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Contexto social e linguageiro do Brasil Independente Consequências da vinda da Família Real portuguesa para o Brasil A chegada da família real ao Brasil foi acompanhada por alguns mi- lhares de nobres num Rio de Janeiro bastante pequeno. O próprio aloja- mento de tanta gente foi um ultraje, que só um dono pode cometer, pois na porta das melhores casas aparecia de repente um aviso do Príncipe Regente com suas duas iniciais: PR. O povo lia diferente, revelando desde cedo a atitude galhofeira da tradição carioca: Ponha-se na Rua. Essa en- chente deve ter interferido para manter a fala brasileira mais próxima da de Portugal, ainda que não tenha influído na pronúncia das gentes da co- lônia, porque esta era uma influência da antiga fala portuguesa anterior aos clássicos. De fato seria curioso e atraente estudar as palavras que entraram na nossa fala por essa época. O Brasil deixa de ser colônia em 1815 e se torna independente em 7 de setembro de 1822, mas essa é apenas uma data e pelo menos por mais uns 30 anos todas as condições sociais eram as mesmas dos últimos 300 anos, porque um grito de Dom Pedro I não foi um milagre: a escravatura continuava, entre todos, sobressaíam os nobres e os ricos e o relacionamento entre patrões e empregados era tipicamente patriarcal. Creio mesmo que essas condições chegaram até as primeiras déca- das do século 20, porque me lembro das palavras de Ismael Gomes Braga (1891-1969), espírita e esperantista, antigo contador do Cassino Quitandi- nha na serra de Petrópolis, com quem morei recém-saído de um seminário franciscano em fins de 1952. Ele me contou sobre o relacionamento na casa comercial: chegava a hora do almoço, ficava o patrão à cabeceira da mesa, cercado pela mulher e pelos filhos, e os outros lugares eram ocupa- dos pelos empregados. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Contexto social e linguageiro do Brasil Independente

Consequências da vinda da Família Real portuguesa para o Brasil

A chegada da família real ao Brasil foi acompanhada por alguns mi-lhares de nobres num Rio de Janeiro bastante pequeno. O próprio aloja-mento de tanta gente foi um ultraje, que só um dono pode cometer, pois na porta das melhores casas aparecia de repente um aviso do Príncipe Regente com suas duas iniciais: PR. O povo lia diferente, revelando desde cedo a atitude galhofeira da tradição carioca: Ponha-se na Rua. Essa en-chente deve ter interferido para manter a fala brasileira mais próxima da de Portugal, ainda que não tenha influído na pronúncia das gentes da co-lônia, porque esta era uma influência da antiga fala portuguesa anterior aos clássicos.

De fato seria curioso e atraente estudar as palavras que entraram na nossa fala por essa época. O Brasil deixa de ser colônia em 1815 e se torna independente em 7 de setembro de 1822, mas essa é apenas uma data e pelo menos por mais uns 30 anos todas as condições sociais eram as mesmas dos últimos 300 anos, porque um grito de Dom Pedro I não foi um milagre: a escravatura continuava, entre todos, sobressaíam os nobres e os ricos e o relacionamento entre patrões e empregados era tipicamente patriarcal.

Creio mesmo que essas condições chegaram até as primeiras déca-das do século 20, porque me lembro das palavras de Ismael Gomes Braga (1891-1969), espírita e esperantista, antigo contador do Cassino Quitandi-nha na serra de Petrópolis, com quem morei recém-saído de um seminário franciscano em fins de 1952. Ele me contou sobre o relacionamento na casa comercial: chegava a hora do almoço, ficava o patrão à cabeceira da mesa, cercado pela mulher e pelos filhos, e os outros lugares eram ocupa-dos pelos empregados.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Língua brasileira e língua portuguesaRessalvado o caso de palavras peculiares de coisas portuguesas ou brasilei-

ras, o português de lá e o português de cá tinham as mesmas construções e ainda as têm, embora se deva notar que o nosso tem uma norma mais antiga que a deles com o exemplo típico do tratamento diferencial do nosso gerúndio e do infinitivo preposicionado deles:

Silêncio, que eu estou trabalhando! – gerúndio. (Brasil)

Silêncio, que eu estou a trabalhar! – infinitivo preposicionado. (Portugal)

A recíproca é verdadeira: a primeira é raríssima em Portugal e a segunda é raríssima no Brasil. Parece-me, entretanto, que há duas formas diversas, mas possíveis tanto lá como cá, desde que sem ter a função adjetiva de cima, mas a adverbial que segue:

Caindo, perdeu a carteira.

Ao cair, perdeu a carteira.

Duvido que brasileiros e portugueses, cultos ou incultos, que os há cá e lá, tenham alguma dificuldade em entender a maneira de falar do outro: achar es-tranho e feio ou ainda pior é um direito de cada um dos falantes de uma dessas variantes de língua, desde que o respeito impere. Afinal, língua é que nem filho: para os pais, é uma maravilha.

Toda opinião é livre. Assim, não há qualquer insulto em os portugueses acha-rem que nós brasileiros falamos arrastado e nós acharmos que eles falam atrope-lando nossas orelhas. E as vogais fracas das suas palavras compridas, reduzindo as nossas longuíssimas esperanças a uma curtíssima ´sp´rança.

Sou o bastante honesto para confessar que nem todos comungam essas minhas ideias sobre a língua portuguesa do Brasil.

Apesar de tudo, estou convencido de que todos aceitavam até o centená-rio da nossa Independência o fato de que a língua de Portugal e a língua do Brasil eram uma única língua, mas desde essa data há vozes que defendem uma língua de Portugal e outra língua do Brasil, raras no século XIX, mas frequentes no século XX depois da vitória mais ou menos pacífica do Modernismo de 1922: José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) foi veementemente contra essas novidades.

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Uma das vozes recentes e contrárias pertence ao professor Marcos Bagno (1961), da Universidade do Brasília, que em seu livro comenta uma matéria da revista Superinteressante sobre a língua portuguesa do Brasil, de que cito partes avulsas (BAGNO, 2001, p. 167):

[...] a revista entrevistou linguistas que trabalham em diversas regiões do pais, todos empenhados em projetos de pesquisa científica que visam descrever o português falado no Brasil. Com base em suportes teóricos, todos eles são unânimes em afirmar que no Brasil, definitivamente, se fala uma língua diferente da falada em Portugal.Nessa mesma reportagem, a única voz dissonante – como era de se esperar – veio do gramático Evanildo Bechara, para quem “não há nada no português brasileiro que não exista em Portugal”.

Descontente ainda por haver uma voz dissonante, de que debocha com aquela frase entre travessões – como era de se esperar de um gramático – Bagno (2001, p. 168) continua com um caso dele mesmo:

[...] E no primeiro dia útil do ano 2001, fui ver no cinema o belo filme Capitães de Abril, dirigido e estrelado pela atriz portuguesa Maria de Medeiros, e para minha grande surpresa – e alegria – o filme não só era legendado, como também tinha sido traduzido para o português brasileiro: todos os tu foram devidamente traduzidos por você, as construções imperativas do tipo “espera-me” foram substituídas por “me espera”, e as expressões idiomáticas portuguesas foram traduzidas por expressões idiomáticas brasileiras: “Queres que te dê uma boleia?” apareceu na legenda como “Você quer que eu te dê uma carona?”[...] Agiram muito bem os distribuidores ao fazer isso, porque, do contrário, o público brasileiro perderia grande parte do conteúdo dos diálogos do filme, [...].

Primeiro, uma apreciação da linguagem de Bagno, com que ele procura cons-cientemente seguir as suas ideias de português brasileiro e por isso, adota a sin-taxe popular para o verbo visar: visam descrever, em lugar da literária visam a descrever... Tudo bem! É um direito dele, ainda que haja passagens menos per-doáveis, mas compreensíveis como algumas que cometo eu mesmo aqui, mas puxando ao contrário.

Agora, largando o texto e voltando às ideias contidas, as legendas e a tradução foram uma bofetada que a diretora desse filme deu no público brasileiro e me admira que um professor universitário não tenha deduzido a intenção portugue-sa: seus burros. Bagno ignora que grande parte dos gaúchos usam o pronome de segunda pessoa do singular com o verbo no singular. Ou seja: “Queres que te dê uma carona?” A outra parte usa o mesmo pronome com a terceira pessoa: “Tu quer que eu te dê uma carona?” Além disso, esse pronome com a terceira pessoa é comum em todos os estados brasileiros e predomina em alguns do Nordeste, senão em todos, e constitui um verdadeiro sinônimo do pronome você. E nem lembrou a Bagno que a palavra você parece ser inteiramente culta, porque a fala do nosso povo tem continuado o antiquíssimo desgaste da expressão arcaica:

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vossa mercê > vosssemecê > vosmecê > você > ocê > cê...

E se chegou por fim ao impossível, além do que nada mais existe:

C´ é besta, home!

Diga-se de passagem que o pronome vosmecê desapareceu nos fins da década de sessenta, pois o presidente da minha banca de Concurso de Livre-do-cência e Doutorado na Universidade Federal do Paraná, o professor catedrático Rosário Farâni Mansur Quérios (1907-1987), lendo a minha tese e me arguindo, me criticou acerbamente:

– Professor Geraldo, vosmecê usa tanta vírgula que até parece asmático...

E há um pormenor que é um enorme pormaior: na fala portuguesa, tu é usado entre iguais, você com os inferiores e o senhor ou a senhora com os superiores.

De outro ponto se esqueceu o professor Bagno: as crianças todas aprendem a língua sem ninguém as ensinar, pois ouvem e veem o que ocorre, comparando e deduzindo. Da mesma forma, o público brasileiro imediatamente compreende-ria o que era boleia porque teria visto um carro e um motorista falando a outra pessoa. E isso sem falar que essa palavra é comum na boca e nos ouvidos dos caminhoneiros, mais comum entre eles que a palavra cabine: o significado por-tuguês é uma singela metonímia, porque boleia é, antes de tudo, a cabine ou o assento do cocheiro das antigas carruagens puxadas a bicho:

Se há boleia, há lugar na boleia.

O sentido de lugar gratuito na cabine ou na boleia provém das circunstâncias da fala: quem oferece sem ser vendedor, está oferecendo de graça.

Comparando Portugal e Brasil com Índia e Hindustão

E um outro item de Bagno (2001, 167). O linguista indiano Kanavillil Rajagopa-lan, que trabalha há muitos anos no Brasil, diz que o “brasileiro” e o “português” têm mais diferenças entre si que o hindi (falado na Índia) e o urdu (falado no Paquis-tão) que no entanto são reconhecidos politicamente como línguas diferentes.

Deveras me surpreende esse apoio tomado por Bagno: um reconhecimento po-lítico de que se trata de duas línguas nada vale em termos de Linguística. De qual-

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quer forma, escrevi para Probal Dasgupta (1953), hindu e doutor em Linguística, e perguntei se efetivamente é uma língua só, recebi por correspondência pessoal esta resposta, que traduzo abaixo:

Laŭ la lingvistoj, jes, sed kun la rimarkindaĵo, ke la kleraj vortprovizoj estas malsamaj - la eru-diciaj vortoj en la hindia varianto venas de la sanskrita dum tiuj en la urdua varianto venas de la persa kaj la araba - kaj ke la hindia varianto uzas la sanskritan skribsistemon dum la urdua varianto uzas la araban.Sed laŭ la uzantoj de la lingvoj, ili estas du malsamaj lingvoj, kun hazarde grandega interkom-preneblo. Probal

Para os linguistas, sim, mas sendo dignos de atenção os diferentes conjuntos de palavras cultas: as palavras eruditas da variante hindi vêm do sânscrito, enquanto as da variante urdu vêm do persa e do árabe: a variante hindi usa o sistema de escrita do sânscrito enquanto a variante urdu usa o do árabe.Para os usuários das línguas, são duas línguas diferentes por acaso com uma grande intercom-preensão. Probal

Novamente percebe-se que o hindi e o urdu são uma língua só: se as palavras cultas os distinguem, segue-se que as comuns são iguais. E se derruba mais um argumento de Bagno. Acrescento que também a língua portuguesa foi procurar as suas palavras eruditas na cultura greco-romana.

E como prova final, pergunto ao meu leitor compatriota se não entende o que o meu samideano português me escreve em resposta ao que lhe perguntei em correspondência pessoal. Se eu tiver leitor gaúcho, acho que ele vai achar que os portugueses são gaúchos:

Não consideres abuso de confiança o facto de te tratar por ‘’tu’’ mas em Portugal os amigos tratam- -se por ‘’tu’’ e os desconhecidos por ‘’você’’. No entanto, estamos habituados a que os brasileiros nos tratem por ‘’você’’, e sabemos que o ‘’você’’ brasileiro corresponde ao ‘’tu’’ português. Uma coisa com que tens que contar nas relações luso-brasileiras é o facto dos portugueses estarem mais bem informados do português do Brasil e da cultura brasileira do que o inverso. Além da invasão telenovelesca, que habituou o ouvido português ao português brasileiro, em Portugal encontramos brasileiros a cada esquina, mas o mesmo não se passa no Brasil.

(João José Santos)

Língua do século XIXDois fatos importantes aconteceram no Brasil recém-emancipado, que res-

ponderam por um impacto social extremamente relevante.

O primeiro fato trouxe um impacto literário com o marco histórico da publi-cação em 1836 da primeira obra romântica brasileira em Paris, de autoria de Do-

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mingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882): Suspiros Poéticos e Saudades. O prefácio divulga a nova estética literária.

O fato de que agora a influência de Portugal, aonde iam os brasileiros se abe-berar da sua cultura, cedeu lugar à da França menos pelo livro que veio de lá e muito mais pelas ideias da Nova Escola que vieram igualmente de lá.

Esse deslocamento vai abrir caminho à influência inglesa com a vida desgra-çada e lendária de George Gordon (1780-1824), Lord Byron, e com o prestígio do seu estilo e obras num momento posterior do nosso Romantismo, que teve em Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1830-1851) a sua grande expressão: Lira dos Vinte Anos, livro de poemas publicado postumamente em 1853. Ao morrer de tuberculose, falou a seu pai:

“– Que fatalidade, meu pai.”

O segundo fato importou em um impacto político por um acesso popular de descontentamento e de desgosto que produziu quatro levantes violentos numa terra onde nunca havia ocorrido alguma coisa igual, salvo a Inconfidência Minei-ra, que morreu antes de nascer, e as lutas logo depois de proclamada a indepen-dência do Brasil contra as forças portuguesas.

1832-1840 – Cabanada: revolta paraense de moradores em cabanas con- �tra a exploração da elite.

1835-1845 – Guerra dos Farrapos: revolta gaúcha contra a Regência. �

O mais sério de todos foi a Guerra dos Farrapos (1835-1845), chamada também de Revolução Farroupilha, que começou em Porto Alegre com Bento Gonçalves, coronel de milícias e deputado provincial, que tomou a cidade, reconquistada um ano depois e obrigando os revoltosos a fugirem para o interior da Província, onde proclamaram a República de Piratini, com Bento Gonçalves presidente. Aqui, o in-centivo para a revolução foi político: o desejo de abandonar a monarquia e aceitar o regime republicano. O Barão de Caxias assume em fins de 1842 a presidência da Província e o comando das suas forças militares e leva dois anos e meio para chegar a vitória final. Conta-se que um padre propôs ao Barão de Caxias celebrar uma missa e se cantasse um te-déum pela vitória alcançada. O vencedor recusou.

1837-1838 – Sabinada: revolta baiana contra a Regência, sob o comando �do médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira (1796-1846), com ob-jetivos republicanos. Derrotado, foi desterrado e morreu no exílio.

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1838-1841 – Balaiada: revolta maranhense contra a exploração pratica- �da pela elite, sob o comando de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira. A Balaiada, revolta nas terras maranhenses entre 1838-1841, começa com a tomada da cidade de Caxias pelos revoltosos no ano seguinte. Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, um dos chefes, tinha o apelido de Balaio e dele veio o nome da revolta dos balaios, ou da balaiada, morrendo em 1839. A derrota deles levou o vencedor, coronel Luis Alves de Lima e Silva (1803-1880), ao posto de general e lhe deu o título de Barão de Caxias. A causa dessa revolta foi uma explosão de ódio contra as injustiças sociais: uma luta do povo miúdo contra os magnatas.

Devemos ainda lembrar-nos dos cinco anos inteiros entre o fim de 1864 e o começo de 1870 em que se travou a Guerra do Paraguai, em que soldados negros tiveram uma atuação especial.

Se houve levantes no segundo Reinado, também os houve na República: o cerco da Lapa até hoje está vivo nos corações paranaenses como um sangrento episódio da Revolução Federalista entre 1893 e 1895. Entretanto, o período republicano viu dezesseis pequenos ou grandes incidentes, com o maior deles em 1930, que trouxe Getúlio Vargas (1882-1954) para o comando do Brasil por um quarto de século.

Uma literatura mais brasileira na língua e nos assuntos começa com os poetas e os romancistas do Romantismo.

O início é a prosa com o romance de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), que ainda hoje se pode ler com prazer: A Moreninha (1844).

Pouco depois ocorre o início da poesia com Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) com o primeiro de seus livros: Primeiros Cantos (1846 na capa e 1847 na edição). Morreu no naufrágio do Ville de Boulogne nas costas brasileiras.

A primeira opinião sobre o seu valor veio de Alexandre Herculano (1810-1877 apud DIAS, 1954, p. 16), poeta, romancista e historiador português, que chega a citar um de seus poemas: “Julgamento crítico”.

Os primeiros cantos é um belo livro; são inspirações de um grande poeta. A terra de Santa Cruz, que já conta outros no seu seio, pode abençoar mais um ilustre filho. O autor, não o conhecemos, mas deve ser muito jovem. Tem os defeitos dos escritos ainda pouco amestrados pela experiência: imperfeições de língua, de metrificação, de estilo. Porém o tempo apagará essas máculas, e ficarão as nobres inspirações estampadas nas páginas deste formoso livro.

Acusado de não saber português, Gonçalvez Dias não deixou por menos. Defende-se indiretamente, mas muito diretamente, escrevendo um livro inteiro à moda dos velhos trovadores e na língua deles: Sextilhas de Frei Antão.

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Leio em Geraldo Mattos (1931) um parágrafo de um dos livros didáticos (MATTOS, 1970, p. 172) sobre Gonçalves Dias: “foi um poeta culto e conhecedor de toda a técnica do verso que cuidava ao extremo, mas tinha muita facilidade em compor, tanto que, certa ocasião, num baile de máscara, improvisou para uma dama, indecisa entre ele e um outro”:

Senhora, já que podeis

Dizer que não, ou que sim,

A ambos não magoeis:

Dizei – sim, mas não a ele;

Dizei – não, mas não a mim.

Um dos seus poemas é talvez o mais conhecido e admirado e proveio dos sete anos que passou estudando em Portugal entre 1838 e 1845, depois de sair do Brasil aos quinze anos: “Canção do exílio”. Ela abre seus Primeiros Cantos (DIAS, 1997, p. 27-28):

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

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Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Vamos agora para o melhor romancista do Romantismo: José Martiniano de Alencar (1829-1870). Ainda que o seu primeiro romance impresso seja Cinco Mi-nutos, de 1856, o seu romance mais feliz é O Guarani, publicado em folhetins no jornal Diário do Rio entre 1856 e 1857. Os seus romances como que acompanham o território nacional e a história da terra brasileira desde a pré-cabralina: tem do sul O Gaúcho (1870) e do nordeste O Sertanejo (1875), antes de Cabral Ubirajara (1874) e depois dele As Minas de Prata em dois volumes (1865-1866) e muitos outros.

Ficou muito conhecida a polêmica que travou com Joaquim Nabuco, que ata-cava na galhofa e se arrependeu mais velho (ALENCAR, 1978, p. 96-97):

O Sr. J. Nabuco não deve falar em estilo, ao menos por algumas semanas, enquanto não esquece de todo o que escreveu acêrca do Tartufo. Afirmar com autoridade de pedagogo que Molière é intraduzível na língua portuguêsa, só o podia fazer quem não conhece nosso rico idioma, e apenas sabe usar dêle um traste para o serviço de sua pessoa.

No Guarani descreve-se a onça no momento do assalto “com o corpo direito e os dentes prestes a cortar a jugular do índio”. O meu atilado crítico leu, pensou e concluiu que “o tigre devia ter certo conhecimento de anatomia”.

Talvez haja quem se admire disto; eu, porém, acho tão naturais estas descaídas de um talento precoce! Só estranho que, dizendo-se ter o tigre acometido o índio, não induzisse o crítico daí que o animal também era versado em etnologia.

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E Alencar (1961, p. 105) vergastou1 ferrenhamente Gonçalves de Magalhães pela epopeia lançada em 1856: Confederação dos Tamoios. Como parece que todos concordaram com ele, a sua fama se fez em cima dessa crítica:

Bem sei que o Sr. Magalhães não teve pretensões de fazer uma Ilíada ou Odisseia americana; mas quem não é Homero deve ao menos imitar o mestre; quem não é capaz de criar um poema, deve ao menos criar no poema alguma.

O maior erro de Gonçalves de Magalhães foi o de tomar como assunto um acontecimento que lhe dava poucas realidades e nenhuma delas extraordinária, mas ao mesmo tempo exigindo dele uma vocação de romancista, de que certa-mente ele carecia.

E findo o Romantismo com Antônio de Castro Alves (1847-1871) com seu verso eloquentemente altissonante. Como Gonçalves Dias foi o poeto dos índios, Castro Alves foi o poeta dos negros: Espumas Flutuantes (1870) e Os Es-cravos (1883).

Depois do Romantismo, o Realismo e o Naturalismo produziram cada um o seu romancista extraordinário:

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), é um completo romancista por seu realismo na análise do caráter feminino em seu Dom Casmurro (1899), pessimista e acabrunhante.

Em seu doloroso soneto “A Carolina”, em que a dor se escancara, Machado de Assis nos deixa um exemplo de finíssima figura de estilo no verso que segue em destaque (MATTOS, 1970, p. 34-35):

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pos um mundo inteiro.

1 Vergastar: golpear com vergasta; chicotear, chibatar, açoitar (HOUAISS, 2004).

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Trago-te flores, – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

Para dizer da trágica separação sem falar dela, Machado de Assis distancia dois elementos oracionais de maneira violenta, bastando comparar o verso em destaque com a ordem direta e comum do nosso dia-a-dia:

E ora nos deixa mortos e separados.

A separação desses termos da oração leva o inconsciente do leitor à separa-ção dos corpos do casal. Esta partição contrasta fortemente com o fim do verso anterior, que mostra a antiga proximidade do casal: que nos viu passar unidos. Muito bem bolado, desde que bem entendido.

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) é o romancista dos negros, com a dolorosa história do seu O Cortiço (1890). É preciso lembrar-nos de que o fim da escravidão tinha acontecido quase que na véspera do apareci-mento do romance: um assunto, portanto, plenamente contemporâneo. Como naturalista, Aluísio de Azevedo sentia-se obrigado a escolher a exceção mais cruel e colocar no fim do romance uma cena que nos corta o coração (AZEVEDO, 2004, p. 206-207):

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.

– É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraça a segui-los. – Prendam--na! É escrava minha!

A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.

Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.

E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

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João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.

Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.

Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

A escrava Bertoleza tinha servido a João Romão a vida inteira e o ajudara em tudo a adquirir a riqueza que agora o afastava dela. Essa foi a sua paga.

Junto com o Realismo e o Naturalismo floresce o Parnasianismo, que adota o purismo da linguagem e a perfeição do verso em sua métrica e na estrutura do poema, além de se manter o poeta em suas torres de marfim alheio às necessi-dades sociais. O maior dos seus poetas é Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1917), bom construtor de sonetos.

Pouco tempo depois do aparecimento do Realismo e do Naturalismo vêm os poucos anos do Simbolismo, que abandona a técnica, a frieza e a materialidade parnasiana para deixar-se levar pelo sonho e pela fantasia, ainda que cuidan-do bem da linguagem. Essa escola deu-nos vários autores muito bons, mas um deles merece aqui um destaque todo especial por ser um dos maiores poetas brasileiros: João da Cruz e Sousa (1861-1898), filho de pais escravos, mas adota-do pelos senhores de seus pais, teve uma boa educação, dedicou-se ao jornalis-mo e viajou entre o Amazonas e o Rio Grande do Sul pregando o abolicionismo. Publicou em 1893 as duas obras que o tornaram conhecido e admirado: Bro-quéis, poemas, e Missal, prosa poética.

Língua do século XXO século XX começa com uma polêmica que teve nesse tempo uma repercus-

são fantástica por envolver dois baianos: o professor Ernesto Carneiro Ribeiro e o jurista Rui Barbosa. Depois de um primeiro confronto, houve uma Réplica de Rui Barbosa, com 599 páginas, e uma Tréplica de Carneiro Ribeiro, com 889 páginas, ambas sobre a redação do projeto do Código Civil da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro.

O nosso primeiro século de independência termina em 1922 para a nossa Literatura, mas para a nossa sociedade somente em 1943.

Fiquemos com a literatura, que inicia o seu Modernismo.

A procura de novos caminhos artísticos marca o princípio do século passa-do em todo o mundo. Houve um cansaço tremendo e sentiu-se que diminuía a

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criação artística à medida que crescia assustadoramente a imitação do passado, conduzindo todos a uma repetição monótona de velhos moldes de beleza. As novas atitudes artísticas não puderam encontrar-se sem um longo período ico-noclasta, uma derrubada completa dos ídolos passado, tamanhamente pesava sobre todos a influência da arte velha.

O movimento brasileiro conheceu os congêneres europeus e, porventura, deles lucrou a necessária coragem para erguer-se, agitar-se e irromper finalmen-te, mas se mostrou nitidamente nacionalista e descompromissado com outros levantes artísticos do velho mundo. Cumpre-nos, pois, uma rápida visão dessas tentativas modernistas de outras terras.

O Cubismo nasceu em 1908 com Picasso (1881-1973) e Braque (1882-1963), com a finalidade de tornar-se uma arte de pura criação, sem nenhuma imitação, sob o princípio de que os sentidos deformam e apenas o espírito forma.

O Fulvismo aparece com o pintor Matisse (1869-1954), em 1905, e pretende exprimir-se apenas através de cores puras, exaltando o sentimento e o pensa-mento do artista diante da natureza.

O Futurismo parte de Marinetti (1876-1944), em 1909, renegando todo o passado, celebra o homem mecânico e procura traduzir o enorme ruído da téc-nica moderna pela desarmonia da linguagem, violada extremamente.

O Dramatismo, de 1912, tenta reproduzir o homem integral, do indivíduo ao universo, compondo o poema com a simultaneidade de realidades diversas, heterogêneas.

O Dadaísmo reúne um grupo de escritores do período posterior à Primeira Guerra Mundial (1914), que negam qualquer relação entre o pensamento e a sua expressão. O maior representante desta escola foi Tristan Tzara, que mais tarde passaria para o Surrealismo, como muitos outros dadaístas; entre eles, o próprio André Breton (1896-1966).

O Surrealismo, inaugurado em 1924 por André Breton (1896-1966), procura externar o pensamento puro sem nenhum controle da razão.

Antecedentes do Modernismo brasileiroTasso da Silveira (1895-1968) chama Sincretismo aos primeiros vinte anos de

arte brasileira deste século: uma arte mista de técnicas parnasianas em simbolis-

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tas, frágil para firmar-se como escola, mas suficiente para lavrar a terra em pre-paro da eclosão do Modernismo.

A prosa mostrou-nos Lima Barreto (1881-1922) – (Recordações de Isaías Ca-minha, 1909) e Adelino Magalhães (1887-1969) – (Casos e Impressões, 1916). A valorização da realidade brasileira com Euclides da Cunha (1866-1909) – (Os Ser-tões, 1902), Oliveira Viana (1883-1951) – (Populações Meridionais do Brasil, 1920) e Gilberto Amado (1887-1969). A própria linha nacionalista e, ainda mais, regio-nalista do Modernismo remonta a Simões Lopes Neto (1865-1916) e a Monteiro Lobato (1882-1948).

Além dessa prosa artística, houve ainda a didática em que se destaca a po-lêmica entre o jurista Rui Barbosa e professor Ernesto Carneiro Ribeiro sobre a redação do projeto do Código Civil. Dois livros surgiram desse embate de ideias, que hoje nos parecem um tempo que se poderia aproveitar melhor: a Réplica de Rui Barbosa, de 599 páginas, e a Tréplica de Carneiro Ribeiro, de 889 páginas.

Semana de Arte ModernaO movimento modernista foi preparado por longos anos e pouco antes da

data oficial aparecem três obras importantes, já reveladoras do novo estado de espírito que ia vencer nas letras: A Cinza das Horas (1917), de Manuel Bandeira (1886-1968), Há uma Gota de Sangue em cada Poema (1917), de Mário de Andra-de (1893-1945) e Juca Mulato (1917), de Menotti del Picchia (1892-1988).

Quando estava consciente a ideia da necessidade de reforma, paulistas e ca-riocas se reuniram para uma apresentação pública no Teatro Municipal de São Paulo, com sessões realizadas a 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Apareceram pintores (Anita Malfatti (1889-1964) e Di Cavalcanti (1897-1976), músicos (Villa- -Lobos (1887-1959) e Guiomar de Novaes (1894-1979) e escritores (Mário de An-drade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) e promoveram a Semana de Arte Moderna para escândalo da arte tradicional da época.

A Graça Aranha (1868-1931) coube o discurso inaugural, emprestou ao mo-vimento o seu prestígio pessoal e chegou a ser considerado, para desgosto dos modernistas, orientador e chefe do movimento.

Mário de Andrade (1893-1945), um dos maiores batalhadores do Modernis-mo, arrolou os objetivos do movimento:

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ruptura das tradições acadêmicas; �

destruição do espírito conservador e conformista; �

demolição de tabus e preconceitos; �

obediência a três princípios: �

ao direito à pesquisa; �

à atualização da inteligência artística brasileira; �

à formação da consciência criadora nacional. �

Desses objetivos advêm os caracteres modernistas:

inteira liberdade formal de escolha de assunto e de construção da obra �de arte;

consciência de brasilidade da linguagem e do assunto; �

com isso adotou-se a linguagem coloquial, mais próxima do povo, o verso �livre e o assunto cotidiano.

Os principais autores do início do nosso Modernismo, poetas e prosadores, historiados e sociólogos, nasceram na sua maioria em fins do século XIX e por-tanto, conscientemente optaram pelo Modernismo depois do escândalo da Semana de Arte Moderna, o que se mostra claramente com os dois poemas de Mário de Andrade, o primeiro modernista e o segundo com técnicas simbolistas (ANDRADE, 1972, p. 93):

1.º

Meu gozo profundo ante a manhã Sol

a vida carnaval...

Amigos

Amores

Risadas

Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos

de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarros.

Me sinto a Assunção de Murilo!

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Já estou livre da dor...

Mas todo vibro da alegria de viver.

Eis porque minha alma inda é impura.

2.º

Platão! Por te seguir como eu quisera

De alegria da dor me libertando

Ser puro, igual aos deuses que a Quimera

Andou além da vida arquitetando!

Mas como não gozar alegre quando

Brilha esta alva manhã de primavera

– Mulher sensual que junto a mim passando

Meu desejo de gozos exaspera!

A vida é bela! Inúteis as teorias!

Mil vezes a nudeza em que resplendo

À clâmide da ciência, austera e calma!

E caminho entre aromas e harmonias

Amaldiçoando os sábios, bendizendo

A divina impureza de minha alma.

Na minha visão, tivemos com Manuel Bandeira Carneiro de Sousa Filho (1886--1968) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) os nossos maiores poetas do século passado e com José Lins do Rego (1901-1975) e Jorge Amado de Faria (1912-2001) os nossos maiores romancistas. E tem João Guimarães Rosa (1908--1967), que não queria entrar para a Academia Brasileira de Letras por medo de morrer logo depois. E ele entrou bem. Ora, pois.

E também chega para a sociedade o segundo século da nossa independência política, ainda que tardiamente: em primeiro de maio de 1943, quando foi assinado por Getúlio Vargas e Alexandre Marcondes Filho o Decreto-Lei 5.452 que aprova a Consolidação das Leis do Trabalho, encerrando o sistema patriarcal brasileiro.

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A professora Neide Smolka nos premia com um texto nordestino que nos traz palavras desconhecidas fora daquele local, mas a língua é a mesma, além de

também outros estados terem palavras só deles.

Nosso idioma(SMOLKA, 2008)

Formação da Língua Portuguesa

[...] a história da nossa língua, por várias razões, é bem complexa e origi-nal. Assim sendo, julgo mais interessante ater-me à problemática do desen-volvimento da língua portuguesa especificamente no caso brasileiro, o que, acredito, vai deixar mais claro o porquê, sob o ponto de vista filológico, da abertura a “empréstimos”, necessários e desnecessários, que aqui existe.

Em primeiro lugar, de acordo com o que ensina Serafim da Silva Neto, em seu livro Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950), pode-mos dividir em três fases a sua história. A primeira fase começa com o início da colonização (1532) até a expulsão dos holandeses de nossa terra (1654). A segunda vai até a vinda da família real portuguesa para o Brasil (1808) e a terceira, daquele momento até os nossos dias.

A primeira fase é representada, em sua grande parte, pelo uso da cha-mada “língua geral”, baseada praticamente no tupi com influências de lín-guas banto e sudanesas da África. O português era falado pelas famílias lusitanas que para cá vinham e começou a ser ensinada pelos jesuítas aos índios, tendo em vista a sua catequese. Criou-se, dessa forma, um “linguajar de emergência”, uma linguagem especial falada pelos mamelucos e mulatos e usada também pelos mercadores nas suas viagens e pelos bandeirantes e outros aventureiros em suas expedições sertão a dentro.

Já na segunda fase, a “língua geral” vai sendo pouco a pouco desterrada, limitando-se a ser falada nas povoações do interior e nos aldeamentos dos je-suítas. Vai aumentando consideravelmente a quantidade de imigrantes lusita-nos, e são, por isso, instalados, cada vez em maior número, colégios para aten-

Texto complementar

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derem a essa população. Surgem estudiosos e professores de nossa língua, como é o caso do Pe. Vieira. Ele próprio, em sua obra Sermões (1690), comenta que a “língua geral” está desaparecendo e que se fala no Brasil, naquela época, além dela, mais quatro línguas: a portuguesa, a etiópica (usada principalmen-te na Bahia pelos padres para catequizar cerca de vinte e cinco mil negros que lá viviam) e duas indígenas (tupi e tapuia, utilizadas no interior).

Essa segunda fase representa a real preparação para a instalação definiti-va da língua portuguesa no Brasil, o que vai acontecer, de fato, com a vinda da Família Real, em 1808, quando tem início a terceira fase que perdura até os nossos dias.

Como se pode ver, a língua portuguesa foi entrando no Brasil gradativa-mente, sofrendo influências indígenas e africanas, o que não impediu que, principalmente pelo fato de não terem sido línguas escritas o tupi, o banto e os vários falares sudaneses, o português saísse vitorioso como nossa língua e mais, como o maior responsável pela unidade nacional de nosso país.

Aliás, no Brasil, não existem dialetos, mas apenas falares típicos em regi-ões distintas. A estrutura gramatical é totalmente a mesma. As diferenças regionais dizem respeito apenas à área da semântica.

A propósito, julgo interessante mostrar a vocês pelo menos um exemplo de falar típico de um de nossos Estados. Há alguns anos estudei os falares de alguns deles e pedi ao jornalista Walter Sampaio que criasse algumas estó-rias em que aparecessem termos típicos de cada região. Vou ler uma delas para vocês. Ouçam com atenção, pois assim vão ver praticamente a diferen-ça entre dialeto e falar. Escolhi um trecho que apresenta o linguajar do Rio Grande do Norte:

“Ele queria ser bandejo. Pensava que o melhor caminho era bancar o mi-trado porque assim mostraria tenência e, quem sabe, as pessoas vissem nele borogodó. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é que ele estava enfadado. E tinha também muita pissica...”

Vamos traduzir?

“Ele queria ser famoso. Pensava que o melhor caminho era bancar o ladino porque assim mostraria sabedoria e, quem sabe, as pessoas vissem nele algum atrativo. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é que ele estava em má situação financeira. E tinha também muita falta de sorte...”

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A meu ver, é bom salientar que, quando se estuda a formação de uma língua, são utilizados, em filologia, três termos técnicos: stratum, substratum e superstratum. Em Filologia Românica, por exemplo, o latim é o stratum, o substratum, no caso específico da Península Ibérica, era a língua falada pelos iberos e celtiberos quando os romanos lá chegaram e o superstratum foram as línguas que influenciaram o latim já instalado na região.

Se estivermos tratando de Filologia portuguesa, o real substratum do por-tuguês falado no Brasil foram as línguas indígenas, [...] sobretudo o tupi, uma vez que os índios eram autóctones, e a primeira leva de escravos negros tra-zidos para cá data de 1538. No século XVI, chegaram ao Brasil cerca de três mil negros que foram espalhados por toda a colônia, num total de mais de cinco milhões para aqui trazidos, entre aquele século e o século XIX.

Quanto aos superstratos que nos legaram influências de todo o tipo, temos vários povos que aqui estiveram, primeiro lutando para conquistar regiões de nosso país, como holandeses e franceses, por exemplo, e, depois, imigrantes, principalmente italianos e alemães, que vieram para trabalhar sobretudo na agricultura.

Atividades1. Que fato extraordinário ocorreu no início do século XIX?

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2. Entre Portugal e o Brasil há uma ou duas línguas?

3. O que você acha das opiniões de Marcos Bagno?

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4. Peço-lhe que vá a um grande dicionário, procure as palavras do linguajar do Rio Grande do Norte do texto citado pela professora Smolka e faça a sua conclusão.

Dicas de estudoSILVA NETO, Serafim da. Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Presença, 1977.

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