont o o r oçado, e chegado o t empo da quei ma, ent r a em f unções o i squei r o. Mas aqui o " sar copt e" se f az r aposa. Como não i gnor a que a l ei i mpõe aos r oçados um acei r o de di mensões suf i c i ent es à ci r cunscr i ção do f ogo, ur de t r aças par a i l udi r a l ei , cocando dest ' ar t e a i ns i gne pr egui ça e a vel ha mal i gni dade. Ci sma o cabocl o à por t a da cabana. ( 4) Ci sma, de f at o, não devanei os l í r i cos, mas j ei t os de t r ansgr edi r as post ur as com a r esponsabi l i dade a sal vo. E consegue- o. Ar r anj a sempr e um ál i bi demonst r at i vo de que não est eve l á no di a do f ogo. Onze hor as. O sol quase a pi no quei ma como chama. Um " sar copt e" anda por al i , r essabi ado. Mi nut os após, cr epi t a a l abar eda i ni ci al , medr osa, numa t ouça mai s seca; osci l a i ncer t a; ondei a ao vent o; mas l ogo encor pa, cr esce, avul t a, t umul t ua i nf r ene e, senhor a do campo, est r uge f r agor osa com i nf er nal vi ol ênci a, devor ando as t r anquei r as, est ur r i cando as mai s al t as f r ondes, despej ando par a o céu gol f ões de f umo est r el ej ado de f aí scas. É o f ogo- de- mat o! E como não o det ém nenhum acei r o, esse f ogo i nvade a f l or est a e cami nha por el a adent r o, or a f r ouxo, nas capet i ngas ( 5) r al as, or a maci ço, aos est our os, nas moi t as de t aquar uçu; cami nha sem t r éguas, mor oso e t í bi o quando a noi t e f echa, i nsol ent e se o sol o aj uda. E vai gal gando mont es em ar r ancadas f ur i osas, ou descendo encost as a passo l ent o e t r ai çoei r o at é que o det enha a bar r agem nat ur al dum r i o, est r ada ou gr ot a nor uega. ( 6) Bar r ado, i nf l et e par a os f l ancos, l adei a o obst ácul o, dei xa- o par a t r ás, esguei r a- se par a os l ados - e l á cont i nua o abr asament o i mpl acável . Amor daçado por uma chuva r epent i na, al apa- se nas pi Úcas qui et o e i nvi s í vel , par a no di a segui nt e, ao esquent ar do sol , pr ossegui r na f ai na car boni zant e. Quem f oi o i ncendi ár i o? Donde par t i u o f ogo? I ndaga- se, descobr e- se o Ner o: é um ur umbeva qual quer , de bar ba r al a, amoi t ado num l i t r o ( 7) de t er r a l i t i gi osa. E agor a? Que f azer ? Pr ocessá- l o? Não há r ecur so l egal cont r a el e. A úni ca pena possí vel , bar at a, f ác i l e j á est abel eci da como pr axe, é " t ocá- l o" . Cur i oso est e pr ecei t o: " ao cabocl o, t oca- se Toca- se, como se t oca um cachor r o i mpor t uno, ou uma gal i nha que var ej a pel a sal a. E t ão af ei t o anda el e a i sso, que é comum ouvi - l o di zer : " Se eu f i zer t al coi sa, o senhor não me t oca?" Just i ça sumár i a - que não pune, ent r et ant o, dado o nomadi smo do paci ent e. Enquant o a mat a ar de, o cabocl o r egal a- se. - Et a f ogo boni t o! No vazi o de sua v i da semi - sel vagem, em que os i nci dent es são um j acu abat i do, uma paca f i sgada n' água ou o

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f i l ho novi mensal , a quei mada é o gr ande espet ácul o do ano, supr emo r egal o dos ol hos e dos ouvi dos. Ent r ado set embr o, começo das " águas" , o cabocl o pl ant a na t er r a em c i nzas um bocado de mi l ho, f ei j ão e ar r oz; mas o val or da sua pr odução é nenhum di ant e dos mal es que par a pr epar ar uma quar t a de chão el e semeou. O cabocl o é uma quant i dade negat i va. Tal a ci nqüent a al quei r es de t er r a par a ext r ai r del es o com que passar f ome e f r i o dur ant e o ano. Cal cul a as sement ei r as pel o máxi mo da sua r esi s t ênci a às pr i vações. Nem mai s, nem menos. " Dando par a passar f ome" , sem vi r em a mor r er di sso, el e, a mul her e o cachor r o - est á t udo mui t o bem; assi m f ez o pai , o avô; ass i m f ar á a pr ol e empanzi nada que naquel e moment o br i nca nua no t er r ei r o. Quando se exaur e a t er r a, o agr egado muda de sí t i o. No l ugar , f i cam a t aper a e o sapezei r o. Um ano que passe e só est e at est ar á a sua est ada al i ; o mai s se apaga como por encant o. A t er r a r eabsor ve os f r ágei s mat er i ai s da choça e, como nem sequer uma l ar anj ei r a el e pl ant ou, nada mai s l embr a a passagem por al i do Manoel Per oba, do Chi co Mar i mbondo, do Jeca Tat u ou out r os sons i gnar os, de dol or osa memór i a par a a nat ur eza ci r cunvi z i nha. Not as: 1. Pi úcas: Tocos semi car boni zados. 2. Assi s t e: Resi de; est á est abel eci do. 3. Pi ca- pau: Espi ngar da de car r egar pel a boca. 4. Cabana: Ver so de Ri car do Gonçal ves. 5. Capet i ngas: Capi ns de mat o dent r o, sempr e r al os, magr el as. 6. Gr ot a nor uega: Gr ot a f r i a onde não bat e o sol . 7. Li t r o: A t er r a se mede pel a quant i dade de mi l ho que nel a pode ser pl ant ada; daí , um al quei r e, uma quar t a, um l i t r o de t er r a. Ur upês Esbor oou- se o bal sâmi co i ndi ani smo de Al encar ao advent o dos Rondons que, ao i nvés de i magi nar em í ndi os num gabi net e, com r emi ni scênci as de Chat eaubr i and na cabeça e a I r acema aber t a sobr e os j oel hos, met em- se a pal mi l har ser t ões de Wi nchest er em punho. Mor r eu Per i , i ncompar ável i deal i zação dum homem nat ur al como o sonhava Rousseau, pr ot ót i po de t ant as per f ei ções humanas, que no r omance, ombr o a ombr o com al t os t i pos ci v i l i zados, a t odos sobr el eva em bel eza d' al ma e cor po. Cont r apôs- l he a cr uel et r ol ogi a dos ser t ani s t as moder nos um sel vagem r eal , f ei o e br ut esco, angul oso e desi nt er essant e, t ão i ncapaz. muscul ar ment e, de ar r ancar uma pal mei r a, como i ncapaz, mor al ment e, de amar Ceci . Por f el i c i dade nossa- e de D. Ant ôni o de Mar i z - não os v i u Al encar ; sonhou- os qual Rousseau. Do cont r ár i o, l á t er í amos o f i l ho de Ar ar é a moquear a l i nda meni na num bom br asi l ei r o de pau- br asi l , em vez de acompanhá- l a em ador ação pel as sel vas, como o Ar i el benf azej o do Paquequer . A sedução do i magi noso r omanci st a cr i ou f or t e cor r ent e.

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Todo o c l ã pl umi t i vo deu de f or j ar seu i ndi oz i nho r ef egado de Per i e At al a. Em sonet os, cont os e novel as, hoj e esqueci dos, consumi r am- se t abas i nt ei r as de ai mor és sanhudos, com v i r t udes r omanas por dent r o e penas de t ucano por f or a. Vi ndo o públ i co a bocej ar de f ar t o, j á cét i co ant e o cr escent e desmant el o do i deal , cessou no mer cado l i t er ár i o a pr ocur a de bugr es homéni cos, i núbi as, t acapes, bonés, pi agas e v i r gens br onzeadas. Ar mas e her ói s desandar am cabi sbai xos, r umo ao por ão onde se guar dam os móvei s f or a de uso, saudoso museu de ext i nt as pi l has el ét r i cas que a seu t empo gal vani zar am ner vos. E l á acamam poei r a cochi chando r emi ni scênci as com a bar ba de D. João de Cast r o, com os f r anki sks de Her cul ano, com os f r ades de Gar r et t e que t ai s . . . Não mor r eu, t odavi a. Evol ui u. O i ndi ani smo est á de novo a dei t ar copa, de nome mudado. Cr i smou- se de " cabocl i smo" . O cocar de penas de ar ar a passou a chapéu de pal ha r ebat i do à t est a; o ocar a vi r ou r ancho de sapé: o t acape af i l ou, cr i ou gat i l ho, dei t ou ouvi do e é hoj e espi ngar da t r oxada; o boné descai u l ament avel ment e par a pi o de i nambu; a t anga ascendeu a cami sa aber t a ao pei t o. Mas o subst r at o psí qui co não mudou: or gul ho i ndomável , i ndependênci a, f i dal gui a, cor agem, v i r i l i dade her ói ca, t odo o r echei o em suma, sem f al t ar uma azei t ona, dos Per i s e Ubi r aj ar as. Est e set embr i no r ebr ot ar duma ar t e mont a i nda se não desbagou de t odos os f r ut os. Ter á o seu " I Juca- Pi r ama" , o seu " Cant o do Pi aga" , e t al vez dê óper a l í r i ca. Mas, compl et ado o ci c l o, v i r ão dest r oçar o i nver no em f l or da i l usão i ndi ani s t a os pr osai cos demol i dor es de í dol os - gent e má e sem poesi a. I r ão os mal vados esgar avat ar o í cone com as cur et as da ci ênci a. E que f ei as se hão de ent r ever as cai pi r i nhas cor de j ambo de Fagundes Var el a! E que chambões e sor nas os Per i s de cal ça, cami sa e f aca à ci nt a! I sso, par a o f ut ur o. Hoj e ai nda há per i go em bul i r no vespei r o: o cabocl o é o " Ai Jesus! " naci onal . É de ver o or gul ho ent ono com que r espei t ávei s f i gur ões bat em no pei t o excl amando com al t i vez: Sou r aça de cabocl o! Anos at r ás, o or gul ho est ava numa ascendênci a de t anga, i nçada de penas de t ucano, com dr amas í nt i mos e f l echaços de cur ar e. Di a v i r á em que os ver emos, mur chos de pr osápi a, conf essar o ver dadei r o avô: - um dos quat r ocent os de Gedeão t r azi dos por Tomé de Souza ( 1) num bar co daquel es t empos, nosso mui nobr e e f ecundo Mayf l ower . Por que a ver dade nua manda di zer que ent r e as r aças de var i ado mat i z, f or mador as da naci onal i dade e met i das ent r e o est r angei r o r ecent e e o abor í gi ne de t abui nha no bei ço, uma exi s t e a veget ar de cócor as, i ncapaz de evol ução, i mpenet r ável ao pr ogr esso. Fei a e sor na, nada a põe de pé. Quando Pedr o I l ança aos ecos o seu gr i t o hi s t ór i co e o paí s desper t a est r ov i nhado à cr i se duma mudança de dono, o cabocl o er gue- se, espi a e acocor a- se de novo.

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Pel o 13 de Mai o, mal esvoaça o f l or i do decr et o da Pr i ncesa e o negr o exaust o l ar ga num uf ! o cabo da enxada, o cabocl o ol ha, coça a cabeça, ' magi na e dei xa que do vel ho mundo venha quem nel e pegue de novo. A 15 de Novembr o, t r oca- se um t r ono vi t al í c i o pel a cadei r a quadr i enal . O paí s best i f i ca- se ant e o i nopi nado da mudança. ( 2) O cabocl o não dá pel a coi sa. Vem Fl or i ano; est our am as gr anadas de Cust ódi o; Gumer ci ndo bat e às por t as de Roma; I nc i t át us der r anca o paí s. ( 3) O cabocl o cont i nua de cócor as, a modor r ar . . . Nada o esper t a. Nenhuma f er r ot oada o põe de pé. Soci al , como i ndi vi dual ment e, em t odos os at os da vi da, Jeca, ant es de agi r , acocor a- se. Jeca Tat u é um pi r aquar a do Par aí ba, mar avi l hoso epí t ome de car ne onde se r esumem t odas as car act er í s t i cas da espéci e. Ei - l o que vem f al ar ao pat r ão. Ent r ou, saudou. Seu pr i mei r o movi ment o após pr ender ent r e os l ábi os a pal ha de mi l ho, sacar o r ol et e de f umo e di spar ar a cuspar ada d' esgui cho, é sent ar - se j ei t osament e sobr e os cal canhar es. Só ent ão dest r ava a l í ngua e a i nt el i gênci a. - " Não vê que. . . De pé ou sent ado, as i déi as se l he ent namam, a l í ngua emper r a e não há de di zer coi sa com coi sa. De noi t e, na choça de pal ha, acocor a- se em f r ent e ao f ogo par a " aquent á- l o" , i mi t ado da mul her e da pr ol e. Par a comer , negoci ar uma bar ganha, i nger i r um caf é, t ost ar um cabo de f oi ce, f azê- l o nout r a posi ção ser á desast r e i nf al í vel . Há de ser de cócor as. Nos mer cados, par a onde l eva a qui t anda domi nguei r a, é de cócor as, como um f aqui r do Br amaput r a, que vi gi a os cachi nhos de br ej aúva ou o f ei xe de t r ês pal mi t os. Pobr e Jeca Tat u! Como és boni t o no r omance e f ei o na r eal i dade! Jeca mer cador , Jeca l avr ador , Jeca f i l ósof o. . . Quando compar ece às f ei r as, t odo o mundo l ogo adi v i nha o que el e t r az: sempr e coi sas que a nat ur eza der r ama pel o mat o e ao homem só cust a o gest o de espi char a mão e col her - cocos de t ucum ou j i çar a, guabi r obas, bacupar i s, mar acuj ás, j at aí s , pi nhões, or quí deas; ou ar t ef at os de t aquar apoca - penei r as, cest i nhas, sambur ás, t i pi t i s, pi os de caçador ; ou ut ensí l i os de madei r a mol e - gamel as, pi l õezi nhos, col her es de pau. Nada mai s. Seu gr ande cui dado é espr emer t odas as conseqüênci as da l ei do menor esf or ço - e ni st o vai l onge. Começa na mor ada. Sua casa de sapé e l ama f az sor r i r aos bi chos que mor am em t oca e gar gal har ao j oão- de- bar r o. Pur a bi boca de bosquí mano. Mobí l i a, nenhuma. A cama é uma espi pada est ei r a de per i post a sobr e o chão bat i do. Às vezes se dá ao l uxo de um banqui nho de t r ês per nas - par a os hóspedes. Tr ês per nas per mi t em equi l í br i o; i nút i l , por t ant o, met er a quar t a, o que ai nda o obr i gar i a a ni vel ar o chão. Par a que assent os, se a nat ur eza os dot ou de sól i dos, r achados cal canhar es sobr e os quai s se sent am? Nenhum t al her . Não é a munheca um t al her compl et o - col her , gar f o e f aca a um t empo?

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No mai s, umas cui as, gamel i nhas, um pot e esbei çado, a pi chor r a e a panel a de f ei j ão. Nada de ar már i os ou baús. A r oupa, guar da- a no cor po. Só t em doi s panel hos; um que t r az no uso e out r o na l avagem. Os mant i ment os apai ol a nos cant os da casa. I nvent ou um ci pó pr eso à cumeei r a, de gancho na pont a e um di sco de l at a no al t o: al i pendur a o t ouci nho, a sal vo dos gat os e r at os. Da par ede pende a espi ngar da pi ca- pau, o pol var i nho de chi f r e, o São Benedi t o def umado, o r abo de t at u e as pal mas bent as de quei mar dur ant e as f or t es t r ovoadas. Ser vem de gavet a os bur acos da par ede. Seus r emot os avós não gozar am mai or es comodi dades. Seus net os não met er ão quar t a per na ao banco. Par a quê? Vi ve- se bem sem i sso. Se pel ot as de bar r o caem, abr i ndo set ei r as na par ede, Jeca não se move a r epô- l as. Fi cam pel o r est o da v i da os bur acos aber t os, a ent r emost r ar em nesgas de céu. Quando a pal ha do t et o, apodr eci da, gr et a em f endas por onde pi nga a chuva, Jeca, em vez de r emendar a t or t ur a, l i mi t a- se, cada vez que chove, a apar ar numa gamel i nha a água got ej ant e. . . Remendo. . . Par a quê? se uma casa dur a dez anos e f al t am " apenas" nove par a que el e abandone aquel a? Est a f i l osof i a economi za r epar os. Na mansão de Jeca a par ede dos f undos boj ou par a f or a um vent r e empanzi nado, ameaçando r ui r ; os bar r ot es, cor t ados pel a umi dade, osc i l am na podr i quei r a do bal dr ame. A f i m de neut r al i zar o desapr umo e pr eveni r suas conseqüênci as, el e gnudou na par ede uma Nossa Senhor a enquadr ada em mol dur i nha amar el a - sant o de mascat e. - " Por que não r emenda essa par ede, homem de Deus?" - " El a não t em cor agem de cai r . Não vê a escor a?" Não obst ant e, " por v i a das dúvi das" , quando r onca a t r ovoada, Jeca abandona a t oca e vai agachar - se no oco dum vel ho embi r uçu do qui nt al - par a se sabor ear de l onge com a ef i cáci a da escor a sant a. Um pedaço de pau di spensar i a o mi l agr e; mas ent r e pendur ar o sant o e t omar da f oi ce, subi r ao mor r o, cor t ar a madei r a, at or á- l a, bal deá- l a e especar a par ede, o sacer dot e da Gr ande Lei do Menor Esf or ço não vaci l a. É coer ent e. Um t er r ei r i nho descal vado r odei a a casa. O mat o o bei r a. Nem ár vor es f r ut í f er as, nem hor t a, nem f l or es - nada r evel ador de per manênci a. Há mi l r azões par a i sso; por que não é sua a t er r a; por que se o " t ocar em" não f i car á nada que a out r em apr ovei t e; por que par a f r ut as há o mat o; por que a " cr i ação" come; por que. . . - " Mas, cr i at ur a, com um vedozi nho por al i . . . A madei r a est á à mão, o c i pó é t ant o. . . " Jeca, i nt er pel ado, ol ha par a o mor r o cober t o de moi r ões, ol ha par a o t er r ei r o nu, coça a cabeça e cuspi l ha. - " Não paga a pena. " Todo o i nconsci ent e f i l osof ar do cabocl o gr ul ha nessa pal avr a at r avessada de f at al i smo e modor r a. Nada paga a pena. Nem cul t ur as, nem comodi dades. De qual quer j ei t o se vi ve.

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Da t er r a só quer a mandi oca, o mi l ho e a cana. A pr i mei r a, por ser um pão j á amassado pel a nat ur eza. Bast a ar r ancar uma r ai z e dei t á- l a nas br asas. Não i mpõe col hei t a, nem exi ge cel ei r o. O pl ant i o se f az com um pal mo de r ama f i ncada em qual quer chão. Não pede cui dados. Não a at aca a f or mi ga. A mandi oca é sem- ver gonha. Bem ponder ado, a causa pr i nci pal da l ombei r a do cabocl o r es i de nas benemer ênci as sem cont a da mandi oca. Tal vez que sem el a se pusesse de pé e andasse. Mas enquant o di spuser de um pão cuj o pr epar o se r esume no pl ant ar , col her e l ançar sobr e br asas, Jeca não mudar á de v i da. O vi gor das r aças humanas est á na r azão di r et a da host i l i dade ambi ent e. Se a poder de est acas e di ques o hol andês ext r ai u de um br ej o sal gado a Hol anda, essa j ói a do esf or ço, é que al i nada o f avor eci a. Se a I ngl at er r a br ot ou das i l has nevoent as da Cal edôni a, é que l á não medr ava a mandi oca. Medr asse, e t al vez os ví ssemos hoj e, os i ngl eses, t ol hi ços, de pé no chão, amar el ent os, mar i scando de penei r a no Tâmi sa. Há bens que vêm par a mal es. A mandi oca i l ust r a est e avesso de pr ovér bi o. Out r o pr eci oso auxi l i ar da cal açar i a é a cana. Dá r apadur a, e par a Jeca, s i mpl i f i cador da vi da, dá gar apa. Como não possui moenda, t or ce a pul so sobr e a cui a de caf é um r ol et e, depoi s de bem macet ados os nós; açucar a assi m a beber agem, f ugi ndo aos t r âmi t es condut or es do cal do de cana à r apadur a. Todavi a, est modus i n r ebus. E assi m como ao l ado do r est ol ho cr esce o bom pé de mi l ho, cont r ast a com a cr i st i aní ss i ma si mpl i c i dade do Jeca a opul ênci a de um seu v i zi nho e compadr e que " est á mui t o bem" . A t er r a onde mor a é sua. Possui ai nda uma égua, monj ol o e espi ngar da de doi s canos. Pesa nos dest i nos pol í t i cos do paí s com o seu vot o e nos econômi cos com o pol v i l ho azedo de que é f abr i cant e, t endo ameal hado com ambos, vot o e pol v i l ho, par a mai s de qui nhent os mi l r éi s no f undo da ar ca. Vi ve num cor r upi o de bar ganhas nas quai s exer ci t a uma ast úc i a nat i va mui t o i r mã da de Ber t ol do. A esper t eza úl t i ma f oi a bar ganha de um caval o cego por uma égua de passo pi cado. Ver dade é que a égua mancava das mãos, mas i nda assi m val i a dez mi l r éi s mai s do que o r oc i nant e zanaga. Est a e out r as cel ebr i zar am- l he os engr i manços pot r ei r os num r ai o de mi l br aças, gr anj eando- l he a i ncondi ci onal e babosa admi r ação do Jeca, par a quem, f i no como o compadr e, " home" . . . nem mesmo o v i gár i o de I t aoca! Aos domi ngos, vai à v i l a bi f ur cado na magr eza vent r uda da Ser ena; l eva apenso à gar upa um f i l ho e at r ás o pot r i nho no t r ot e, mai s a mul her , com a cr i ança nova enr ol ada no xal e. Fecha o cor t ej o o i ndef ect í vel Br i nqui nho, a r esf ol gar com um pal mo de l í ngua de f or a. O f at o mai s i mpor t ant e de sua vi da é, sem dúvi da, vot ar no gover no. Ti r a nesse di a da ar ca a r oupa pr et a do casament o, sar j ão f unadi nho de t r aça e t odo v i ncado de dobr as; ent al a os pés num al ent ado sapat ão de bezer r o; at a ao pescoço um col ar i nho de bi co e, sem gr avat a, r i ngi ndo e mancando, vai pegar o di pl oma de el ei t or às mãos do chef e Coi sada, que l ho r et ém par a mai or gar ant i a da f i del i dade

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par t i dár i a. Vot a. Não sabe em quem, mas vot a. Esf r ega a pena no l i vr o el ei t or al , ar abescando o ar anhol de gat af unhos a que chama " sua gr aça" . Se há t umul t o, chuchur r ei a de pé f i r me, com her oí smo, as por r et adas oposi c i oni st as, e ao cabo segue par a a casa do chef e, de gal o cí v i co na t est a e col ar i nho sungado par a t r ás, a f i m de novament e l he depor nas mãos o " di pel oma" . Gr at o e sor r i dent e, o mor ubi xaba gal ar doa- l he o her oí smo, f l agr ant ement e document ado pel o l at ej ar do cour o cabel udo, com um aper t o de munheca e a pr omessa, par a l ogo, duma i nspet or i a de quar t ei r ão. Repr esent a est e f r eguês o t i po c l áss i co do s i t i ant e j á com um pé f or a da c l asse. Exceção, dí scol o que é, não vem ao caso. Aqui t r at amos da r egr a e a r egr a é Jeca Tat u. O mobi l i ár i o cer ebr al de Jeca, à par t e o sucul ent o r echei o de super st i ções, val e o do casebr e. O banqui nho de t r ês pés, as cui as, o gancho de t ouci nho, as gamel as, t udo se r eedi t a dent r o de seus mi ol os sob a f or ma de i déi as: são as noções pr át i cas da v i da, que r ecebeu do pai e sem mudança t r ansmi t i r á aos f i l hos. O sent i ment o de pát r i a l he é desconheci do. Não t em sequer a noção do paí s em que vi ve. Sabe que o mundo é gr ande, que há sempr e t er r as par a di ant e, que mui t o l onge est á a Cor t e com os gr aúdos e mai s di s t ant e ai nda a Bahi a, donde vêm bai anos per nóst i cos e cocos. Per gunt em ao Jeca quem é o pr esi dent e da Repúbl i ca: - " O homem que manda em nós t udo?" - " Si m" - " Poi s de cer t o que há de ser o i mper ador . " Em mat ér i a de c i v i smo não sobe de pont o. - " Guer r a? T' esconj ur o! Meu pai v i veu af undado no mat o p' r a mai s de ci nco anos por causa da guer r a gr ande. ( 4) Eu, par a escapar do " r ecul ut ament o" , sou i nt é capaz de cor t ar um dedo, como o meu t i o Lour enço. . . " Guer r a, def esa naci onal , ação admi ni st r at i va, t udo quant o chei r a a gover no r esume- se par a o cabocl o numa pal avr a apavor ant e - " r ecul ut ament o" . Quando em pr i ncí pi o da Pr esi dênci a Her mes andou na bal ha um r ecenseament o esqueci do a Of f enbach, o cabocl o t r emeu e ent r ou a casar em massa. Aqui l o " haver á de ser r ecul ut ament o" , e os casados, na voz cor r ent e, escapavam à r edada. A sua medi c i na cor r e par el has com o ci v i smo e a mobí l i a - em qual i dade. Quant i t at i vament e, assombr a. Da noi t e cer ebr al pi r i l ampej am- l he apózemas, cer ot os, ar r obes e el et uár i os escapos à sagaci dade cômi ca de Mar k Twai n. Compendi a- se um Cher novi z não escr i t o, monument o de gal hof a onde não há r i r , l úgubr e como é o epí l ogo. A r ede na qual doi s homens l evam à cova as ví t i mas de semel hant e f ar macopéi a é o espet ácul o mai s t r i s t e da r oça. Quem apl i ca as mezi nhas é o " cur ador " , um Eusébi o Macár i o de pé no chão e cér ebr o t r ancado como moi t a de t aquar uçu. O veí cul o usual das dr ogas é sempr e a pi nga - mei o honest o de r ender homenagem à deusa Cachaça, di v i ndade que ent r e el es ai nda não encont r ou her ét i cos. Doenças haj a que r emédi os não f al t am.

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Par a br onqui t e, é um por r et e cuspi r o doent e na boca de um pei xe vi vo e sol t á- l o: o mal se vai com o pei xe água abai xo. . . Par a " quebr ant o de ossos" , j á não é t ão s i mpl es a medi cação. Tomam- se t r ês cont as de r osár i o, t r ês gal hos de al ecr i m, t r ês l i mas de bi co, t r ês i scas de pal ma bent a, t r ês r ami nhos de ar r uda, t r ês ovos de pat a pr et a ( com casca; sem casca desanda) e um saqui nho de pi cumã; met e- se t udo numa gamel a d' água e banha- se naqui l o o doent e, f azendo- o t r agar t r ês gol es da zur r apa. É i nf al í vel ! O especí f i co da br ot oej a consi st e em cozi ment o de bei ço de pot e par a l avagens. Ai nda há aqui um por menor de mont a; é pr eci so que ant es do banho a mãe do doent e mol he na água a pont a de sua t r ança. As br ot oej as sar am como por encant o. Par a dor de pei t o que " r esponde na cacunda" , cat apl asma de " j asmi m de cachor r o" é um por r et e. Al ém dest a al opat i a, par a a qual cont r i bui t udo quant o de mai s r epugnant e e i nócuo exi s t e na nat ur eza, há a medi cação si mpát i ca, baseada na i nf l ui ção mi st er i osa de obj et os, pal avr as e at os sobr e o cor po humano. O r i t ual bi zant i no dent r o de cuj as mar anhas os f i l hos do Jeca vêm ao mundo, e do qual não há f ugi r sob pena de gr aví ssi mas conseqüênci as f ut ur as, dar i a um i n- f ól i o d' al t o f ôl ego ao Sí l v i o Romer o bast ant e oper oso que se pr opusesse a compendi á- l o. Num par t o di f í c i l , nada t ão ef i caz como engol i r t r ês car oços de f ei j ão- mour o, de passo que a par t ur i ent e vest e pel o avesso a cami sa do mar i do e põe na cabeça, t ambém pel o avesso, o seu chapéu. Fal hando est a s i mpat i a, há um der r adei r o r ecur so: col ar no vent r e encr uado a i magem de São Benedi t o. Nesses moment os angust i osos, out r a mul her não penet r e no r ec i nt o sem pr i mei r o def umar - se ao f ogo, nem t r aga na mão caça ou pei xe: a cr i ança mor r er i a pagã. A omi ssão de qual quer dest es pr ecei t os f ar á chover mi l desgr aças na cabeça do chor i ncas r ecém- nasci do. A posse de cer t os obj et os conf er e dot es sobr enat ur ai s . A i nvul ner abi l i dade às f acadas ou car gas de chumbo é obt i da gr aças à f l or da samambai a. Est a pl ant a, cont a Jeca, só f l or esce uma vez por ano, e só pr oduz em cada samambai al uma f l or . I s t o à mei a- noi t e, no di a de São Bar t ol omeu. É pr eci so ser mui t o esper t o par a col hê- l a, por que t ambém o di abo anda à cat a. Quem consegue pegar uma, ouve l ogo um est our o e t ont ei a ao chei r o de enxof r e - mas l i vr a- se de f aca e chumbo pel o r est o da vi da. Todos os vol umes do Lar ousse não bast ar i am par a cat al ogar - l he as cr endi ces, e como não há l i nhas di v i sór i as ent r e est as e a r el i gi ão, conf undem- se ambas em mar anhada t ei a, não havendo di s t i ngui r onde pár a uma e começa out r a. A i déi a de Deus e dos sant os t or na- se j eco- cênt r i ca. São os sant os os gr aúdos l á de ci ma, os cor onéi s cel est es, debr uçados no azul par a espr ei t ar - l hes a vi di nha e i nt er vi r nel a aj udando- os ou cast i gando- os, como os met edi ços deuses de Homer o. Uma t or cedur a de pé, um est r epe, o f ei j ão ent or nado, o pot e que r achou, o bi cho que ar r ui nou - t udo di abnur as da cor t e cel est e, par a cast i go de más i nt enções ou

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at os. Daí o f at al i smo. Se t udo movem cor déi s l á de ci ma, par a que l ut ar , r eagi r ? Deus qui s. A mai or cat ást r of e é r ecebi da com est a excl amação, mui t o par ent a do " Al l ah Kébi r " do beduí no. E na ar t e? Nada. A ar t e r úst i ca do campôni o eur opeu é opul ent a a pont o de const i t ui r pr ec i osa f ont e de sugest ões par a os ar t i st as de escol . Em nenhum paí s o povo v i ve sem a el a r ecor r er par a um i ngênuo embel ezament o da v i da. Já não se f al a no camponês i t al i ano ou t eut ôni co, f i l ho de al f obr es mi mosos, pr opí c i os a t odas as f l or ações est ét i cas. Mas o r usso, o hi r sut o muj i que a mei o at ol ado em bar bár i e cr assa. Os vest uár i os naci onai s da Ucr âni a nos quai s a cor v i va e o sar apant ado da or nament ação i ndi cam a i ngenui dade do pr i mi t i vo, os i sbás da Li t uâni a, sua cer âmi ca, os bor dados, os móvei s, os ut ensí l i os de cozi nha, t udo r evel a no mai s r ude dos campôni os o sent i ment o da ar t e. No samoi eda, no pel e- ver mel ha, no abexi m, no papua, um ar abesco i ngênuo cost uma or nar - l hes as ar mas - como l hes or nam a v i da canções r epassadas de r i t mos sugest i vos. Que nada é i sso, sabi do como j á o homem pr é- hi s t ór i co, companhei r o do ur so das caver nas, ent al hava per f i s de mamut es em chi f r es de r ena. Egr esso à r egr a, não denunci a o nosso cabocl o o mai s r emot o t r aço de um sent i ment o nasci do com o t r ogl odi t a. Esmeni l hemos o seu casebr e: que é que al i denot a a ex i st ênci a do mai s vago senso est ét i co? Uma chumbada no cabo de r el ho e uns z i guezagues a cani vet e ou f ogo pel o r ol i ço do por r et i nho de guat ambu. É t udo. Às vezes sur ge numa f amí l i a um gêni o musi cal cuj a f ama esvoaça pel as r edondezas. Ei - l o na v i ol a: concent r a- se, t osse, cuspi l ha o pi gar r o, f er e as cor das e " t emper a" . E f i ca ni sso, no t emper o. Di r ão: e a modi nha? A modi nha, como as demai s mani f est ações de ar t e popul ar ex i st ent es no paí s, é obr a do mul at o, em cuj as vei as o sangue r ecent e do eur opeu, r i co de at av i smos est ét i cos, bor bul ha d' envol t a com o sangue sel vagem, al egr e e são do negr o. O cabocl o é sot ur no. Não cant a senão r ezas l úgubr es. Não dança senão o cat er et ê al adai nhado. Não escul pe o cabo da f aca, como o cabi l a. Não compõe sua canção, como o f el á do Egi t o. No mei o da nat ur eza br así l i ca, t ão r i ca de f or mas e cor es, onde os i pês f l or i dos der r amam f ei t i ços no ambi ent e e a i nf ol hescênci a dos cedr os, às pr i mei r as chuvas de set embr o, abr e a dança dos t angar ás; onde há abel has de sol , esmer al das v i vas, ci gar r as, sabi ás, l uz, cor , per f ume, v i da di oni s í aca em escachôo per manent e, o cabocl o é o sombr i o ur upê de pau podr e a modor r ar si l enci oso no r ecesso das gr ot as. Só el e não f al a, não cant a, não r i , não ama. Só el e, no mei o de t ant a v i da, não v i ve. . .

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Not as: 1. Tomé de Souza vei o ao Br asi l com um car r egament o de 400 degr egados e uns t ant os j esuí t as. 2. Ar i st i des Lobo: " O paí s assi s t i u best i f i cado à pr ocl amação da Repúbl i ca. " 3. O Pr esi dent e Her mes da Fonseca! 4. Guer r a gr ande: Guer r a do Par aguai . Bi ogr af i a de MONTEI RO LOBATO A 18 de abr i l de 1882, em Taubat é, c i dade de São Paul o, nasce o f i l ho de José Bent o Mont ei r o Lobat o e Ol í mpi a August a Lobat o. Recebe o nome de José Renat o Mont ei r o Lobat o, que por deci são pr ópr i a modi f i ca mai s t ar de par a José Bent o Mont ei r o Lobat o, desej ando usar uma bengal a do pai gr avada com as i ni c i ai s J . B. M. L. Juca - assi m er a chamado - br i ncava com suas i r mãs menor es Est er e Judi t e. Naquel e t empo não havi a t ant os br i nquedos, er am t oscos, f ei t os de sabugo de mi l ho, chuchus, mamão ver de, et c. . . Ador ava os l i vr os de seu avô mat er no, o Vi sconde de Tr emembé. Sua mãe o al f abet i zou, t eve depoi s um pr of essor par t i cul ar e aos 7 anos ent r ou num col égi o. Leu t udo o que havi a par a cr i anças em l í ngua por t uguesa. Em dezembr o de 1896, pr est a exames em São Paul o das mat ér i as est udadas em Taubat é. Aos 15 anos per de seu pai , ví t i ma de congest ão pul monar , e aos 16 anos, sua mãe. No col égi o f unda vár i os j or nai s, escr evendo sob pseudôni mo. Aos 18 anos ent r a par a a Facul dade de Di r ei t o por i mposi ção do avô, poi s pr ef er i a a Escol a de Bel as- Ar t es. É ant i convenci onal por excel ênci a, di z sempr e o que pensa, agr ade ou não. Def ende a sua ver dade com unhas e dent es, cont r a t udo e t odos, quai squer que sej am as conseqüênci as. Em 1906 di pl oma- se Bachar el em Di r ei t o, em mai o de 1907 é nomeado pr omot or em Ar ei as, casando- se no ano segui nt e com Mar i a Pur eza da Nat i vi dade ( Pur ezi nha) , com quem t eve os f i l hos Edgar , Gui l her me, Mar t a e Rut e. Vi ve no i nt er i or , nas c i dades pequenas, sempr e escr evendo par a j or nai s e r ev i s t as, Tr i buna de Sant os, Gazet a de Not í c i a, do Ri o e Fon- Fon, par a onde t ambém manda car i cat ur as e desenhos. Em 1911 mor r e seu avô, o Vi sconde de Tr emembé, e del e her da a f azenda Buqui r a, passando de pr omot or a f azendei r o. A geada, as di f i cul dades l evam- no a vender a f azenda em 1917 e a t r ansf er i r - se par a São Paul o. Mas na f azenda escr eveu oJECA TATU, sí mbol o naci onal . Compr a a Revi st a do Br asi l e começa a edi t ar seus l i vr os par a adul t os. Ur u pês i ni c i a a f i l a em 1918. Sur ge a pr i mei r a edi t or a naci onal , Mont ei r o Lobat o & Ci a. , que se l i qui dou, t r ansf or mando- se depoi s em Companhi a Edi t or a Naci onal , sem sua par t i c i pação.

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Ant es de Lobat o, os l i vr os do Br asi l er am i mpr essos em Por t ugal . Com el e, i ni c i a- se o movi ment o edi t or i al br asi l ei r o. Em 1931 vol t a dos Est ados Uni dos da Amér i ca do Nor t e, pr egando a r edenção do Br asi l pel a expl or ação do f er r o e do pet r ól eo. Começa a l ut a que o dei xar á pobr e, doent e e desgost oso. Havi a i nt er esse of i c i al em se di zer que no Br asi l não havi a pet r ól eo. Foi per segui do, pr eso e cr i t i cado por que t ei mava em di zer que no Br asi l havi a pet r ól eo e que er a pr eci so expl or á- l o par a dar ao seu povo um padr ão de v i da à al t ur a de suas necessi dades. Já em 1921 dedi cou- se à l i t er at ur a i nf ant i l . Ret or na a el a, desgost oso dos adul t os que o per seguem i nj ust ament e. Em 1943, f unda a Edi t or a Br asi l i ense par a publ i car suas obr as compl et as, r ef or mul ando i nc l us i ve di ver sos l i vr os i nf ant i s. Com " Nar i zi nho Ar r ebi t ado" , l ança o Sí t i o do Pi ca pau Amar el o e seus cél ebr es per sonagens. Por i nt er médi o de Emí l i a, di z t udo o que pensa; na f i gur a do Vi sconde de Sabugosa, cr i t i ca o sábi o que só acr edi t a nos l i vr os j á escr i t os; Dona Bent a é o per sonagem adul t o que acei t a a i magi nação cr i ador a das cr i anças, admi t i ndo as novi dades que vão modi f i cando o mundo; Ti a Nast áci a é o adul t o sem cul t ur a, que vê no que é desconheci do o mal , o pecado. Nar i z i nho e Pedr i nho são as cr i anças de ont em, hoj e e amanhã, aber t as a t udo, quer endo ser f el i zes, conf r ont ando suas exper i ênci as com o que os mai s vel hos di zem, mas sempr e acr edi t ando no f ut ur o. E assi m o Pó de Pi r l i mpi mpi m cont i nuar á a t r anspor t ar cr i anças do mundo i nt ei r o ao Sí t i o do Pi capau Amar el o, onde não há hor i zont es l i mi t ados por mur os de concr et o e de i déi as t acanhas. Em 4 de j ul ho de 1948, per de- se esse gr ande homem, ví t i ma de col apso, na capi t al de São Paul o. Mas o que el e t i nha de essenci al , seu espí r i t o j ovem, sua cor agem, est á v i vo no cor ação de cada cr i ança. Vi ver á sempr e, enquant o est i ver pr esent e a pal avr a i nconf undí vel de " Emí l i a" .