contexto global e nacional frente aos desafios do acesso à água

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Page 1: Contexto global e nacional frente aos desafios do acesso à água

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1 Departamento Centro de

Pesquisas Aggeu

Magalhães, Fiocruz (PE) Av.

Moraes Rego s/n, Cidade

Universitária. 50.670-420

Recife PE.

[email protected] Superintendência Estadual

de Minas Gerais, Funasa,

Ministério da Saúde

O contexto global e nacional frente aos desafiosdo acesso adequado à água para consumo humano

The global and national context regarding the challenges involvedin ensuring adequate access to water for human consumption

Resumo Este artigo tem como objetivo analisaros desafios do acesso à água para consumo huma-no, considerando-se o contexto internacional enacional. A partir da deliberação da ONU de queo acesso à água limpa e segura é um direito funda-mental de todo ser humano são identificadas vul-nerabilidades que podem se constituir em restri-ções ao acesso. A distribuição da água e das popu-lações no planeta, a poluição, as políticas e gestõesinadequadas produzem injustiça ambiental. A ini-quidade de acesso a água constitui-se na crise con-temporânea da água. A partir da década de 1980,emerge o mercado transnacional de água pelo con-trole privado que ocorre em três níveis princi-pais: de mananciais superficiais e subterrâneos;de água engarrafada; e dos serviços públicos deabastecimento. Os conflitos dos usos múltiplos dosrecursos hídricos, do mercado e dos problemasambientais têm contribuído para a vulnerabili-zação da saúde das populações e dos ecossistemas.São necessárias políticas públicas adequadas aoexercício do direito humano fundamental de aces-so a água com qualidade.Palavras-chave Água, Acesso, Justiça ambiental,Direitos humanos, Vulnerabilidade, Proteção demananciais

Abstract The scope of this article is to analyze thechallenges involved in ensuring access to water forhuman consumption taking the international andnational context into consideration. Based on theUN declaration that access to safe and clean drink-ing water is a fundamental human right, vulner-abilities are identified that can consist in restric-tions to access to adequate supplies. The distribu-tion of water and the population across the planet,pollution, inadequate policies and managementlead to environmental injustice. The iniquity ofaccess to water constitutes the contemporary wa-ter crisis. From the 1980s onwards, the transna-tional water market emerged for private controlthat occurs at three main levels: surface and un-derground water sources; bottled water; and pub-lic water supply services. The conflicts of the mul-tiple uses of water resources, the market and envi-ronmental problems have contributed to render-ing the health of the population and ecosystemsvulnerable. Adequate public policies are essentialto ensure the basic human right to access to safeand clean drinking water.Key words Water, Access, Environmental justice,Human rights, Vulnerability, Protection of WaterSources

Lia Giraldo da Silva Augusto 1

Idê Gomes Dantas Gurgel 1

Henrique Fernandes Câmara Neto 1

Carlos Henrique de Melo 2

André Monteiro Costa 1

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Água para a saúde, as contradiçõese as perspectivas da política nacional

Sobre a importância da água para a saúde epara a vida no planeta se sabe muitíssimo. Que éum componente imprescindível para os ecossis-temas também não há dúvidas. A sobreposiçãode mapas com diversos indicadores de desigual-dades sociais em contraste com indicadores deacesso e de qualidade da água revelam uma fortecongruência entre eles. Observação esta que nãoconstitui em novidade, assim como o reconheci-mento global do papel decisivo da água no de-sencadeamento direto e indireto de uma grandequantidade de patologias; e no condicionamentoda mortalidade geral e em especial a infantil, nagrande maioria dos países em desenvolvimento.

No entanto, o despertar da água como umdireito humano fundamental e a preocupaçãocom a edição de legislações para salvaguardar aqualidade e o acesso a esse elemento natural,mediante políticas públicas, são questões recen-tes. Uma grande diversidade de órgãos legislasobre a água no Brasil, inclusive uma AgênciaNacional das Águas foi criada no ano 2000.

Na direção dos direitos humanos, HenriqueRattner1 nos coloca um quadro de crise da águae apresenta algumas estimativas preocupantes:A proporção de pessoas vivendo em países que so-frem cronicamente de escassez de água, que chega-va a 8% (500 milhões) na virada do século, deverásubir para 45% (quatro bilhões) em 2050.(...)Mesmo atualmente, um bilhão de pessoas se deitacom fome por causa de falta de água para cultivarseus alimentos. Os habitantes de regiões de climastemperados, onde chuvas moderadas caem duran-te todo o ano, não conseguem perceber até que pontoa água é necessária para a agricultura. Na Grã-Bretanha, por exemplo, a atividade agrícola re-quer somente 3% do consumo da água. Nos Esta-dos Unidos, ao contrário, 41% de toda a água sãoconsumidas pela agricultura, principalmente nairrigação. Na China, a agricultura absorve 70% ena Índia, quase 70% de toda a água. No mundocomo um todo, o consumo pela agricultura chega a70% do total. A demanda crescente por água daagricultura é causada não somente pelo maiornúmero de pessoas a serem alimentadas, mas tam-bém pelo desejo destas de comer alimentos maissaborosos. É necessário o dobro de água para pro-duzir amendoim do que para a mesma quantidadede soja; quatro vezes mais para produzir carne bo-vina, em comparação com a mesma quantidade defrango e cinco vezes para produzir um copo de sucode laranja do que um de chá. Com dois bilhões de

pessoas a ingressarem na classe média, a demandada agricultura por água irá subir, mesmo com apopulação permanecendo estável.

Agrega-se a estas questões o fato do Brasilser o maior depositário natural de águas docesdo planeta e ter por isto uma responsabilidadeque é maior do que sua própria fronteira. Mas,onde quer que estejamos, no território nacional,nos deparamos com graves problemas sociaisrelacionados com a água, que vai desde situaçõesde carência absoluta até o desperdício franco;passando por problemas de baixa qualidade porcontaminação orgânica e química.

Questões de ordem ética estão no cotidianode grande parte das comunidades quando, emum mesmo território, vemos uns terem água emquantidade e qualidade suficientes e para muitosser esta inacessível2. Inclui-se entre essas iniqui-dades, o privilégio da oferta de água para empre-endimentos de duvidoso interesse social. No agro-negócio alguns exemplos são: os que usam a irri-gação intensiva em regiões semiáridas; a mono-cultura de eucalipto; o avanço da soja no cerradoe na floresta amazônica, desmatando e eliminandonascentes; e a utilização de agrotóxicos em áreaspróximas de mananciais. Na indústria, o exem-plo da utilização de água para a produção dealumínio e de aço, que são processos energéticosintensivos que exigem a construção de barragenspara usinas hidroelétricas, como a de Belo Mon-te do Estado do Pará, em detrimento dos povostradicionais das florestas, bem como da biodi-versidade e dos demais recursos naturais. Emgeral, trata-se de empreendimentos subsidiadoscom recursos públicos e que não internalizam oscustos sociais e ambientais deles decorrentes.

Como fazer cumprir o direito à saúde se aágua com qualidade está muito distante da mai-oria da população? Uma profunda reforma nopensamento político do país é necessária, medi-ante construção de um pacto social que supere outilitarismo e o pragmatismo vigentes. Para talse requer: um pensamento ecossistêmico que su-pere a enorme fragmentação existente nas açõesgovernamentais relativas à água, assim comopara o desenvolvimento; e um radical compro-misso com a sustentabilidade, fazendo cumprira Constituição Federal, a Agenda 21, bem comoos demais acordos de direitos humanos, sociais,culturais e ambientais assinados.

Em razão de sua capilaridade institucional ede suas múltiplas interfaces, a política de saúdedeve estar presente junto às demais que tratamdo desenvolvimento do país, com uma profun-da revisão de suas práticas sanitárias dominan-

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tes que também sofrem do mal da fragmentaçãoe da visão causalista linear.

A vigilância em saúde ambiental poderia serum lócus privilegiado para esse repensar a crisecrônica da água e do saneamento ambiental demodo geral, desde que se constitua em uma es-tratégia para um processo de mudanças, comampla mobilização social, com apoio institucio-nal e mediante políticas integradas nos três níveisde governo.

Contexto político territorialda crise desigual da água

A água em nosso planeta apresenta um volu-me praticamente constante. A água doce, utiliza-da com maior facilidade para consumo huma-no, é um bem natural renovável, apresentandovariações de volume com as mudanças climáti-cas, pois esta armazenada em reservatórios su-perficiais e subterrâneos e nas áreas glaciais ficouacumulada em grandes geleiras. Existem varia-ções sazonais que alteram a distribuição entresuas diversas formas ao longo do regime hídri-co. Impactos ambientais, como desmatamentostêm alterado a disponibilidade de água, dificul-tando o uso para consumo humano. Atualmen-te, a água doce está distribuída de forma desigualno planeta, tanto entre os tipos de mananciais,como entre as regiões e intraregionalmente. Ape-nas 0,3% da água doce estão em mananciais su-perficiais e cerca de 30% no subsolo, e a maiorparte, cerca de 70%, está em geleiras.

A disponibilidade maior de água pode nãogarantir a efetiva distribuição equânime parapopulações humanas. A desigualdade da distri-buição dos recursos hídricos contrasta com asdiferenças populacionais. A Ásia, o continentemais populoso, concentra 59,8% dos habitantese 31,6% da disponibilidade total de água docesuperficial do planeta. Por outro lado, as Améri-cas contam com 13,6% da população mundial e41% da água disponível (Tabela 1).

Mas há também desigualdades intraconti-nentais e num mesmo país. Um exemplo é o Bra-sil, que tem 2,8% da população mundial e 12%da água doce do planeta. No entanto, 70% dessaágua estão na Bacia Amazônica onde a densida-de populacional é a menor do país (Tabela 2).Por outro lado, a região mais árida e pobre doBrasil, o Nordeste, onde vive cerca de 30% dapopulação, possui somente 5% da água doce. Aalta densidade populacional, a poluição, a agri-cultura, a indústria energético-intensiva e o des-matamento provocam o aumento na escassez deágua de qualidade. Nas regiões Sul e Sudeste dopaís, onde vive cerca de 60% da população dis-põe de 12,5% de água doce.

Faz-se necessário compreender melhor a re-lação entre a disponibilidade de água doce e a suadistribuição para consumo humano. As crisesgeradas pela escassez de água necessitam ser bemcaracterizadas para não alimentar os interessesdas grandes corporações sustentadas por enti-dades e organismos que querem privatizar osrecursos hídricos5.

A água é o compartimento ambiental maisdiretamente afetado pelas mudanças climáticas,aumentando a vulnerabilidade de territórios epopulações, a exemplo do estresse hídrico deáreas já degradadas6. Os impactos ambientais

Continentes

ÁfricaAméricasAsiaEuropaOceania/Austrália/Antártida

Percentual da

população mundial

15,0%13,6%59,8%10,9%

0,5%

Percentual da quantidade de água

superficial disponível

10,0%41,0%31,6%

7,0%10,3%

Tabela 1. Distribuição percentual dos recursos hídricos e populacionais no Mundo por continentes.

Fonte: Silva3.

Fonte: Câmara4.

Região

NorteNordesteSudesteSulCentro-OesteTotal

Percentual da

disponibilidade hídrica

68,5%3,3%6,0%6,5%

15,7%100,0%

Percentual da

população

6,8%28,9%42,7%15,1%

6,4%100,0%

Tabela 2. Distribuição dos recursos hídricos epopulacionais no Brasil por Região

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relacionados aos poluentes (dejetos humanos,lixo, venenos, efluentes agrícolas e industriais) euso intensivo do solo para o modelo agrícolaoriundo da Revolução Verde (dependência quí-mica e de biotecnologia, mecanização, irrigação,monocultura e concentração de terras) afetamnegativamente a disponibilidade de água paraconsumo humano. Esta situação se agrava pelosdesmatamentos e pela desertificação derivada dadegradação das terras em zonas áridas, semiári-das e sub-húmidas secas7.

A superexploração de aquíferos subterrâneosacentua a escassez de água. A capacidade de suarecarga fica comprometida por um grande perío-do de tempo. Outras adversidades advindas des-sa insustentabilidade podem ocorrer, tais como:a contaminação e a salinização de águas subter-râneas oriundas de aquíferos superficiais degra-dados; drenagem de rios; subsidência de terre-nos; e o aumento dos custos de bombeamento.

A gestão dos recursos hídricos assume gran-de importância porque afeta quase todos os as-pectos da economia, segundo Castro e Scariot8,em particular: a produção de alimentos, saúde,segurança do abastecimento doméstico de água,esgotamento sanitário, indústria, energia e sus-tentabilidade ambiental. As privatizações dos re-cursos hídricos por grandes conglomerados eco-nômicos e industriais, por exemplo, afetam oacesso aos mananciais de interesse para o consu-mo humano9.

Restrições de acesso podem advir da privati-zação dos serviços e também dos mananciais. Apartir da década de 1980, este processo foi indu-zido pelo Banco Mundial, Banco Interamericanode Desenvolvimento e as agências multilaterais.Esse mercado da água é crescente e em 2003 eraestimado em um trilhão de dólares pelo BancoMundial9. Duas empresas francesas, a Veolia e aSuez, detêm cerca de 70% do mercado, o que ca-racteriza um cartel da água. Os objetos de priva-tização, em geral, podem ser serviços integrais deágua e esgotos ou plantas de tratamento de águae esgotos. E o mecanismo de gestão mais adota-do atualmente tem sido a Parceria Pública Priva-da (PPP) que é praticada na Europa há mais tem-po e que o Banco Mundial difundiu para os paí-ses em desenvolvimento. A PPP é um tipo de pri-vatização em que os ativos não são vendidos,mas ocorre a concessão de serviços por um de-terminado período, na qual é definida e garanti-da a margem de lucro por contrato.

A partir da década de 1990, grandes corpora-ções empresariais privadas têm ampliado suadominação sobre mananciais de água doce, vis-

lumbrando assim um mercado mundial de água,quer utilizando navios, bolsas gigantes puxadaspor rebocadores, canais ou aquedutos para gran-des demandas e distâncias, quer para o mercadode água engarrafada. Para esta última, observa-se que gigantes da indústria alimentícia como aNestlé, Coca-Cola, PepsiCo., Procter & Gamblee Danone já operam nesse mercado da água en-garrafada. Mediante publicidade, indução de de-manda de água segurança, baixo valor agregadoestão obtendo altíssimos lucros. No Brasil, emresposta a pressão empresarial foi legalizado parao comércio um tipo de água engarrafada, nãomineral, de qualquer captação, adicionada de saisminerais, por meio da Resolução 309/1999, daAnvisa10.

A ONU estabelece que os direitos humanossejam garantidos por normas internacionais, queasseguram as liberdades, os direitos fundamen-tais e a dignidade de indivíduos e comunidades.O direito à água está assim estabelecido: os Esta-dos devem respeitar (gozo do direito à água),proteger (impedindo que terceiros, como as cor-porações, interfiram no gozo ao direito à água) ecumprir (adotando as medidas necessárias paraalcançar a plena realização do direito à água)11.

Paradoxalmente, mais de 80 países signatári-os, foram representados por seus Ministros doMeio Ambiente no Fórum Mundial da Água emmarço de 2012, na França, e assinaram a Decla-ração Ministerial de Marselha, que apresentaoutra orientação, está sobrepondo os interesseseconômicos aqueles dos direitos humanos a água,colando-a como commodities, ao possibilitar aintegração do comércio de água em mercados defuturos e criar derivados no sistema financeiro12.Dentro do novo conceito de “economia verde”esta tendência vem camuflada. Trata-se da cons-trução de uma nova agenda pela criação de ummercado especulativo para as corporações e ins-tituições econômicas indutoras dessa estratégia.Para Barlow e Clarke9 A falácia inerente a estemodelo [de privatização] é que ele é inevitavel-mente não-sustentável; ele exige consumo crescen-te enquanto contribui com muito pouco para aconservação dos recursos.

A relatora especial das Nações Unidas para odireito à água e saneamento, Catarina de Albu-querque, critica o documento de Marselha, aoapontar o relativismo da linguagem e o enfra-quecimento desse direito. Sua preocupação coma Rio+20 é repetir, com a crise da água, a especu-lação diante da crise alimentar global, que pro-vocou lucros nas bolsas de valores para empre-sas alimentícias13.

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Cabe lembrar que o Fórum Mundial da Águafoi organizado pelo Conselho Mundial da Água,que é presidido pela empresa Suez Environment,uma das maiores transnacionais do mundo nomercado da água. A declaração de Marselha teminfluenciado o Conselho de Direitos Humanosda ONU no contexto que antecede a Rio+20, cau-sando impacto institucional, pelo processo deprivatização dos recursos hídricos e/ou dos ser-viços de água12.

Esse contexto é de iniquidade de poderes en-tre os governos locais, a sociedade e as corpora-ções privadas. O retrocesso do direito à águaprovocado pela privatização desse setor tem ace-lerado a exclusão social. Mais de um bilhão depessoas consome água inadequada. Atualmente20 países vivem em escassez crônica de água. OWorld Water Development Report de 2003, daUNESCO-WWAP, estima que em 2050 um quar-to da população do planeta viverá em situaçãode escassez crônica de água potável14. No Brasil,somente um terço dos 40% mais pobres dispõemde serviços de água e saneamento, enquanto quepara os 10% mais ricos esse valor sobe para 80%.

No Brasil, além de baixa capacidade de rei-vindicação da sociedade, sobretudo em relaçãoao saneamento, as agências de regulação dessesetor são incipientes, com raríssimas exceções,onde poucos municípios são efetivamente regu-lados. E esta regulação é basicamente tarifária.

A privatização, além do jogo de interesses eco-nômicos e políticos, produzem uma assimetriade poder, comprometendo também, além de odireito à água, o acesso à informação de dadosnecessários para a gestão pública exercer o seudever de estado para com a sociedade.

Água como direito humano,justiça ambiental e ética

A crise da água tem sido objeto de grandesdebates, análises, relatórios e resoluções pelasagências internacionais. No Quadro 1 apresen-ta-se uma síntese das principais consideraçõesapontadas no Relatório de DesenvolvimentoHumano (RDH - 2006)15, no documento “Pôrfim à crise no sector da água e do saneamentobásico”, agregado de reflexões dos autores.

Todas essas considerações feitas pelo RDH –2006, que contrariam a racionalidade privativistada política de água e do saneamento ambientalforam baseadas nas principais teses consensuaisentre os países membros da ONU, que firmaramcompromissos com a declaração Universal deDireitos Humanos, com a Agenda – 21 (para o

desenvolvimento sustentável) e os Objetivos doMilênio, que deveriam ser retomadas nos com-promissos a serem assumidos pela Rio+20.

No entanto, constata-se uma renitente situa-ção, quer social ou política, na maioria dos paí-ses com baixo indicador de desenvolvimentohumano (IDH), embora alguns, como o Brasil,apresentem, paradoxalmente, posição de vanta-gem econômica a nível mundial, quando mensu-rado pelo Produto Interno Bruto (PIB). O Brasilé considerado hoje uma potencia econômica (6ªposição mundial), porém apresenta um IDHmédio de 0,718, conforme o Relatório do Desen-volvimento Humano 2011, divulgado pelo Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimen-to – PNUD16. Ficou classificado na 84ª posiçãoentre os 187 países avaliados pelo índice, em 2011.O IDH é usado como referência da qualidade devida e desenvolvimento, quanto mais próximodo valor 0, piores as condições sociais17.

No Quadro 2 apresentamos diversas outrasconstatações feitas no RDH (2006). O relatóriotorna evidente o conflito de interesses na crise daágua e do saneamento no nível internacional eque se refletem negativamente nos países comprecário IDH. Chama a atenção para o fato deque a exclusão ao acesso à água e ao saneamentocontinua fora das prioridades que afetam maisas populações pobres do planeta. Os países quealcançaram elevada condição e desenvolvimentotêm situação adequada de acesso à água e ao sa-neamento ambiental e, portanto, não incluindomais estas questões em suas agendas, enfraque-cem as redes de solidariedade frente aqueles ain-da com carências e precariedades nesses setores,o que é um grave erro, uma vez que a globaliza-ção faz fluir sem fronteiras também as misériashumanas e as doenças por elas carreadas.

A proteção dos mananciais de água potávelhoje requer como nunca a proteção contra osdejetos industriais e da agricultura químico-de-pendente, uma contingência dos tempos pós IIGuerra Mundial, e que estão implicados com opadrão de produção e de consumo que compõenão só a crise das águas, mas a crise ambiental ea crise civilizatória de nossa contemporaneidade.

Políticas de universalizaçãode acesso à água e suas contradições

No Brasil, o valor universal de acesso á águaé um princípio da Lei 11.445/200718 (trata do Sa-neamento Básico), que implica em uma respon-sabilização do Estado, e dos operadores dos ser-viços pelo atendimento adequado de água a toda

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Quadro 1. Síntese das considerações sobre o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2006.

Considerações

Apesar do desenvolvimento tecnológico e daglobalização, hoje ainda morrem mais criançasdevido à falta de água potável e de instalaçõessanitárias do que por qualquer outra causa.

A exclusão do acesso à água potável e aosaneamento ambiental destrói mais vidashumanas do que qualquer conflito ou violênciapor armas de fogo e bélicas.

Essa exclusão também acentua as profundasdesigualdades em termos de oportunidades devida que separam os países e as suas populações,em diversos tipos carência que se refletem nasaúde, nas vulnerabilidades de gênero,geracional, étnicas, sociais, culturais eeconômicas.

A falta de acesso à água e ao saneamentoambiental a nível mundial, além de provocarperdas de vidas e sofrimentos humanoscompromete o desenvolvimento de modoglobal e onera importantes recursos públicoscom agravos evitáveis à saúde.

Por estas razões e do ponto de vista dos direitoshumanos, da justiça social e ambiental os danosinfligidos pela exclusão de acesso a água e aosaneamento ambiental são insustentáveis.

A solução para a exclusão ao acesso à água e aosaneamento ambiental, além de uma questãomoral e um ato de justiça, traz benefícios paratoda a Humanidade nas mais diversasdimensões de sua vida em sociedade e noequilíbrio dos ecossistemas. Um melhor acessoà água e ao saneamento funciona como agentecatalisador de um avanço gigantesco em termosde desenvolvimento humano, proporcionandobenefícios a saúde pública, educação e aocrescimento econômico.

O que falta é a vontade política e a visãonecessárias para aplicar recursos em prol dobem comum. O progresso dos países ricos foipossível graças a um novo contrato social entregovernos e população — um contrato baseadona ideia da cidadania comum e noreconhecimento das responsabilidadesgovernamentais.

Pontos de reflexão

Paradoxo que evidencia que mortes evitáveis decrianças mediante políticas de saneamento ambientalnão estão sendo resolvidas pelo desenvolvimentotecnológico e globalização.

A violência decorrente de conflitos armados temmuito maior visibilidade midiática do que a quantidadede mortes de seres humanos pela falta de acesso a águapotável e saneamento ambiental.

Nenhuma política que pretenda atuar nos problemasde saúde e nas vulnerabilidades econômicas, sociais,culturais, de gênero, geracional e étnicas, queevidenciam desigualdades sociais, poderá ser efetiva senão enfrentar a exclusão do acesso à água, mediante aaplicação do princípio da equidade e da precaução.

Os custos com agravos à saúde decorrentes da escassezde água e de saneamento ambiental deveriam serinternalizados e aplicados como indicadores negativosna avaliação do modelo de desenvolvimento. Oretorno para a sociedade, economizando recursosfinanceiros necessários ao desenvolvimento depolíticas sociais e de infraestrutura deve ser valorizado,aqui também é uma aplicação do princípio daprecaução e da equidade social.

As metas estabelecidas pela Agenda 21 e pelosobjetivos do milênio (ODM) no país só poderão seralcançadas mediante políticas públicas que priorizemacesso à água e ao saneamento ambiental, umaaplicação do princípio de responsabilidade.

A solução local para enfrentar a exclusão ao acesso àágua e ao saneamento tem repercussões de ordem maisglobal tanto para a sociedade, como para osecossistemas. Um exemplo da aplicação do princípiodo pensar globalmente e agir localmente.

Um pacto social pela cidadania não pode ser figura deretórica, precisa de fato ações firmes deresponsabilidade governamental com valoresrepublicanos e democráticos que efetivem políticaspúblicas de interesse social. Rever o Plano deAceleração do Crescimento a luz de compromissoscom a sustentabilidade do desenvolvimento humano.

Fonte: PNUD14, ajustada e complementada por reflexões dos autores.

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a população do território sobre o qual têm res-ponsabilidade. A promoção do acesso universalrequer um conjunto de ações, desde a preserva-ção dos mananciais, a prioridade de acesso des-tes para o consumo humano, bem como a pro-dução de água potável e sua distribuição. A qua-lidade da água do manancial, sua vazão e a den-sidade populacional são fatores que determinamcondições de acesso. De modo geral, os serviçosse eximem dessa responsabilidade, restringindo-a apenas aos consumidores de seu sistema.

Populações que vivem em áreas de baixadensidade, como as rurais ou mesmo urbanas,mas com características rurais podem ter solu-ções individuais de acesso à água como uma for-ma adequada de acesso. Para populações em áre-as urbanas adensadas a solução deve ser coletiva.Em ambas as situações o acesso não está apenasrelacionado à ideia de se ter ou não o abasteci-mento de água, mas sua adequação em termos dequalidade e quantidade. E esta adequação impli-ca não apenas aspectos sanitários, mas tambémde direito à manutenção da vida com qualidade.

O direito a todas as pessoas do acesso ade-quado à água está, portanto, relacionado às con-dições de obtenção dessa água, à sua qualidade equantidade, no percurso dos mananciais aosdomicílios. Um olhar que se estende das baciashidrográficas às condições de habitabilidade, querequer preservação e recuperação dos recursoshídricos e reconhecimento das condições em queestas acessam a água nos domicílios.

A partir da década de 1990 e, sobretudo na de2000, na Europa, EUA, África e América Latina,tem ocorrido mobilizações contrárias às privati-zações desses serviços de água, omo os de Greno-ble, Paris, Munique, Stuttgard, Berlim, Cocha-bamba, Buenos Aires, Montevidéu, Nairóbi, Joha-nesburgo e outros, os quais foram reestatizados19.

Práticas perversas de gestão das empresasprestadoras de serviços privatizados, superdi-mensionam os custos operacionais para justifi-car o aumento de tarifas. E promovem reduçãode custos, para maximização de lucros, reduzemnúmero de funcionários, comprometendo a qua-lidade da manutenção, sobretudo a preventiva9.

Os principais motivos para a reivindicaçãodo caráter público desses serviços são: elevaçãodas tarifas acima das taxas de lucro previstas;precarização de sistemas, tornando-os mais vul-neráveis; ampliação dos sistemas em áreas demaior retorno econômico, excluindo populaçõesvulneráveis que trariam menor arrecadação ta-rifária, afetando a qualidade de vida e a sustenta-bilidade ambiental. A exemplo da empresa queoperava em Buenos Aires, que demitiu 4.660 tra-balhadores (52% do efetivo)9. As violações am-bientais decorrentes de vazamento de água e odespejo clandestino de esgotos são recorrentes9 edo uso intensivo de cloro no tratamento são ex-ternalidades não incorporadas ao sistema deprodução de água para abastecimento.

Um indicador de benefício da re-estatizaçãodos serviços de água, como os exemplos de Mu-

Quadro 2. Constatações do Relatório de Desenvolvimento Humano-2006 sobre a crise da água e dosaneamento básico.

Constatações

1. Fraca tomada de consciência da gravidade do problema;2. Esforço insuficiente desenvolvido pelos governos nacionais e pela comunidade internacional paraacabarem com a pobreza e as desigualdades que perpetuam a crise;3. A crise da água e do saneamento básico é, sobretudo, uma crise dos pobres em geral e das mulheresem particular, que são segmentos com baixa capacidade organizativa e reivindicatória na definição dasprioridades nacionais;4. A água e o saneamento também são os parentes pobres da cooperação para o desenvolvimentointernacional;5. A mesma comunidade internacional que se mobilizou de forma impressionante, para preparar aresposta a uma potencial ameaça resultante da epidemia de gripe aviária, finge não ver a epidemia realque aflige todos os dias centenas de milhões de pessoas;6.A crise da água e do saneamento básico com que se defrontam as famílias pobres no mundo emdesenvolvimento encontra paralelo com os primórdios da história dos países ricos da atualidade;7. No mundo industrial poucos são aqueles capazes de refletir acerca da enorme importância que a águapotável e o saneamento básico tiveram na evolução de seus próprios países. Mas sabe-se que o que maiscontribuiu para essa mudança foi a separação entre as águas para consumo e os dejetos humanos.

Fonte: PNUD14, ajustada pelos autores.

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nique e Paris, é a proteção ambiental de áreas derecarga de aquíferos. Nestes casos, esses serviçospromoveram o desenvolvimento de agriculturaorgânica, inclusive subsidiando diretamente pe-quenos produtores, com a finalidade de reduçãode nitratos nas águas19.

Desafios para a gestão de recursos hídricosno contexto de conflitosdos usos múltiplos da água

A Política Nacional de Recursos Hídricos –PNRH foi instituída em 1997 pela Lei 9.433 quecriou o Sistema Nacional de Gerenciamento dosRecursos Hídricos20. Essa Lei substituiu o Códi-go de Águas de 1934, que já era conceitualmentebastante avançado para a época. No entanto, adespeito do arcabouço jurídico existente, persis-te a falta de planejamento dos recursos hídricosno Brasil. O crescimento populacional, a indus-trialização e o processo de urbanização intensivodas últimas décadas pressionaram a reformula-ção normativa do setor no país. Vale destacarentre as mudanças a incorporação por parte daunião dos recursos hídricos, tornando-os públi-cos, requerendo a outorga para exploração. Acriação dos comitês de bacia, descentralizando, eincorporando a sociedade civil na gestão dos re-cursos hídricos foi também um importante avan-ço para a intenção de democratização e de en-frentamento dos conflitos de interesses para osmúltiplos usos das águas.

A cobrança pelo uso da água foi outro fatorimportante, agindo como um indutor na sua eco-nomia e na prevenção de desperdícios. Outro as-pecto da política de gerenciamento, ligado à ques-tão da qualidade da água, foi o princípio do po-luidor pagador, entendido como uma medida res-ponsabilizadora pela contaminação de mananci-ais, podendo ser considerada uma medida indu-tora, principalmente do necessário tratamento deefluentes oriundos de processos produtivos20.

A baixa preocupação com a qualidade da águaé uma questão crítica permanente, houve um re-trocesso em relação ao velho Código de Águas,que era mais rigoroso do que a atual legislação.Ao admitir o “uso múltiplo” das águas dos ma-nanciais atuou como um incentivador do apro-veitamento ou exploração máxima das bacias hi-drográficas, o que é incompatível com a necessi-dade prioritária para o consumo humano. Daforma que está exposta, o uso para o consumohumano é colocado no mesmo plano de igualda-de dos demais usos, diferentemente do Código deÁguas, que o definia como o mais nobre dos usos.

O crescimento populacional e a disponibili-dade de água são inversamente proporcionais,assim, o aproveitamento máximo da bacia peladiversidade dos usos pode ser um fator de eleva-do risco de perda da qualidade da água para oconsumo humano, que não conta com tecnolo-gia factível de tratamento para grandes sistemas,restringindo-se apenas aos aspectos físicos, se-guido de desinfecção e não eliminando os conta-minantes químicos a exemplo de metais, hor-mônios e agrotóxicos20.

O uso e a ocupação do solo, assim como tam-bém a proteção do manancial são elementos im-portantes para serem considerados na qualida-de final da água das bacias. A admissão do usomúltiplo das bacias hidrográficas de mananciaisimportantes para o consumo humano se apre-senta como indesejável na garantia da qualidadedas águas.

Determinados tipos de assentamentos huma-nos ou atividades produtivas em áreas de ma-nancial pressionam negativamente a qualidadeda água para o consumo humano. As estaçõesde tratamento de água disponíveis no Brasil sãodimensionadas para prevenir a transmissão dedoenças infecto-parasitárias, ainda presas a si-tuação epidemiológica do começo do século XXe não incorpora o crescente risco de intoxicaçõesquímicas (agudas e crônicas) iniciado após a Se-gunda Guerra Mundial.

A gravidade da situação levou a partir décadade 1980, alguns Estados a tomarem iniciativas deproteção de mananciais para consumo humano,a exemplo de Pernambuco21. Esse Estado pro-mulgou a Lei nº 9.860, de 12 de agosto de 198621,e posteriormente veio a Lei 9.433 de 199720. Esseordenamento jurídico do uso e da ocupação dosolo nas bacias de contribuição dos mananciaisde interesse para o consumo humano foi restritoa área da Região Metropolitana do Recife, ondese situam dois grandes aquíferos: o de Beberibe eo de Barreiras.

Supomos que a legislação restrita a esse terri-tório foi um reflexo da condição hídrica do esta-do e dos problemas de escassez. Pernambucoapresentava a pior situação do Brasil, com 2/3do seu território situado no semi-árido.

Essa legislação delimitou as áreas dentro dasbacias de contribuição dos mananciais em fun-ção do risco e da proximidade do manancial eum ordenamento das atividades possíveis de as-sentamento e aquelas não permitidas. Comoexemplo, não é permitido o uso de agrotóxicos ede fertilizantes; o lançamento ou disposição deresíduos sólidos; e as construções residenciais

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deverão ter seus projetos de destino final de es-goto aprovados previamente; o assentamento naárea ficou mais restritivo, só permitindo ativida-de econômica para agricultura e aquicultura depequena escala21.

O fato da Lei nº 9.860/8621 ter ficado restritaa Região Metropolitana do Recife foi uma gran-de perda de oportunidade de o estado ter prote-gido os mananciais de outras áreas, especialmenteaquelas mais vulneráveis, considerando que 70%do seu território se encontram no semi-árido eque requerem maior atenção, frente a disponibi-lidade de água ser bem menor do que a da RegiãoMetropolitana e da Zona da Mata deste Estado.

Outra questão de grande importância para agestão é a separação político-administrativa quetrata a água por divisão: água natural ou bruta;água potável ou para consumo humano, e águasminerais. A gestão da água é separada adminis-trativamente com sistemas de informações sepa-rados para cada uma dessas tipologias. A águanatural ou bruta é gerida e legislada pelos órgãosambientais e de recursos hídricos; a água potávelé gerida pelas concessionárias de abastecimentocuja concessão é dada pelo município, e a quali-dade da água natural fica inserida no próprio se-tor que a gerencia, ou seja, de recursos hídricos.Na água potável a sua qualidade é gerida pelaconcessionária e sua fiscalização no setor saúde.A gestão setorizada da água é realizada mediantefronteiras político-administrativa estanques semuma perspectiva de gestão integrada22.

A qualidade da água começa na sua origem,no uso e ocupação do solo da bacia de contribui-ção e nas medidas de proteção dos mananciais.A estação de tratamento é apenas um equipa-mento para turbidez, corrigir o pH e a cor e, quan-do necessário, a desinfecção da água a ser consu-mida pela população, nada mais. Sabe-se quegrandes acidentes com água potável tiveram suaorigem no manancial e não no sistema de abas-tecimento, a exemplo da tragédia da hemodiálisede Caruaru-PE.

O relato deste caso ilustra como a água temsido mal gerida pela desarticulação entre os ór-gãos gestores. Um caso emblemático de dicoto-mia ‘qualidade x quantidade’ e de insustentabili-dade.

Apesar de ter ocorrido no ano de 1996, e tersido um enorme trauma para a população, de lápra cá pouca coisa mudou e os avanços ainda sãopoucos em termos de Brasil, ficando as melhoresiniciativas restritas a regiões sul e sudeste do país8.

Quando ocorreu a morte de 71 pessoas emCaruaru por conta de contaminação de água uti-

lizada em tratamento hemodiálico já havia umalegislação de diversos setores: de recursos hídri-cos, ambiental e de saúde. O Quadro 3 apresentaa legislação em vigor no período dessa tragédiaagregada segundo seus objetivo, por nível de go-verno e setor: (1) ambiente (meio ambiente erecursos hídricos) e (2) saúde8.

Observa-se que das quatro legislações esta-duais, duas são para criação de empresas (LeiEstadual no 6.307 de 29/07/197123 e a Lei Estadualn.o 7.267 de 16/12/197624), a primeira na área desaneamento e a segunda na de meio ambiente,delimitando o objetivo de cada uma e a forma deatuação.

A primeira cria a Companhia Estadual deSaneamento – Compesa, que passa a ser a execu-tora da política de saneamento em Pernambucoe a concessionária estadual dos serviços de abas-tecimento de água e esgotamento sanitário sen-do vinculada na época à Secretaria Estadual deRecursos Hídricos.

A segunda cria a Companhia Estadual deMeio Ambiente - CPRH, com objetivos, de con-trolar a qualidade do meio ambiente, a adminis-tração e o desenvolvimento dos recursos hídri-cos e o controle de qualidade de água das baciashidrográficas dos rios estaduais, principalmentedos mananciais destinados ao abastecimentopúblico de água.

O Decreto Estadual no. 18.251 de 21/12/199425

regula os serviços de abastecimento de água ecoleta de esgoto da empresa estadual de sanea-mento23. Essa legislação apresenta obrigações coma concessão, como, na operação dos sistemas, asobrigações do usuário e da concessionária e apre-senta a política tarifária da empresa.

A Lei nº. 9.860 de 12/08/198621, cuja publica-ção ocorreu dez anos antes tragédia de Caruaru,regula a proteção dos mananciais de interesse parao abastecimento de água na Região Metropolita-na do Recife e a forma de ocupação do solo desuas bacias hidrográficas. O grande mérito des-sa legislação foi o ordenamento da ocupação dosolo nas bacias hidrográficas dos mananciaissuperficiais e subterrâneos, de uso atual ou futu-ro para abastecimento na Região Metropolitanado Recife e o seu demérito foi justamente a restri-tação de su aplicação, como já exposto.

Das seis legislações federais apresentadas noquadro, três são do setor meio ambiente; umade regulamentação de concessão de empresaspúblicas; e duas do setor saúde.

Para o de meio ambiente, a mais antiga, Lein.o 4.771 de 15/09/1965 ou também denominadacomo Código Florestal26, trata das florestas na-

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cionais e outros tipos de vegetação, define as áre-as de preservação permanente, dentre elas a pro-teção das matas ciliares. Definida como a vegeta-ção em torno dos corpos hídricos, rios, nascen-tes, lagoas, lagos e reservatórios de águas artifici-ais (açudes). Os reservatórios artificiais, nestasituação têm como obrigatória, a desapropria-ção ou aquisição pelo empreendedor das áreasde preservação permanente do seu entorno.

As outras duas legislações federais que tra-tam do meu ambiente são a Lei n.o 6.938 de 31/08/198127 e a Resolução no 20 de 18/06/198628 doConama (Conselho Nacional do Meio Ambien-te, que é o órgão consultivo e deliberativo doSistema Nacional de Meio Ambiente). A primei-ra trata da Política Nacional de Meio Ambiente27,promulgada logo após a constituição de 1980.Essa legislação renova na medida que incorporao conceito do desenvolvimento sustentável, com

compartilhamento entre desenvolvimento e pre-servação ambiental, além de incorporar novosprincipios como o do equilibrio ecológico, usoracional do solo, água e ar e proteção de ecossis-temas e controle de atividades poluidoras.

A segunda a Resolução no 20 do Conama tratada qualidade da água do ambiente natural, doces,salgadas e salobras28. Essa legislação é importantepela classificação que ela atribui aos mananciaissuperficiais, em função da qualidade de suaságuas. Em função dessa qualidade, são atribuí-dos tipos de usos adequados para elas, que po-dem ser para o consumo humano, recreação, des-sedentação de animais, geração de energia e ou-tros usos mais, como a irrigação e a navegação.

Todo esse aparato legal não foi suficiente paraevitar aquela tragédia. Ter a legislação não é sufi-ciente para a proteção dos mananciais. Se ela nãoé cumprida e se os órgãos públicos não execu-

Quadro 3. Legislação em vigor no ano de 1996, para as áreas de saúde, meio ambiente, recursos hídricos esaneamento.

Legislação

Lei n.o 4.771 de 15/09/1965

Lei no 6.307 de 29/7/1971.

Lei n.o 7.267 de 16/12/1976

Lei n.o 6.938 de 31/08/1981

Resolução no 20 doConama 18/06/1986

Lei nº 9.860 de 12/08/1986

Portaria GM no 36de 19/01/1990

Decreto Estadual no 18.251de 21/12/1994.

Lei n.o 8.987 de 13/02/1995

Setor

Meio Ambiente

Saneamento

Meio Ambiente

Meio Ambiente

Meio Ambiente

Meio Ambiente

Saúde

Saneamento

Saneamento

Nível de governo

Federal

Estadual

Estadual

Federal

Federal

Estadual

Federal

Estadual

Federal

Objetivos

Código Florestal

Cria a Companhia Pernambucanade Saneamento – Compesa

Cria a Companhia Estadual deMeio Ambiente - CPRH

Dispõe sobre a Política Nacional deMeio Ambiente

Classificação das águas, doces,salobras e salinas do TerritórioNacional

Delimita as áreas de proteção dosmananciais de interesse da RegiãoMetropolitana do Recife, eestabelece condições para apreservação dos recursos hídricos

Qualidade de água para o consumohumano

Aprova o regulamento defornecimento de água e coleta deesgoto da Compesa

Regulamenta as Concessões deserviços públicos

Fonte: Castro e Scariot8

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Colaboradores

LGS Augusto e AM Costa trabalharam na con-cepção e na redação final; IGD Gurgel trabalhouna revisão crítica; e, HF Câmara Neto e CH Melotrabalharam na redação final.

tam seu papel, haverá sérios problemas de saúdepública.

Na região de Caruaru, nenhum plano de con-tingência foi elaborado pelo poder público parafazer frente à seca que estava em curso desde 1991comprometendo profundamente o sistema deabastecimento de água. Em 1996, a intermitênciaocorria com intervalos de dez dias sem água. Aempresa concessionária distribuía água a deter-minados setores da saúde mediante caminhãopipa, com o agravante de captar água do decan-tador da estação de tratamento. Erro fatal. Masa culpa ficou para a natureza, as algas Cianofíce-as, e nada mais foi investigado8.

Esse triste caso, com tantas vítimas, retrataentre outras vulnerabilidades, a falta de interse-torialidade no que tange a gestão da água e suadescontextualização. Durante toda a investiga-ção das mortes por intoxicação por algas Ciano-fíceas os órgãos ambientais permaneceram omis-sos, apenas o da saúde tentou dar resposta e so-freu alguma responsabilização29, embora no fi-nal das contas as vítimas e suas famílias ficaramsem os devidos reparos pelos danos sofridos.

A lição desse caso aponta para a necessidadede um modelo de gestão intersetorial para a águacom a participação da sociedade civil organizada,das concessionárias de saneamento, com a parti-cipação do setor saúde e com um sistema de in-

formação único e aberto. Só dessa forma podere-mos encarar os novos desafios que estão por vir,a exemplo do aquecimento global, o crescimentopopulacional e econômico. A disponibilidade deágua e sua qualidade estão em níveis críticos comojá demonstrado pelo relatório RDH/PNUD15.

Ultrapassar o modelo economicista de tratara água como uma commodity; adotar um mo-delo universal, público e integrado para garantiade acesso e de qualidade da água; trazer para agestão a responsabilidade de Estado, consideran-do a água como um direito humano inalienávelsão as perspectiva que apontamos para a supe-ração da crise30.

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Artigo apresentado em 16/04/2012Aprovado em 23/04/2012Versão final apresentada em 01/05/2012

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