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2 Hierarquia e mudança em um contexto de globalização A globalização é, ao mesmo tempo, um brado de guerra, um enigma e um teste de Rohrshach Joseph Nye, Jr & John D. Donahue 2.1. Introdução Um tema de extrema relevância para as Relações Internacionais 1 diz respeito à relação entre ordem, hierarquia e mudança (Palan, 2007). Contudo, em larga medida devido à influência perene da obra canônica de Kenneth N. Waltz (1979), tal temática tem sido historicamente negligenciada. Desde que Waltz apresentou uma teoria estrutural que buscava explicar a continuidade e as repetições – e não as exceções – e definiu o princípio ordenador de tal estrutura como sendo a anarquia, duas questões são recorrentes no centro dos debates: (1) negligência do estudo das variações na hierarquia 2 ; (2) negligência dos estudos sobre mudanças sistêmicas 3 . Apesar de tal negligência, o estudo de tal temática se mostra cada vez mais relevante, principalmente quando as atenções são voltadas para um contexto no qual proliferam os estudos sobre a globalização, as mudanças associadas a esta e as discussões sobre o impacto e a dimensão do poder estadunidense – em suma, discussões sobre aspectos fundamentais do ordenamento mundial de meados dos anos 1970 até os dias de hoje. Neste sentido, o presente capítulo busca revisar, a partir de uma perspectiva crítica, a forma como as questões da ordem e da hierarquia têm sido 1 Ao longo do texto, a expressão “relações internacionais” concerne a um setor da realidade social, o daquelas relações humanas que se caracterizam por sua qualidade de “internacionais”; já a expressão “Relações Internacionais” concerne à consideração científica sobre a natureza e as consequências de tais relações. 2 A despeito de argumentos como o de John M. Hobson e J. C. Sharman. Segundo estes autores, ao contrário do normalmente se afirma, desde 1648 o sistema internacional continua sendo caracterizado por relações hierárquicas bem como anárquicas. Para maiores detalhes, ver Hobson & Sharman, 2005. 3 Cumpre destacar que, fora do mainstream, o estudo das mudanças sistêmicas permaneceu. Como será visto mais à frente, vide, por exemplo, Wallerstein e a perspectiva do sistema-mundo. Para um livro já clássico no campo que reúne algumas críticas importantes que tocam na negligência de Waltz e do neo-realismo com relação à questão da mudança, cf. Keohane, 1986.

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2 Hierarquia e mudança em um contexto de globalização

A globalização é, ao mesmo tempo, um brado de guerra, um enigma e um teste de Rohrshach Joseph Nye, Jr & John D. Donahue

2.1. Introdução

Um tema de extrema relevância para as Relações Internacionais1 diz

respeito à relação entre ordem, hierarquia e mudança (Palan, 2007). Contudo,

em larga medida devido à influência perene da obra canônica de Kenneth N.

Waltz (1979), tal temática tem sido historicamente negligenciada. Desde que

Waltz apresentou uma teoria estrutural que buscava explicar a continuidade e as

repetições – e não as exceções – e definiu o princípio ordenador de tal estrutura

como sendo a anarquia, duas questões são recorrentes no centro dos debates:

(1) negligência do estudo das variações na hierarquia2; (2) negligência dos

estudos sobre mudanças sistêmicas3.

Apesar de tal negligência, o estudo de tal temática se mostra cada vez

mais relevante, principalmente quando as atenções são voltadas para um

contexto no qual proliferam os estudos sobre a globalização, as mudanças

associadas a esta e as discussões sobre o impacto e a dimensão do poder

estadunidense – em suma, discussões sobre aspectos fundamentais do

ordenamento mundial de meados dos anos 1970 até os dias de hoje.

Neste sentido, o presente capítulo busca revisar, a partir de uma

perspectiva crítica, a forma como as questões da ordem e da hierarquia têm sido

1 Ao longo do texto, a expressão “relações internacionais” concerne a um setor da realidade social, o daquelas relações humanas que se caracterizam por sua qualidade de “internacionais”; já a expressão “Relações Internacionais” concerne à consideração científica sobre a natureza e as consequências de tais relações. 2 A despeito de argumentos como o de John M. Hobson e J. C. Sharman. Segundo estes autores, ao contrário do normalmente se afirma, desde 1648 o sistema internacional continua sendo caracterizado por relações hierárquicas bem como anárquicas. Para maiores detalhes, ver Hobson & Sharman, 2005. 3 Cumpre destacar que, fora do mainstream, o estudo das mudanças sistêmicas permaneceu. Como será visto mais à frente, vide, por exemplo, Wallerstein e a perspectiva do sistema-mundo. Para um livro já clássico no campo que reúne algumas críticas importantes que tocam na negligência de Waltz e do neo-realismo com relação à questão da mudança, cf. Keohane, 1986.

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incorporadas em parte dos debates contemporâneos das Relações

Internacionais. Para tal, será seguida a seguinte ordem: (a) apresentação de

quatro abordagens distintas que tentam lidar com a relação entre hierarquia e

mudança na economia política global contemporânea: governança global,

sistema mundo, novo imperialismo e pós-modernos (sendo que estes serão

vistos a partir de duas perspectivas distintas: (i) a ideia de Império, desenvolvida

a partir da obra de Michael Hardt e Antonio Negri; (ii) a ideia de

governamentalidade, ligada a uma releitura deste conceito foucaultiano nas

Relações Internacionais); (b) definição do termo globalização e, à luz de tal

conceito, posterior reflexão crítica sobre o potencial analítico das supracitadas

abordagens.

2.2. A questão da hierarquia no ordenamento mundial contemporâneo

Desde o fim da Guerra Fria proliferam discussões sobre a configuração da

ordem mundial então emergente. Surgem assim leituras do ordenamento

mundial que, percebendo a ocorrência de certas mudanças na política mundial,

passam a incorporar a ideia de hierarquia, o que se contrapõe ao que era a

tendência das Relações Internacionais desde 1979 (Waltz, 1979; Lake, 2008): o

estudo das relações anárquicas no sistema internacional.

Inicialmente, aparecem discussões sobre o surgimento de uma nova

ordem mundial caracterizada por uma “governança sem governo” (Rosenau &

Czempiel, 2000). O que emerge neste contexto é uma literatura sobre a

governança global que é vista, em geral, como um processo caracterizado por

transformações nas esferas de autoridade em escala global, pelo aparecimento

de uma sociedade civil global, pela atuação de elites transnacionais, e pelo

desenvolvimento de comunidades epistêmicas.

Não obstante, com o passar do tempo o otimismo pós-Guerra Fria

começou a se esvair ao ponto de alguns autores afirmarem que os anos 1990

foram um momento conjuntural cujas mudanças não alteraram as estruturas

fundamentais da política internacional (Rosenberg, 2005). Além disso,

discussões sobre a pertinência da ideia de império têm despontado nas

Relações Internacionais nos últimos anos, principalmente em decorrência do

poder estadunidense. A invasão e a ocupação do Iraque e do Afeganistão por

coalizões lideradas pelos Estados Unidos são certamente as causas mais

imediatas da retomada do conceito de império nos debates teóricos. Assim, tanto

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proponentes quanto críticos do poder estadunidense têm usado a noção de

império para assinalar os perigos, responsabilidades ou irracionalidades da

política externa recente dos Estados Unidos.

É interessante perceber que, a despeito da emergência contemporânea de

tal literatura crítica, historicamente é possível perceber a existência de autores

que, desde os anos 1970, já buscavam desenvolver um entendimento da

economia política global incorporando, a partir de uma perspectiva crítica, a

noção de hierarquia. Neste sentido, é possível perceber a existência da

perspectiva do sistema-mundo – com destaque para autores como Immanuel

Wallerstein e Giovanni Arrighi, por exemplo.

Dito isto, nota-se ser pertinente a análise de alguns dos principais

elementos de tais abordagens desenvolvidas para lidar com a questão da

hierarquia no ordenamento mundial pós-1970. Buscar-se-á, assim, no presente

capítulo apresentar quatro abordagens distintas das quais a primeira parte de

uma perspectiva liberal – a saber, a governança global – e as demais de uma

perspectiva crítica, sendo que uma diz respeito a reflexões que remontam aos

anos 1970 – sistema-mundo – e as demais a reflexões mais contemporâneas, do

período pós-fim da Guerra Fria – novo imperialismo e pós-modernos (Império e

governamentalidade).

2.2.1. Governança global

O conceito de governança global e os debates em torno do tema

ganharam notoriedade no cenário internacional no decorrer da década de 1990.

O estabelecimento da Comissão sobre Governança Global das Nações Unidas

em 1994, e a posterior publicação de seu relatório Our Global Neighborhood

(1995), ou a criação do periódico especializado Global Governance (1995) são

apenas alguns dos exemplos que demonstram a importância crescente do tema

durante o período. Interessante notar que as referências mais comuns feitas à

discussão acadêmica sobre governança global identificam a obra editada por

James Rosenau e Ernst-Otto Czempiel em 1992 como seu marco inicial, ainda

que os autores ali reunidos não utilizem tal termo diretamente (Rosenau &

Czempiel, 1992; Hewson & Sinclair, 1999; Porter, 2009).

Discutindo a emergência de uma teoria da governança global, Martin

Hewson e Timothy Sinclair (1999) relacionam a mesma como uma tentativa de

compreender as mudanças globais ocorridas no fim do século XX. Por

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mudanças globais os autores entendem uma série de fenômenos como o fim da

Guerra Fria, a intensificação dos processos de globalização econômica, o

aumento da difusão de informação em escala global, a reformulação do papel de

organizações internacionais, bem como o aparecimento de novos atores que

alteraram de maneira significativa as características e relações no sistema

internacional. Mudanças concernentes à revolução tecnológica, à ascensão da

globalização e ao fim da Guerra Fria, embora distintos acerca de suas

características e implicações, teriam contribuído significativamente para a

emergência de novos problemas de governança assim como de novos atores na

política mundial – como corporações transnacionais, ONGs, movimentos sociais

transnacionais e redes transnacionais de ação cívica. Assim, na medida em que

os sistemas de governança internacional até então existentes não seriam

capazes de lidar com tais questões, surge o conceito de governança global como

instrumento para explicar essa nova realidade de mudanças globais (Brühl &

Rittberger, 2001; Young, 1999). Em outras palavras, a questão que se coloca

neste período não é se a globalização será governada, mas sim como ela será

governada (Keohane & Nye Jr., 2000). Neste sentido, são três os diferentes usos

identificados por Hewson & Sinclair (1999) dessa incipiente teoria da governança

global.

O primeiro uso identificado tem relação direta com os debates sobre a

globalização econômica – também emergentes na década de 1990. Enquanto as

discussões sobre globalização econômica têm seu foco centralizado nas

transformações contemporâneas da relação entre Estado e mercado, o conceito

de governança global adota uma perspectiva mais ampla a respeito dos mesmos

fenômenos de mudança global. Hewson e Sinclair apontam aqueles que seriam

os quatro elementos constitutivos dessa abordagem:

a. O primeiro deles é o que Rosenau e Czempiel (1992) identificam como

alterações dos repositórios de autoridade entre múltiplos níveis e áreas.

Uma das características das mudanças globais seria a redefinição das

esferas de autoridade. Essas transformações seguiriam padrões de

integração e fragmentação, dispersas sobre diferentes níveis (individual,

local, nacional, regional, global), e nas mais diversas áreas específicas;

b. O segundo elemento destacado pelos autores é a emergência de uma

sociedade civil global. Os mesmos fenômenos de mudanças globais

permitiram o estabelecimento de vínculos transnacionais entre

organizações não-governamentais e da sociedade civil que passam a se

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organizar em escala global. É nessa sociedade civil global que reside o

embrião de uma governança global humana para autores como Richard

Falk (1995), ou de uma democracia cosmopolita como defende David

Held e outros (Archibugi, et. al., 1998);

c. Em terceiro lugar Hewson e Sinclair apontam para a formação de elites

transnacionais como característica dos processos de mudança global.

Assim, ressaltam a possível emergência de uma classe capitalista global

composta por parcelas de elites intelectuais, políticas e econômicas.

Mesmo que de maneira descentralizada e não coordenada, essas elites

transnacionais promoveriam uma agenda liberal no sistema internacional;

d. O último elemento relacionado pelos autores é o fortalecimento de

comunidades epistêmicas associadas ao conhecimento técnico-científico.

Tal fato é devido ao desenvolvimento e predomínio de novas tecnologias

de conhecimento econômico emergente, em especial às tecnologias da

chamada revolução informacional.

O segundo uso de uma teoria da governança global é proveniente da

teoria de regimes nas Relações Internacionais. Na verdade, haveria uma

ampliação das abordagens focadas em regimes internacionais em áreas

específicas para a idéia de um sistema internacional de governança. O conceito

de um sistema de governança explora a existência de regimes múltiplos e

sobrepostos, expandindo assim as possibilidades da teoria de regimes.

Trabalhos como os de Oran Young (1990) sobre os regimes de meio-

ambiente, de Ernst-Otto Czempiel (1992) sobre conflitos internacionais e corrida

armamentista, e de Karl Holsti (1992) sobre a longa paz na Europa, são

exemplos de articulações amplas de sistemas internacionais de governança.

Todavia, a abordagem da teoria de regimes dá preferência à utilização de

sistema internacional de governança em detrimento do conceito de governança

global. Além de indicar seu foco específico em determinados atores e processos

no sistema internacional, a teoria de regimes não aborda a possibilidade do

conjunto total de regimes internacionais constituir um sistema internacional de

governança.

Por fim, o terceiro uso dessa teoria da governança global advém dos

impactos das mudanças globais nas organizações internacionais. Com relação

às organizações internacionais, três processos teriam gerado expectativas em

torno de uma emergente governança global:

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a. A perspectiva de que com o fim da Guerra Fria as Nações Unidas

assumiriam uma postura mais assertiva no sistema internacional, em

especial no que tange à supressão de conflitos e intervenções

humanitárias;

b. A percepção de que os processos de globalização econômica são cada

vez mais direcionados por instituições internacionais como o sistema

G7/8, pelas recomendações de política macroeconômica e

condicionalidades do Fundo Monetário Internacional, ou pelos processos

de liberalização da recém criada Organização Mundial do Comércio;

c. A emergência de uma sociedade civil global interagindo diretamente com

tais organizações internacionais, principalmente em temas como a

proteção ao meio ambiente, direitos humanos, direitos da mulher,

habitação, entre outros.

Sobre os três usos identificados de uma teoria da governança global,

segundo os autores a utilização do primeiro deles seria a mais apropriada para

compreender as mudanças globais (Hewson & Sinclair, 1999; Porter, 2009).

Enquanto a teoria de regimes tem seu foco restrito na interação de Estados e no

papel de instituições, a perspectiva de uma governança global promovida por

organizações internacionais é uma agenda normativa desprovida de reflexão

crítica. Dessa maneira, a abordagem convencional defende a utilização de um

conceito amplo de governança global como um processo emergente que tem

como elementos constituintes transformações nas esferas de autoridade em

escala global, o aparecimento de uma sociedade civil global, a atuação de elites

transnacionais, e o desenvolvimento de comunidades epistêmicas.

Hewson & Sinclair (1999) defendem, assim, que tal teoria da governança

global representaria a maneira mais adequada de compreender os processos

contemporâneos de mudanças globais. A utilização do conceito de governança

global significaria uma mudança ontológica na percepção do sistema

internacional. Assim, os processos de mudança global estariam inseridos em

uma relação de forças composta por: (1) no plano das idéias, o domínio de

autoridades epistêmicas relacionadas a conhecimento técnico, profissional e

especializado; (2) estruturas institucionais organizadas em torno dos princípios

de mercado; e (3) um complexo de tecnologias infraestruturais ligadas ao

conhecimento econômico emergente (figura 2.1).

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Figura 2.1 Elementos da Governança Global Emergente

Autoridade epistêmica

associada com conhecimento profissional

Instituições com princípios de mercado

Tecnologias infraestruturais associadas com conhecimento

econômico emergente

Fonte: Hewson & Sinclair, 1999, p. 18

Tais autores são claros ao apontar que o terceiro uso do conceito de

governança global por eles identificado é, sem dúvida, o mais difundido de

todos. A idéia de governança global tem cada vez mais sido relacionada às

práticas das diversas organizações internacionais que regulamentam de alguma

maneira as diferentes esferas do sistema internacional. Todavia, tal vinculação

entre organizações atuando em escala global e padrões de governança não é

tão simples (Wilkinson, 2002). Em primeiro lugar, não são apenas as grandes

organizações governamentais de ampla projeção internacional como ONU, FMI

e OMC que produzem padrões de governança. Instituições menores, de menor

projeção, públicas ou privadas, e das mais variadas estruturas também são

fontes de governança. Em segundo lugar, a interação entre as diversas

instituições fontes de governança se desenvolve por meio de novos tipos de

relações antes inexistentes. Além da emergência de novos atores no sistema

internacional, a interação entre essas instituições ocorre de maneira

descentralizada, através de múltiplos níveis, englobando diferentes áreas

específicas.

Dessa forma, a governança global pode ser vista como os vários padrões nos quais os atores globais, regionais, nacionais e locais combinam para governar áreas particulares. A governança global, então, não é definida simplesmente pela emergência de novos atores ou de pontos de autoridade; em lugar disso diz respeito a uma crescente complexidade na forma na qual os atores interagem e inter-relacionam (Ibid., p. 2). A governança global não é estática e bem delimitada; ela é mais bem

entendida como um processo dinâmico e ainda emergente. Ainda, é possível

identificar níveis variados de institucionalização da governança entre as diversas

áreas específicas. A existência ou não de instituições e práticas amplamente

difundidas e consideradas legítimas varia de acordo com a área analisada. É

comum utilizar-se a área econômica como exemplo de uma esfera do sistema

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internacional na qual a governança global encontrar-se-ia altamente

desenvolvida, contando com a presença de proeminentes organismos

internacionais e conhecimento técnico especializado. É preciso ressaltar também

que os tipos de instituições envolvidas nas práticas da governança global variam

tanto quanto as áreas específicas em que atuam. Em determinadas áreas,

normas e tratados internacionais são partes integrantes da governança em igual

ou maior medida que organizações internacionais propriamente ditas. O direito

internacional, normas ambientais ou padrões trabalhistas, por exemplo, são

elementos integrantes da governança global juntamente com organizações

internacionais com sedes físicas e burocracias estabelecidas.

Alguns exemplos da diversidade de instituições que influenciam processos

dessa emergente governança global são: as diversas agências do sistema ONU,

o Banco Mundial, a OMC, o FMI, instituições como o sistema G7/8 e o Fórum

Econômico Mundial em Davos, associações privadas como a Câmara

Internacional de Comércio, agências de classificação risco, grandes oligopólios

nas áreas de seguros, contabilidade, consultoria de alta tecnologia, escritórios

de direito internacional, conglomerados de mídia e telecomunicações,

organizações não-governamentais como a Cruz Vermelha e a Anistia

Internacional, o Greenpeace e a WWF, Oxfam, ou as manifestações do Fórum

Social Mundial, bem como representações de movimentos religiosos, e

associações políticas em escala global (Wilkinson, 2002).

Em suma, com o fim da Guerra Fria pode-se perceber o surgimento de

uma “nova ordem mundial” caracterizada por um processo emergente de

institucionalização de padrões e práticas nas diversas esferas do sistema

internacional, por meio de novas formas de interação múltiplas entre atores

novos e tradicionais em nível local, nacional, regional, e global. Na medida em

que tais padrões de interações e processos ocorrem cada vez mais em níveis

não estatais, faz-se fundamental percebê-los como uma espécie de “governança

sem governo”, ou seja, como uma governança global na qual outros critérios

não-estatais de ordenamento passam a prevalecer. É neste sentido que as

abordagens da governança global podem ser vistas como distintas das teorias

de relações internacionais assim como do direito internacional (Porter, 2009): as

primeiras seriam capazes de ver os espaços transnacionais como contendo algo

relevante para a governança, mais propriamente do que apenas um lugar no

qual os Estados interagem.

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2.2.2. Sistema-mundo

Desde a segunda metade dos anos 1970 nota-se a consolidação da

análise do sistema-mundo como uma alternativa analítica para lidar com as

questões de hierarquização na economia política global. Tal abordagem emerge

em larga medida como crítica à teoria da modernização, enfatizando duas

questões fundamentais na construção de tal crítica: em primeiro lugar, os limites

do estadocentrismo, ou seja, a crítica à ideia de que os Estados sejam as

unidades operacionais da sociedade; em segundo lugar, a crítica à ideia de “lei

geral de desenvolvimento”, ou seja, de que haveria estágios pelos quais

sociedades atrasadas passariam até atingir a situação dos Estados

desenvolvidos (Mariutti, 2004).

Neste sentido, sistema-mundo seria um sistema social “(...) que possui

limites, estruturas, grupos associados, regras de legitimação e coerência”

(Wallerstein, 1990, p. 337). Tal sistema é dinâmico, uma vez que sua própria

existência deriva dos grupos que o compõem, cujas interações o mantém unido

por tensão ou o dilaceram uma vez que tais grupos buscam constantemente

remodelá-lo para seu próprio benefício. Assim, em última instância o que faz do

sistema-mundo um sistema social “(...) é o facto (sic) de a vida no seu seio ser

em grande medida auto-contida, e de a dinâmica do seu desenvolvimento ser

em grande medida interna” (Ibidem). Em última instância, o próprio sistema é a

unidade de análise (Mariutti, 2004, Brewer, 1990).

Historicamente existiram apenas duas formas de sistemas-mundo: em

primeiro lugar, impérios-mundo, onde há apenas um sistema político sobre a

maior parte da área do sistema-mundo; e em segundo lugar, economias-mundo,

que seriam sistemas-mundo que não são englobados por uma entidade política

unitária. Antes da era moderna havia dois caminhos possíveis para as

economias-mundo: primeiro, transformar-se em impérios-mundo a partir do

desenvolvimento de uma estrutura política capaz de abarcá-la ou sendo

anexada por um império-mundo em expansão; segundo, desintegrar. De acordo

com Wallerstein, a grande peculiaridade do sistema-mundo moderno é o fato de

que “uma economia-mundo tenha sobrevivido durante 500 anos e no entanto

não tenha chegado a transformar-se em império-mundo – peculiaridade que é o

segredo da sua força” (Wallerstein, 1990, p. 338).

Tal peculiaridade – e força – diz respeito ao aspecto político do

capitalismo, que foi capaz de se desenvolver em larga medida pelo fato da

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economia-mundo conter em seus limites não um, mas múltiplos sistemas

políticos. Na verdade, apenas o sistema-mundo moderno desenvolveu uma

estrutura política composta por unidades políticas autônomas, Estados ditos

“soberanos” em uma delimitada área geográfica, estrutura política esta que

garante a continuidade de uma lógica de mercado parcialmente livre – que é a

condição sine qua non para a acumulação do capital em escala sistêmica. É

fundamental perceber, neste ponto, que tal ênfase no papel dos Estados não

implica, necessariamente, uma contradição com a crítica feita por Wallerstein às

abordagens estadocêntricas. O foco da análise do sistema-mundo é a negação

do Estado como unidade de análise – o que não significa a exclusão dos

Estados como sendo instituições do moderno sistema-mundo (Arrighi, 1996a).

Assim, a economia-mundo capitalista e o sistema moderno de Estados não são

inovações históricas separadas que se articulam: ambos se desenvolveram

simultaneamente, sendo a existência de um dependente da existência do outro

(Wallerstein, 1996b).

Consequentemente, os capitalistas ganham uma capacidade de

articulação e mobilidade que tem uma base estrutural, o que possibilitou a

expansão econômica e geográfica constante do sistema mundial moderno para

além de suas fronteiras europeias iniciais. Neste processo, foram incorporados

novas áreas e povos em sua divisão do trabalho até que, por volta do final do

século XIX, seus processos de acumulação e reprodução cobriam todo o mundo,

sendo assim o primeiro sistema-mundo na história a atingir esta condição –

apesar da distribuição desigual de seus frutos (Idem, 1990; 1996b; 2004a).

Tal distribuição desigual deriva de uma das características definidoras de

um sistema-mundo, a saber, sua divisão do trabalho. Assim, é possível perceber,

no caso do sistema-mundo moderno, a existência de “(...) um todo espaço-

temporal (grifo do autor) cujo escopo espacial coincide com o eixo da divisão

social do trabalho que integra as suas partes constituintes” (Mariutti, 2004, p.

97). As atividades mais lucrativas tendem a se concentrar geograficamente em

certas áreas reduzidas da economia-mundo, chamadas de centro. Já as

atividades de menor lucratividade tendem a ser mais dispersas geograficamente.

Estas áreas são chamadas de periferia. Neste sentido, percebe-se que a divisão

do trabalho que ocorre na economia-mundo capitalista diz respeito a uma

hierarquia de tarefas que dependem de níveis distintos de qualificação e

capitalização, o que tem impacto significativo na lucratividade e, por conseguinte,

implicam a transferência de mais-valia da periferia para o centro (Ibidem).

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Contudo, há um elemento extremamente significativo que contribui para a

complexificação deste processo, a saber, a semiperiferia. Trata-se de

“(...) um elemento estrutural necessário numa economia-mundo. (..) São pontos colectores (sic) de qualificações vitais, com freqüência politicamente impopulares. Estas áreas intermédias desviam parcialmente as pressões políticas que os grupos localizados primariamente nas áreas periféricas poderiam noutro caso dirigir contra os estados do centro e os grupos que operam no interior e através dos seus aparelhos de Estado. Por outro lado, os interesses localizados basicamente na semiperiferia acham-se no exterior da arena política dos estados do centro, e é-lhes difícil prosseguir os seus fins através de coligações políticas que poderiam abertas para eles se estivessem na mesma arena política” (Wallerstein, 1990, p. 339).

Assim, percebe-se que a semiperiferia, na medida em que atua, ao

mesmo tempo, como área periférica com relação ao centro e como área central

em relação à periferia, contribui para a perpetuação do sistema-mundo moderno

reduzindo a tensão existente entre os extremos. Além disso, também exerce um

papel dinamizador, uma vez que, em períodos de contração econômica, alguns

Estados semiperiféricos podem obter vantagens e, em função de sua

constituição híbrida, ameaçar o centro do sistema (Wallerstein, 1996b; Mariutti,

2004)4. Neste ponto é fundamental perceber que, embora sejam termos de

origem e consequências geográficas, centro e periferia (e semiperiferia) não são

conceitos utilizados por Wallerstein em termos espaciais em primeiro lugar, mas

sim em termos relacionais. Ou seja, a relação entre centro e periferia se destaca

por ser uma relação entre capital mundial e trabalho mundial, entre atividades de

alta lucratividade e atividades de baixa lucratividade5. Assim, na medida em que

se dá a integração entre tais tipos de atividades nota-se a transferência de

excedente de atividades produtivas periféricas para atividades centrais, o que

acarreta em “uma distribuição desigual do valor da produção mundial” (Arienti &

Filomeno, 2007, p. 109) – não apenas dos trabalhadores para os proprietários

mas também dos proprietários da periferia para os proprietários do centro

(Wallerstein, 1996b; 2004a).

Outro nome de destaque da perspectiva do sistema-mundo é Giovanni

Arrighi. Partindo de aparato teórico-conceitual desenvolvido por Wallerstein e de

4 Para uma análise detalhada do conceito de semiperiferia, sua relação com os conceitos de industrialização e desenvolvimento bem como com o processo de estratificação da economia-mundo, ver Arrighi & Drangel, 1986 e Arrighi, 1990. 5 Consequentemente, para Wallerstein as relações de produção são determinadas por sua posição da estrutura centro-periferia. É interessante neste ponto notar a discordância entre Wallerstein e Arrighi: para este, seria possível, em uma mesma localização periférica, encontrar três padrões distintos de desenvolvimento que se

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insights advindos dos trabalhos de Fernand Braudel6, Arrighi busca analisar as

expansões financeiras, os ciclos sistêmicos da acumulação do capital e as

hegemonias mundiais (1996b) e a relação entre conflitos sociais, expansões

financeiras e transições hegemônicas (Arrighi & Silver, 2001). Para Arrighi, as

transições hegemônicas devem ser vistas como mudança sistêmica, ou seja,

como

“um processo de reorganização radical do moderno sistema mundial que altera substantivamente a natureza dos integrantes do sistema, sua maneira de se relacionar uns com os outros, e o modo como o sistema funciona e se reproduz” (Arrighi & Silver, 2001, p. 30, 31).

Uma vez vistas nestes termos, as transições hegemônicas passam a ser

definidas como situações nas quais se percebe a “(.. ) mudança do agente

principal dos processos mundiais de acumulação de capital e das estruturas

político-econômicas em que tais processos estão inseridos” (Idem, p. 31). Assim,

para analisar tais processos Arrighi (1996b) propõe um conceito que seja capaz

de lidar com os dinâmicos processos de transformação e mudança da economia-

mundo capitalista associada às hegemonias prevalecentes no sistema

interestatal, a saber, o conceito de ciclos sistêmicos de acumulação, que diz

respeito aos processos de surgimento e queda tanto das hegemonias políticas

quanto dos regimes de acumulação de capital e poder associados – sendo que

entre eles nota-se períodos de transições sistêmicas.

Em tal busca pelo entendimento dos processos de mudança, concepções

sistêmicas como a de Wallerstein seriam úteis como crítica àqueles que, partindo

das partes, buscam explicar as transformações internacionais a partir de

quaisquer incentivos oriundos do nível das unidades. O problema é que tais

teorias sistêmicas podem ir para o outro extremo, vendo os processos do nível

das unidades como produtos apenas, e não como potencialmente produtivos.

Este seria um problema de Wallerstein, uma vez que, para este, em última

instância, as fontes últimas de mudança sistêmica são exógenas: de acordo com

Wallerstein, o principal elemento caracterizador de uma hegemonia não é a força

reforçam mutuamente, padrões estes que se assemelham a padrões que caracterizaram regiões centrais na história. Para maiores detalhes, ver Arrighi, 2009, p. 69-70. 6 Um dos pontos de desacordo entre Wallerstein e Braudel diz respeito às origens do capitalismo europeu – tanto espaciais quanto temporais: Braudel discorda da ênfase dada por Wallerstein ao século XVI e afirma, por outro lado, que as origens do capitalismo europeu datam do século XIII, na Itália (Braudel, 1984). De acordo com Arrighi, tal colocação de Braudel seria fundamental para complementar o raciocínio de Wallerstein, oferecendo uma rota explicativa plausível acerca “(...) das pressões

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militar – a despeito da relevância desta em tal processo – mas a primazia em

termos de eficiência produtiva na economia-mundo (Wallerstein, 1996b). Ou

seja, um Estado se torna hegemônico a partir da eficiência de suas ações

durante os processos de expansão competitiva em comparação com os demais

Estados. Nestes processos, as ações realmente eficientes são apenas um

reflexo das propriedades estruturais do sistema-mundo moderno (Ibidem). De

acordo com Arrighi (e Silver), este seria um limite de Wallerstein:

“(...) foi com base nisso que consideramos falho o modelo de Wallerstein. É que nossa investigação revelou que a ascensão das nações hegemônicas no mundo moderno não foi um mero reflexo de propriedades sistêmicas. As propriedades sistêmicas agem, de fato, como forças coercitivas e ordenadoras na escolha dos Estados que se tornam hegemônicos. Mas, em todos os casos, a hegemonia também implicou uma reorganização fundamental do sistema e uma mudança de suas propriedades” (Arrighi & Silver, 2001, p. 35).

A partir de tais constatações, e a despeito de tais divergências, tanto

Wallerstein quanto Arrighi identificam uma mudança sistêmica em curso no

sistema-mundo moderno. De acordo como Wallerstein, desde os anos 1970 os

Estados Unidos tem perdido força como potência global, sendo a resposta dada

aos ataques terroristas de 11/09/2001 apenas um elemento de aceleração deste

processo. Neste sentido, o êxito dos Estados Unidos no século XX levou a sua

afirmação como potência hegemônica no período pós-II Guerra Mundial mas

também criou as condições para que essa hegemonia fosse, ao longo do tempo,

minada. Neste processo, seria possível perceber três fases na geopolítica do

sistema-mundo: de 1945 aos anos 1970, houve um período de hegemonia dos

Estados Unidos, que começou a declinar na segunda fase, de 1970 a 2001.

Neste período o declínio foi amenizado pelas políticas adotadas pelos Estados

Unidos neste sentido. Desde então, na terceira fase, os Estados Unidos tem

buscado recuperar sua hegemonia no sistema através da adoção de políticas

unilaterais, o que tem tido um efeito contrário, de acelerar e aprofundar a crise

da hegemonia dos Estados Unidos (Wallerstein, 2006). Tal crise contemporânea

se deve ao fato do contexto atual ser o de término do longo ciclo hegemônico

(1873-2025/2050). Como visto, o ponto de transição para tal crise ocorreu na

transição da primeira para a segunda fase, entre 1967 e 1973: este período se

caracterizaria por ser o pico de duas curvas cíclicas: em primeiro lugar, de um

ciclo mais curto, de Kondratieff, de 1945 aos anos 1990; em segundo lugar, do

longo ciclo hegemônico supracitado (Hopkins & Wallerstein, 1996).

competitivas que tem promovido e sustentado a transformação capitalista do sistema-

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Quatro símbolos podem ser usados para capturar tal declínio: (1) guerra

do Vietnã; (2) revoluções de 1968; (3) queda do muro de Berlim em 1989; (4)

ataques terroristas de 11/09/2001. Todos estes eventos, vistos em seu conjunto,

remetem à situação dos Estados Unidos nos dias atuais: “uma superpotência

solitária à qual falta um verdadeiro poder, um líder mundial que ninguém segue e

poucos respeitam, e uma nação perigosamente à deriva, imersa em um caos

global que não pode controlar”; em suma, as origens de tal declínio da

hegemonia estadunidense se explicaria pelo fato de que “os fatores econômicos,

políticos e militares que contribuíram para a hegemonia dos Estados Unidos são

os mesmos fatores que produzirão (seu) iminente declínio” (Wallerstein, 2004b,

p. 25; 21). Segundo Arrighi, a ideia de ciclos sistêmicos de acumulação seria

capaz de captar este processo, em especial no que diz respeito à identificação

das fases de expansões financeiras sistêmicas como “(...) momentos de

transformação estrutural do moderno sistema de Estados nacionais soberanos”.

Além disso, fazendo alusão a Braudel, “como ‘outono’ dos grandes avanços

capitalistas, as expansões financeiras são também o outono das estruturas

hegemônicas em que se inserem esses avanços” (Arrighi & Silver, p. 41; 42).

Tais fenômenos seriam perceptíveis na atual conjuntura do sistema-mundo

moderno, o que apontaria, segundo o autor, para a existência de uma transição

da hegemonia estadunidense7.

2.2.3. Novo imperialismo

Após os ataques de 11/09/2001, é possível perceber a multiplicação de

reflexões buscando entender os processos subjacentes ao imperialismo

estadunidense e seus desdobramentos8. Partindo de uma inspiração marxista,

mundo eurocêntrico” (Arrighi, 1996a, p. 6). 7 Neste contexto, segundo Arrighi (em dois artigos nos quais o autor busca se engajar no debate sobre o resgate dos termos império e imperialismo – Arrighi, 2005a e 2005b) a invasão ao Iraque seria resultado de um cálculo equivocado por parte dos neoconservadores estadunidenses; como conseqüência, ao invés de contribuir para a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos, tal curso de ação acabou por comprometer tal hegemonia. Para o autor, “a China é a verdadeira vencedora da Guerra Contra o Terrorismo” e a débâcle do projeto do Novo Século Americano “provavelmente marca o fim inglório da longa luta de sessenta anos dos Estados Unidos para se tornar o centro de organização de um Estado mundial” (Arrighi, 2005b, p. 115). 8 Na verdade, certas preocupações teóricas acerca de um “novo” imperialismo são anteriores aos ataques de 11/09/2001. Em primeiro lugar, o volume 40 do Socialist Register, que traz uma série de artigos tratando especificamente da temática do “novo” imperialismo, “(...) foi originalmente concebido na primavera de 2001, consideravelmente antes do 11 de setembro de 2001, e muito mais da invasão do Iraque em 2003”. De acordo com seus editores, “parecia-nos que uma limitação cada vez mais séria do

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as teorias do novo imperialismo partem da suposição de que a busca ilimitada do

capitalismo por mais-valia constantemente transgride as fronteiras territoriais e o

Estado, como defensor dos interesses capitalistas, tende a empregar seus

recursos políticos e jurídicos com este fim. Nota-se, assim, que para tais teorias

o sistema capitalista contemporâneo é composto por “capitais domésticos” e

economias nacionais que interagem entre si e Estados que buscam seus

interesses nacionais. Em suma, parte-se de um mundo composto por economias

e capitais nacionais rivais que se encontram em conflito – principalmente com

relação às potências capitalistas que, por sua vez, exploram as regiões

periféricas. A fim de elucidar as fontes que inspiram o novo imperialismo cumpre

oportuno retomar os argumentos de autores clássicos da teoria marxista do

imperialismo.

Um ponto comum às teorias marxistas clássicas do imperialismo é a teoria

da tendência declinante da taxa de lucro, para a qual foram dadas duas

explicações possíveis. Uma explicação possível, minoritária dentro da tradição

marxista, foi a dada por Rosa Luxemburgo, para quem o problema principal do

capitalismo era a falta de demanda efetiva. Ou seja, o grande problema que

levava à expansão imperialista era o subconsumo. Essa explicação foi rejeitada

pela “visão marxista majoritária” (Cohen, 1976), para quem a composição

orgânica crescente do capital era suficiente para explicar a expansão capitalista

do século XIX.

De acordo com tais autores clássicos, o fim do século XIX marcaria um

ponto de ruptura, o que Lenin chamou de fase imperialista do capitalismo.

Ambos escreveram em um contexto de I Guerra Mundial, buscando explicar

aquele que era o maior desafio teórico para o marxismo desde que Marx havia

previsto que a competição entre os capitalistas levaria à constante eliminação

das firmas menores e mais fracas – ou seja, estava em aberto a análise sobre as

consequências do desenvolvimento do monopólio. Neste processo, os autores

da vertente majoritária enfatizaram os processos de formação de monopólios em

pensamento socialista era sua falta de ferramentas conceituais capazes de analisar a natureza do imperialismo de hoje, em vez de reciclar teorias desenvolvidas em uma etapa muito anterior” (Panitch & Leys, 2006, p. 13). Em segundo lugar, a obra de Michael Hardt & Antonio Negri, Império (2001) – originalmente publicada em 2000 e discutida em maiores detalhes na próxima seção – levou alguns autores a reafirmarem a relevância do conceito de imperialismo para a análise do “novo” contexto da economia política global (Borón, 2002; Wood, 2003; Harvey, 2004). Contudo, a despeito destas outras “forças motrizes”, é importante perceber que os ataques de 11/09/2001 – bem como os eventos que seguiram ao ataque – foram fundamentais para a proliferação de tal literatura no marxismo. 

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uma base nacional e a consequente intensificação da competição em uma

escala mundial entre os capitais nacionais (Brewer, 1990).

A principal contribuição de Rudolf Hilferding para a teoria do imperialismo

se deu através do conceito de capital financeiro. Para o autor, o

desenvolvimento dos monopólios e dos cartéis levou a um novo tipo de

protecionismo que buscava limitar ou eliminar a concorrência estrangeira no

mercado interno. Não obstante, os preços de monopólio, via de regra, tendem a

diminuir as vendas internas. Assim, as exportações passam a ser cada vez mais

importantes para a manutenção e extensão da produção em grande escala.

Concomitante a este processo nota-se o surgimento de um novo tipo de

expansionismo a partir da exportação de capital, que amplia a região econômica

e a escala de produção, desenvolvendo a produção em áreas onde o trabalho é

muito barato e ajuda a manter uma taxa de lucro elevada. Ora, tal expansão

requereria o apoio e a intervenção estatal para a aquisição e a manutenção do

controle sobre as novas áreas econômicas, o que acarreta em políticas

expansionistas nacionais e na intensificação do conflito entre as potências

capitalistas (Hilferding, 1985). Lênin em seu panfleto sobre o imperialismo

caminha, por sua vez, mais próximo dos argumentos de Bukharin (1984) que

desenvolve a análise de Hilferding a partir da percepção de duas tendências em

operação no mundo da época: por um lado, a tendência ao monopólio e à

formação dos grupos identificada por Hilferding; por outro, a aceleração da

expansão geográfica do capitalismo pelo mundo. Em conjunto, tais tendências

levavam a uma competição na qual a anexação e a guerra eram instrumentos

possíveis na relação entre os Estados capitalistas. A partilha do mundo entre as

maiores potências capitalistas acirraria, assim, a rivalidade entre elas levando ao

conflito entre tais potências. Em suma,

“O imperialismo é o capitalismo chegado a uma fase de desenvolvimento onde se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do mundo entre os trustes internacionais e onde se pôs termo à partilha de todo o território do globo, entre as maiores potências capitalistas” (Lênin, 1979, p. 88).

As teorias marxistas clássicas do imperialismo seriam inspiradoras na

medida em que levantaram importantes questões para serem respondidas a

partir do arcabouço desenvolvido por Marx, como por exemplo questões

concernentes ao nacionalismo, à questão nacional, às alianças de classe, ao

papel dos monopólios, à relação entre formações sociais não-capitalistas e o

processo de acumulação primitiva, dentre outras (Callinicos, 2009). Contudo, a

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resposta dada pelos teóricos clássicos seria insatisfatória para muitos autores

contemporâneos.

Para se entender os impérios em geral deve-se identificar como se dá a

combinação específica dos seguintes elementos: “(...) organização territorial,

modos de criação e distribuição de riqueza e dinâmicas de auto-entendimento

cultural específicas de cada experiência imperial” (Colás, 2007, p. 5). Sendo

assim, de acordo com Ellen Wood, as teorias clássicas tiveram seu valor na

época em que foram desenvolvidas; hoje, em um contexto no qual o capitalismo

se tornou um sistema econômico mundial, se faz necessário uma nova teoria do

imperialismo, que seja capaz de lidar com o “novo” imperialismo. David Harvey

concorda com a inadequação contemporânea dos clássicos apontada por Wood,

mas acrescenta que tais autores não foram capazes de apresentar respostas

convincentes nem mesmo para seus contextos, sendo incapazes de lidar com as

dinâmicas espaço-temporais constitutivas do sistema imperialista global (Harvey,

2007)9. Panitch & Gindin concordam que tais autores clássicos não foram

capazes de lidar de maneira adequada com as dimensões espaciais do

imperialismo, além de terem desenvolvido uma leitura reducionista e

instrumentalista do Estado – o que para eles seria o maior problema das

abordagens clássicas. As causas de tais equívocos seriam, para eles, o fato das

teorias clássicas se basearem em uma teorização das crises e das fases

econômicas do capitalismo que os levava a “(...) elevar um momento conjuntural

de rivalidade interimperial ao nível de uma lei imutável da globalização

capitalista” (Panitch & Gindin, 2006a, p. 25)10.

Mas o que faz deste imperialismo algo “novo”? Como visto acima, de

acordo com Wood um ponto fundamental é o fato do capitalismo ser, nos dias de

hoje, um sistema econômico mundial; neste contexto, um ponto fundamental

9 Neste caso, Alex Callinicos se aproxima do argumento levantado por Harvey na medida em que vê o fenômeno do imperialismo a partir da interseção entre duas lógicas distintas de poder – a competição econômica e a competição geopolítica – que ainda operariam contemporaneamente (Callinicos, 2009). 10 De acordo com os autores, “se os capitalistas se voltaram para a exportação de capitais e para o comércio em mercados estrangeiros, não foi tanto devido ao fato de a centralização e concentração do capital terem anunciado uma nova etapa marcada pela queda da taxa de lucro, pela sobreacumulação e/ou pelo subconsumo. Pelo contrário, dado o processo que anteriormente havia permitido às unidades individuais de capital sair de suas locações originais em determinados povoamentos ou cidades, foi mais a aceleração das pressões competitivas e das oportunidades, acompanhada pelas estratégias e pelas capacidades emergentes dos capitalismos em desenvolvimento, o que deu impulso, e facilitou, o expansionismo internacional do final do século XIX e início do século XX. (...) O imperialismo capitalista, portanto, precisa ser compreendido mediante uma extensão da teoria do estado capitalista e não como uma derivação direta

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seria que, no “novo” imperialismo, o domínio é exercido pelos meios

econômicos, mediante a manipulação e a “imposição dos imperativos do

mercado” (Wood, 2003, p. 20). É importante notar que o Estado permanece

central neste processo, mas na medida em que aumenta o hiato entre o alcance

econômico do capital e o alcance extra-econômico dos Estados territoriais, os

poderes imperiais tem experimentado novas formas de lidar com tal contradição

– com destaque para os Estados Unidos neste contexto. O imperialismo

estadunidense pode ser visto, assim, como um imperialismo “informal” ou

“indireto”, que se baseia no poder do mercado quando isso é possível e faz uso

do poder militar quando necessário. Em suma, os Estados Unidos tem projetado

seu poder globalmente “(...) através de portas abertas (mercados capitalistas) e

fronteiras fechadas (Estados territoriais soberanos)” (Colás, 2008, p. 620).

Para Harvey, o ponto fundamental para se entender as dinâmicas

constitutivas do imperialismo global diz respeito ao entendimento da relação

entre o problema do capital excedente e os deslocamentos espaço-temporais; ou

seja, “(...) a produção e a reconfiguração das relações espaciais oferecem um

forte meio de atenuar, se não de resolver, a tendência à formação de crises do

capitalismo”. É neste contexto que “a lógica capitalista (em oposição à lógica

territorial) do imperialismo tem de ser entendida” (Harvey, 2004, p. 78). Crises de

sobreacumulação são o problema central neste processo; quando há um

problema com a capacidade de absorção o resultado é uma crise de

desvalorização que, por sua vez, leva a um processo de reestruturação e

deslocamento geográfico com o intuito de pôr abaixo as barreiras espaciais que

porventura limitem a absorção do excedente. Neste processo, a incapacidade de

garantir nos últimos anos uma reprodução ampliada do capital em escala

mundial foi acompanhada por uma série de ações que Harvey chama de

“acumulação por espoliação”11. A combinação destes elementos seria, a seu ver,

o aspecto diferenciador do “novo” imperialismo (Harvey, 2004; 2006).

Uma “nova” ordem imperial surgiu logo após o término da II Guerra

Mundial, quando os Estados Unidos emergiram como grande potência e, neste

sentido, moldaram as instituições de Bretton Woods de acordo com seus

da teoria econômica das fases ou da crise” (Panitch & Gindin, 2006a, p. 25; 26). Ver também Ibidem, 2006b. 11 A idéia de “acumulação por espoliação” é muito próxima do conceito de “acumulação primitiva” desenvolvido por Marx. Mas para Harvey, “uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas predatórias da acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ no âmbito da longa geografia histórica da acumulação do capital é por conseguinte muito necessária (...). Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um processo

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interesses. Contudo, a posterior ascensão da Alemanha e do Japão, o abandono

dos acordos de Bretton Woods a partir dos anos 1970 e a subsequente crise de

sobreacumulação colocavam a necessidade de reconfiguração de tal ordem

imperial.

Desta forma, algo significativamente radical ocorreu no capitalismo global

após os anos 1970. Os processos de transição trazidos à tona pelo

neoliberalismo no período em questão – e que se consolidaram nos anos 1990

ao redor do “Consenso de Washington” – são assim, fundamentais neste

processo de construção de um “novo” imperialismo a partir dos anos 1970, que

buscava assim pôr abaixo quaisquer barreiras à acumulação do excedente em

uma escala mundial. Neste processo, os Estados Unidos tiveram um papel

ímpar. Através da articulação da volatilidade os Estados Unidos buscaram

preservar sua posição de destaque no capitalismo global, auferindo os

benefícios da ordem global internacional enquanto distribuem os custos entre os

demais países (Gowan, 2003).

O imperialismo estadunidense contemporâneo seria, assim, parte do

ordenamento internacional pós-II Guerra Mundial que foi construído tendo os

Estados Unidos como potência capitalista central. Com o colapso da União

Soviética, as elites estadunidenses viram a oportunidade de reordenar de

maneira unilateral os mercados de energia, as estruturas políticas e o equilíbrio

estratégico a favor dos interesses estadunidenses – por meios pacíficos quando

isso foi possível e pela força quando foi necessário. Conforme as teorias do

“novo” imperialismo, os resultados de tais políticas serão provavelmente

contraditórios e de consequências dolorosas tanto para os Estados Unidos

quanto para o mundo.

Em suma, a despeito das divergências acima elencadas, é possível

perceber pontos comuns aos “novos” imperialistas (Sutcliffe, 2006): em primeiro

lugar, os autores que tem trazido à tona esse debate concordam que a política

mundial contemporânea é qualitativamente distinta daquela que inspirou as

discussões e derivações analíticas das teorias marxistas clássicas do

imperialismo. Por outro lado, em segundo lugar, tais autores não concordam que

tal mudança da política mundial contemporânea com relação ao período que vai

do final do século XIX ao início do século XX implique o surgimento de uma

política mundial na qual os Estados perderam sua importância e poder, conforme

afirmam Hardt & Negri (2001) em o Império. Cumpre oportuno, assim, voltar as

em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito de ‘acumulação por espoliação’” (Harvey, 2004, p. 121). 

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atenções neste momento para tais autores e seu conceito de Império – bem

como para outros autores que também se inspiram em fontes pós-estruturalistas

para a construção de seu raciocínio.

2.2.4. Pós-modernos

Nos últimos anos é possível perceber a proliferação de abordagens

inspiradas pelo pós-estruturalismo nos estudos internacionais. Em especial, com

a publicação de Império, de Michael Hardt e Antonio Negri (2001), muitos

estudiosos das relações internacionais passaram a dar uma atenção para os

conceitos foucaultianos de biopoder e governamentalidade. Contudo, nem todos

os que resgatam tal aparato teórico-conceitual para o entendimento das

Relações Internacionais compartilham da visão desenvolvida por Hardt e Negri,

sendo assim possível perceber a existência de duas amplas e distintas

abordagens de inspiração foucaultiana nas Relações Internacionais: a ideia de

Império, elaborada por Michael Hardt e Antonio Negri, e a releitura da ideia

foucaultiana de govenamentalidade.

2.2.4.1. Império

Uma das releituras contemporâneas mais instigantes, importantes e

controversas do conceito de império é a de Michael Hardt e Antonio Negri.

Império (2001) e Multidão (2005) são obras extremamente ambiciosas, que

buscam lidar com diversos temas concernentes às ciências sociais e às

humanidades de maneira geral12. Império, em especial, foi, no início dos anos

2000, ovacionado como uma das principais obras vinculadas ao movimento

altermundialista – a despeito de não se tratar de um produto do movimento nem

de uma leitura corrente entre os ativistas deste meio (Camfield, 2007).

Segundo tais autores, um dos elementos fundamentais associados à

modernidade concerne às práticas materiais e imanentes da multidão que

refundam, de uma maneira radical, questões relacionadas ao conhecimento e à

autoridade. Em última instância, a modernidade se constitui pela rejeição do

12 Multidão “(...) é a continuação de (...) Império (grifo dos autores), que tratava da nova forma global de soberania. (Império) tentava interpretar a tendência (grifo dos autores) da ordem política global em seu período de formação, ou seja, identificar como, a partir de toda uma série de processos contemporâneos, vem surgindo uma nova forma de ordem global que chamamos de Império” (Hardt & Negri, 2005, p. 10). 

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conhecimento transcendental e pela crescente consciência da localização do

conhecimento nas práticas diárias, o que é constantemente alvo de reações por

parte do soberano, que busca encobrir os conhecimentos imanentes e

restabelecer ideologias de comando e autoridade e, assim, “(...) empregar um

novo poder transcendente mediante a manipulação da ansiedade e do desejo

das massas e de seu desejo de reduzir a incerteza da vida e aumentar a

segurança” (Lefort, Hardt & Negri apud Coleman & Agnew, 2007, p. 326).

Neste processo de passagem da modernidade para a pós-modernidade,

da soberania do Estado-nação para a soberania imperial, emerge uma nova

concepção acerca da espacialidade do poder, no qual o debate sobre o

imperialismo se apresenta como fundamental:

“os Estados Unidos não são, e nenhum outro Estado-nação poderia ser, o centro de um novo projeto imperialista (grifo do autor). O imperialismo acabou. Nenhum país ocupará a posição de liderança mundial que as avançadas nações européias (sic) um dia ocuparam” (Hardt & Negri, 2001, p. 14).

Há, assim, para os autores uma distinção entre imperialismo – “(...) uma

extensão da soberania dos Estados-nação europeus para além de suas

fronteiras” (Ibidem, p. 12) – e Império:

“Em contraste com o imperialismo, o Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho de descentralização e desterritorialização (grifo dos autores) do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão” (Ibidem).

Tendo como referência a economia política global da passagem do século

XX para o século XXI, surge uma questão: qual a relação entre a ideia de

Império e os Estados Unidos? Para os autores, há uma relação entre esses

elementos, uma vez que a noção de Império tem suas origens no processo de

expansão, em escala global, do projeto constitucional estadunidense. Contudo, a

despeito de tal relação, Hardt, Negri e outros autores associados a tal

perspectiva deixam claro que isso não implica, em absoluto, uma centralidade

dos Estados Unidos no Império: “O princípio primário do Império (...) é que o seu

poder não possui um centro real e localizável”; tal poder “é distribuído em redes

e através de mecanismos articulados de controle”. Assim, o centro do Império

“reside em lugar nenhum mas na virtualidade do seu poder. O longo século XX,

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neste sentido, não é realmente um século norte-americano mas um século

imperial” (Brown & Szeman/Negri & Hardt, 2002, p. 210-211)13.

A diferenciação entre o que seria o “poder” dos Estados Unidos e o poder

do Império não surpreende, uma vez que o governo imperial é a negação do

poder estatal. Ou seja, tal diferenciação é nada mais do que o corolário da

contra-revolução que, na pós-modernidade, abandonou a soberania estatal

moderna, conforme esta se apresentava em sua formulação clássica. Assim, a

estratégia imperial se caracteriza por, simultaneamente, reproduzir os poderes

da multidão enquanto provê elementos mínimos para manter as potencialidades

da multidão sob vigilância em um sistema de limites e equilíbrios. Trata-se,

assim, de um modelo imanente de poder em rede que se remete, ao menos de

maneira nominal, ao conceito foucaultiano de biopoder. Este diz respeito a uma

técnica de poder que, desde a segunda metade do século XVIII, não opera a

partir da ideia de disciplina – sem, contudo, excluir a técnica disciplinar14 – e se

dirige não ao corpo mas ao homem vivo: não mais “uma anátomo-política do

corpo humano, mas (...) uma ‘biopolítica’ da espécie humana” (Foucault, 1999, p.

289). Tal conceito seria assim fundamental para diferenciar a ideia de Império

das demais perspectivas acerca das estratégias imperiais contemporâneas dos

Estados Unidos. Ou seja, uma diferenciação que seria entre técnicas

disciplinares e biopoder.

Assim, de maneira mais específica, quando comparadas aos debates

contemporâneos acerca do imperialismo estadunidense15, tais questões

apontam para uma diferença fundamental entre a idéia de Império e as demais

discussões: há uma ruptura no tocante à percepção teórica acerca da

espacialidade do poder (neo)imperial: a literatura convencional, a despeito de

suas particularidades, concorda que as práticas geopolíticas em escala global

tem o seu epicentro nos Estados Unidos. Na verdade, para tais autores, “os

Estados Unidos são um poder (neo)imperial com ambições estratégicas e/ou

13 Neste processo, “a Constituição dos Estados Unidos atua como um veículo para a passagem rumo ao Império precisamente por prover um modelo de distribuição do poder em rede” (Brown & Szeman/Negri & Hardt, 2002, p. 211) 14 “Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes” (Foucault, 1999, p. 289). 15 Neste ponto é importante destacar a existência de uma vasta literatura que retoma a temática império/imperialismo na análise da política externa estadunidense nos anos 2000, literatura esta que, no tocante ao espectro político, incorpora argumentos de esquerda, de liberais críticos e de autores mais à direita. Para um panorama de tal discussão vide, dentre outros, Ferguson, 2003a, 2003b e 2004; Kagan, 2002; Ikenberry, 2006; Mann, 2006; Todd, 2003 e Fiori (org.), 2004 – além, é claro, dos “novos” imperialistas já citados. 

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territoriais identificáveis” (Coleman & Agnew, 2007, p. 317). Hardt & Negri, por

sua vez, vêem a questão de uma maneira significativamente distinta, a partir da

ausência de identidades espacialmente localizadas (e/ou localizáveis) e de

estratégias territoriais. Para tais autores, a geografia política (ou seja, cidades,

regiões, Estados, fronteiras, etc.) é irrelevante para o exercício do poder,

exceção feita para o espaço global. O que tais autores propõem é um modelo de

governo global para o qual a territorialidade do poder é irrelevante –

consequentemente, não seria possível falar da existência de interesses que se

remetam, diretamente, à política externa estadunidense. Em última instância, a

escala global da prática geopolítica é vista “(...) como um exemplo de

imperialismo sem imperador, e, além disso, sem um império, se por império

entendermos uma geografia sobre a qual uma influência imperial é exercida”

(Ibidem, p. 318).

Neste processo, nota-se a constituição de uma nova ordem mundial em

bases supranacionais que, por sua vez, se encontram inscritas em uma noção

imperial de direito. Tal reconfiguração do poder jurídico se expressa na mudança

da autoridade nacional para a supranacional na forma das Nações Unidas; na

suplantação do direito doméstico pelo direito universal; na emergência de um

estado permanente de exceção global; e na transição da norma do pós-II Guerra

Mundial da não-intervenção para o direito do pós-Guerra Fria da intervenção.

Concomitante a tal codificação supranacional há uma reconstituição do

território: a globalização capitalista tenderia a achatar o espaço, e, ao mesmo

tempo, as hierarquias vinculadas às estruturas modernas do Estado-nação. Se

por um lado a forma moderna de soberania é excludente, reproduzindo uma

oposição binária e hierarquizante entre o interno e o externo – que se expressa

no imperialismo nas categorias de racismo16, expansão territorial, militarismo e

sentimentos de superioridade –, o Império traspassa tais hierarquias e

separações. “A configuração espacial de interior e exterior (...) parece-nos ela

própria uma característica geral, de fundação, do pensamento moderno”; ora,

consequentemente, para os autores, “na passagem do moderno para o pós-

moderno, e do imperialismo para o Império, é cada vez menor a distinção entre o

dentro e o fora” (Hardt & Negri, 2001, p. 206). Assim, até mesmo as clivagens de

16 No que concerne especificamente à questão do racismo, “a teoria racista imperial não pode propor como ponto de partida qualquer diferença entre as raças humanas, a prática racista não pode começar pela exclusão do Outro racial”: na verdade, devido à fluidez e hibridização características da pós-modernidade, a prática racista em tal contexto não se dá em termos de divisões binárias e de exclusões, mas sim da inclusão diferenciada, dado que no Império “não existe lado de fora” (Hardt & Negri, 2001, p. 213). 

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raça, gênero e afirmação sexual são mais fluidas e indeterminadas sob o

Império, expressas não mais como exclusão, mas como inclusão diferenciada.

Neste ponto é importante destacar que, como dito anteriormente, tal

transformação na configuração espacial se expressa de maneira mais clara no

que diz respeito às mudanças concernentes à noção de soberania: se a

soberania moderna tem, via de regra, sido percebida a partir da noção de

território e da relação deste com o seu lado de fora17, “no mundo imperial, essa

dialética da soberania entre a ordem civil e a ordem natural chegou ao fim. Este

é um sentido preciso em que o mundo contemporâneo é pós-moderno” (Ibidem,

p. 207).

Conforme apontado acima, um conceito fundamental para Hardt e Negri

que se encontra intimamente relacionado à dimensão da resistência e da

transformação é o de multidão18. De acordo com os autores, a multidão seria

“uma multiplicidade, um plano de singularidades, um conjunto aberto de

relações, que não é nem homogênea nem idêntica a si mesma, e mantém uma

relação indistinta e inclusiva com os que estão fora dela” (Ibidem, p. 120).

Contudo, frisam Hardt & Negri, tal multiplicidade – inerente à multidão – não

implica fragmentação ou incoerência; na verdade, “a ação política voltada para a

transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”,

sendo esta “(...) o único sujeito social capaz de realizar a democracia” (Ibid.,

2005, p. 139; 141). As relações do capital produzem não apenas commodities,

mas novas subjetividades que têm o potencial de moldar e transcender o

Império. Assim, as redes de trabalho imaterial e de formas desterritorializadas de

domínio que constituem o Império possuem um poder imanente latente, sendo

que o poder do Império reside em sua capacidade de penetrar nas dimensões

da vida através do biopoder, transcendente, que se encontra acima da

sociedade. Por outro lado, tal demanda do capital gera redes de interatividade

que podem prefigurar um tipo espontâneo de cooperação que, por sua vez, é

imanente à sociedade. Tal processo de produção biopolítica se opõe, assim, ao

biopoder formando a “(...) base social sobre a qual é possível hoje dar início a

um projeto da multidão” (Ibidem, p. 135).

17 Em última instância, “O processo de modernização (...) é a internalização do fora, isto é, o ato de domesticar a natureza” (Hardt & Negri, 2001, p. 207). 18 Tal ideia de multidão – vista como uma forma pré-existente de subjetividade capaz de produzir a transformação – tem suas raízes no autonomismo, ramo do pensamento marxista que enfatiza o fato de que “(...) nosso mundo, a vida social em si, é um produto da subjetividade social humana, de seres humanos produtores associados autônomos das imposições do movimento trabalhista e do capital” (Rupert, 2005, p. 469-470). Para

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2.2.4.2. Governamentalidade

De acordo com Foucault, os discursos definem e estabelecem as práticas

cotidianas da vida bem como definem os locais possíveis e imagináveis da ação

(Foucault, 1983), o que os associa diretamente às relações sociais de poder.

Consequentemente, “as práticas e processos discursivos produzem identidades

e capacidades sociais na medida em que lhes dão significados” (Barnett &

Duvall, 2005, p. 21) – ou seja, os seres humanos não são apenas objeto do

poder mas também seu efeito.

É possível afirmar que uma das conseqüências da crítica foucaultiana às

formas convencionais de poder, bem como de sua formulação do poder como

produtivo e disperso, foi a reconsideração das formas modernas de governança,

ou seja, de como “(...) indivíduos e populações são ordenados e mobilizados na

sociedade de massa” (Brown, 2006, p. 72). Tal direcionamento se deveu, dentre

outras questões, à necessidade, por parte de Foucault, de responder às críticas

que lhe haviam sido direcionadas. Em especial, àquelas que afirmavam que a

ênfase nas questões mais específicas das relações de poder perdia de vista a

dimensão mais global da política, em especial a relação entre a sociedade e o

Estado e a expressão do poder neste processo. Assim, de acordo com Foucault,

as mesmas formas e critérios de análise usados para as técnicas, práticas e

discursos associados aos sujeitos individuais e instituições locais seriam

plenamente aplicáveis ao estudo das técnicas, práticas e discursos associados à

sociedade e sua governança de maneira geral. Ou seja, “não haveria

descontinuidade metodológica (...) entre abordagens microfísicas ou

macrofísicas do estudo do poder” (Gordon, 1991, p. 4). Neste sentido, os

estudos de Foucault acerca da governança devem ser vistos em um contexto

mais amplo, a saber, seus desenvolvimentos críticos com relação à soberania,

sobre o papel das normas, da regulação e da disciplina como elementos centrais

do poder, sobre o papel deste poder na produção – mais propriamente do que a

repressão – do sujeito moderno e sobre a importância dos “regimes de verdade”

ou racionalidades nestes processos19.

maiores detalhes acerca do autonomismo e de sua inserção nos debates contemporâneos do marxismo, ver Altamira, 2008. 19 “Seria preciso tentar estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação, mas a partir da própria relação, uma vez que é ela que determina os elementos dos quais trata: mais do que perguntar a sujeitos ideais o que puderam ceder deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos” (Foucault, 1997, p. 71). 

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Foucault apresenta um ceticismo significativo com relação a leituras que

percebem as atividades modernas de governo como derivadas de propriedades

essenciais do Estado. Como visto, para ele, o ponto de partida para uma análise

do fenômeno do poder são as práticas, não as instituições (Neumann & Sending,

2007). A partir de tais questões Foucault se volta para os processos

concernentes à “conduta da conduta” ou ao governo, que no sentido mais amplo

diz respeito às “(...) técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos

homens” (Foucault, 1997, p. 101), ou seja, o direcionamento do corpo político,

social e individual por outros meios que não pela força. O governo operaria

através da capacidade do corpo governado de se auto-regular.

Consequentemente – e paradoxalmente –, o governo pressupõe um certo grau

de liberdade por parte do governado para o exercício de tal auto-regulação.

Neste contexto, a questão que emerge diz respeito à condução de tal

processo: haveria a necessidade de um guia ou condutor à frente deste? De

acordo com Foucault, a resposta é negativa: na verdade, a ideia de

governamentalidade, introduzida por Foucault na aula de 1º de Fevereiro de

1978 no curso dado no Collège de France (1977-1978) (Foucault, 2008), ao

mesclar as noções de governo e racionalidade (Gordon, 1991), busca capturar

exatamente a natureza dispersa e não centralizada da governança política

moderna através de práticas disciplinares, instituições e conhecimentos. A

governamentalidade implica, assim, a organização e o direcionamento das

energias, necessidades e desejos dos corpos – sejam eles individuais,

nacionais, transnacionais, globais –, possuindo, em função de sua natureza

dispersa, vários pontos de operação e aplicação. Além disso, a

governamentalidade opera através de uma série de poderes sociais,

empregando e articulando uma série de discursos aparentemente não

vinculados ao poder político ou ao Estado (Brown, 2006). Nas palavras de

Foucault – em uma citação extensa mas pertinente neste ponto,

“Por esta palavra, ‘governamentalidade’, entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força, que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo [e por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por ‘governamentalidade’, creio que se deveria entender o processo pelo qual o Estado de justiça da Idade

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Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco ‘governamentalizado’” (Foucault, 2008, p. 143 e 144).

Uma análise que tenha como intuito o estudo da governamentalidade deve

buscar identificar alguns elementos: as distintas formas de pensamento, as

condições de formação, os conhecimentos por eles gerados e por eles tomados,

bem como as práticas de governo a eles associadas – o que torna possível

algumas formas de pensamento e práticas tanto para os que executam tais

práticas quanto para aqueles que são objeto destas (Gordon, 1991). Assim, tal

forma de análise deve buscar responder as seguintes questões:

“quem ou o que será governado? Porque deve ser governado? Como deve ser governado? Com qual finalidade deve ser governado? (...) Quem governa o que? De acordo com qual lógica? Com quais técnicas? Com quais fins?” (Rose, et. al., 2006, p. 84 e 85).

Em seu desenvolvimento da ideia de governamentalidade Foucault

estabelece a distinção entre aquelas que seriam três facetas do espaço político

moderno, a saber, a soberania, a disciplina e o governo. É importante perceber

neste ponto que, para ele, tais facetas do político não dizem respeito a uma

sucessão de estágios históricos no processo de desenvolvimento das relações

de poder e domínio nas sociedades modernas, mas sim três elementos

intimamente articulados a partir da noção de biopoder. Ora, se por um lado tal

questão leva, em alguma medida, a uma identificação entre a abordagem do

Império e as releituras foucaultianas da ideia de governamentalidade no âmbito

das Relações Internacionais, por outro lado percebe-se aqui uma diferença clara

entre tais perspectivas: ao contrário da primeira, que qualifica o raciocínio

foucaultiano identificando o que seria uma transição de uma soberania moderna

para uma soberania pós-moderna, a segunda perspectiva caminha mais próxima

do argumento original foucaultiano acerca da relação entre soberania, disciplina

e governo.

Embora Foucault tenha enfatizado os processos e as relações de poder

dentro das sociedades ocidentais e suas formas liberais de governo – não tendo

dado atenção significativa ao âmbito internacional –, mesmo assim seria possível

partir de suas análises da guerra e do poder a fim de se melhor entender como o

poder se manifesta em escala mundial (Jabri, 2006, 2007). Assim, se, conforme

visto acima, não há para Foucault descontinuidades metodológicas entre

estudos micro e macro das relações de poder, de acordo com alguns autores

seria possível pensar a ideia de governamentalidade para além do âmbito

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doméstico, aplicando-a também, por derivação metodológica, ao âmbito

internacional/global. Neste sentido, tal perspectiva busca entender como novas

normas moldam a política internacional de uma maneira mais sistêmica, sendo

central neste processo analítico o estudo do próprio sistema no qual tais normas

são formuladas e ganham aceitação a partir da sua racionalidade política

subjacente. Neste processo, seria fundamental destacar os aspectos relacionais

do poder vinculados à difusão das normas e instituições liberais no âmbito

global. Ver o internacional como governamentalidade implica vê-lo “(...) como

uma estrutura (definida por relações de poder) que gera práticas distintas e

cambiáveis de domínio político (definido como racionalidade governamental)”

(Neumann & Sending, 2007, p. 700). Em suma, o internacional poderia ser visto

como uma esfera política definida a partir de normas liberais o que, por

conseguinte, transformaria a modalidade de governo neste âmbito. Seria

possível perceber, assim, uma densa rede de normas e regras liberais moldando

as identidades e os padrões comportamentais não apenas dos Estados mas de

outras organizações políticas – como ONGs, por exemplo – e também dos

indivíduos. Isso implicaria ver a governamentalidade como constituída por uma

gama de redes produzidas através das práticas discursivas – práticas estas que

diferenciariam a ideia de governamentalidade das abordagens convencionais

acerca da globalização (Kendal, 2004).

2.3. Globalização: alguns aspectos das reflexões contemporâneas sobre hierarquia e ordem mundial

Nota-se, a partir da exposição acima, que as quatro perspectivas

apresentam formas distintas para lidar com a temática da hierarquia no

ordenamento mundial contemporâneo, enfatizando certos elementos em

detrimento de outros e abrindo, assim, possibilidades distintas de análise.

Contudo, tais perspectivas apresentam limitações heurísticas dado que não são

capazes de incorporar em seu arcabouço analítico de maneira satisfatória a

dimensão da globalização. Antes de apontar que limites seriam estes, faz-se

necessária uma discussão acerca do próprio conceito de globalização bem como

dos debates a ele associados.

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2.3.1. Globalização

Um dos termos mais difundidos nas últimas décadas – sendo, inclusive,

um dos termos definidores da sociedade contemporânea – é “globalização”. Isso

se expressa, por exemplo, na difusão da palavra “globalização” por quase todas

as línguas do mundo e pelas referências contínuas que, diariamente, fazem

menção ao “global”. Contudo, embora seja assumida sua importância, nota-se

que grande parte da discussão acerca da globalização é permeada por

simplificações, exageros, imprecisões, inconsistências e confusões. Na verdade,

faz-se uso desse conceito a fim de explicar fenômenos que vão desde as crises

financeiras até as políticas públicas de caráter neoliberal adotadas no pós-

Guerra Fria, assim como para explicar as novas formas de ativismo e

solidariedade transnacional. Além disso, tal conceito tem sido ligado a vários

aspectos das mudanças sociais contemporâneas, como a emergência de uma

era informacional, a retirada do Estado, o fim das culturas tradicionais e o

advento de uma era pós-moderna. No que diz respeito à questão normativa,

para alguns a globalização é associada ao progresso, à prosperidade, à paz;

para outros, tal conceito se vincula ao aumento da fome e da desigualdade em

escala global. Em suma, é possível perceber que a globalização coloca desafios

diretos às ciências sociais (Sassen, 2007).

É interessante notar que grande parte da confusão e das disputas ao

redor da ideia de globalização se dá em função de duas questões: primeiro, com

relação às diferenças e divergências entre o que se convencionou chamar de

“ondas” ou “perspectivas” da literatura da globalização (Held, et. al., 1999;

Martell, 2007; Bruff, 2005); segundo, em torno da definição do conceito – o que

se expressa, por exemplo, no fato de vários autores analisarem tal fenômeno

social sem indicar, de maneira explícita, o que entendem pelo termo (Scholte,

2005). Faz-se, assim, necessário apresentar tais questões, a relação entre elas

e suas implicações.

2.3.1.1. As três ondas ou perspectivas da globalização

No que diz respeito à primeira questão, seria possível identificar três

ondas: em primeiro lugar, por volta dos anos 1980 e 1990 nota-se uma primeira

onda, que teria uma leitura hiperglobalista das mudanças que se encontravam

em curso na política mundial. De acordo com tal perspectiva, graças à

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mobilidade de capitais, ao crescente papel das corporações transnacionais e à

interdependência econômica, as economias nacionais se mostravam cada vez

menos importantes; consequentemente, a economia global passa a ser vista

como cada vez mais integrada, aberta e incluindo mais partes do mundo, o que a

faz mais relevante para análise do que as economias nacionais. Nota-se, assim,

que os hiperglobalistas padecem de um certo economicismo, uma vez que

mudanças na economia gerariam conseqüências diretas nos âmbitos cultural e

político: culturalmente, seria possível identificar certa homogeneização ou

hibridização cultural, com a cultura nacional tendo um papel cada vez menor;

politicamente, notar-se-ia uma crescente perda de poder por parte dos Estados

nacionais face aos fluxos econômicos transnacionais20. Neste processo, os

avanços dos processos tecnológicos a partir dos anos 1960 são fundamentais

para a emergência da globalização. Em suma, a globalização seria uma

mudança epocal, na qual mudanças no âmbito econômico teriam significativos

desdobramentos levando inclusive à perda da soberania por parte dos Estados,

o que caracterizaria uma transição de um mundo vestfaliano para um mundo

pós-vestfaliano, da exaustão da modernidade para uma nova época, diversa e

policêntrica (Albrow, 1997).

Para alguns autores, destaque feito para Hirst & Thompson (2002a e

2002b), tais explicações sobre os fenômenos da política mundial seriam

equivocadas. Além de exagerarem acerca da extensão da globalização, elas

também falam da globalização como algo eminentemente abstrato e geral, sem

evidências empíricas que sustentem tais afirmações. Neste sentido, emerge uma

segunda onda – cética – na literatura sobre a globalização. Embora tais autores

não neguem a existência de uma internacionalização dos mercados financeiros,

especialmente a partir dos anos 1970, que tem tido impactos consideráveis

sobre o processo decisório os Estados, tal processo não seria novo. Na verdade,

para os autores adeptos desta onda, a economia internacional era mais

internacionalizada no período entre 1870 e 1914 do que nos anos atuais, o que

apontaria para (a) a falácia da dita “inevitabilidade” da globalização e (b) para a

importância das políticas nacionais no processo de direcionamento dos

processos de globalização – como no caso da política mundial após 1914. Neste

ponto, os céticos destacam a necessidade de se perceber o papel de países ou

regiões dominantes: no tocante ao investimento direto estrangeiro, por exemplo,

20 Tal argumento é expresso de maneira bem clara na seguinte afirmação feita por Ohmae acerca da obsolescência do Estado no mundo contemporâneo: “(...) os Estados

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este se concentra entre as economias industriais avançadas – com exceção de

alguns Estados em desenvolvimento no Leste Asiático e na América Latina. Esta

seria apenas uma das muitas evidências empíricas que apontariam para o fato

de que as dinâmicas da economia mundial (fluxos financeiros, comerciais e de

investimento), longe de serem algo realmente global, ocorrem, em sua grande

maioria, entre os Estados da tríade: Europa, Estados Unidos e Japão. Em outras

palavras, embora seja possível identificar certas mudanças na política mundial

nas últimas décadas, tais mudanças não seriam algo novo, sem precedentes,

nem algo que coloque em xeque o Estado como ator fundamental da política

mundial. Ou seja, neste processo, seria possível inclusive perceber o

fortalecimento de alguns Estados face ao enfraquecimento de outros, o que

demonstraria não o fim do Estado e de uma “era vestfaliana” mas sim o poder de

adaptabilidade dos Estados.

Em concordância com algumas das críticas colocadas pelos céticos mas

percebendo a globalização como algo concreto, merecedor de atenções, emerge

uma terceira onda, transformacionista (Held, et. al., 1999; Scholte, 2005). Para

esta perspectiva, a globalização é algo que aponta para mudanças reais na

política mundial. Contudo, em conformidade com os céticos, os

transformacionistas concordam que os hiperglobalistas haviam exagerado em

suas afirmações sem trazer evidências empíricas que sustentassem as mesmas.

Neste sentido, tal perspectiva busca ir para além das conclusões dos céticos,

elaborando uma teorização mais complexa acerca da globalização. Se por um

lado a globalização contemporânea pode ser vista como algo historicamente

sem precedentes, por outro se trata de um processo histórico de longo prazo

com formas pré-modernas. Neste sentido, o que se denomina de globalização

contemporaneamente seria melhor visto como uma intensificação dos processos

de globalização das relações sociais (Scholte, 2005). Neste processo, perceber-

se-ia a contradição e a contingência na política mundial: ao mesmo tempo em

que tais novos processos emergem, isso não implica o desaparecimento, como

afirmavam os hiperglobalistas, dos elementos anteriores. Na verdade, isto

apontaria um problema presente tanto nas leituras hiperglobalistas quanto

céticas: ambas ondas ou perspectivas reduzem o mundo a um tipo ideal fixo,

global ou não global, o que dificultaria a percepção das reais mudanças em

curso no mundo. Neste contexto, criticam os céticos por serem empiricistas, ou

seja, por buscarem evidências estatísticas a fim de corroborar ou falsear a

já (grifo do autor) perderam seus papéis como unidades significativas de participação na economia global do atual mundo sem fronteiras” (Ohmae, 1996, p. 5). 

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“hipótese” da globalização, quando na verdade o que se faz necessário são

evidências qualitativas e análises interpretativas21. A globalização envolveria,

assim, novos padrões de estratificação através e dentro dos Estados, gerando

novas configurações que vão para além das relações norte-sul, centro-periferia.

Neste complexo processo, que não é inexorável, os Estados não desaparecem,

mas se veem face a dilemas e oportunidades de articulação (Sassen, 2007). Na

verdade, os rumos que a globalização pode seguir no futuro se articulam

intimamente com as possibilidades dos Estados de influenciarem neste

processo, seja a partir de políticas domésticas, seja a partir de articulações nas

estruturas de governança que se encontram para além dos Estados (Sassen,

2009).

2.3.1.2. As definições da globalização: Do que se trata afinal?

Como é possível perceber a partir da breve explanação anterior, grande

parte das discordâncias entre as ditas ondas ou perspectivas da globalização

derivam da maneira pela qual a própria ideia ou conceito de globalização é

definido. Assim, com relação à segunda questão levantada anteriormente, de

acordo com Scholte (2005) é possível identificar pelo menos cinco definições

mais amplas de globalização:

Em primeiro lugar estaria uma noção que concebe a globalização em

termos de internacionalização. Assim, a palavra global seria apenas outro

adjetivo para descrever as relações transfronteiriças entre os países, e a palavra

globalização definiria um crescimento da interdependência e das trocas

internacionais22. Contudo, as interconexões entre países têm se intensificado

nos últimos 500 anos. No tocante ao final do século XIX em especial, nota-se

uma intensificação substantiva nos níveis de migração transfronteiriça, no

investimento direto estrangeiro, nas finanças e no comércio internacionais. Neste

sentido, não seria necessária a palavra globalização para explicar fenômenos

21 Discorrendo acerca dos índices existentes para mensurar os processos de globalização, Marco Caselli destaca a dificuldade de se “desenvolver uma medida sintética para o processo de globalização como um todo”. Dentre outros aspectos, Caselli destaca que “(...) a globalização é um fenômeno multiforme e extremamente complexo que afeta quase todas as dimensões da vida social. (...) há um substancial consenso de que a globalização tem pelo menos três dimensões fundamentais: economia, política e cultura. E essas são dimensões muito difíceis de serem sujeitas a um único instrumento de mensuração” (Caselli, 2008, p. 384). 22 Para Hirst & Thompson a globalização diria respeito aos “(...) processos que promovem a interconexão internacional (...) – aumentando os fluxos de comércio, investimento e comunicação entre as nações” (Hirst & Thompson, 2002b, p. 247). 

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prévios de internacionalização, e a terminologia usual das relações

internacionais continua sendo perfeitamente capaz de lidar com as transações e

interconexões transfronteiriças contemporâneas.

Em segundo lugar a globalização tem sido identificada como liberalização

– ou seja, um mundo global seria aquele sem barreiras regulatórias para a

transferência de recursos entre as fronteiras. Tal definição, muito usada tanto por

neoliberais quanto por alguns de seus críticos mais ferozes, também seria

redundante, uma vez que o termo livre comércio é perfeitamente capaz de lidar

com esse fenômeno não sendo necessário, assim, o uso do termo globalização.

Em terceiro lugar a globalização tem sido vista como sinônimo de

universalização. Ora, é inegável que mais pessoas e fenômenos culturais têm,

recentemente, se difundido por todo o planeta. Não obstante, os movimentos em

direção à universalização – movimentos estes que são altamente contestáveis

visto que, para muitos, a globalização geraria também um processo de

localização – não são algo novo – vide, por exemplo, os movimentos históricos

das religiões mundiais –, o que faz com que o conceito de globalização também

seja desnecessário para explicar tal fenômeno.

Em quarto lugar globalização seria o mesmo que ocidentalização ou

modernização, estando assim associada a um processo de homogeneização na

medida em que todo o mundo se torna ocidental, moderno e, particularmente,

estadunidense. Em outras palavras, a globalização seria o fenômeno pelo qual

as estruturas sociais da modernidade – como o capitalismo, o racionalismo, o

industrialismo, etc. – são espalhadas pelo mundo e, neste processo, destroem

as culturas preexistentes e as autodeterminações locais. Neste caso também

nota-se fenômenos não recentes, sendo que, assim, conceitos como

modernização e imperialismo são mais do que suficientes para lidar com as

idéias de ocidentalização, americanização e europeização – também não

necessitando, assim, do conceito de globalização.

Por fim, uma quinta e última definição a partir da qual seria possível

perceber o que realmente há de global na globalização identifica esta com a

ideia de re-espacialização. Globalização diria respeito, assim, à difusão, em

larga escala, de relações supraterritoriais, ou seja, de “(...) conexões sociais que

transcendem a geografia territorial”. Em suma, se trata de uma reconfiguração

da geografia social, de uma “(...) mudança na natureza do espaço social”

(Scholte, 2005, p. 61 e 59)23 que não é mais passível de ser mapeado apenas

23 Ou seja, a “(...) emergência de um novo patamar de ordenamento da vida social (...)” (Mello, 1999, p. 197). 

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em termos lugares territoriais, distâncias territoriais e fronteiras territoriais. A

globalização seria, assim, “(...) um processo (ou uma gama de processos) que

incorpora uma transformação na organização espacial das relações sociais e

das transações” (Held, et. al., 1999, p. 16). Em outras palavras, isso reflete o fato

do mundo estar sendo rapidamente moldado em um espaço social

compartilhado por forças tecnológicas e econômicas, o que faz com que os

desenvolvimentos em uma região do mundo possam ter profundas

consequências para as chances de vida tanto de indivíduos quanto de

comunidades inteiras em outras partes do globo24.

2.3.1.3. Por uma definição crítica do fenômeno

A partir do que foi colocado anteriormente, é possível perceber, em última

instância, que grande parte das definições e conceituações da globalização

alterna entre dois extremos: de um lado, tentam entender as dinâmicas

contemporâneas da economia política global a partir de um estadocentrismo

prévio – ou seja, mantendo a primazia ontológica do Estado no processo de

compreensão da realidade global contemporânea. Do outro lado, afirmam o “fim

do Estado” e da importância deste para as relações internacionais. Além disso,

por trás de tais definições se encontram alguns mitos sobre a globalização,

dentre os quais é possível destacar cinco25.

O primeiro mito concerne à noção de que o mundo vive hoje em uma

aldeia global. Tal expressão diz respeito à compressão espaço-temporal mas se

equivoca na medida em que acoberta as crescentes discrepâncias entre os

vencedores e os perdedores nesta reestruturação contemporânea. Na verdade,

se percebe que certas regiões, como a África e certos enclaves dentro dos

próprios países ricos, são alijados dos mecanismos centrais das globalizações

econômica e política – ou seja, tais zonas e regiões têm sido excluídas da “vila

global”. O segundo mito é o de que a globalização homogeneíza as condições

através do mundo. Seguramente há muita padronização, mas ao mesmo tempo

percebe-se o surgimento de uma grande diversidade na forma de novos híbridos

do global e do local. Em terceiro lugar está o mito de que globalização e

24 Desta forma, “as manifestações da globalização incluem a reorganização espacial da produção, a interpenetração das indústrias através das fronteiras, a expansão dos mercados financeiros, a difusão de bens de consumo idênticos para países distantes, transferências massivas de população – principalmente dentro do Sul bem como do Sul e do Oriente para o Ocidente (...)” (Mittelman, 2000, p. 15). 25 Para maiores detalhes acerca dos mitos da globalização, cf. Mittelman, 2004b, p. 6-9. 

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americanização são a mesma coisa. Ora, se por um lado os Estados Unidos têm

se beneficiado significativamente com os processos de globalização em sua

estrutura atual, são várias as consequências negativas para eles, como a

diminuição de empregos devido às novas configurações da economia política

global. Em quarto lugar está o mito do “mundo sem fronteiras”. Seguramente,

certos fluxos globais – como conhecimento e informação trocados através da

Internet – têm perpassado as fronteiras nacionais de uma forma relativamente

fácil; contudo, o princípio da territorialidade ainda importa para a economia

política global. Em outras palavras, a territorialidade baseada na soberania não

desapareceu, mas deve ser vista com outros princípios de organização social.

Eles coexistem em uma ordem mundial emergente de múltiplos níveis, sujeita a

uma crescente contestação. Por fim, em quinto lugar está o mito da

inevitabilidade ou irresistibilidade da globalização. Na verdade, a globalização

tem sido feita pela humanidade; assim, pode ser desfeita ou refeita pelos

homens. A história é aberta, não pré-ordenada.

Embora tais definições sejam capazes de apreender parte dos processos

contemporâneos de globalização, elas não dizem muito acerca das relações de

poder e das hierarquias sociais. Além disso, levados pelas mudanças ocorridas

no período (como o fim da Guerra Fria) muitos chegaram a afirmar o fim do

Estado-nação como referência primeira de organização da comunidade política e

a emergência de um mundo pós-vestfaliano no qual cada vez mais se passava a

perceber a existência de certa governança que operava agora em uma escala

cada vez mais global. Em suma, a crença era a de que o mundo se encontrava

em um novo momento de mudança epocal no qual a globalização seria a força

por detrás de tal transformação.

Contudo, na medida em que a novidade do processo de transformação

foi se esgotando, muitos passaram a questionar a pertinência de tal discussão e

da ideia de globalização. Obviamente as críticas à ideia de globalização

remetem às origens da própria discussão sobre o tema; mas em meados dos

anos 2000, após um período de maior reflexão sobre o material produzido

durante a “Era da Globalização”, emergiram críticas importantes àquela que era

considerada uma “Teoria da Globalização”.

Rosenberg, por exemplo, em sua crítica à “Teoria da Globalização”26

afirma que esta, em geral, possui dois argumentos ambiciosos sobre o mundo

26 “Teoria da Globalização” é aqui colocada entre aspas devido ao fato do presente trabalho partir da ideia de que não é possível identificar uma única abordagem para com os processos contemporâneos de globalização das relações sociais. Na verdade,

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contemporâneo e como entendê-lo: em primeiro lugar, a globalização produziria

uma mudança fundamental na constituição espaço-temporal das relações

sociais; em segundo lugar, as consequências de tais mudanças nas relações

sociais seriam de tal monta que revelariam uma lacuna básica na tradição

clássica da teoria social. Neste sentido, afirma Rosenberg, para a “Teoria da

Globalização” far-se-ia necessária a elaboração de uma nova teoria social “(...)

na qual as categorias espaço e tempo deveriam receber o papel explanatório

central que sempre mereceram” (Rosenberg, 2005, p. 4).

Consequentemente, para o autor a teoria da globalização teria falhado

por não ter sido capaz de prover uma teoria que apresentasse a força motriz por

detrás da suposta mudança social contemporânea. Tal falha decorreria do fato

de que tal teoria da globalização possuía fraquezas que lhe eram inerentes.

Dentre esses limites pode-se destacar uma confusão entre explanans e

explanandum, pois a teoria não é capaz de identificar o que é que está se

globalizando. Na verdade, a centralidade que os teóricos da globalização dão

para o espaço e o tempo como as dimensões explicativas das mudanças sociais

deveria ser suplementada por uma suposição advinda da sociologia histórica

sobre a natureza das sociedades modernas e de suas inter-relações políticas.

Assim, de acordo com Rosenberg os teóricos globalistas, na medida em que

enfatizam que a globalização levaria à superação do modelo vestfaliano, na

verdade reproduzem um nacionalismo metodológico quando assumem

falsamente a existência de uma “era da pré-globalização” na qual não haveria

laços transnacionais significativos27. Tal ênfase se daria, na visão de Rosenberg,

em função da teoria da globalização ter surgido e ganhado força no início dos

anos 1990 em um contexto de vácuo conceitual resultante da conjunção entre a

reestruturação do mundo ocidental – via neoliberalismo – e o colapso da União

Soviética. Assim, os teóricos da globalização não foram capazes de perceber

que suas análises “epocais” diziam respeito, na verdade, a mudanças de caráter

conjuntural – sendo que as questões centrais do sistema capitalista e do sistema

internacional não haviam deixado de existir com o fim da Guerra Fria.

A crítica de Rosenberg é pertinente na medida em que demonstra certos

limites na teoria da globalização: na explicação sobre o que realmente é isso que

mesmo partindo de uma perspectiva crítica, é possível identificar várias perspectivas que partem de autores e abordagens distintas. Cf. Mittelman, 2004b. 27 Tal ponto também é explorado por Hannes Lacher, para quem “(...) a compreensão equivocada (da teoria da globalização) do futuro como sendo ‘global’ é diretamente enraizada em sua representação equivocada do passado como ‘nacional’. Neste sentido,

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está se globalizando, na falta de clareza sobre qual a força motriz desse

processo de globalização (equivocadamente colocada no processo de

compressão espaço-temporal), na percepção equivocada sobre o que seria o

Estado e o dito “sistema vestfaliano” e na confusão entre mudanças estruturais e

mudanças conjunturais. Tais questões são fundamentais uma vez que uma

leitura acrítica da globalização pode levar a uma perspectiva na qual a mudança

é vista como um processo singular e universal, diminuindo assim o papel da

agência, do lugar e da contingência.

Contudo, a despeito dos insights que produz, a crítica de Rosenberg é

falha na medida em que iguala as abordagens sobre globalização e, a partir daí,

apresenta uma crítica generalizada aos autores e perspectivas que veem a

globalização como algo novo, como uma ruptura histórica. Em última instância,

Rosenberg se equivoca (a) por ignorar a existência não de uma, mas de várias

teorias da globalização, que por sua vez partem de compromissos políticos,

normativos, epistemológicos e teóricos distintos – como fica claro a partir da

discussão anterior sobre as ondas da globalização e sobre as definições do

termo – e (b) por não perceber uma distinção significativa entre tais teorias da

globalização: a saber, a existência de (i) abordagens temporais da globalização,

que enfatizam mudanças na modernidade ou no sistema capitalista e (ii)

abordagens espaciais da globalização, que enfatizam questões concernentes ao

Estado-nação e à ideia de soberania (Oke, 2009) – questões estas que

qualificam significativamente o argumento de Rosenberg limitando seu potencial

crítico. Em suma, Rosenberg falha ao afirmar que a “Teoria da Globalização”

enfatiza aspectos superestruturais da economia política global – como a

compressão espaço-temporal.

Surgem, assim, algumas questões: será que o mundo realmente não tem

sofrido sérias transformações desde meados do século XX? Seria realmente a

globalização um conceito fadado ao fracasso na medida em que lidava apenas

com questões de caráter conjuntural que se desvaneceram? Não seria possível

pensar uma forma distinta de abordar a globalização – próxima à noção

transformacionista – que parta da ideia de que realmente algo novo tem

acontecido nas últimas décadas nas formas de organização da vida social e, ao

mesmo tempo, incorpore considerações não apenas céticas mas de caráter mais

crítico? Destarte, mais do que uma crítica generalizada a todos os estudos sobre

a globalização faz-se necessário abordar a globalização como uma

na conceituação da ‘velha’ ordem, a teoria da globalização é notavelmente similar ao realismo” (Lacher, 2006, p. 7). 

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transformação histórica e de uma forma crítica, buscando identificar os

ganhadores e os perdedores neste processo e o porquê de tal

inclusão/exclusão.

Buscando responder tais questões é possível perceber o surgimento, nos

últimos anos, do que alguns autores chamam de “Estudos Críticos da

Globalização” (ECG). De acordo com Robinson (2005b), nossa época seria

marcada e moldada por processos transnacionais, não sendo possível entender

o mundo social do século XXI sem que se leve em consideração tais processos.

Neste sentido, os ECG seriam fundamentais tanto no processo de entendimento

dessa realidade social contemporânea quanto para a sua própria transformação.

Assim, um aspecto fundamental presente nos autores que partilham da ideia de

que se fazem necessários os ECG (Mittelman, 2004a e 2004b; Robinson, 2005b

e Sklair, 2005) é a ideia de que não é possível separar teoria e prática, ser e

pensar – sendo o trabalho teórico, assim, uma prática social (Horkheimer, 1983).

Percebem-se assim alguns elementos que seriam fundamentais para se

pensar os ECG: se trata de um conhecimento reflexivo, ou seja, consciente da

relação entre o conhecimento e as condições políticas e materiais. Além disso,

se trata de um conhecimento historicista na medida em que incorpora a

dimensão temporal nos estudos sobre a globalização – algo fundamental para

corrigir as abordagens ahistóricas existentes até então. A história deve, neste

sentido, ser vista como algo constitutivo dos processos de globalização, o que

faz com que se superem três problemas centrais nas abordagens ahistóricas: (a)

“ilusão da reificação”, que leva a ver o presente como estático e auto-contido,

mais propriamente do que maleável e em constante processo de transformação

e mudança; (b) naturalizar o presente, deixando de vê-lo como “(...) uma

circunstância que tem se desenvolvido através de relações de poder, identidade,

exclusão social e normas”; (c) ver o presente como “imutável”, ou seja, “imune à

mudança”, “obscurecendo os processos transformativos localizados no presente”

(Hobson apud Oke, 2009, p. 311).

Os estudos críticos sobre a globalização também devem buscar uma

descentralização do conhecimento, incorporando outras contribuições que não

apenas as ocidentais. Neste mesmo processo, faz-se impreterível uma

perspectiva transdisciplinar que busque incorporar, no campo dos ECG, as

contribuições das mais diversas áreas do saber – enriquecendo neste sentido

não apenas os estudos internacionais mas em especial os estudos no campo da

economia política global. Por fim, na medida em que o trabalho teórico também é

uma prática social, os ECG devem se preocupar com questões concernentes às

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transformações estratégicas – ou seja, sobre a possibilidade de transformação

dessa realidade excludente rumo a outro tipo de globalização que seja mais

democrática (Mittelman, 2004a; Robinson, 2005b; Palan, 2000).

Ora, o surgimento dos ECG aponta para uma questão importante com

relação à economia política global enquanto disciplina: mais do que um “novo

debate”, os ECG apresentam e representam algo que vem ocorrendo na

economia política global e que coloca em xeque os velhos programas de

pesquisa existentes: na verdade, a globalização coloca em xeque a velha divisão

entre níveis de análise pois percebe a importância de atores até então

negligenciados e até mesmo o surgimento de novos atores até então

inexistentes. Em suma, tal “mudança paradigmática” (Mittelman, 2004a e 2004b)

aponta mais propriamente para um desafio ontológico que é colocado para a

economia política global, na medida em que se questiona cada vez mais quem

são os atores e quem tem o poder de agência nas dinâmicas globais.

É crescente a dificuldade de manter as linhas de demarcação entre os

reinos doméstico e internacional, dificuldade esta que se encontra associada ao

processo de multiplicação de assembléias especializadas que não se limitam ao

âmbito de ação do Estado mas que por outro lado não excluem a existência

deste – abrindo, assim, espaço para a coexistência de ordens ou, em outras

palavras, de escalas distintas de ação política (Sassen, 2007 e 2009). Assim, de

acordo com os ECG tal distinção é complicada havendo crescentes evidências

da interpenetração entre o global e o nacional o que acaba por desestabilizar a

diferenciação entre ambos. A despeito de tais evidências, perpetua-se o

estadocentrismo nos estudos internacionais; a necessidade de uma mudança

ontológica surge, assim, da anomalia entre as visões do objeto de estudo a partir

de uma lente racionalista estadocêntrica e uma lente globalista. A ontologia

passa a ser radicalizada e vista como um processo social não acabado, e a

prioridade ontológica passa do Estado para a economia política global em si28.

Essa reconfiguração do espaço social é algo muito significativo uma vez

que o espaço é uma dimensão central para as relações sociais. Na verdade, os

contornos espaciais de uma sociedade influenciam fortemente a natureza da

produção, da governança, da identidade e da comunidade em dada sociedade.

28 É importante notar que tal questão não é tão nova assim na Economia Política Global, principalmente no que diz respeito às abordagens mais críticas. Desde o final dos anos 1980 Stephen Gill e David Law apontavam a “(...) necessidade de tomar a concepção de economia política global como a entidade ontológica, isto é, como o objeto a ser teorizado e explicado” (Gill & Law, 1988, p. xxiii).

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A produção do espaço seria, assim, “(...) um momento constitutivo dentro da

dinâmica de acumulação do capital e da luta de classe” (Harvey, 2000, p. 23).

Cumpre ressaltar que essa mudança no alcance espacial não significa,

necessariamente, que a ordem global suplante ou passe a ter precedência sobre

as ordens locais, nacionais ou regionais da vida social. Na verdade, o que ocorre

é que estas podem se inserir em conjuntos mais amplos de relações e redes de

poder inter-regionais. Destarte, as limitações do tempo social e do espaço

geográfico – coordenadas essenciais da vida social moderna – não mais impõem

barreiras fixas a muitas das formas de interação ou organização social, vide, por

exemplo, a internet e os mercados financeiros globais. Em suma: não há o fim

do Estado. Este permanece sendo um lócus fundamental no processo de

regulação e não apresenta sinais de dissolução em um futuro próximo. Contudo,

a intensificação dos processos de globalização das relações sociais têm

promovido uma gama de transformações em aspectos significativos do Estado,

como por exemplo no tocante ao controle dos fluxos transfronteiriços – sejam

eles fluxos monetários, de bens e produtos ou migratórios, por exemplo.

Metodologicamente, os estudos internacionais são, via de regra,

baseados na premissa da territorialidade, ou seja, subsumem todos os aspectos

das relações sócio-espaciais à ideia da territorialidade. Os problemas ecológicos

globais contemporâneos – bem como os problemas relacionados à economia, ao

terrorismo e à segurança globais, por exemplo (Mittelman, 2004a e Sklair, 2005)

– apontam para a inaplicabilidade das suposições territorialistas acerca do

espaço. Semelhantemente, se o capitalismo hoje opera em grande medida em

escala global (Sklair, 2005, Robinson, 2005b), de maneira relativamente

autônoma do espaço territorial, então as velhas estruturas intelectuais não mais

são capazes de lidar com a questão da justiça distributiva e das relações de

exploração29. Além disso, é preciso repensar questões como a democracia e a

comunidade em um mundo em processo de globalização. Faz-se necessário,

assim, historicizar tal método a fim não apenas de entendê-lo mas também de

contribuir para a construção de uma metodologia pós-territorialista.

O território continua tendo uma importância fundamental no mundo em

globalização, sendo que a globalização diz respeito a processos de

29 O territorialismo metodológico apresenta o que Sayer chama de concepção caótica ou abstração ruim em oposição às abstrações racionais: “uma abstração racional é aquela que isola um elemento significativo do mundo que tem alguma unidade e força autônoma, como uma estrutura. Uma abstração ruim divide arbitrariamente o indivisível e/ou coloca junto o que não se relaciona ou que não é essencial, ‘dividindo’ assim o

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desterritorialização e de reterritorialização: “O global (...) se constitui

parcialmente através da desnacionalização de componentes particulares do que

habitualmente percebemos como territórios e domínios institucionais ‘nacionais’”

(Sassen, 2007, p. 24). Em outras palavras, o fim do territorialismo não implica o

fim da territorialidade; trata-se de um mundo em globalização, não um mundo

globalizado, o que faz com que a territorialidade não seja algo irrelevante – a

globalização gera uma desterrritorialização relativa da vida social. Muitas

situações da vida social contemporânea permanecem sendo altamente

territoriais, o que indica que a mudança – ou seja, a proliferação de conexões

globais – se inter-relaciona, dialeticamente, com a continuidade, havendo, assim

a persistência de espaços territoriais. Em suma, é possível notar que

globalização e territorialidade não são termos/realidades excludentes na medida

em que a tendência à globalização pode ser vinculada a muitos processos de

reterritorialização nos quais certas unidades territoriais declinam em significado

ao passo que outras configuração territoriais passam a ter uma maior

importância – vide, por exemplo, o fenômeno hodierno da regionalização30. Ou

seja, não se deve cair no outro extremo, adotando uma “metodologia globalista”

e rejeitando totalmente a importância do princípio da territorialidade31.

Se por um lado grande parte da população mundial não partilha de vários

aspectos característicos da globalização, por outro a esmagadora maioria da

população mundial sofre as consequências deletérias da forma atual da

globalização. Além disso, vê-se que a globalização não promove nem o aumento

nem a queda da segurança humana e da justiça social automaticamente. Tais

resultados são positivos ou negativos dependendo das políticas que são

adotadas com relação a essa nova configuração da geografia social – ou seja,

as desigualdades têm sua origem nas políticas aplicadas à globalização, e não

na globalização em si (Sklair, 2005 e Scholte, 2005). Tratar relações sociais

historicamente específicas como se fossem algo natural ou necessário é abstraí-

las dos processos sociais e históricos que as produziram e, assim, reificar tal

abstração tratando-a como uma realidade objetiva, como um constrangimento

objeto de estudo com pouca ou nenhuma consideração com relação à sua estrutura e forma” (Sayer apud Jessop, et. al., 2008, p. 391).  30 cf. Held, et al., 1999, p. 27-28 e Harvey, 2000, p. 29. 31 É importante perceber que, se contemporaneamente uma leitura territorialista não se apresenta como adequada, tal adequação nunca ocorreu tout court. Na verdade, como aponta Lacher, “o territorialismo metodológico das ciências sociais ‘modernas’ era de fato inadequado até mesmo no período da preeminência histórica mundial do Estado-nação” (Lacher, 2006, p. 146). Ora, tal colocação não nega a relevância da crítica dos ECG ao territorialismo metodológico, apenas a qualifica e aponta para a necessidade de se desenvolver novas ferramentas para o entendimento dos processos de globalização. 

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dado sobre toda a vida social. Neste sentido, a ideia de que “não há alternativas”

à globalização neoliberal ignora a capacidade para a organização humana e

para a escolha política e social.

Aqui se coloca um dos grandes desafios para os ECG: não há uma única

forma de globalização. Contudo, existem escassas tentativas de mapear as

diferentes formas de globalização, tentativas estas que são precedidas por

adjetivos como “neoliberal”, “de cima e de baixo”, “democrática”, “islâmica”, etc.

Assim, talvez o melhor “rótulo” para o objeto de estudo não seja globalização

apenas, mas sim globalizações, sendo necessário estudar outras formas de

globalização também fundamentais, como por exemplo a globalização alternativa

ou altermundialização (Mittelman, 2004b). Neste sentido, embora a crítica

oferecida por Rosenberg (2005) seja pertinente na medida em que identifica

problemas com os quais os teóricos da globalização devem necessariamente

lidar, isso não implica em absoluto o abandono do estudo da globalização como

algo necessário (Albert, 2007). Na verdade, não só parece ser possível se

pensar em estudos sobre a globalização que partam de uma perspectiva crítica

como, em função das transformações e mudanças ocorridas nos últimos anos,

faz-se fundamental tal tipo de reflexão, que busque não apenas entender a

realidade da economia política global contemporânea mas também transformá-

la, em direção a um outro tipo de globalização que seja mais justo, solidário,

inclusivo e ecologicamente sustentável.

2.3.1.4. As causas da globalização

Uma vez feitos os breves apontamentos acerca da globalização e de seus

aspectos principais que a caracterizam como uma nova configuração da

natureza do espaço social reputa-se oportuno discorrer, neste ponto, acerca das

causas da globalização. Essa é uma questão fundamental, uma vez que tanto a

avaliação acerca de suas consequências quanto as respostas políticas a estas

dependem, em larga medida, da interpretação que é dada às forças geradoras

de tal fenômeno; iniciativas políticas voltadas para as relações supraterritoriais

via de regra não produzem os resultados esperados quando não partem de um

entendimento claro a respeito das dinâmicas dos processos de globalização das

relações sociais.

Várias têm sido as explicações dadas para as causas da globalização.

Para uns, os avanços tecnológicos seriam o motor da globalização; para outros,

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os marcos regulatórios é que teriam um papel de primazia na promoção da

globalização. Scholte, por sua vez, partindo de uma perspectiva

estruturacionista, afirma que a re-espacialização e a supraterritorialidade

decorrem, basicamente, da combinação dos seguintes aspectos – que não

possuem primazia ontológica um sobre o outro mas que mantém entre si uma

relação de co-dependência: 1) a emergência de uma consciência global, como

um produto do conhecimento racionalista; 2) mudanças no desenvolvimento do

sistema capitalista de produção; 3) inovações tecnológicas, em especial aquelas

ligadas às comunicações e ao processamento de dados; 4) a construção de

marcos regulatórios, especialmente através dos Estados e de instituições

supraestatais (Scholte, 2005).

Explicações como estas acerca das causas da globalização levam a

críticas como a de Rosenberg. Por partir de um referencial teórico gramsciano-

marxista, a presente pesquisa busca, assim, as causas da globalização não em

aspectos como a consciência, os marcos regulatórios ou as inovações

tecnológicas mas no desenvolvimento do sistema capitalista de produção; na

economia, ou seja, nas relações sociais de produção. A economia aqui não é

entendida como a mera reprodução de objetos materiais, mas como o modo pelo

qual os homens associados produzem e reproduzem não apenas tais objetos

materiais mas também as próprias relações sociais globais:

“(...) justamente porque a economia é a forma elementar da objetivação, é a unidade objetivada e realizada de sujeito e objeto, é a atividade prática objetivada do homem, justamente por isso em tal relação não se desenvolve apenas a riqueza social objetiva, mas ao mesmo tempo também as qualidades e faculdades subjetivas dos homens. (...) A economia não é apenas produção dos bens materiais: é a totalidade do processo de produção do homem como ser humano-social. A economia não é apenas produção de bens materiais; é ao mesmo tempo produção das relações sociais dentro das quais esta produção se realiza” (Kosik, 1995, p. 189-191).

O capitalismo é produto histórico de uma lenta fusão e de uma soma de

elementos culturais que se processa, em seu início, através de uma determinada

combinação de fatores que, uma vez pré-existentes, vão adquirindo

progressivamente, devido a fatores circunstanciais específicos, no Ocidente,

uma dinamização superior: a riqueza mercantil, o dinheiro, o assalariamento, o

desenvolvimento do artesanato e da cidade, o mercado, etc. Uma vez atingido

certo patamar de evolução, esses fatores, combinados sob a égide do capital

comercial, passam, então, a invadir e a subordinar as diversas instâncias

pretéritas de sociabilidade e o sistema produtivo por inteiro, subvertendo de

maneira definitiva todo o metabolismo social precedente a uma outra lógica

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econômica. Todavia, tais condições e formas societárias não são, em primeira

instância, resultados do modo capitalista, mas sim seu pré-requisito32.

Ora, não há capitalismo em escala apenas local ou nacional. Na verdade,

o capitalismo só existe enquanto decorrência da expansão progressiva do

mercado33, do alargamento supranacional das relações de troca, da dinamização

centrífuga dos meios de comunicação; e a generalização, expansão e

consolidação de uma economia de mercado em amplitude mundial é resultado

de um longo processo histórico que envolveu fases distintas de desenvolvimento

da vida material da humanidade – incluídos aí os aspectos político-econômicos e

sócio-culturais que afetam tanto indivíduos quanto coletividades. Em outras

palavras, nota-se que, para se reproduzir e expandir a produção e o mercado, o

capital tende, necessariamente, à mundialização – como que “por genética de

sua constituição sociológica” (Mello, 1999, p. 108): ou seja, tende a ultrapassar

os limites da geografia econômica e da geopolítica, deslocando continuamente

os fundamentos da soberania34.

Tal questão nos remete à problemática concernente à relação entre

espaço e tempo, sendo relevante, neste ponto, retomar Marx, quando este

destaca que “o capital, por sua natureza, vai para além de qualquer barreira

espacial. Assim, a criação das condições físicas da troca – dos meios de

comunicação e transporte – a aniquilação do espaço pelo tempo – se torna uma

necessidade extraordinária para ele” (Marx, 1859, p. 275). O ponto fundamental

neste caso diz respeito a uma extensão do espaço no tempo, e não à subsunção

de um ao outro. Em outras palavras, “o espaço – ou o território – não

desaparece, mas muda de ‘localização’, ou melhor, adquire outro sentido

relacional” (Haesbaert, 2004, p. 156). Neste sentido, o desencaixe espaço-

temporal, assim como a ideia de desterritorialização e re-espacialização, seria

“(...) uma das faces do processo de reencaixe, em novas bases histórico-

geográficas” (Ibidem, p. 158)35.

32 Nas palavras de Marx, “(...) o comércio é tanto histórica quanto conceitualmente um pressuposto para a gênesis do capital” (Marx, 1859, p. 360). 33 Como afirmou Braudel, “o mercado é um limite que se desloca” (Braudel, 1996, p. 39). 34 Fazendo alusão a Lefebvre, “a realização da mais-valia tem sido, pode-se dizer, ‘desterritorializada’” (Lefebvre, 1991, p. 347). Ou seja, o processo de desterritorialização implica, necessariamente, uma nova produção do espaço. 35 Uma questão que se encontra subexplorada nos ECG diz respeito a um aspecto subjacente ao “discurso da inevitabilidade”, a saber, a conceituação decorrente de tal discurso hiperglobalista acerca da relação espaço-tempo: “essa proposição transforma a geografia em história, o espaço em tempo” (Massey, 2008, p. 24). Ora, um discurso assim construído tem, seguramente, efeitos sociais e políticos significativos. Tal ideia de inevitabilidade pressupõe uma teleologia que alija do campo analítico possibilidades de trajetórias próprias, histórias específicas e potencialidades de construção de um futuro

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O capitalismo não é apenas um processo econômico de reprodução dos

objetos materiais; é um processo constitutivo de um tipo de civiltà, um modo

civilizatório, que gera consequências nas mais diversas esferas da vida humana

e da realidade social36. Tal “potencial revolucionário”, assim, se articula com as

questões sociais, políticas e culturais. O processo histórico de reprodução

ampliada do capital em uma escala cada vez mais global gerou uma ampliação

dos meios de comunicação, uma transformação do transporte, do sistema

monetário e das formas de governança. Em suma, nota-se que, ao invés de

olhar para fenômenos superestruturais, pode-se, na verdade, ver no

desenvolvimento do sistema capitalista de produção a origem dos processos de

globalização das relações sociais, ou seja, a causa da reconfiguração das

relações espaciais. Mantém-se, assim, a premissa de Engels acerca da

“determinação em última instância” da totalidade social pela economia. Não

obstante, tal determinação não ocorre mediante a imposição mecânica de

resultados unívocos, mas condicionando o âmbito das alternativas que se

colocam à ação dos sujeitos históricos. Nas palavras de Engels,

“Segundo a concepção materialista da história, o fato que, em última instância (grifo do autor), determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos, uma vez se quer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único (grifo do autor) fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda” (Engels, 1890, p. 1).

Como afirma Marx, “Os homens fazem sua própria história, mas não a

fazem como querem (...)” (Marx, 1974, p. 17). A prioridade ontológica de uma

esfera em relação a outra não implica a ideia de uma hierarquia lógica ou causal

eterna e fixa; a relação entre estrutura e superestrutura é um fenômeno histórico

e dialético37. Destarte, seguindo o legado gramsciano, rejeitam-se aqui

sem garantias finais. Isso é fundamental, pois o engajamento político depende, necessariamente, de uma concepção do futuro como sendo um futuro aberto, sem garantias finais. Neste contexto, se o espaço é visto de uma perspectiva interacional, então sempre haverá conexões e interações a serem feitas; ou seja, “não apenas a história, mas também o espaço é aberto (...). Para (grifo da autora) que o futuro seja aberto, o espaço também deve sê-lo” (Ibidem, p. 32). 36 Ver por exemplo Gill, que vincula o processo contemporâneo de globalização – a globalização neoliberal – ao que ele chama de “civilização de mercado”, fenômeno este que também se relaciona a um processo de comodificação da vida. Para maiores detalhes, ver Gill, 2003. 37 Neste ponto é fundamental retomar o esclarecimento feito por Karel Kosik: “O marxismo não é um materialismo mecânico que pretenda reduzir a consciência social, a filosofia e arte a ‘condições econômicas’ e cuja atividade analítica se fundamente, por isso, no desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um

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abordagens economicistas e deterministas acerca do desenvolvimento das

relações supraterritoriais. Ou seja, se por um lado há a prioridade ontológica da

esfera econômica a partir da qual se dá o desenvolvimento de inovações

tecnológicas, a transformação dos marcos regulatórios – ligados à questão da

governança – e a “explosão” de uma consciência global, por outro há uma

relação dialética entre esses quatro aspectos da globalização que promovem a

supracitada reconfiguração do espaço social.

A globalização não tem uma origem no sentido de haver um ponto de

partida claro e definido. Na verdade, como afirma Harvey, “a globalização tem,

desta forma, sido integral ao desenvolvimento do capitalismo desde seu início”

(Harvey, 2000, p. 20). Mello, por sua vez, aponta para o fato de que o

capitalismo é “(...) um modo de produção que se articula e se constitui, desde

suas origens, num patamar mundial, supranacional de dinamicidade” (Mello,

1999, p. 20). Ora, tal argumento, se visto de uma maneira superficial, levaria a

uma interpretação cética da globalização, dado que, em última instância, poder-

se-ia concluir a não originalidade dos fenômenos contemporâneos. Contudo,

percebe-se que, na verdade, se trata de uma qualificação do argumento

hiperglobalista: O capitalismo pode ser visto como um processo permeado por

fases distintas de globalização com sucessivos re-escalonamentos dos

patamares de sua efetivação e materialidade societárias. Cada período

produziria, assim, uma combinação dialeticamente original e dinamicamente

hierarquizada entre os espaços e os sentidos do que vem a ser o local, o

nacional, o regional, o internacional e o global. Ou seja, apresentaria momentos

de ruptura histórica neste processo de acumulação e reprodução ampliada do

capital. Neste sentido, seria possível distinguir três fases ou momentos distintos

neste processo38:

Em primeiro lugar nota-se a mundialização do comércio com suas formas

de institucionalização dos mecanismos de acumulação originária a partir do

século XVI. O comércio internacional se apresenta, assim, não apenas como o

patamar real da dinâmica do capitalismo comercial como também é ele que irá

pressionar as estruturas produtivas herdadas, estruturas estas que serão

transformadas até o surgimento da manufatura. A passagem da manufatura à

grande indústria – ou seja, a revolução das bases produtivas capitalistas – é a

conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido (grifo do autor)” (Kosik, 1995, p. 124). 38 Tal classificação se baseia em Mello, 1999, p. 194-195.  

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base do segundo momento. A partir do momento em que novas ondas de

expansão do mercado mundial passam a ser demandadas devido à

consolidação da produção industrial de grande escala, a dinâmica de circulação

das mercadorias é subsumida, de uma vez por todas, às necessidades de

reprodução ampliada do capital. Isso se expressa, no século XX, no imperialismo

– que seria uma etapa de internacionalização das bases produtivas do capital.

Recentemente nota-se a terceira fase, chamada de globalização –

embora na verdade seja melhor caracterizada como a intensificação dos

processos de globalização das relações sociais. Nesta fase – que assume

contornos mais nítidos a partir do final da II Guerra Mundial e se intensifica nos

anos 1970 (Cox, 1997, p. 21-23) –, há uma ruptura histórica marcada pela

reconfiguração do espaço social, reconfiguração esta que se expressa na

transplanetarização e na supraterritorialidade de vários aspectos da realidade

social – sejam eles políticos, sociais, econômicos ou culturais. Neste sentido,

assim como nas fases ou momentos precedentes, a fase recente da

globalização não apenas se expressa em várias esferas da realidade social

como também resulta, em certa medida, da relação dialética entre tais esferas

mantida, é claro, a prioridade ontológica da esfera econômica – ou seja, das

relações sociais de produção39.

2.3.2. A questão da hierarquia na ordem mundial contemporânea revista à luz da globalização

A discussão feita acima é extremamente elucidativa no que diz respeito ao

potencial (e limites) explicativo das abordagens anteriormente apresentadas

acerca da hierarquização na economia política global contemporânea. Assim,

uma vez que a questão da globalização é trazida à tona, algumas considerações

podem ser feitas.

Com relação à governança global e ao Império, percebe-se, em um

primeiro momento, uma capacidade, por parte de ambas, de lidar com a questão

39 “Em termos de uma hierarquia de fatores causais responsáveis pela globalização, então, as condições cambiantes do capitalismo, especialmente a hipercompetição como uma força motriz, têm criado um ambiente transformado. A hipercompetição é acompanhada por uma reestruturação da produção, incluindo sua reorganização espacial, que é, por sua vez, facilitada tanto pelos avanços tecnológicos quanto pelas políticas estatais” (Mittelman, 2000, p. 17). Em outras palavras: “o conteúdo da globalização, isto é, como ele se nos apresenta, é moldado pelas interpretações e entendimentos dele. Contudo, é um processo guiado pelo ‘núcleo decisivo da atividade econômica’ no coração do sistema” (Bruff, 2005, p. 274).

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da globalização como uma mudança qualitativa nas relações sociais; neste

sentido, tais abordagens são capazes de incorporar em suas análises

elementos, fenômenos e atores fundamentais para as dinâmicas da economia

política global que não se esgotam no nível estadocêntrico. No que concerne

especificamente à governança global40 isso fica claro na diferenciação feita entre

governança internacional e governança global:

A governança internacional é o resultado de uma rede não-hierárquica de instituições internacionais interconectadas (na maior parte, mas não exclusivamente, governamentais) que regulam o comportamento dos Estados e de outros atores internacionais em diferentes áreas temáticas da política mundial (...). Governança global é o resultado de uma rede não-hierárquica de instituições internacionais e transnacionais (grifos do autor) (Brühl & Rittberger, 2001, p. 2).

Ou seja, no que diz respeito à temática da globalização, a governança

global seria caracterizada por dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar,

notar-se-ia um aumento da importância dos atores não-estatais em detrimento

dos Estados no processo de produção e monitoramento das regras e normas no

âmbito global; em segundo lugar, tal governança – agora global – se dá não

apenas nos níveis nacionais e internacionais, mas também nos níveis locais,

subnacionais e regionais. Em suma, a globalização afetaria a relação entre os

atores estatais e não-estatais, afetando as relações de ganhos e perdas entre

eles – o que expressaria o fato de que os impactos dos processos de

globalização não são, necessariamente, positivos. Assim, far-se-ia ainda mais

necessário o estabelecimento de uma governança no nível global a fim de lidar

com tais questões.

Como colocado anteriormente, a perspectiva do Império tem méritos pela

forma como intervém no debate acerca da espacialidade do poder (neo)imperial.

Em especial, tal perspectiva é relevante por trazer ao debate a dificuldade de se

explicar a política mundial contemporânea a partir de referências

estadocêntricas, ou seja, a partir de um territorialismo metodológico. Assim, a

despeito de suas deficiências e limites, tal perspectiva é relevante na medida em

que enfatiza o fato de que “relações internacionais não é um sinônimo de política

mundial” (Walker, 2002, p. 339).

40 No caso da governança global, há a percepção de que globalização e governança se encontram intimamente relacionadas. Como colocam Keohane e Nye Jr., “a globalização afetará os processos de governança e será afetada por eles” (2000, p. 1). 

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Contudo, ambas perspectivas apresentam problemas: por partirem de uma

leitura muito próxima ao hiperglobalismo41 – uma leitura ingênua que vê os

processos de globalização como algo que enfraqueceria cada vez mais os

Estados –, tais perspectivas não são capazes de lidar, satisfatoriamente, com a

importância que os Estados continuam tendo nas estruturas de poder que se

formam, a partir da intensificação dos processos de globalização, na economia

política global. Além disso, as abordagens convencionais da governança global,

por carregarem apenas um significado técnico, mascaram as relações de poder42

e tendem a focar-se na idéia de ganhos absolutos, na medida em que padrões

de governança poderiam beneficiar todos os atores do sistema. Assim,

Governança global sem poder parece bem diferente da governança global com poder. Apenas com um modesto exagero, muito do conhecimento sobre governança global procede como se o poder não existisse ou fosse de uma menor importância. Nós suspeitamos que isso existe devido à forma como a política do pós-Guerra Fria, organizada em torno do liberalismo e da globalização, marcaram o significado, a prática e a definição de governança global (Barnet & Duvall, 2005, p. 4).

Neste processo, como corolário de uma leitura ingênua que fazem dos

processos de globalização, tais abordagens tratam apoliticamente os processos

vinculados à dita governança global (Latham, 1999). Em boa medida como os

debates sobre modernização nas décadas passadas, ou como as teorias

funcionalistas, o conceito de governança global é apresentado como desprovido

de substância política. A matéria é tida simplesmente como técnica, e muitas

vezes os temas giram apenas em torno de sua implementação, uma vez que os

resultados desejados e os procedimentos para atingi-los já estariam definidos.

Além disso, tal leitura ingênua acerca dos processos de globalização leva a

questões importantes a respeito de quão global seria a governança global, e do

41 De acordo com Alcántara (1998), é possível perceber inclusive que a literatura sobre a governança global que emerge nos anos 1990 teve um papel extremamente relevante no desenvolvimento daquilo que depois veio a ser chamado de concepção hiperglobalista da globalização. 42 De acordo com Barnett & Duvall (2005, p. 3), “poder é a produção, nas e através das relações sociais, de efeitos que moldam as capacidades dos atores para determinar suas próprias circunstâncias e destino”. Contudo, tal poder não se expressa de maneira unívoca; na verdade, para os autores seria possível identificar quatro dimensões nas quais o poder se expressa: “poder compulsório se refere às relações de interação que permitem a um ator ter controle direto sobre outro. (...) Poder institucional ocorre quando atores exercem controle indireto sobre outros atores (...). Poder estrutural diz respeito à constituição de capacidades e interesses sociais de atores em relação direta um com outro. (...) Poder produtivo é a produção socialmente difusa de subjetividade em sistemas de sentido e significado”. Algumas dessas dimensões são enfatizadas em detrimento de outras em cada uma das perspectivas aqui discutidas, o que ficará claro no restante do capítulo. 

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impacto de tal governança “global” sobre parcelas significativas da política

mundial que são deixadas à margem pelos processos de governança. Ao

contrário do que se percebe na literatura convencional da governança global, se

este é um processo emergente, discussões sobre a liderança e finalidades do

mesmo deveriam ser centrais na agenda internacional, e não desmerecidas.

Neste ponto é possível perceber a vantagem da noção de

governamentalidade frente ao discurso da governança global e outros discursos

associados a este; mudanças de um modelo hierarquizado a partir da ideia de

soberania para um modelo em rede, mais horizontal, incorporando a emergência

de novos atores não-estatais com relevância crescente na política mundial. De

uma perspectiva da governamentalidade, a emergência de tais atores não-

estatais não estaria vinculada a uma transferência de poder para eles por parte

do Estado soberano. Na verdade, a crescente relevância de tais atores estaria

vinculada a uma mudança na racionalidade do governo, segundo a qual a

sociedade civil deixa de ser vista como um objeto passivo do governo e passa a

ser “(...) uma entidade que é tanto um objeto quanto um sujeito do governo”

(Sending & Neumann, 2006, p. 651). Ou seja, contrariamente às percepções da

literatura convencional da governança global, o que se perceberia seria a

ausência de contradição entre a sociedade civil global e sua forma de

organização por um lado e o Estado e sua lógica de governo por outro. A

sociedade civil global, definida como sujeitos políticos com expertise e

habilidades, seria um agente no processo de regulação da conduta em escala

global. Isso contribuiria para uma releitura crítica do processo da governança

global, identificando dimensões, práticas discursivas e relações sociais de poder

ausentes na literatura convencional.

Conforme visto anteriormente, as abordagens do Império e da

governamentalidade agregam de maneira significativa ao estudo da economia

política global na medida em que destacam a dimensão produtiva do poder, ou

seja, as formas pelas quais o Império e as práticas de governamentalidade

produzem novas subjetividades através de relações sociais difusas. Além disso,

ambas as abordagens são pertinentes por tentarem articular uma teorização da

economia política global na qual o poder não se encontra concentrado em um

local espacialmente específico do qual se projeta, em certa medida de maneira

coerente, em direção à periferia. Não obstante, embora relevante, tais

abordagens, na medida em que desenvolvem um modelo geral do poder que

não leva em consideração “(...) as modalidades específicas do exercício de

diferentes formas de poder em contextos distintos” (Jessop, 2003/2004, p. 54)

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alija do processo analítico relevantes elementos concernentes à dimensão

espacial. Tal lacuna deriva, em larga medida, da teoria de poder de Foucault

que, em sua elaboração da ideia de governamentalidade, deixa de lado qualquer

noção de estratificação social ou hierarquização das estruturas de poder, o que

fica claro no tratamento dado por Foucault ao Estado. No tocante às leituras

sobre o exercício da governamentalidade na economia política global a ênfase é

nas redes de práticas discursivas a partir das quais normas e regras que

emergem no âmbito global, deixando de lado o papel dos aparatos regulatório-

coercitivos transnacionais e suas relações com as estruturas de poder dos

Estados nacionais neste processo. Império e governamentalidade “(...)

oferece(m) um (...) relato acerca da espacialidade do poder que oblitera as

particularidades geográficas da prática geopolítica” (Coleman & Agnew, 2007, p.

318), ou seja, é oferecida uma leitura polarizada acerca do exercício do poder no

espaço.

De acordo com Hardt & Negri, o poder opera a partir de duas

possibilidades (sendo que uma já é passada): a partir de um modelo soberano

do poder com fronteiras rígidas e bem definidas entre self e outro, dentro e fora,

tendo como referência última para a expressão do poder as fronteiras estatais;

ou a partir de uma lógica pós-moderna, na qual as fronteiras se tornam fluidas e

tais dicotomias se mostram cada vez mais irrelevantes. Tal polarização entre

poder político centrado nos Estados ou descentralizado em redes empobrece

uma leitura acerca da manifestação do poder no espaço, ou seja, o que ocorre é

uma temporalização problemática da espacialidade do poder que reifica mais do

que problematiza o modelo convencional de governo soberano. Ou seja, a ideia

de Império não problematiza a soberania e a territorialidade estatal; há apenas

um delineamento das mudanças que ocorreram, temporalmente, na

espacialidade do poder, de um poder estatal para um descentralizado, de um

poder que se expressa de maneira transcendente para um poder imanente

(Ibidem; Walker, 2002; Jessop, 2003/2004). Em outras palavras, a ênfase na

desterritorialização do poder leva Hardt & Negri a perderem de vista os

complexos processos de re-territorialização do poder na economia política global

na medida em que não há nada entre a soberania do Estado-nação e a

soberania imperial, entre uma concepção estatal e uma concepção em rede do

poder.

Neste ponto, a noção de governamentalidade e a problematização da

noção convencional de poder bem como da própria noção de soberania seriam

de extrema valia para a ideia de Império, ajudando esta a lidar de uma maneira

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mais satisfatória com a relação entre as soberanias moderna e pós-moderna.

Contudo, assim como a ideia de Império, as abordagens da governamentalidade

também apresentam em geral uma leitura insuficiente acerca dos processos de

globalização. Se Hardt & Negri por um lado terminam por apresentarem uma

leitura hiperglobalista ingênua a partir da diferenciação proposta entre

soberanias moderna e pós-moderna, por outro lado a releitura da

governamentalidade se aproxima, de uma maneira muito peculiar, de uma leitura

cética: ao se apresentar em larga medida como uma crítica à governança global

(Larner & Walters, 2004; Sending & Neumann, 2006), tal abordagem conceitua

globalização nos mesmos termos que a governança global e,

consequentemente, termina por criticar a globalização juntamente com a

governança global – obviamente em termos epistemologicamente distintos

daqueles apresentados pela crítica cética convencional. Como visto, uma das

razões para tal limite na forma de lidar com o fenômeno da globalização deriva

do tratamento dado ao Estado, que se por um lado é extremamente útil para a

entendimento de processos de capilarização das relações sociais de poder, por

outro dificulta uma percepção mais acurada acerca dos complexos fenômenos

de difusão do poder no espaço43. Além disso, somado a tais limites tais

abordagens perdem de vista a influência do poder estrutural do capital não

apenas na formação de novas subjetividades mas também no processo de

constituição da ordem mundial contemporânea.

Já as abordagens do novo imperialismo e do sistema-mundo partem de

uma visão cética acerca dos processos de globalização, assumindo assim uma

postura estadocêntrica, não incorporando a ideia de globalização e seus

impactos no ordenamento mundial contemporâneo. Os processos de

transnacionalização do capital e seu impacto na configuração de tal “império

estadunidense” – assim como o papel dos Estados Unidos na promoção dos

processos associados ao fenômeno da globalização não são incorporados às

análises de tais perspectivas em função da visão vestfaliana da política mundial

que compartilham. Embora avancem uma crítica substantiva à artificialidade da

separação feita no capitalismo entre política e economia, a ênfase dada à

43 Tal questão fica clara na seguinte colocação de Larner & Walters: “em suma, nós usamos governamentalidade global como um título para estudos que problematizam a constituição, e a governança de espaços acima, além, entre e através dos Estados. Nomear é em si um ato de poder. Nosso uso do global significa um espaço cuja natureza não deve ser assumida antecipadamente (grifo nosso). Permanece tarefa da investigação empírica em cada caso determinar se o espaço em questão é governado como ‘internacional’, ‘global’, ou como outra coisa qualquer” (Larner & Walters, 2004, p. 2). 

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política internacional – como decorrência do destaque dado à dimensão estatal –

leva tais perspectivas a uma forma de “alienação de segunda ordem” – ou seja,

tal ênfase na política internacional leva a um enfoque em relações entre

comunidades políticas isoladas “(...) que são elas próprias construídas dentro de

relações de alienação” (Rupert, 1994, p. 84).

No que concerne especificamente ao “novo” imperialismo, embora

incorpore as relações capitalistas de produção em suas análises, tal perspectiva

acaba por ver tais relações como internacionalizadas, e não transnacionalizadas.

Na medida em que parte de um mundo composto por capitais nacionais rivais

que se encontram em conflito, se trata de uma leitura constrangida pela “camisa

de força vestfaliana” (Buzan & Little, 2001)44. Semelhante ao realismo, tal

perspectiva enfatiza a dimensão compulsória do poder, ou seja, o papel dos

Estados Unidos como potência imperial e sua capacidade de, muitas vezes, ter

controle direto sobre outros atores; além disso, também volta suas atenções

para a dimensão estrutural do poder, enfatizando os aspectos constitutivos do

poder, principalmente com relação ao poder do capital. Contudo, sua leitura

limitada sobre a globalização e seus processos associados de

transnacionalização do capital faz com que fiquem de fora o poder estrutural do

capital transnacional e os impactos deste nas formas de manifestação das

demais dimensões do poder. Além disso, falta a essa perspectiva uma

percepção mais sofisticada acerca dos mecanismos subjetivos associados ao

exercício do poder não apenas no âmbito internacional mas também global.

De acordo com Wallerstein45 (2004a, p. x), “proponentes da análise do

sistema-mundo tem falado sobre a globalização muito antes de a palavra ter sido

inventada; não como algo novo, mas como algo inerente ao moderno sistema-

mundo desde o século XVI”. Embora em um primeiro momento tal afirmação

possa ser vista como meritória, por identificar a globalização como algo real, por

outro lado alguns problemas emergem. Em primeiro lugar, a identificação da

globalização como um fenômeno que data do século XVI empobrece o conceito

44 O próprio David Harvey, em comentário ao livro de Ellen Wood (2003), reconhece tais limites: “(na) abordagem tipológica de Wood (...) a globalização (...) é invocada como o problema mas sua análise acerca do que ela (a globalização) realmente é ou do que produz é obscura se não excessivamente simplista” (Harvey, 2007, p. 61). Contudo, a despeito de tal reconhecimento, o autor termina por repetir o mesmo equívoco uma vez que, embora reconheça (1) a necessidade de uma nova teoria do Estado capitalista por este ser “(...) radicalmente diferente do que foi trinta anos ou mais atrás” (Ibidem, p. 67); e (2) os limites de uma leitura simplista sobre um pretenso “capital norte-americano” – “não está muito claro para mim que a categoria ‘capital norte-americano’ (...) ainda faça sentido” (Ibidem) –, continua defendendo a pertinência de uma teoria do imperialismo – mesmo que, desta vez, reformulada e atualizada. 

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da mesma forma que desconsiderá-lo por ser uma ideologia, por exemplo, pois

esvazia o mesmo de qualquer potencial heurístico. Além disso, em segundo

lugar, de acordo com a perspectiva do sistema-mundo, o capitalismo data do

século XVI, e tem permanecido essencialmente o mesmo – ou seja, sem

mudanças significativas – desde então. Em última instância, para tal perspectiva,

o capitalismo é, basicamente, “(...) um sistema estático de exploração” (Brewer,

1990, p. 18). Neste sentido, é possível perceber a perspectiva do sistema-mundo

como uma perspectiva cética: além de destacarem a centralidade dos Estados e

sua permanência nos processos concernentes às dinâmicas de expansão do

capitalismo mundial desde a formação do sistema-mundo moderno – bem como

a persistência da estrutura centro-periferia da economia política global –, esses

vêem a globalização como algo que já existe desde sempre, sem alterações

fundamentais ou relevantes desta tendência com relação aos processos

contemporâneos (Arrighi, 2005c). Além disso, por se concentrarem

principalmente nos ciclos do sistema e da crise sistêmica, a perspectiva do

sistema-mundo acaba por desenvolver uma leitura do real que, em certa medida,

alija a subjetividade da história. Neste sentido, assim como o “novo”

imperialismo, termina por trazer uma leitura limitada acerca das relações de

poder em um contexto de globalização.

Em suma, o que se percebe é que, no tocante às supracitadas

perspectivas sobre hierarquia e ordem na política mundial contemporânea, há

uma certa polarização entre dois extremos: por um lado, abordagens como novo

imperialismo e sistema-mundo (e, mutatis mutandis, a governamentalidade),

partindo de uma interpretação cética acerca da globalização, vêem uma

continuidade ontológica entre o passado e a geopolítica da economia política

global contemporânea. Por outro, governança global e Império, partindo de uma

leitura hiperglobalista, vêem uma mudança radical, uma ruptura ontológica na

qual nada do que existia no antigo “mundo vestfaliano” permanece. Ou seja, se

para os primeiros a globalização não passa de um disparate (Rosenberg, 2005),

para os seguintes a globalização é vista como uma ruptura ontológica completa

– sem a devida problematização da dita soberania. Ora, a espacialidade do

poder político não se reduz à territorialidade estatal, assim como, em um

contexto de globalização, não implica a exclusão dessa dimensão de expressão.

Desta forma, neste ponto é relevante voltar as atenções para a questão das

45 Cf. também Wallerstein, 2004b, p. 53-76. 

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espacialidades alternativas que o poder político pode assumir historicamente –

vide figura 2.2 (Agnew, 2005):

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Figura 2.2

Espacialidades alternativas do poder

1. Agrupamento de mundos

2. Campo de forças

3. Rede hierárquica

4. Sociedade mundial

Fonte: Agnew, 2005, p. 43

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O primeiro quadro apresenta uma situação de agrupamento de mundos, no

qual seres humanos vivem com pouca comunicação e interação entre si. Há um

profundo sentimento de diferença e distância daquilo que se encontra para além

das fronteiras do grupo – ou seja, a espacialidade se baseia em “(...) uma

concepção fortemente física do espaço como distância a ser superada ou

circulação a ser administrada” (Agnew, 2005, p. 42). O poder político é orientado

em larga medida para as questões de caráter interno – via de regra para a

manutenção dos grupos no poder e da ordem interna.

O segundo quadro traz um modelo de campo de forças, que se baseia na

existência de unidades territorialmente definidas com controle absoluto sobre

seu respectivo território – dentro do qual todos os atributos da política são

condensados. Ou seja, a espacialidade se baseia na “(...) territorialidade estatal,

na qual as fronteiras políticas proveem os contêineres para a maioria das

atividades sociais, econômicas e políticas” (Ibidem, p. 44). Este modelo é

semelhante ao campo de forças na mecânica, sendo assim o poder político

baseado em uma percepção de soma-zero: o ganho de poder por parte de uma

das unidades implica a perda por parte de outra.

O terceiro quadro remete à ideia de rede hierárquica. Neste modelo,

através de fluxos de bens, pessoas e investimentos, centros, periferias e semi-

periferias se encontram intimamente conectados. A espacialidade se baseia,

neste caso, em “(...) redes unindo uma hierarquia de nós e áreas que estão

conectados por fluxos de pessoas, bens, capital e informação”. Embora em

determinados contextos as redes possam “(...) desenvolver formas reticulares

nas quais não há claramente um centro ou uma estrutura hierárquica” (Ibidem),

de maneira geral neste modelo o poder político deriva da localização de um lugar

na hierarquia dos locais.

Por fim, o quarto quadro apresenta uma situação de sociedade mundial, na

qual a comunidade cultural, a identidade política e a integração econômica “(...)

são estruturadas em uma escala global”. Neste modelo a comunicação em

escala global baseada em redes entre vários atores relativamente reticulados é

privilegiada. A espacialidade se baseia em larga medida no momento e na

localização espontânea e recíproca das atividades humanas. Neste caso,

“espaços reais e virtuais se tornam indistinguíveis” (Ibidem).

Historicizar a espacialidade leva a perceber algumas questões: primeiro, a

relação entre forças materiais e representações e subjetividades coletivas no

processo de produção da espacialidade do poder político em um determinado

período histórico; segundo, a complexidade da relação entre espaço e poder no

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tempo. Na verdade, é possível afirmar que, historicamente, houve – e há – a

presença de ambas as quatro expressões espaciais do poder – obviamente, com

alteração na espacialidade predominante. Neste sentido, ficam claros os limites

espaciais das perspectivas discutidas anteriormente (governança global,

sistema-mundo, “novo” imperialismo e Império): ambas as quatro são incapazes

de perceber tal complexidade espacial da economia política global

contemporânea e sua relação com a agência social.

Consequentemente, nota-se a falta de uma abordagem crítica que

incorpore, ao mesmo tempo, as mudanças qualitativas que veem ocorrendo na

forma de organização espacial das relações sociais e as dinâmicas de poder

vinculadas a tais mudanças. Ou seja, uma leitura que por um lado não caia em

uma reificação cética do Estado, ignorando assim as transformações em curso

na economia política global, e por outro não vá para o outro extremo, tratando a

globalização como algo que exista de forma separada de sua “(...) produção na e

através da agência social” caindo, assim, em um “fetichismo sócio-espacial”

(Jessop, et. al., 2008, p. 396). Surge então a seguinte questão: como pensar a

relação entre hierarquia, ordem e mudança na política mundial contemporânea

sem deixar de lado os processos de globalização?

2.4. Conclusão

Disputas como as que foram aqui apresentadas sobre o significado,

potencial e limites heurísticos de conceitos como império, imperialismo,

governamentalidade e governança global não são questões de interesse

puramente acadêmico. Na verdade, o estudo de tais elementos aponta para uma

questão mais ampla, a saber, o estudo das relações hierárquicas na ordem

mundial contemporânea e qual o impacto dos processos de globalização em tais

relações. Consequentemente, o estudo de tais questões, a despeito de sua

relevância teórica e acadêmica, possui um caráter eminentemente político-

normativo, pois aponta para as possibilidades de transformação da ordem

mundial existente. Ou seja, alternativas viáveis aos aspectos anti-democráticos

dessa ordem mundial dependem, em larga medida, de como o poder que se

expressa nesta ordem é conceituado.

Buscou-se, neste capítulo, apresentar a importância que o estudo da

relação entre hierarquia, ordem e mudança apresenta para o entendimento da

economia política global contemporânea. Para tal, nota-se que o entendimento

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das mudanças sistêmicas trazidas à tona pelos processos de globalização,

vinculado às relações de poder que se expressam neste processo são

fundamentais. Com base em tal argumento, buscou-se analisar quatro

abordagens distintas acerca da relação entre hierarquia e ordem mundial:

governança global, sistema-mundo, “novo” imperialismo e pós-modernos

(Império e governamentalidade). A partir da identificação daqueles que seriam

limites heurísticos de tais abordagens, surge o problema de como lidar, de uma

maneira crítica, com os fenômenos contemporâneos da economia política global.

Partindo do princípio que grande parte dos impérios na história se

caracterizou a partir de três aspectos fundamentais – expansão, hierarquia e

ordem (Colás, 2007) – então nota-se que com o desenvolvimento do capitalismo

estes aspectos foram significativamente subvertidos. Em especial, olhando para

o século XX, percebe-se a emergência de processos e fenômenos sociais

qualitativamente distintos, o que aponta para o fato de que tais categorias

(império/imperialismo) limitam mais do que potencializam os horizontes

heurísticos da análise da economia política global contemporânea. Neste

contexto cumpre oportuno perguntar em que medida ainda é pertinente o uso

das categorias império e imperialismo: não seria mais pertinente mantê-las como

categorias que explicam fenômenos já passados em termos dialéticos e partir

para outra explicação acerca das dinâmicas contemporâneas da economia

polítical global?

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