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ISSN 2176-1396 CONTEXTUALIZAÇÃO E PRATICAS ALFABETIZADORAS EM DEBATE: USO DOS CADERNOS PEDAGÓGICOS NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO Marcelo Macedo Corrêa e Castro 1 - UFRJ Luciene Cerdas 2 - UFRJ Rejane Maria de Almeida Amorim 3 - UFRJ EixoAlfabetização, Leitura e Escrita Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ) tem se empenhado em oferecer materiais didáticos para utilização nas turmas do ensino fundamental das escolas públicas municipais. Dentre os materiais adotados, incluindo-se os oriundos do Programa Nacional do Livro Didático, destacam-se os Cadernos Pedagógicos, estes elaborados por equipes da SME/RJ, cujo protagonismo nas ações práticas pode ser examinado sob vários prismas, como o da sua relação com o preparo para a realização dos exames de avaliação do ensino fundamental e com os saberes universalizados (CHARLOT, 2013). Neste estudo, focalizamos o conceito de contextualização entendido como a forma de aproximar os processos de ensino-aprendizagem da realidade concreta dos estudantes. Assumimos o pressuposto de que a contextualização seria condição indispensável na abordagem dos conteúdos e na organização das atividades que se desenvolvem em sala de aula. Para tanto, lançamos mão também das três concepções de contexto descritas por Camps (2005): como 1 Pós-doutorado em Educação no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2015), doutorado em Educação UFRJ (2002), mestrado em Educação UFRJ (1985), Licenciatura em Letras, Português Literaturas na UFRJ (1979). Professor Titular do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ. Atua com formação de professores para a educação básica na área de Didática da Língua Portuguesa, Coordenador do GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum de Ensino da Escrita. Contato: [email protected] 2 Doutora em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP/Araraquara (2012). Mestre em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP/Araraquara (2007). Formada em Pedagogia pela UFPR (2004) e em Jornalismo pela UNESP/Bauru (1998). Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, em disciplinas como Alfabetização e Letramento e Prática de Ensino das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Pesquisadora do GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum de Ensino da Escrita Contato: [email protected]. 3 Doutora no programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação na PUC/ São Paulo (2008). Mestre na área de Mídia e Conhecimento pela UFSC (2002), graduada em Pedagogia e Especialista em Educação pela UNOESC (1998/2000). Professora Adjunta do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, nas disciplinas de formação de professores nas áreas de Didática, Ensino da Escrita, Alfabetização e Letramento. Pesquisadora do GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum de Ensino da Escrita. Contato: [email protected]

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Page 1: CONTEXTUALIZAÇÃO E PRATICAS ALFABETIZADORAS EM … · 2017. 8. 21. · SME/RJ. Dentre as conclusões iniciais a que a análise nos levou, podemos destacar: 1) a insuficiente contextualização

ISSN 2176-1396

CONTEXTUALIZAÇÃO E PRATICAS ALFABETIZADORAS EM

DEBATE: USO DOS CADERNOS PEDAGÓGICOS NO MUNICÍPIO DO

RIO DE JANEIRO

Marcelo Macedo Corrêa e Castro1 - UFRJ

Luciene Cerdas2 - UFRJ

Rejane Maria de Almeida Amorim3 - UFRJ

Eixo–Alfabetização, Leitura e Escrita

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ) tem se empenhado em

oferecer materiais didáticos para utilização nas turmas do ensino fundamental das escolas

públicas municipais. Dentre os materiais adotados, incluindo-se os oriundos do Programa

Nacional do Livro Didático, destacam-se os Cadernos Pedagógicos, estes elaborados por

equipes da SME/RJ, cujo protagonismo nas ações práticas pode ser examinado sob vários

prismas, como o da sua relação com o preparo para a realização dos exames de avaliação do

ensino fundamental e com os saberes universalizados (CHARLOT, 2013). Neste estudo,

focalizamos o conceito de contextualização entendido como a forma de aproximar os

processos de ensino-aprendizagem da realidade concreta dos estudantes. Assumimos o

pressuposto de que a contextualização seria condição indispensável na abordagem dos

conteúdos e na organização das atividades que se desenvolvem em sala de aula. Para tanto,

lançamos mão também das três concepções de contexto descritas por Camps (2005): como

1Pós-doutorado em Educação no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2015), doutorado em

Educação UFRJ (2002), mestrado em Educação UFRJ (1985), Licenciatura em Letras, Português Literaturas na

UFRJ (1979). Professor Titular do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ. Atua com

formação de professores para a educação básica na área de Didática da Língua Portuguesa, Coordenador do

GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum de Ensino da Escrita. Contato:

[email protected] 2 Doutora em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP/Araraquara

(2012). Mestre em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da

UNESP/Araraquara (2007). Formada em Pedagogia pela UFPR (2004) e em Jornalismo pela UNESP/Bauru

(1998). Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, em disciplinas como

Alfabetização e Letramento e Prática de Ensino das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Pesquisadora do

GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum de Ensino da Escrita Contato:

[email protected]. 3 Doutora no programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação na PUC/ São Paulo

(2008). Mestre na área de Mídia e Conhecimento pela UFSC (2002), graduada em Pedagogia e Especialista em

Educação pela UNOESC (1998/2000). Professora Adjunta do Departamento de Didática da Faculdade de

Educação da UFRJ, nas disciplinas de formação de professores nas áreas de Didática, Ensino da Escrita,

Alfabetização e Letramento. Pesquisadora do GRAFE - Grupo de Ações de Ensino, Extensão e Pesquisa Fórum

de Ensino da Escrita. Contato: [email protected]

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situação, como comunidade discursiva e como esfera da atividade humana. Como objeto de

análise foi escolhido o Caderno Pedagógico do primeiro bimestre de 2016 da classe de

alfabetização (Primeiro Ano), que privilegia como temática a realização dos Jogos Olímpicos

no Rio de Janeiro em 2016. A análise fundamentou-se na suposição de que o material em

questão se forjou com base em uma compreensão limitada de contextualização,

insuficientemente associada aos quotidianos dos estudantes matriculados nas escolas da

SME/RJ. Dentre as conclusões iniciais a que a análise nos levou, podemos destacar: 1) a

insuficiente contextualização das propostas de escrita, 2) a carência de continuidade e

aprofundamento da temática, 3) a presença predominante de atividades mais direcionadas

para o ensino mecânico da escrita.

Palavras-chave: Formação de professores. Ensino de Leitura e Escrita. Pedagogia.

Alfabetização.

As políticas públicas e as perspectivas de alfabetização

O cenário mais amplo em que se inscreve a questão estudada nesta investigação será

descrito com foco em dois processos: o do desenvolvimento das políticas para as escolas

púbicas do município do Rio de Janeiro e o das disputas teórico-metodológicas relacionadas à

alfabetização.

No caso do primeiro, cabe destacar que, desde os anos 1990, as políticas direcionadas

para as escolas públicas municipais do Rio de Janeiro têm seguido a tendência nacionalmente

difundida a partir do Governo Federal, que pode ser identificada como uma combinação nem

sempre bem articulada de preceitos do gerencialismo aplicados à educação. Em tese, o Estado

estaria em busca de maior eficiência no cumprimento do seu papel. As políticas emanadas dos

sucessivos governos, desde o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1999),

oscilam, de forma híbrida e, por vezes, contraditória, entre o enxugamento de instâncias, de

um lado, e a criação de mecanismos de controle, de outro. Por isso, em meio a discursos de

valorização da livre regulação, multiplicam-se ações centralizadoras das ações.

Para a educação, isso se faz representar por: (1) diretrizes com força de lei

relacionadas aos currículos das escolas, especialmente as públicas; (2) sistemas de avaliação

centralizados e unificados para verificação do cumprimento das diretrizes; (3) produção e

aquisição, por parte de órgãos públicos – especialmente secretarias de educação municipais e

estaduais - de materiais didáticos produzidos por especialistas para uso nas escolas; (4)

oferecimento de programas de formação continuada para professores, quase sempre com as

perspectivas de atualização dos docentes e do seu treinamento para a aplicação de métodos e o

uso de materiais didáticos e (5) investimento em tecnologias da informação e da

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comunicação, quer para o gerenciamento dos aspectos administrativos das escolas, quer para a

maior eficiência dos seus processos de ensino-aprendizagem.

Os professores das escolas públicas, em decorrência disso, atuam constrangidos por

orientações curriculares predeterminadas, provas unificadas - para as quais têm de preparar

seus alunos - e materiais didáticos que chegam em quantidade cada vez maior às escolas e

cujo uso, a princípio, seria obrigatório.

Quanto ao segundo processo, desde os anos 1980, principalmente, está estabelecida

nas políticas e nas práticas de educação uma disputa teórico-metodológica relacionada com a

alfabetização. Até à referida década, a despeito da existência de práticas diversas, era possível

afirmar que, pelo menos discursivamente, a maioria dos alfabetizadores e dos que estudam a

alfabetização convergiam para duas matrizes conceituais: os achados de Emília Ferreiro e os

preceitos de Paulo Freire. Isso significa afirmar que a alfabetização era entendida e tratada

como processo amplo e múltiplo, que se prolonga por toda a vida, e que se constrói com

protagonismo do alfabetizando. A crescente presença do conceito de letramento, no entanto, a

partir dos anos 1980, vai, de certa forma, recolocar uma questão que parecia superada: a do

isolamento pedagógico do processo de aquisição do Sistema de Escrita Alfabética (SEA).

O novo termo – letramento - teria sido cunhado para se definir melhor o processo de

desenvolvimento de uma pessoa no que se refere às práticas de leitura e de escrita na

sociedade. Na verdade, há duas consequências que se consolidaram a partir de então. Por um

lado, o termo teve seu espectro ampliado largamente, passando a significar, ao mesmo tempo,

o processo de inserção nas práticas letradas, o estágio desse processo em cada indivíduo, os

produtos desse processo, atingindo o que Geraldi (2011) considerou uma gaseificação do

conceito. Por outro lado, ao assumir tantos significados, acabou por relegar ao termo

alfabetização apenas o de aquisição do SEA.

Ao usurpar tantos lugares, o letramento ensejou o revigoramento de perspectivas

mecanicistas de alfabetização. Ou pior: alimentou a retomada de propostas e práticas que

isolam o processo de aquisição do SEA do restante daquilo que Paulo Freire (1996) entendia

como alfabetização. A usurpação do lugar da alfabetização por parte do letramento reduziu-a

a um processo empobrecido social e pedagogicamente.

Britto (2003) chama atenção para o fato de, no início dos anos 2000, já existirem, além

do termo letramento, outros três: “alfabetismo, alfabetização e cultura escrita”, sendo um

“simplismo supor que são todos equivalentes” (Id., 2003, p. 10). De fato, para o autor, há uma

disputa conceitual, oriunda do macrocenário das disputas político-ideológicas, que atua para

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definir uma perspectiva tecnicista do ensino aprendizagem da escrita, por meio de “um

aparato técnico, neutro, antipolítico (e, nesse sentido, evidentemente anti-histórico), um

discurso hegemônico, unificador e único” (Id., p. 12), à qual se opõe uma tendência que

considera a base essencialmente política das ações e dos conhecimentos humanos e que trata a

educação “a partir da desigualdade, das diferenças e disputas no interior da própria sociedade”

(Ibid., p. 13).

Há, portanto, não apenas um cenário de políticas que apostam em materiais que, uma

vez corretamente aplicados pelos professores, levariam aos resultados previstos nas

orientações curriculares e avaliados nos testes unificados, como também uma retomada da

perspectiva didático-pedagógica que isola a aquisição do SEA das demais etapas.

Os dois movimentos, porém, não se realizam sem resistência, e mesmo oposição

explícita, por parte dos sujeitos envolvidos, ainda que muito desse embate esteja nublado pela

superfície discursiva dos documentos propostos pelos órgãos reguladores. De fato, as

orientações e os materiais a elas adequados contêm muitas palavras de ordem que

desmentiriam ou, na pior das hipóteses, atenuariam seu viés tecnicista. É o caso de contexto,

tomada neste estudo como categoria para análise.

A contextualização como princípio das práticas de alfabetização

O ensino de Língua Portuguesa consolidou suas práticas a partir da tríade leitura,

escrita e estudo da gramática. Ler os clássicos, escrever como eles e analisar os fatos

gramaticais com base em uma gramática – a escolar – voltada para a prescrição do uso de uma

norma forjada tendo como corpus a literatura lusitana dos séculos XVIII e XIX.

Essa perspectiva perdurou até o final dos anos 1950, quando teve início a ampliação

da oferta de educação escolar para a população em geral, trazendo para as escolas um número

cada vez maior de estudantes que não estavam expostos à cultura letrada privilegiada até

então nos currículos, o que evidenciou a ineficiência, para os novos estudantes, dos

pressupostos e das práticas vigentes no ensino de Língua Portuguesa.

Paralelamente, a partir dos anos 1960, muitas vertentes do estudo da língua passaram a

disputar o território dos conceitos aplicados ao ensino de Língua Portuguesa: a Línguística, a

Psicolonguística, a Sociolinguística, a Pragmática, a Semiótica, a Análise do Discurso etc. À

combinação dos dois aspectos – novos estudantes e novos saberes sobre a língua – podem ser

associados outros fatores, como a expansão das tecnologias e dos veículos de comunicação, as

sucessivas crises econômicas e políticas, as conquistas sociais das minorias historicamente

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preteridas - e, quase sempre, oprimidas -, para se entender a busca de novos paradigmas para

o ensino de língua.

Segundo Soares (1998), partindo de uma perspectiva fundante que considerava a

língua como um sistema, o ensino de Língua Portuguesa, no Brasil, tenta deslocar-se, nos

anos 1970, para a concepção de língua como instrumento de comunicação e, a partir da

década seguinte, para a de língua como interação/discurso.

Em todo esse percurso em busca de uma mudança de paradigma, passa a integrar o rol

de preocupações básicas o deslocamento de uma prática de ensino que isola fonemas,

grafemas, morfemas, palavras, frases e períodos para estudá-los em direção a uma nova

prática, em que a língua é estudada, tanto quanto possível, em sua realização regular,

cotidiana, real. E aí se inscreve a primazia do contexto.

Contextualizar as atividades passa a ser fundamental para que se desenvolvam

concepções renovadoras do ensino de Língua Portuguesa. Para superar o artificialismo das

práticas de ensino consagradas na perspectiva tradicional, pesquisadores e docentes passaram

a se mobilizar para a construção de práticas que tenham o contexto da sua realização

respeitado e valorizado.

Para Camps (2005), as perspectivas que vêm sendo construídas para o ensino

aprendizagem da escrita – nosso foco de atenção neste estudo – apontam para quatro

elementos: o texto, o processo de escrita, o contexto e a atividade discursiva, que, embora

surjam em sucessão, não se excluem, segundo a autora.

Assumindo como pressuposto a complexidade e diversidade do conceito de contexto,

Camps (2005, p. 17) identifica três significados adotados para o termo: contexto como

situação, como comunidade discursiva e como esfera da atividade humana.

O primeiro significado remete à “[…] realidade objectiva que condiciona a produção

textual e que inclui a situação em que se realiza a tarefa e as características do destinatário”

(Ibid., p.17).

O segundo tem por pressuposto o fato de que “[…] os contextos de uso da linguagem

escrita, as diversas comunidades discursivas, são contextos partilhados que tornam possível

dar sentido e interpretar os textos” (Ibid., p. 17). Nesse sentido, poderiam também ser

denominados “[…] contexto social, uma vez que definem papéis e formas de participação

específica” (Ibid., p. 17).

O terceiro concebe os textos como “[…] resultado e, ao mesmo tempo, instrumento de

mediação na construção do diálogo como processo cultural” (Ibid, p. 17). Ainda nos termos

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da própria autora: “Nesta perspectiva, a diversidade de elementos contextuais (escritor, tarefa,

textos, situação, interacção) podem considerar-se variáveis que contribuem para a construção

da realidade humana através da palavra, e não etiquetas que se excluem” (CAMPS, 2005, p.

17).

Com base nessas três acepções, estudamos a presença do contexto, como categoria de

produção de textos, em um material da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Trata-se do Caderno de Alfabetização para o 1º Bimestre de 2016. Antes de tratar dele,

porém, cabe registrar a presença do termo contexto em dois documentos que incidem sobre o

material a ser aqui analisado.

Em primeiro lugar, destaque-se o tratamento dispensado à categoria contexto nos

Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1997). No caso do

volume que trata da Língua Portuguesa, considerando a parte do texto que se refere ao

primeiro ciclo, há dezenove ocorrências do termo. Três fazem referência às circunstâncias de

elaboração dos PCN. Com relação às demais, encontram-se oito adjetivações–privados,

públicos, histórico, de comunicação, mais formais, comunicativos informais, significativos,

de cooperação – todas mais claramente ligadas às duas primeiras acepções de contexto de

Camps (2005): a de situação, principalmente, e a de comunidade discursiva, em plano

inferior.

Chama atenção o fato de que apenas três das ocorrências estejam em itens destacados

do texto. A primeira aparece no item Objetivos Gerais do Ensino Fundamental (BRASIL,

1997, p. 5, grifo acrescido):

[…]utilizar as diferentes linguagens — verbal, matemática, gráfica, plástica e

corporal — como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar

e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a

diferentes intenções e situações de comunicação.

Nesse caso, o significado de contexto como situação é reiterado logo a seguir no

próprio texto.

A segunda ocorrência está em Bloco de Conteúdos – Língua Escrita: Usos e formas –

Práticas de Leitura (Ibid., p. 68): “Atribuição de sentido, coordenando texto e contexto (com

ajuda)”. A terceira e a quarta se encontram em um mesmo desdobramento da atividade

“Leitura para os alunos que ainda não leem de forma independente, pertencente ao item

Análise e Reflexão sobre a Língua: “- relação texto/contexto: interrogar o texto, buscando no

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contexto elementos para antecipar ou verificar o sentido atribuído” (BRASIL, 1997, p. 70).

Também nessas ocorrências parece predominar o significado de situação.

O fato de não haver no texto dos PCN qualquer explicitação do conceito de contexto

permite supor que o termo foi empregado em seu significado mais amplo e corrente: o das

circunstâncias sociais em que se inscreve algum fato ou ação. Reforça essa hipótese o uso de

oito adjetivações diferentes para identificar recortes ou enfoques mais específicos dos

contextos. Por fim, registre-se que nenhuma das ocorrências diz respeito diretamente à

produção de textos.

O segundo documento examinado neste estudo é o das Orientações Curriculares para

o Ensino da Língua Portuguesa, elaborado pela SME/RJ, no qual o termo contexto(s) foi

empregado vinte e uma vezes. Treze dessas ocorrências aparecem em contexto de produção,

expressão, reiteradamente usada no quadro que alinha os itens Objetivos, Conteúdos,

Habilidades, Bimestres, Sugestões. Duas outras ocorrem nesse mesmo quadro, com a

formulação “expressão oral adequada aos diferentes contextos”.

Dentre as demais, uma está em citação de Soares (2004, p. 5-6) na qual a autora usa a

expressão “contextos informais”; outra refere-se ao uso da língua em “diferentes situações e

contextos”, o que permite supor uma distinção entre os dois substantivos; outra ainda remete à

necessidade de emprego da “variante padrão” em “determinados contextos sociais”, a sugerir

que o termo aqui se refira à comunidade discursiva; e mais outra fala em contextos

diferenciados, esta possivelmente adjetivada por uma contaminação do uso recentemente

incorporado ao Português Brasileiro do adjetivo diferenciado como equivalente de

excepcional.

Assim como nos PCN, não há, no texto das Orientações, qualquer definição de

contexto, o que reforça a suposição de que o termo esteja empregado em sentido amplo e

múltiplo, sem uma diferenciação das três acepções identificadas por Camps (2005).

Vale, todavia, comentar em separado uma última ocorrência. Trata-se de uma sugestão

correlacionada com a habilidade Inferir no (sic) texto o sentido de uma palavra ou expressão.

Sugere o documento que seja realizada “Análise de uma palavra ou Expressão, observando

contextos variados (humor, surpresa, ironia, terror, entre outros) em que foi utilizada” (, RIO

DE JANEIRO, 2016, p. 33). Esta acepção difere de todas as outras e remete em parte a

gêneros textuais, em parte a impressões decorrentes da atividade discursiva, em uma

apropriação bastante peculiar dos elementos que sustentam a noção de contexto.

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Análise do material: pretexto ou contexto?

O documento analisado corresponde aos Cadernos Pedagógicos que fazem parte do

material distribuído nas escolas municipais do Rio de Janeiro, e que têm orientado a

organização curricular nos últimos anos. São disponibilizados no sítio da Secretaria Municipal

de Educação, e o acesso a eles é livre. Para alunos e professores, o material de uso bimestral é

entregue impresso como suporte para a alfabetização das crianças e segundo preconiza a carta

de apresentação da SME/RJ: “Constitui-se em mais um apoio à disposição do professor que,

em interação com os já disponíveis (livros, internet, projetos da escola e outras escolhas do

professor), amplie as possibilidades de discussão de conceitos e de formação de habilidades”

(RIO DE JANEIRO, 2009). Entretanto, embora se reconheça que é na prática que o currículo

se concretiza pela ação dos professores, também se sabe que esse material, distribuído às

escolas, tem sido base para provas periódicas aplicadas pela Secretaria Municipal de

Educação, o que impõe aos professores a obrigatoriedade de uso desses Cadernos, tendo em

vista sistemas de avaliação centralizados para verificação do cumprimento das diretrizes

estabelecidas, sendo os professores responsabilizados pelo desempenho de seus alunos.

O Caderno selecionado não possui, em sua versão eletrônica, um título geral nem ficha

catalográfica. Em destaque, na capa, pode ser identificado como 1º Ano – 1º Bimestre 2016 –

Alfabetização – Aluno. Pelos créditos disponíveis na página seguinte, sabe-se que foi

elaborado por Adriana do Nascimento Querido e Janaína Cruz da Silva, com consultoria de

Iza Locatelli.

Considerando a análise das Orientações Curriculares (RIO DE JANEIRO, 2016) para

o ciclo de alfabetização tem-se como objetivos: 1. Apropriar-se da língua escrita como meio

de expressão, interação e comunicação; 2. Valorizar a leitura como forma de conhecimento e

fruição; 3. Ler diferentes gêneros discursivos, fazendo uso das estratégias seleção,

antecipação,verificação e inferências; 4. Desenvolver a expressão oral adequada aos

diferentes contextos; 5. Reconhecer a compreensão da diversidade nas formas de falar. 6.

Compreender diferentes discursos orais e escritos em diversas variantes e registros da Língua

Portuguesa, incluindo a norma padrão (com identificação dos objetivos comunicativos); 7.

Reconhecer e utilizar diferentes gêneros discursivos/textuais; 8. Desenvolver os processos de

revisão e reescritura do próprio texto, com observância à adequação ao leitor, aos objetivos

propostos, à ortografia, à pontuação e à concordância; 9. Construir a escrita adequada ao leitor

e aos objetivos da comunicação, a partir da concepção de gêneros discursivos.

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No caso desses objetivos, a palavra contexto aparece apenas uma vez, estando

associada à expressão oral, relacionando-se à acepção de Camps (2005) de contexto como

comunidade discursiva, que possibilita a produção de sentido partilhado. No entanto, a análise

do Caderno Pedagógico indica a ausência de um trabalho sistemático com a oralidade - são

poucos os enunciados que explicitam essa ênfase - que acontece de modo incidental.

Identificamos dois exemplos em que a oralidade é principal foco, embora estejam sempre

associados à atividade de desenho.

Figura 1

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p.61

Figura 2

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p. 48.

Partindo dos objetivos acima elencados, há uma relação de habilidades descritas nas

Orientações Curriculares; a SME/RJ utiliza descritores de caráter avaliativo que englobam as

habilidades a serem aferidas no ensino da Língua Portuguesa.

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Figura 3 - Descritores para o primeiro ano do ensino fundamental

1º Bimestre 2º Bimestre 3º Bimestre 4º Bimestre

Não há descritores

para a escrita no 1º

Bimestre do 1º ano.

Criar texto a partir de

imagem.

Escrever frase com apoio

de figura.

Escrever palavras com

apoio de figura.

Escrever frase ditada.

Criar texto a partir de

imagem.

Escrever frase com apoio

de figura.

Escrever palavras com

apoio de figura.

Escrever frase ditada.

Criar texto a partir de

imagem.

Escrever frase com apoio de

figura.

Escrever palavras com

apoio de figura.

Escrever frase ditada.

Escrever o nome completo.

Fonte: Site da SME/RJEL – RJ Orientações Curriculares http://www.rioeduca.net/blogViews.php?id=5265

A análise desse quadro permite identificar que para o primeiro bimestre do primeiro

ano não há descritores. E, quando analisamos os dos demais bimestres, a ênfase está na escrita

de palavras e frases, prioritariamente, e de texto a partir de imagens. No primeiro bimestre a

ausência de descritores faz supor que tais aspectos não são abordados, relegando a esse

período um trabalho exclusivamente voltado ao estudo do SEA, na perspectiva de que

primeiro se aprende a escrever para depois se escrever. Essa suposição inicial, que vai de

encontro ao defendido por nós para a alfabetização, se confirma neste trabalho a partir do

estudo do Caderno Pedagógico. Não é dada ao aluno a possibilidade de se aventurar na escrita

espontânea de textos enquanto ainda não domina plenamente o princípio alfabético da escrita.

Indo assim de encontro à ideia de que:

Escrever é necessário para aprender a escrever, porém não é suficiente. As práticas

de ler e escrever consistem em participar na comunicação verbal humana. Para

aprender a ler e a escrever, os alunos têm que participar em atividades diversas de

leitura e escrita, com finalidades, interlocutores e âmbitos de interação diversos.

Porém, para se aprender a complexidade dos usos do escrito, tem que haver

atividades de ensino e aprendizagem que impliquem conhecimentos específicos

relacionados com as particularidades dos gêneros escritos que têm de ser ensinados

para que possam ser aprendidos. Visto de outra perspectiva, teríamos também de

dizer que as atividades de ensino por si mesmas, sem oferecer aos alunos

oportunidade para escrever em situações diferentes, não seriam suficientes para

aprender a escrever textos que devem corresponder à complexidade dos contextos

interativos. Coloca-se, portanto, a necessidade de relacionar a prática com a reflexão

(CAMPS, 2000, p. 12).

O Caderno, como se optou por denominá-lo neste estudo, possui 88 páginas e está

organizado sem indicação de seções ou unidades. Do exame da sua organização, porém,

concluiu-se que esta se dá por meio de textos seguidos de exercícios. Cada texto traz um tema

e, ao mesmo tempo, um conjunto de palavras cuja composição será explorada nos exercícios

em razão das relações entre fonemas e grafemas, como estratégia inequivocamente orientada

para a apresentação/aquisição do SEA.

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Ao todo, são cinco textos. O primeiro, Mariana, de Mary França, trata de nomes

próprios e dos segmentos deriváveis do nome da protagonista da história. O segundo, História

em 3 atos, de Bartolomeu Campos de Queirós, é dividido em três partes, cada uma

constituindo uma lição, em que as atividades brincam com as relações entres os nomes de

animais, e serve para exercícios com os grafemas de gato, pato, rato e outros dissílabos com

esquema silábico Consoante-Vogal (CV). O terceiro, A Bota do bode, de Mary França, traz a

história de uma bota que serve a inúmeros fins enquanto passa de um dono a outro no mundo

animal. A partir dela, são propostos exercícios com as possibilidades de exploração dos

grafemas e das sílabas das palavras casa, bode, bota, galo, gato, sapo. O quarto texto, De bem

com a vida, de Bia Hetzel, trata das relações de uma menina e sua gata, servindo de fonte para

exercícios gerados a partir das palavras Bia, Mel e mia, também nesse caso, é fragmentado

em duas partes, cada uma sendo uma lição. O quinto e último texto, de Ruth Roca, tem o

título M. Trata-se de um macaco maluco e manhoso que mete medo no matuto e no medroso.

A seguir de sua leitura, há exercícios que exploram as possibilidades de sílabas CV compostas

com a letra m.

Para Castro (2008, p. 60), “A escrita privilegiada pela escola, que ocupa papel tão

central em suas práticas, não é de forma alguma a que se define como atividade discursiva”.

Esta característica descrita pelo autor está presente nas atividades de escrita sobre os textos

que descrevemos acima.

Mais de 90% dos comandos para os alunos ocorre por meio de verbos no imperativo.

Ao todo, há 227 verbos de comando, dos quais os de maior ocorrência são: Leia (51),

Complete (27), Escreva (21), Circule (14), Pinte (11), Desenhe (10), Conte (10, sendo 8 no

sentido de contabilizar e 2 no de narrar), Copie (6) e Troque (5).

Os verbos selecionados e suas ocorrências permitem afirmar que, das atividades com a

língua – ouvir, falar, ler e escrever -, a leitura e a escrita sobressaem, praticamente não

havendo orientações para atividades de escuta e fala, confirmando a perspectiva de um

processo pedagógico que desconsidera o contexto de uso oral da língua e privilegia a

aquisição da SEA por meio de exercícios de leitura seguidos dos de escrita.

Ao reforçar atividades de escrita que não valorizam a opinião do aluno, sua livre

interpretação, ou que sugerem que em algum momento isso será solicitado, podemos supor

que esta prática, verificada no Caderno em questão, é reforçadora de uma escrita que desde o

início não tem autoria.

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Os textos e temas são trabalhados em relativa conexão com o suposto interesse dos

estudantes, sendo a eles solicitado que falem sobre seus dados (nome, endereço, idade,

composição familiar), suas brincadeiras prediletas, os animais que conhecem e de que gostam,

mas o foco principal dos exercícios mantém-se direcionado para a parte mecânica da

aquisição da língua. O que está em jogo é menos os contextos em que ocorrem as histórias e

suas possíveis relações com os contextos em que vivem os estudantes e mais a identificação

de relações entre grafemas e fonemas. É o que podemos verificar no exemplo abaixo, em uma

proposta feita após a leitura de um dos trechos do livro História em 3 atos, de Bartolomeu

Campos Queiros:

Figura 4

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p.31

Para Smolka (2012, p. 105),

A escola não concebe a possibilidade desta escrita e as próprias crianças

desconhecem sua capacidade de elaboração pois inibem suas tentativas, baseadas

que estão nas restrições – implícitas ou explícitas – dos adultos. De modo geral, a

escola não tem considerado a alfabetização como um processo de construção de

conhecimentos nem como um processo de interação, um processo discursivo,

dialógico.

Desse conjunto, destaque-se a tentativa de contextualização do processo de ensino-

aprendizagem em pauta por meio da inserção da temática dos Jogos Olímpicos, aproveitando

que a sua realização ocorreu na cidade do Rio de Janeiro em 2016. A forma como o tema está

presente no Caderno é particularmente artificial e merece, por isso, uma consideração à parte.

Previstos para ocorrer no mês de agosto, os Jogos Olímpicos foram escolhidos como

tema para um Caderno para ser usado no primeiro bimestre de 2016, antes, portanto, dos

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Jogos acontecerem. O tema dos Jogos Olímpicos, no entanto, é apresentado sem qualquer

preocupação em situar historicamente o evento. Trata-se de uma menção a algo que vai

acontecer; uma competição da qual atletas brasileiros vão participar.

Constam da lista de atletas nacionais César Scielo, que não participou dos Jogos, e

atletas paralímpicos, sem, contudo, haver qualquer trabalho com relação aos Jogos

Paralímpicos. O tema desaparece, para só reaparecer com a referências às moedas de 1 Real

com esfinges das modalidades olímpicas. Além de supor que os estudantes irão reconhecer os

ícones dos diversos esportes, a lição aposta em um objeto cuja circulação foi restrita. Na

época dos Jogos, conteúdos disponíveis em sítios eletrônicos diversos informavam que

colecionadores pagavam até 60 Reais pelas moedas mais raras. Que estudantes compraram, ao

preço de 1 Real, moedas dos lotes com tiragem de 20 milhões? Será que veem, em seus

ambientes sociais, tais moedas? Depois, o tema torna a desaparecer, para reaparecer de novo

na última lição, ainda sob a perspectiva da quantidade de medalhas conquistadas. O espírito

olímpico é ignorado, assim como qualquer ideia de promover ações ligadas a ele e aos Jogos

em sala de aula. Os exercícios se limitam a aproveitar, de forma estrutural e mecânica, parte

do léxico dos jogos.

Figura 5

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p. 17.

De um modo geral, na análise do material, prevalece a perspectiva do trabalho com

palavras, a fim de explorar sua estruturação silábica, com destaque para esquema CV e a

apropriação das vogais, por meio da sua substituição/oposição em variações de gênero e

sequências silábicas idênticas.

Segue o exemplo de uma dessas atividades comuns em todo Caderno:

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Figura 6

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p. 25.

As atividades de leitura coletiva -como são chamadas as lições em que os textos

aparecem - servem como pretexto para seleção de palavras-chaves no ensino do SEA,

lembrando em muito a perspectiva tradicional dos métodos das cartilhas, e na análise das

letras/fonemas, sílabas e palavras, que são manipuladas no desenvolvimento da consciência

fonêmica e fonológica. Assim, como não são o foco do trabalho proposto no Caderno, os

textos apresentados aos alunos são fragmentados em diferentes lições, o que contribui para o

empobrecimento do material de leitura.

Os textos, ao contrário, devem não só ser trabalhados na íntegra, mas,

preferencialmente, em seus suportes originais, em geral livros de literatura infantil, para que

os alunos possam visualizar, manusear, vivenciar essa experiência com o material de leitura,

familiarizando-se com ele. Não é demais lembrar que muitos alunos das camadas populares

têm reduzido, ou nenhum, contato com os livros (o que não significa que não tenham

conhecimento sobre a leitura), sendo a escola um espaço importante não apenas de ensino da

SEA, mas de desenvolvimento do hábito e gosto pela leitura, de apropriação das práticas

sociais de escrita. A ausência das ilustrações originais das histórias também é um fator de

empobrecimento do material oferecido às crianças, já que constituem a história narrada.

A contextualização dos textos e temas trabalhados não parece ser uma preocupação

no material, ficando a cargo da ação do professor, não estando, portanto, garantida, levando-

se em conta a subjetividade do professor e a singularidade de sua prática. É o que acontece,

por exemplo, quando o material aborda a temática do bairro (Figura 7), que pode se limitar ao

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preenchimento das informações solicitadas, dependendo do trabalho desenvolvido pelo

professor.

Figura 7

Fonte: 1º Ano – 1º Bimestre 2016 – Alfabetização – Aluno, p.25

Nesse sentido, a prática docente se expressa a partir de múltiplos determinantes,

ideias, valores, crenças, representações sobre o ensinar e o aprender na alfabetização, além

das possibilidades reais dos professores, dos meios e das condições materiais existentes.

Nossa análise não tem a pretensão de ser um retrato fiel das práticas de alfabetização, embora

reconheçamos que os Cadernos Pedagógicos, como currículo prescrito, revelam indícios do

que acontece ali nas salas de aula; as atividades propostas nesse material desenham um

cenário dos ambientes das salas de aula, revelando a concretização desse currículo que

desconsidera a ação do sujeito e a autonomia do professor, sendo marcado por exercícios

mecânicos de completar frases e palavras, ou atividades de interpretação de textos, nas quais

basta aos alunos localizar informações já dadas no texto.

Considerações Finais

Embora seja possível ponderar que o professor, como articulador das práticas

apresentadas no Caderno, poderá ampliar as discussões e acrescentar informações necessárias

para tornar o processo mais significativo, não podemos depositar muita força nessa

possibilidade, uma vez que, como já afirmamos anteriormente, a preocupação com a avaliação

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realizada com base nesses conteúdos e com esses formatos vai validar sua prática com uma

política ainda mais perversa de acréscimo no salário dos profissionais da escola que alcançar

as metas traçadas.

Outra questão que se coloca quando analisamos esse Caderno num contexto

educacional atual é a consciência do ativismo ao qual o professor está submetido, com carga

horária de planejamento muitas vezes inexistente. Para Charlot (2005, p. 91), “[…] ser

professor é defrontar-se incessantemente com a necessidade de decidir imediatamente no dia-

a-dia da sala de aula”. O ato de parar, refletir, decidir com seus pares os caminhos a seguir

nem sempre é contemplado na realidade atual, deixando o material didático ser o centro do

processo educacional, retornando a um novo tecnicismo educacional.

Dentre as conclusões iniciais a que a análise nos levou, podemos destacar:

1) A insuficiente contextualização das propostas de escrita, amplamente organizadas

dentro de uma perspectiva mecanizada. A forma como os temas são abordados não sugere

que os sujeitos não sejam ativos no processo.

2) A carência de continuidade e aprofundamento da temática, aspectos fundamentais

no planejamento das ações didático-pedagógicas para alfabetização, revela-se em propostas

organizadas em temáticas soltas e em grande número, que se misturam, prevalecendo sempre

o trabalho com a questão fonológica. A falta de conexão dos conteúdos apresentados, em

especial sobre o tema das Olimpíadas Rio 2016, é evidente. O Caderno se inicia por esse

assunto, depois ele desaparece e é retomado no final, criando uma ruptura e uma

descontinuidade temática.

3) A presença predominante de atividades mais direcionadas para o ensino mecânico

da escrita. São propostas que retiram palavras do texto e direcionam as atividades,

promovendo um engessamento técnico, dando espaço muito limitado à criação, à oralidade e

a propostas que possam contemplar uma gama de possibilidade de trocas entre outros sujeitos,

como exemplo, a relação do que está sendo trabalhado com a opinião familiar e a dos próprios

estudantes.

Diante do exposto, cremos que o papel do professor como autor de sua prática está

sendo ameaçado pelo uso de materiais didáticos que servem como treinamento para provas.

Outra limitação que identificamos na prática que reforça o uso do material adotado pela rede é

a retirada do aluno como sujeito de sua aprendizagem, concepção tão fortemente marcada

pela tendência progressista da educação.

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