contestação - rede tv

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Rua Peixoto Gomide, nº 768 – 4º andar – sala 06 – Cerqueira César – CEP 01409-904 – São Paulo/SP EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 17ª VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO. AUTOS n.º 2006.61.00.018988-4 AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições legais e constitucionais, nos autos da Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídica Obrigacional em epígrafe, que lhe move a TV ÔMEGA LTDA, vem à presença de Vossa Excelência apresentar CONTESTAÇÃO, nos termos a seguir expostos: 1 1

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALRua Peixoto Gomide, nº 768 – 4º andar – sala 06 – Cerqueira César – CEP 01409-904 – São Paulo/SP

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 17ª VARA DA

SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.

AUTOS n.º 2006.61.00.018988-4

AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO

JURÍDICA OBRIGACIONAL COM PEDIDO DE TUTELA

ANTECIPADA

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo

Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Estado de São

Paulo, no exercício de suas atribuições legais e constitucionais, nos

autos da Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídica

Obrigacional em epígrafe, que lhe move a TV ÔMEGA LTDA, vem à

presença de Vossa Excelência apresentar CONTESTAÇÃO, nos

termos a seguir expostos:

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I – DOS FATOS

No ano de 2005, mais especificamente em 24 de

outubro, o Ministério Público Federal e entidades civis sem fins

lucrativos ingressaram com a Ação Civil Pública n.º

2005.61.00.024137-3, objetivando a retirada da programação da

autora do Programa “Tardes Quentes” e do quadro “Pegadinhas”

nele veiculado, além da apresentação, no mesmo horário, de

programas educacionais de contra-propaganda das mensagens

preconceituosas que violaram veementemente os direitos

fundamentais da pessoa humana e ofenderam a dignidade e

sexualidade alheias (fls. 37/81).

Ao apreciar o pedido formulado pelo órgão

ministerial, a MMª Juíza Rosana Ferri Vidor, da 2ª Vara Cível

Federal de São Paulo, pronunciou-se da seguinte maneira (fls.

82/87):

“Por todo o exposto, entendo, deva ser suspensa por 60

(sessenta) dias a veiculação do programa “Tardes

Quentes” e seu quadro “pegadinhas”, período em que

deverão ser apresentados programas que contenham

contra propaganda das mensagens nocivas alardeadas

pelo referido programa. Findo tal período, a apresentação

do mesmo deverá ser adequada ao conteúdo que veicula,

ou seja, deverá ser apresentado em horário onde menos

crianças e adolescentes tenham acesso sem o controle de

seus pais, o que considero ocorra a partir das 23:30

horas. Além disso, a produção do programa deverá

abster-se de incluir nos quadros personagens ou situações

que possam agredir qualquer indivíduo, fiscalização que

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caberá à União Federal, através da Secretaria de Serviços

de Comunicação Eletrônica do Ministério das

Comunicações, bem como a todos os Autores, sob pena

de suspensão, até o final da demanda e cominação de

multa a ser fixada no momento do descumprimento.”

Ocorre que, em total desrespeito à justiça

brasileira, a emissora recusou-se a permitir o ingresso dos oficiais

de justiça em suas dependências, não cumpriu a decisão no que se

referia a exibição do noticiário nacional no horário reservado ao

programa “Tardes Quentes”, não entregou o numerário necessário

à produção dos dez programas de direitos humanos e recusou-se a

exibir o programa produzido pelos Autores em estrito cumprimento

à decisão proferida por aquele juízo.

Em decorrência disso, o Ministério Público

Federal requereu a imediata interrupção da freqüência concedida à

emissora TV Ômega, pelo prazo de 48 horas, ou até que os

administradores da empresa se comprometessem, por escrito, a

exibir os programas indicados pelos Autores e a efetuar o

pagamento do numerário necessário à produção dos dez

programas determinados.

Com seu sinal de transmissão interrompido,

imediatamente a emissora procurou este Parquet Federal, a fim de

celebrar um acordo judicial visando pôr fim à Ação Civil Pública n.º

2005.61.00.24137-3, nos termos do art. 269, inciso III, do Código

de Processo Civil.

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Mencionado acordo judicial fundava-se,

literalmente, nos seguintes termos:

“Cláusula Primeira. A Ré se obriga a :

a) exibir em rede nacional (NET) 30 programas com

conteúdo de direitos humanos apresentados pelos

em formato Betacam, de Segunda a Sexta-feira,

no horário das 17às 18 horas, no período de 05

de dezembro de 2005 a 13 de janeiro de 2006;

b) se abster de exibir, durante a exibição dos

programas indicados na alínea anterior, qualquer

intervalo comercial ou campanha publicitária;

c) depositar, em conta corrente a ser indicada pelo

Autores, a título de verba de produção dos

programas referidos na alínea anterior, a

importância de R$ 200.000,00 (duzentos mil

reais), em dezesseis parcelas iguais de R$

12.500,00 (doze mil e quinhentos reais), com

vencimento nos dias 30 e 10 de cada mês, a

partir de 30 de novembro de 2005;

d) depositar, na conta-corrente do Fundo de Defesa

de Direitos Difusos, instituído pela Lei Federal n.º

7.347/85, a importância R$ 400.000,00

(quatrocentos mil reais), em vinte parcelas de R$

20.000,00 (vinte mil reais), monetariamente

corrigidas pelo índice IPCA-IBGE, com

vencimento nos dias 10.07.06, 10.08.06,

10.09.06, 10.10.06, 10.03.07, 10.04.07,

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10.05.07, 10.06.07, 10.07.07, 10.08.07,

10.09.07, 10.10.07, 10.03.08, 10.04.08,

10.05.08, 10.06.08, 10.07.08, 10.08.08,

10.09.08 e 10.10.08;

e) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, ofensas a homossexuais,

afrodescendentes, mulheres, idosos, pessoas com

deficiência, indígenas, crianças e adolescentes;]

f) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, ofensas ou humilhações a

pessoas comuns do povo;

g) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, xingamentos ou palavras de

baixo calão;

h) se abster de exibir, no quadro “Teste de

Fidelidade” ou outro similar, mulheres sendo

“testadas” por atores do programa;

i) se abster de exibir, no quadro “Teste de

Fidelidade” ou outro similar, xingamentos e

ofensas morais ou físicas a mulheres,

homossexuais, afrodescendentes, idosos, pessoas

com deficiência, indígenas, crianças e

adolescentes;

j) CUMPRIR FILEMENTE A CLASSIFICAÇÃO

INDICATIVA REALIZADA PELO

DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA,

CLASSIFICAÇÃO, TÍTULOS E QUALIFICAÇÃO

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– DJCTQ, ÓRGÃO INTEGRANTE DA

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA;

l) desistir, no prazo de 24 horas da homologação

judicial do presente acordo, do agravo de

instrumento n.º 2005.03.00.089359-2, interposto

perante o E. Tribunal Regional Federal da 3ª

Região, e distribuído ao Desembargador Carlos

Muta, e de qualquer outro recurso que impugne o

objeto da presente ação;

Parágrafo único. O atraso não superior a dois dias

úteis no depósito dos valores referidos nas alíneas

“b” e “c’ da presente cláusula não importarão na

incidência da multa prevista na cláusula terceira,

desde que a mora não se repita por mais de dois

meses consecutivos.

Cláusula Segunda. Os Autores, por seu turno, se

obrigam a:

a) entregar, na sede da emissora, no departamento

de cinema, os programas de direitos humanos

produzidos nas condições indicadas na alínea “a”

da cláusula primeira;

b) se abster de fazer, nos programas de direitos

humanos acima referidos, referências ou

comentários negativos à emissora;

c) utilizar os recursos referidos na alínea “b” da

cláusula primeira, exclusivamente na produção,

criação e edição dos programas de direitos

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humanos acima referidos, sendo facultado à Ré

exigir, a qualquer momento, a prestação de

contas dos valores gastos;

d) requerer, após a homologação judicial do

presente acordo, a imediata e urgente revogação

da decisão que ordenou a interrupção do sinal da

emissora.

Parágrafo único: Na eventualidade da fita entregue à

emissora apresentar algum defeito de ordem técnica

que comprometa a qualidade do material a ser

exibido, a emissora deverá repetir o programa

divulgado no dia útil imediatamente anterior.

Cláusula Terceira. Na hipótese de

descumprimento de quaisquer obrigações

contidas no presente termo, haverá a

incidência de multa cominatória no valor de R$

50.000,00, por dia de descumprimento, sem

prejuízo da execução judicial da obrigação

inadimplida;

Cláusula Quarta. O presente termo produzirá seus

regulares efeitos a partir da homologação pelo juízo,

e constitui, para todos os fins, título executivo

judicial, nos termo do art. 584, inciso III, do Código

de Processo Civil.

Parágrafo único: a celebração do presente acordo

não importa em reconhecimento do pedido pela Ré

da ação.

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Cláusula Quinta. Os Autores desistem

expressamente da ação em relação aos réus João

Ferreira Filho e União, não se aplicando o § 4º do

art. 267 do Código de Processo Civil, porque ainda

não decorrido o prazo para a resposta, não

importando, a desistência, de forma alguma, em

renúncia ao direito em relação aos dois réus acima

indicados.

Uma vez homologado judicialmente, o acordo

extinguiu a Ação Civil Pública n.º 2005.61.00.24137-3, com

julgamento de mérito, nos termos do art. 269, inciso III, do Código

de Processo Civil.

II – DAS PRELIMINARES

II.I – DA COISA JULGADA

Ao lado do ato jurídico perfeito e do direito

adquirido, a coisa julgada material constitui uma importantíssima

garantia dos indivíduos, prevista no art. 5º, XXXVI, da nossa

Constituição da República.

Conforme dispõe o art. 467 do Código de

Processo Civil, denomina-se coisa julgada material a eficácia que

torna imutável e indiscutível a sentença. Opera-se esse fenômeno

processual no momento em não mais couber recurso contra o ato

decisório final do processo, instituindo-se entre as partes, e em

relação ao litígio que foi julgado, uma situação, ou estado, de

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absoluta firmeza quanto aos direitos e obrigações que os

envolvam.1

Quando as partes transigem durante a

tramitação do processo, este é extinto com resolução de mérito,

nos termos do art. 269, III, do CPC, surgindo, como conseqüência,

a coisa julgada. Como bem salientam Nelson Nery Junior e Rosa

Maria Andrade Nery2, somente as sentenças de mérito proferidas

com fundamento no art. 269 do CPC são acobertadas pela

autoridade de coisa julgada, sendo terminantemente vedada a

rediscussão da lide, nada mais havendo para as partes debaterem

em juízo.

Explicam ainda citados autores que “quando as

partes celebram transação, dá-se a extinção do processo com

julgamento de mérito, fazendo coisa julgada, ainda que a

sentença apenas homologue a transação.” 3

Maria Helena Diniz também corrobora com tal

entendimento: “A transação judicial homologada produz

efeito de coisa julgada, extinguindo a controvérsia e

extinguindo direitos. Tem razão Huc, ao reduzir o valor da

transação ao efeito da coisa julgada com exceção. Trata-se

da “exceptio litis per transationem finitae”, equivalente à

“exceptio res judicatae”. Assim como a autoridade de um

julgamento consiste na incontestabilidade da matéria, por

1 Cândido Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. 3, n.º 955, p. 301.2 Código de Processo Civil Comentado. 4ª Edição revista e ampliada. Editora Revista dos Tribunais - p. 915/916.3 Código de Processo Civil Comentado. 4ª Edição revista e ampliada. Editora Revista dos Tribunais - p. 741.

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ele definida, não mais podendo ser contestada em juízo

pelas mesmas partes, a transação também, ensina-nos

Serpa Lopes, põe fim ao litígio, impedindo que ele renasça

por meio de um exceção idêntica à da res judicatae”4 Mais

adiante, continua: “Como é meio indireto de extinção da obrigação,

produz os seguintes efeitos extintivos: (...) b) equiparação à

coisa julgada, pois, a transação judicial homologada produz

entre as partes o efeito de coisa julgada (RT, 404:143,

486:63, 411:160, 453:112). Trata-se da exceptio litis per

transactionem finitae, que equivale à exceptio rei

judicatae”.5

Nesse mesmo sentido, podemos citar a seguinte

jurisprudência:

“Ementa. Direito Civil e Econômico. Recurso

Especial. Aplicação em fundos de investimento.

Prejuízos. Risco. Transação. Interpretação. Coisa

julgada. Negativa de prestação jurisdicional.

Inocorrência. Inexiste omissão, contradição ou

obscuridade a serem supridas em acórdão que

aprecia e decide todas as questões postas a desate,

de modo fundamentado.

(...)

4 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – 2º Volume – Teoria Geral das Obrigações – 16. Ed. – p. 315.5 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – 2º Volume – Teoria Geral das Obrigações – 16. Ed. – p. 318.

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A transação pressupõe concessões mútuas dos

interessados e produz entre as partes o efeito

de coisa julgada. Recursos especiais providos.”6

Sendo assim, é inquestionável que a sentença

que homologou os termos daquele acordo está protegida pela coisa

julgada, não mais podendo ser rediscutida na presente lide.

Conforme previa o próprio acordo, com a

homologação judicial, extinguir-se-ia o processo, com julgamento

de mérito, nos termos do art. 269, inciso III, do CPC (fls. 92/93).

Uma vez homologado (fls. 92), se a Rede TV! quisesse impugná-lo,

poderia fazê-lo por meio do recurso de Apelação: “Da sentença

que homologa transação cabe apelação7; da decisão que

denega, é cabível o agravo, porque o processo não se

extingue.” 8

Mas a emissora preferiu ficar silente, e nada

impugnar, porque, em primeiro lugar, quando de sua assinatura,

concordou inteiramente com seus termos9; em segundo lugar,

6 STJ - Resp 556488 - Processo: 200300991470 UF: RJ Órgão Julgador: 3ª Turma. Data Da Decisão: 16/09/2004 Documento: STJ000582753 - Fonte DJ DATA: 06/12/2004 – P.289 Relatora: NANCY ANDRIGHI.7 STJ – 2ª Turma, Resp 13.478-0-SP, rel. Ministro José de Jesus Filho, j. 3.6.92, deram provimento, v.u. DJU 3.8.92, p. 11.277).8 Theotônio Negrão, Código de Processo Civil e legislação em vigor, Ed. Saraiva, 34ª edição, p.347.9 Como impugnar, Excelência, a homologação de um Termo de Acordo Judicial que a própria ré, juntamente como o Ministério Público Federal, requereu? Seria um absurdo lógico jurídico que não mereceria guarida processual. Houve concessões mútuas, um negócio jurídico celebrado entre as partes, e não mera imposição de obrigações à emissora! Ademais, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, “ se o negócio jurídico da transação já se encontra concluído entre as partes, impossível é a qualquer delas o arrependimento unilateral” (STJ – 2ª Turma – Santa Catarina - Resp. 867511 – Processo 200601516866 – 2ª Turma – SC. Data da decisão – 26/09/2006. DJ Data:10/10/2006 - p. 306 – Relator – Humberto Martins.

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percebeu que seria muito mais vantajoso assiná-lo a arcar com as

determinações judiciais que lhe foram impostas naquela ação,

dentre elas, a lacração de seus transmissores por meio da ANATEL.

Mas ainda que estivesse inconformada com a

sentença homologatória daquele acordo bilateral, em especial com

a cláusula primeira, alínea “j”, deveria tê-la impugnado por meio

do recurso cabível. Contudo, como não o fez, houve o trânsito em

julgado daquela decisão, gerando, por conseqüência, a coisa

julgada material. E agora, em total inobservância aos ditames

legais e constitucionais, vem à juízo deduzindo pretensão que já foi

acobertada pela auctoritas rei judicatae.

O entendimento jurisprudencial a seguir

corrobora com nosso entender:

“ACÓRDÃO QUE NEGOU AS CONSEQÜÊNCIAS

JURÍDICAS DA TRANSAÇÃO, POSSIBILITANDO

A REVISÃO DAQUILO QUE FORA POR ELA

ABRANGIDO E QUE JÁ PRODUZIRA PARA AS

PARTES O EFEITO DA COISA JULGADA. OFENSA

AO ART. 1030 DO CC PERFEITAMENTE

CARACTERIZADA” 10

E, consoante determina o art. 301, VI, do

Código Processual Civil, antes de discutir o mérito, cabe ao réu

deduzir a coisa julgada, que, se acolhida, acarretará a extinção do

processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, V, do

mesmo diploma legal.10 RSTJ 97/198 – Salienta-se aqui que mencionado artigo refere-se ao Código Civil de 1916, ora substituído pelo novel Código Civil de 2002.

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Com relação ao assunto, manifestam-se Nelson

Nery e Rosa Maria Andrade Nery:

“Coisa Julgada. Proferida sentença, que tenha

efetivamente julgado o mérito, de que já não caiba

mais recurso, ocorre a coisa julgada material

(auctoritas rei judicatae). Destarte, não pode a lide

já julgada ser novamente submetida ao exame do

Poder Judiciário. Cabe ao réu alegar a preliminar de

coisa julgada que, se acolhida, acarretará a extinção

do processo sem julgamento de mérito (CPC 267

V)”11

Ante o exposto, o Ministério Público Federal

requer a extinção do processo sem julgamento de mérito, nos

termos do art. 267, inciso V, do Código de Processo Civil.

II.II – DA FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL

Consoante determina o art. 267, inciso VI, do

Código de Processo Civil, extingue-se o processo sem julgamento

de mérito quando concorrer qualquer das condições da ação, como

a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse

processual.

Nos dizeres de Antônio Carlos de Araújo Cintra,

Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, o interesse de

agir configura-se quando a prestação jurisdicional solicitada seja

necessária e adequada. A necessidade repousa na

11 Código de Processo Civil Comentado. 4ª Edição revista e ampliada. Editora Revista dos Tribunais - p. 794.

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impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a

intercessão do Estado. Adequação é a relação existente entre a

situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento

jurisdicional concretamente solicitado.12

Segundo Nelson Nery, “existe interesse

processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para

alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela possa lhe

trazer alguma utilidade do ponto de vista prático. Movendo a

ação errada ou utilizando-se do procedimento incorreto, o

provimento jurisdicional não lhe será útil, razão pela qual a

inadequação procedimental acarreta a inexistência de

interesse processual.” 13

Pois bem. A jurisprudência, em tom uníssono,

entende que a sentença que homologa a transação somente pode

ser desconstituída pela via recursal ou por ação anulatória. Sendo

assim, é patente que a peticionária utilizou-se do meio processual

inadequado. Vejamos:

● Ementa. Ação objetivando a anulação de transação

homologada judicialmente. Aplicação do art. 486 do

código de processo civil. Não vinga a alegação de

afronta aos arts. 269, inc. III e 485, inc. VIII, do

invocado diploma. A sentença simplesmente

homologatória de transação, apenas formaliza o ato

resultante da vontade das partes. Na espécie, a ação

12 Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, Ed. Malheiros, 17ª Edoção, p. 259.13 Código de Processo Civil Comentado. 4ª Edição revista e ampliada. Editora Revista dos Tribunais - p. 730. Grifos nossos.

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não é contra a sentença, que se restringe a

homologação, em que não há um conteúdo decisório

próprio do juiz.

Insurge-se a autora contra o que foi objeto da

manifestação de vontade das partes, a própria

transação, alegando vício de coação.

Quando a sentença não aprecia o mérito do negócio

jurídico de direito material, é simplesmente

homologatória, não ensejando a ação rescisória. A

AÇÃO PARA DESCONSTITUIR-SE A TRANSAÇÃO

HOMOLOGADA É A COMUM, DE NULIDADE OU

ANULATÓRIA ( art. 486 do código proc. civil) .14

● ACORDO HOMOLOGADO NOS AUTOS DO

PROCESSO SOMENTE PODERÁ SER

DESCONSTITUÍDO PELA VIA RECURSAL OU POR

AÇAO ANULATÓRIA, E NÃO PELA VIA

MANDAMENTAL” 15

● DA SENTENÇA QUE HOMOLOGA A TRANSAÇÃO

CABE APELAÇÃO. 16

● A ANULAÇÃO DA TRANSAÇÃO PODE SER

POSTULADA NO MESMO PROCESSO E

MEDIANTE APELAÇÃO CONTRA A SENTENÇA

HOMOLOGATÓRIA.17

14 STF - Recurso Extraordinário - Processo: 101303 UF: SP – São Paulo - Fonte DJ 28-02-1986 – pp. -02350 – relator: Djaci Falcão.15 STL – 4ª Turma – RMS 303-RJ – Relator Ministro Athos Carneiro, j. 5.3.91, DJU 8.4.91, p. 3.889. 16 STJ – 2ª Turma – Resp. 13.478-0-SP. Rel. Min. José de Jesus Filho. J. 3.6.92. DJU 3.8.92, p. 11.277.17 RTJ 81/987, RSTJ 139/286, RT 508/283.

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Como foi dito alhures, o interesse de agir

consubstancia-se quando o provimento utilizado pelo autor é apto

a corrigir o mal de que se queixa. Se doutrina e jurisprudência

entendem que o meio processual apto a impugnar transação

homologada judicialmente é a apelação ou a ação anulatória, como

dizer Excelência, que a peticionária tem interesse de agir ao propor

uma “ação declaratória de inexistência de relação jurídica

obrigacional”?

Fica claro que a autora incorre em erro

grosseiro ao pleitear um provimento jurisdicional no sentido de

declarar a inexistência de vínculo obrigacional decorrente de um

acordo judicial celebrado entre ela e o Ministério Público Federal no

bojo de uma Ação Civil Pública.

Poderia a Rede TV! transacionar judicialmente e,

arrependendo-se depois das obrigações assumidas, pleitear a

declaração de inexistência das mesmas?

Mutatis mutandis, seria o mesmo que dizer que

a sentença que homologa um acordo poderia a qualquer tempo ser

desconstituída por meio de uma ação declaratória, o que

desrespeitaria, perfunctoriamente, a autoridade da coisa julgada,

dentre outros institutos protetivos do processo civil.

Fica clara a intenção da autora: ao perceber que

a obrigação assumida na cláusula primeira, alínea ”j”, impôs-lhe o

dever de respeitar fielmente a classificação etária de toda sua

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programação, inclusive do programa Pânico, pretendeu

desconstituir seus efeitos por meio de uma ação declaratória.

Mas como explicam Rosa Maria Andrade Nery e

Nelson Nery Junior, “a sentença homologatória de transação

pode ser impugnada por recurso de apelação ou por ação

rescisória (CPC 485), quando o vício for da própria

sentença. Quando se pretende atacar a transação, negócio

jurídico celebrado entre as partes, a ação não é a rescisória,

mas a anulatória do CPC 486”.

Assim, a autora utiliza-se do Poder Judiciário de

forma absolutamente inadequada, haja vista que caso quisesse

insurgir-se contra a transação, deveria ter se utilizado do recurso

de apelação ou da ação anulatória.18 Contudo, sem meios judiciais

que amparassem sua pretensão, ingressou, sem qualquer

embasamento legal, com a presente ação declaratória, o que lhe

acarreta absoluta falta de interesse de agir.

Ante o exposto, o Ministério Público Federal

requer a extinção do processo sem julgamento de mérito, com

fundamento no art. 267, inciso VI, do Código de Processo Civil, por

estar ausente o interesse de agir da autora.

III – DO MÉRITO

18 Salienta-se que a ação anulatória só se justificaria caso houvesse algum vício de consentimento quando da celebração do acordo, o que é incogitável no caso em testilha (“Embora inadmissível a desistência unilateral da transação, é possível atacá-la mediante comprovação de vício de vontade” – RT 614/126, p. 127, “in fine”).

17 1

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Em que pese as preliminares anteriormente

argüidas, caso Vossa Excelência não as acolha, passo a examinar o

mérito.

Primeiramente, alega a REDE TV! que o acordo

visou a solução de uma ação civil pública que, como causa de

pedir, enfocava especificamente dois programas: “Tardes Quentes”

e “Eu vi na TV”. Assim, todas as obrigações assumidas

relacionavam-se somente àqueles dois programas.

Contudo, ao contrário do que assevera, fica claro

que nem todas a obrigações estipuladas no Acordo Judicial são

relacionadas especifica e diretamente com a causa de pedir e com

o pedido constante da Ação Civil Pública, ou seja, com os dois

programas.

Isso porque, quando se quis fazer referência

específica ao programas “Tardes Quentes” e “Eu vi na TV” (e seus

quadros “Pegadinhas” e “Teste de Fidelidade”), houve expressa

disposição, como se percebe da simples leitura das alíneas “e”, “f”,

“g”, “h” e “i”, da cláusula primeira, do Termo de Acordo Judicial ora

impugnado.

Assim, se as partes não restringiram

expressamente a aplicação do disposto na alínea “j”, da cláusula

primeira, a determinados programas, é porque quiseram estendê-

lo à toda a programação. Se assim não fosse, a redação seria a

seguinte:

18 1

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“cumprir fielmente a classificação indicativa realizada

pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos

e Qualificação – DJCTQ, órgão integrante da

Secretaria Nacional de Justiça, com relação aos

Programas “Tardes Quentes” e “Eu vi na TV”

Mas não! O Ministério Público Federal preferiu

inserir uma alínea que abrangesse toda a programação da Ré,

buscando resguardar, com isso, o mesmo direito metaindividual

que o levou a ingressar com aquela demanda.

Ademais, é entendimento jurisprudencial e

doutrinário pacificado que a transação homologada judicialmente

não se limita à causa de pedir e ao pedido da ação principal, sendo

que as partes podem acordar livremente, por meio de concessões

recíprocas, que não se restringem à demanda inicial.

Vejamos:

● “A TRANSAÇÃO NÃO ESTÁ ADSTRITA AOS

LIMITES DA AÇÃO” 19

● “Por isso, concluída e homologada a

transação, nenhum dos transatores pode

alegar que concedeu mais do que devia, ou

menos do que lhe tocava. É uma solução

contratual da lide com efeito de semplice

accertamenti, como diz Carnelutti, ou seja, uma

mera eficácia declarativa. O acordo firmado em

juízo pelos litigantes, homologado

19 Lex-JTA 151/490.

19 1

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judicialmente, é, concomtantemente,

contratual e processual. A transação judicial

tem conteúdo de direito material, por

estabelecer NOVA SITUAÇÃO JURÍDICA entre

os tansatores e só é processual o seu efeito de

pôr termo ao processo. Com o trânsito em

julgado da decisão homologatória, acaba a

litispendência e quaisquer efeitos do que foi

objeto da transação. A sentença homologatória

nada resolve, o negócio da transação é que lhe

faz o fundo. A homologação apenas dá à

transação o efeito extintivo da relação jurídico-

processual. Tanto isso é verdade que, se

houver rescisão da sentença homologatória, o

processo continua, mas a transação não é

considerada inválida, pois o direito material a

considera perfeita e válida. A homologação

apenas irradia a eficácia processual.”20

Cumpre, a essa altura, definir o termo

transação, que Segundo Serpa Lopes, “é um negócio jurídico

bilateral pelo qual as partes interessadas, fazendo-se concessões

mútuas, previnem ou extinguem obrigações litigiosas ou

duvidosas.”21 Trata-se de um instituto sui generis, por consistir

numa modalidade especial de negócio jurídico bilateral, que se

aproxima do contrato22, na sua constituição, e do pagamento, nos

seus efeitos, por ser causa extintiva de obrigações, possuindo

20 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – 2º Volume – Teoria Geral das Obrigações – 16. Ed. – p. 315.21 Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. 4. Ed. Freitas Bastos, 1966. V.2. p. 291.22 RT, 277:266; RF, 117:407

20 2

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dupla natureza jurídica: a de negócio jurídico bilateral e a de

pagamento indireto.23

Tendo isso em vista, é inquestionável que,

sendo negócio jurídico bilateral, podem as partes transacionar

livremente, sem qualquer obrigatoriedade de vinculação à lide no

bojo da qual a transação é celebrada.

E, embora o cumprimento da classificação

indicativa não constasse expressamente como pedido ou causa de

pedir da Ação Civil Pública n.º 2005.61.00.24137-3, a inserção de

cláusula que obriga a autora a cumpri-la fielmente não fugiu à

natureza do interesse objetivado naquela.

Como bem explica Rodolfo de Camargo

Mancuso24, no que concerne às ofensas aos interesses

metaindividuais, deve prevalecer o critério finalístico, que informa

o binômio instrumentalidade – efetividade dos procedimentos,

sinalizando ser preferível uma solução negociada, que se mostre

idônea e eficaz para resolver o conflito gerado pela lesão ao

interesse indigitado, do que uma obstinada busca pela solução

judicial.

Sendo assim, é pacífico que houve uma forma

de autocomposição da lide, em que a autora da presente ação

concordou com todos os termos do Acordo Judicial.

23 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – 2º Volume – Teoria Geral das Obrigações – 16. Ed. – p. 317.24 Ação Civil Pública. Em defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores. Lei 7.347/85 e legislação complementar. 7ª edição revista e atualizada. Editora Revista dos Tribunais, p. 236.

21 2

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Agora, como forma de furtar-se ao cumprimento

da classificação etária exarada pelo Ministério da Justiça com

relação aos demais programas de sua grade, inclusive o Programa

Pânico, vem à juízo pretendendo que se declare que a obrigação

constante na alínea “j”, da cláusula primeira, do Termo de Acordo

Judicial, refere-se unicamente aos programas “TARDES QUENTES”

E “EU VI NA TV!”, o que é absolutamente fora de propósito. Como

demonstrado pelo Ministério Público Federal, os argumentos

jurídicos trazidos pela autora e os meios utilizados para tanto são

demasiadamente fracos e não encontram respaldo algum em nosso

ordenamento jurídico.

Passemos ao próximo argumento aduzido pela

autora: ao expor as razões jurídicas para a procedência da

presente demanda judicial, a peticionária cita inicialmente a Lei

Complementar n.º 95/98, asseverando que “para a obtenção de

uma ordem lógica e um raciocínio coerente, cada artigo de lei ou

cláusula contratual deve restringir, apenas, um assunto ou

princípio; os parágrafos devem expressar aspectos

complementares à norma enunciada no artigo ou na cláusula,

assim como as exceções à regra por ele estabelecida; e os incisos,

alíneas e itens devem indicar enumerações e discriminações.”25

Pois bem. Insta aqui salientar, em primeiro

lugar, que mencionada Lei Complementar não se aplica aos

contratos, haja vista que logo em seu artigo primeiro preceitua o

quanto segue:

25 Fls. 11/12.

22 2

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“Art. 1º. A elaboração, a redação, a alteração e a

consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta

Lei Complementar.

Parágrafo único. As disposições desta Lei

Complementar aplicam-se, ainda, às medidas

provisórias e demais atos normativos referidos

no art. 59 da Constituição Federal, bem como,

no que couber, aos decretos e aos demais atos

de regulamentação expedidos pelo Poder

Executivo.” 26

Presume-se inicialmente que é de conhecimento

de todos os operadores do direito que contratos não são atos

normativos. Ademais, ainda que disso não se tivesse ciência, o

artigo 59 da Constituição da República é expresso.

Contudo, mesmo que tal norma se aplicasse aos

contratos, como afirma a autora, o Ministério Público Federal fez

exatamente o que aquela preceitua: “os incisos, alíneas e itens

devem indicar enumerações e discriminações”.

Como dizer, Excelência, que este Parquet

Federal não detalhou as alíneas da cláusula primeira? Vejamos:

“Cláusula Primeira. A Ré se obriga a :

e) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, ofensas a homossexuais,

afrodescendentes, mulheres, idosos, pessoas com

deficiência, indígenas, crianças e adolescentes;]

26 Grifos nossos.

23 2

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f) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, ofensas ou humilhações a

pessoas comuns do povo;

g) se abster de exibir, no quadro “Pegadinhas”

ou outro similar, xingamentos ou palavras de

baixo calão;

h) se abster de exibir, no quadro “Teste de

Fidelidade” ou outro similar, mulheres sendo

“testadas” por atores do programa;

i) se abster de exibir, no quadro “Teste de

Fidelidade” ou outro similar, xingamentos e

ofensas morais ou físicas a mulheres,

homossexuais, afrodescendentes, idosos, pessoas

com deficiência, indígenas, crianças e

adolescentes;

j) CUMPRIR FILEMENTE A CLASSIFICAÇÃO

INDICATIVA REALIZADA PELO

DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA,

CLASSIFICAÇÃO, TÍTULOS E QUALIFICAÇÃO

– DJCTQ, ÓRGÃO INTEGRANTE DA

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA;

Cláusula Terceira. Na hipótese de

descumprimento de quaisquer obrigações

contidas no presente termo, haverá a

incidência de multa cominatória no valor de R$

50.000,00, por dia de descumprimento, sem

24 2

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prejuízo da execução judicial da obrigação

inadimplida;

Sendo assim, parece claro a este órgão

ministerial que não restam dúvidas no que tange à interpretação

da alínea “j”, da cláusula primeira, do Termo de Acordo Judicial,

haja vista que quando quis especificar e detalhar a quais

programas se referiam as cláusulas, o fez expressamente.

Passemos à próxima tese aventada pela

peticionária. Aduz que caso houvesse uma cláusula no Termo de

Acordo Judicial que estabelecesse o cumprimento obrigatório da

classificação etária para toda sua programação, estar-se-ia inibindo

sua liberdade de pensamento, criação e expressão artística, in

verbis:

“(...) esse ajuste seria inadmissível e

inconstitucional, vez que configuraria notória censura

impor-se uma classificação vinculante à toda

programação da autora. A cláusula contratual estaria

estabelecendo uma situação que a própria

Constituição da República proibiu: qual seja, a

observância com caráter de obrigatoriedade da

orientação da classificação etária os programas,

fornecida pelo DLCTQ do MJ. Essa possibilidade

configuraria negação do estado democrático de

direito. As manifestações do pensamento, a criação,

a expressão artística e a informação são livres,

25 2

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especialmente em jornais, revistas, rádio e televisão

(art. 5º, IX e 220, da CF)” 27

Em primeiro lugar, insta ressaltar que a

classificação dos programas televisivos, bem como a vedação da

exibição de determinados programas em horários normalmente

assistidos por crianças e adolescentes em plena formação física,

moral e social, não configura censura, já que não é proibida a

exibição do programa, mas indicado o horário adequado para sua

veiculação.

Doutra banda, há que se ter em mente que o

cumprimento da classificação etária não representa qualquer

embaraço à liberdade de expressão da autora, visto que a

aplicação da cláusula primeira, alínea “j”, não importa em exclusão

de nenhum programa de sua grade de programação. Os programas

continuarão sendo veiculados no horário adequado.

Ademais, a tese aventada pela peticionária no

sentido de que a aplicação da cláusula configuraria ato violador do

disposto no art. 220 da Constituição da República, haja vista que

imporia ao Programa “Pânico na TV” a observância obrigatória de

classificação etária que a lei determina seja meramente indicativa,

é deverasmente débil.

Como podemos extrair do artigo 21, inciso XVI,

da CR, o constituinte atribuiu à União a competência para exercer a

classificação indicativa da programação de rádio e televisão.

27 Fls. 13.

26 2

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O Ministério da Justiça, órgão da Administração

Pública Direta, por meio do Decreto 4.720/2003, recebeu a

delegação de exercer a classificação sobre a qual dispõe o artigo

constitucional, fazendo-o por meio do Departamento de Justiça,

Classificação, Títulos e Qualificação, que, para dar cumprimento a

esta tarefa, emite Portarias.

Tendo isso em vista, quando da entrada em

vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, aquele órgão editou

a Portaria n.º 796/00, na qual traçou os critérios para classificar

por horário e idade a programação de rádio e televisão:

“Art. 2º. Os programas para emissão de televisão,

inclusive “traillers”, têm a seguinte classificação,

sendo-lhes terminantemente vedada a exibição

em horário diverso do permitido 28:

I – veiculação em qualquer horário: livre;

II – programa não recomendado para menores de

doze anos: inadequado para antes das vinte horas;

III – programa não recomendado para menores de

quatorze anos: inadequado para antes das vintes e

duas horas;

V – programa não recomendado para menores de

dezoito anos: inadequado para antes das vintes e

três horas.

28 Grifos nossos.

27 2

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Parágrafo único. Os programas de indução de sexo,

tais como “tele-sexo” e outros afins, somente

poderão ser veiculados entre zero hora e cinco

horas.”

Diante disso, é de fácil e notória conclusão que

ao se desrespeitar a classificação exarada pelo Ministério da

Justiça, infringe-se, de fato, dispositivos insertos na Carta Magna, o

que implica em agressão ao telespectador, em especial as crianças

e adolescentes.

Todavia, como se pode perceber, a autora da

presente demanda almeja uma tutela jurisdicional que a justifique

futuramente caso descumpra a classificação etária. Na realidade,

seu único intento, ao desviar-se da multa, é justamente não

observar a classificação exarada pelo Ministério da Justiça e

está se valendo do Poder Judiciário para fundamentar seu

desrespeito à própria Constituição da República. De uma simples

leitura da própria petição inicial, nota-se que a REDETV! pretende

desobedecer a classificação etária feita pelo MJ, sustentando que a

classificação é meramente indicativa, pretensão essa que não

merece prosperar.

Salienta-se aqui que o Estatuto da Criança e do

Adolescente, em seu artigo 254, penaliza a conduta adotada pela

concessionária que não respeitar a classificação indicativa imposta

pelo Ministério da Justiça:

28 2

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Art.254. Transmitir, através de rádio ou

televisão, espetáculo em horário diverso do

autorizado ou sem aviso de sua classificação:

Pena – multa de vinte a cem salários de

referência; duplicada em caso de reincidência a

autoridade judiciária poderá determinar a

suspensão da programação da emissora por até

dois dias.

Ao comentar mencionado artigo, José Luiz

Mônaco da Silva assim disserta:

“Segue-se, pois, que a ilicitude da conduta repousa

na transmissão, através do rádio ou televisão, de

espetáculo: a) em horário diverso do autorizado

no certificado de classificação; b) sem aviso de

sua classificação. Na primeira hipótese, a emissora

transmite espetáculo em desacordo com o certificado

de classificação emitido; tal programação, veiculada

naquele horário, é completamente inadequada ao

público infantil ou juvenil. Já na segunda hipótese, o

espetáculo, ainda que adequado a esse público,

ressente-se de prévio anúncio atinente à sua

classificação.”29

Destarte, Excelência, como dizer que a

classificação etária é meramente indicativa se o seu

descumprimento é causa de imposição de multa? Trata-se de

29 José Luiz Mônaco da Silva, Estatuto da Criança e do Adolescente – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 427.

29 2

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conduta ilícita que merece ser expurgada de nosso cotidiano, o que

não caracteriza, de forma alguma, qualquer tipo de censura.

Nesse sentido, têm decidido nossos Tribunais:

“RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS

ARTS. 535, II; 458, II E 131, TODOS DO CPC. NÃO-

OCORRÊNCIA DE CONEXÃO. TRANSMISSÃO DE

FILME EM HORÁRIO IMPRÓPRIO, SEGUNDO

PORTARIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA.

LEGITIMIDADE ATIVA DA RETRANSMISSORA.

REVISÃO DO VALOR DA MULTA. INCIDÊNCIA DA

SÚMULA 07/STJ.

(...)

Dessa forma, como bem registrou o Ministério

Público Federal, "não há nenhuma impropriedade em

responsabilizar a recorrente pela transmissão de

filme, ainda que a geração das imagens tenham

emanado da TVSBT, Canal 4, de São Paulo" (fl. 196).

Mais a mais, o artigo 254 do Estatuto da

Criança e do Adolescente prevê como infração

administrativa o ato de "transmitir, através de

rádio ou televisão, espetáculo em horário

diverso do autorizado ou sem aviso de sua

classificação". Dessarte, a recorrente, que

transmitiu, "fora do horário recomendado para o

público infanto-juvenil, o filme 'Os Últimos Durões',

sem qualquer finalidade educativa, artística, cultural

ou informativa" (fls. 74), é parte legítima para

30 3

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figurar no pólo passivo da presente ação,

independentemente da geração das imagens ter sido

efetuada por outra empresa.

Saliente-se, outrossim, que in casu não tem

aplicação o artigo 149 do ECA, que cuida de Portaria

do Juízo da Infância e da Juventude, pois a Portaria

mencionada nos autos é do Ministério da Justiça,

órgão competente para regulamentar as diversões e

espetáculos públicos.

Por fim, no que toca à pena prevista para a

mencionada infração, dispõe o artigo 254 do ECA

que será de "multa de vinte a cem salários de

referência". Verifica-se, pois, que a instância

ordinária fixou a multa nos termos da legislação

aplicável à espécie, uma vez que condenou a

recorrente ao pagamento de noventa salários

mínimos. Reduzir o valor da pena demandaria o

reexame de matéria fático-probatória, o que é

inviável nesta instância extraordinária, a teor do que

dispõe a Súmula 07 desta Corte. Recurso especial

improvido.” 30

E como bem explicam Anderson de Oliveira

Alarcon e Humberto Quirino, “não seria nem razoável nem

inteligente pregar a censura ou qualquer medida que tenha

essa conotação. As famílias e a sociedade têm, no entanto, o

30 STJ - Superior Tribunal De Justiça - Resp - Recurso Especial – 649292 - Processo: 200400413659 - RJ - Órgão Julgador: Segunda Turma - Data Da Decisão: 21/06/2005 Documento: Stj000630887 Fonte DJ Data:22/08/2005 Página:215 Relator Franciulli Netto.

31 3

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direito de exigir sistemas de controle que evitem distorções de

conteúdo e inadequações nos horários de transmissão.” 31

Abrindo um parênteses, impende, a essa altura,

transcrever valiosos trechos do artigo "Ação Civil Pública e

Programação da TV", do brilhante Professor JOSÉ CARLOS

BARBOSA MOREIRA, o qual serve de fundamento à presente

demanda, no que diz respeito à impossibilidade de se argumentar

que eventual aplicação da cláusula ora impugnada caracterizaria

censura aos meios de comunicação:

"Se é certo, como se mostrou acima, que encontra

lugar entre os interesses difusos o dirigido à

observância, pelas emissoras de televisão, dos

preceitos constantes do art. 221 da Lei Maior, segue-

se, em lógica elementar, que a ação civil pública,

disciplinada na Lei 7.347, é instrumento adequado à

vindicação de semelhante interesse em juízo. Ela

constitui, sem discussão possível, um dos "meios

legais” que, de acordo com o art. 220, § 3o, n. III,

devem garantir "à pessoa e à família que contrariem

o disposto no art. 221"; isto é: que não dêem a

indispensável preeminência a "finalidades

educativas, artísticas, culturais e informativas", ou

que não respeitem os "valores éticos e sociais da

pessoa e da família" – para só nos referirmos aos

princípios (que aqui mais nos instruem) dos incs. I e

IV.

31 Anderson de Oliveira Alarcon; Humberto Quirino. Programação Televisiva para Crianças e Adolescentes: limites e possibilidades de controle – Maringá, PR : [s.n.], 2003, p. 74.

32 3

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(...)

A Lei 7.347, em seu art. 3o, aduz que: "A ação civil

poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o

cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer".

Significa isso que, procedente o pedido, tem o órgão

judicial a possibilidade de proibir a exibição do

programa incompatível com a Constituição, e bem

assim, em termos gerais, a de impor à emissora que

adapte sua programação às diretrizes do art. 221.

Atente-se, ao propósito, no art. 11 da Lei 7.347: "Na

ação que tenha por objeto o cumprimento da

prestação da atividade devida ou a cessação da

atividade nociva, sob pena de execução específica,

ou de cominação de multa diária, se esta for

suficiente ou compatível, independentemente de

requerimento do autor" (cf. o art. 213 e seu § 2 o do

Estatuto da Criança e do Adolescente).

(...)

Ademais, por força da remissão do art. 21 do Titulo

III do Código de Defesa do Consumidor, incidem as

disposições do respectivo art. 84, de resto

incorporadas recentemente ao Código de Processo

Civil: pode o juiz, por exemplo, aplicar multa à

emissora, ou determinar medidas como busca e

apreensão ou impedimento da atividade nociva,

inclusive mediante requisição de força policial (Lei

8.078, art. 84, §§ 4o e 5o).

(...)

33 3

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No assunto de que se trata, porém, a questão está

resolvida a priori pela Constituição mesma, que, bem

ou mal, optou, e cuja opção é vinculativa para a

comunidade nacional. À vista do art. 221, há um tipo

de interesse difuso julgado merecedor de tutela

jurídica, à qual não pode aspirar, de seu lado, o

interesse que se lhe contrapõe. Quem quiser dar

pasto ao sadismo, ao voyeurismo ou à pura e

simples "grossura" dispõe naturalmente da

possibilidade de recorrer, dentro de certos limites, a

outros meios, que não é este o lugar próprio para

relacionar; não tem como exigir, todavia, que o

satisfaçam por intermédio da telinha. Seria absurdo

que o ordenamento jurídico viesse a proteger,

de alguma forma, pretensão avessa aos seus

próprios ditames.

(...)

A outra objeção previsível usará como ponto de

apoio a disposição constitucional que veda

"toda e qualquer censura de natureza política,

ideológica e artística" (art. 220, § 2o). Daí

certamente quererá alguém tirar que não é

lícito à autoridade alguma interferir na

programação da TV, seja para proibir tal ou

qual exibição, seja – de maneira mais geral –

para forçá-la a obedecer a tais ou quais

parâmetros, como os fixados no art. 221.

Demonstra-se com facilidade a incorreção

desse entendimento.

34 3

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Conforme oportunamente ressaltado (supra n. 2), o

§ 2o do art. 220 integra amplo conjunto de

disposições atinentes, de modo direto ou indireto, à

atividade dos meios de comunicação social. Para

bem avaliar-lhe o significado e o alcance, é mister

levar em conta todos os outros textos correlatos. Há

séculos se sabe que "incivile est, nisi tota lege

perspecta uma particula eius posita, iudicare vel

respondere". Não é por acaso que o art. 220, caput,

contém a expressa ressalva "observado o disposto

nesta Constituição". Já se indicaram acima ilações

óbvias dessa cláusula final. A liberdade de criação

artística e de difusão de idéias e

conhecimentos não é absoluta;

obrigatoriamente há de respeitar outras

liberdades e direitos também consagrados na

Lei Maior. Aliás, nenhuma liberdade é, nem

pode ser, absoluta: o ordenamento jurídico

constitui, tem de constituir sempre, a

expressão de um compromisso entre

solicitações divergentes de proteção a valores

suscetíveis de contrapor-se uns aos outros. A

interpretação de qualquer lei, e com relevo

particular a da Constituição, há de atender a

essa contingência básica.

Ora, uma vez que outras liberdades e direitos devem

ser preservados, é forçoso admitir alguma sorte de

controle sobre as transmissões eventualmente

capazes de lesá-los. Se os órgãos administrativos

têm limitado seu âmbito de ação, no particular, pela

35 3

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proibição da censura, cumpre assegurar aos titulares

daquelas liberdades e direitos (e a outros

legitimados por força de norma constitucional ou

legal) a utilização de meios aptos à respectiva (e

eficaz) defesa, toda vez que alguma liberdade ou

direito protegido seja objeto de violação, atual ou

iminente, imputável a qualquer transmissão pela TV.

Semelhante possibilidade tem de conviver – e na

verdade convive -, no sistema constitucional

brasileiro, com a vedação da censura, sem que a

ninguém aproveite invocar esta vedação para

contestar aquela possibilidade. Acrescente-se que

isso se aplica indiferente aos direitos individuais e

aos direitos coletivos, a que a Carta de 1988 deu,

em boa hora, tão grande realce." 32

Imprescindível salientar também que, nesse

mesmo sentido, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação civil

Pública em face da TVSBT Canal 04 de Televisão de São Paulo S/A,

objetivando obter um provimento jurisdicional que determinasse à

ré abster-se de veicular qualquer programa constante de sua grade

de programação em desacordo com o horário estabelecido pelo

Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do

Ministério da justiça, bem como a aplicação de pena de multa

cominatória no valor de R$ 100.00,00 (cem mil reais) por cada

veiculação irregular, a ser revertida ao Fundo Nacional para a

Criança e Adolescente, tratada no art. 6º da Lei n.º 8.242/91.

32 AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Coordenador ÉDIS MILARÉ, Ed. Revista dos Tribunais p. 277.

36 3

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Mencionada ação fundamentou-se em três

representações no âmbito deste órgão ministerial, nas quais se

pôde constatar que foram exibidos mais de 120 programas

contendo inadequações ao horário, em total inobservância à

classificação etária estabelecida pelo Ministério da Justiça.

Ao julgar o feito, o Juiz Federal José Carlos

Motta pronunciou-se da seguinte maneira:

“Compulsando os autos, especialmente o

conjunto probatório trazido ao feito pelo

Ministério Público Federal, verifico que a

emissora-ré não vem respeitando a

classificação indicativa levada a efeito pelo

órgão competente do Ministério da Justiça,

tanto assim que o fato ensejou múltiplas

representações de telespectador, da Comissão

de Direitos humanos da Câmara dos Deputados

e do próprio Diretor do Departamento de

Justiça.

Cumpre registrar que a providência ora

requerida, como bem assinalado pelo Ministério

Público Federal, não agride a liberdade de

expressão da atividade artística, científica e de

comunicação, não configurando nenhuma

forma de censura. Tão somente busca

concretizar o que se acha preceituado no inciso

IV, do art. 221, da constituição Federal, cujo

teor importa trazer a contexto, in verbis:

37 3

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Artigo 221. A produção e a programação das

emissoras de rádio e televisão atenderão aos

seguintes princípios:

(...)

IV – respeito aos valores éticos e sociais da

pessoa e da família.

Desse modo, a tutela aqui pleiteada se reveste

de caráter preventivo e revela-se necessária ao

enquadramento da programação questionada

em horário apropriado, conforma estipulado

pelos órgão responsáveis do Ministério da

Justiça.

Diante do exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE

TUTELA postulada, fixando, em caso de

descumprimento, a multa cominatória de R$

100.000,00 (cem mil reais) por cada veiculação

irregular, a ser revertida ao Fundo mencionado

na Lei n.º 8.242/91, bem como, caso haja

reincidência, a suspensãoo, por até 2 (dois)

dias da programação da emissora-Ré que der

causa à infringência, nos termos do art. 254 da

Lei n.º 8069/90.”33

Inconformada com tal decisão, a TVSBT interpôs

Agravo de Instrumento, ocasião em que o Desembargador Federal

Márcio Moraes pôde externar-se da seguinte maneira:

33 Ação Civil Pública n.º 2006.61.00.015992-2 – 19ª Vara Cível Federal de São Paulo.

38 3

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“Em primeiro lugar, não procede a alegação de

inexistência de interesse de agir ante a

ausência de conduta inofensiva a direito, tendo

em vista que a própria recorrente confirma a

não obediência à determinação contida na

Portaria n.º 796/2000 do Ministério da justiça.

A qual estabelece os critérios gerais para a

classificação indicativa dos programas de

televisão, entre outros, bem como bem como

todas as demais portarias que estabeleciam a

faixa etária indicada aos programas descritos

na inicial.

Em segundo lugar, do próprio relatório se nota

que a agravante pretende continuar

desobedecendo – fato que não contesta - a

“grade” de sua programação aprovada pelo

Ministério da Justiça no que concerne aos

horários de projeção em função das faixas

etárias dos telespectadores, aprovação esta

fundada em portaria, quer porque sustenta que

tal providência, fundada em mera portaria,

seria restrita à via legal e não regulamentar

(art. 220, § 3º do artigo referido) para uma

imposição, pretensão que, a nosso sentir, não

pode prevalecer.

Deveras.

A recorrente alega a inexistência de previsão

legal que regulamente a classificação indicativa

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dos programas televisivos, afirmando que o

Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei

8096/1990 – não procedeu a tal

regulamentação.

Dispõe o ECA, no que importa ao deslinde da

questão posta, o seguinte:

Art. 71. A criança e o adolescente têm direito à

informação, cultura, lazer, esportes, diversões,

espetáculos e produtos e serviços que

respeitem sua condição peculiar de pessoa em

desenvolvimento.

Art. 72. As obrigações previstas nessa Lei não

excluem da prevenção especial outras

decorrentes dos princípios por ela adotados.

Art. 74. O poder público, através do órgão

competente, regulará as diversões e

espetáculos públicos, informando sobre a

natureza deles, as faixas etárias a que não se

recomendem, locais e horários em que sua

apresentação se mostra inadequada.

Art. 76. As emissoras de rádio e televisão

somente exibirão, no horário recomendado

para o público infanto-juvenil, programas com

finalidades educativas, artísticas, culturais e

informativas.

Parágrafo único. Nenhum espetáculo será

apresentado ou anunciado sem aviso de sua

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classificação, antes de sua transmissão,

apresentação ou exibição.

Art. 254. Transmitir, através de rádio ou

televisão, espetáculo em horário diverso do

autorizado eu sem aviso de sua classificação:

Pena – multa de vinte a cem salários de

referência; duplicada em caso de reincidência a

autoridade judiciária poderá determinar a

suspensão da programação da emissora por até

dois dias.

Da leitura sistemática dos dispositivos legais

acima, pelo menos num exame perfunctório

próprio deste momento processual, depreende-

se que, embora não tenha a lei especificado os

critérios gerais para a classificação indicativa

dos programas televisivos, delegou esta função

ao poder público, através do órgão competente,

no caso, o Ministério da Justiça, especialmente

no art. 74 acima citado.

(...)

De outro lado, é certo que o texto da lei,

especificamente o art. 74, induz ao

entendimento de que tal classificação

indicativa seria mera “recomendação” às

emissoras de rádio e televisão, com relação aos

horários inadequados para cada faixa etária.

No entanto, o dispositivo legal nã deve ser

interpretado isoladamente, mas em conjunto

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com os demais artigos e principalmente com os

princípios gerais nos quais se fundamenta a

norma.

De fato, o art. 76 prevê expressamente que as

emissoras somente poderão exibir, no horário

recomendado, para o público infanto-juvenil,

programas com finalidades educativas,

artísticas, culturais e informativas,

respeitando, assim, as condições peculiares da

pessoa em desenvolvimento.

(...)

Cumpre lembrar que o serviço prestado pela

empresa agravante constitui uma concessão

estatal, devendo seguir os ditames do interesse

público, figurando entre eles a aceitação e

obediência às normas legais e administrativas

pertinentes à matéria.

Ademais, a recorrente não apresentou sequer

motivo que justificasse a não obediência à

classificação indicativa imposta pelo Ministério

da Justiça com relação aos programas descritos

na inicial, sendo que a tutela antecipada

concedida em primeira instância não

representa, em princípio, censura ou proibição

de exibição de qualquer programa pertencente

à grade da emissora, os quais devem ser

veiculados apenas dentro dos horários

adequados ao seu conteúdo, de acordo com as

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respectivas portarias de classificação, mesmo

que se possa constar em alguns deles, pelo que

consta dos autos, um mau gosto atroz, para

dizer o menos.

Destaco, inclusive, que em caso análogo ao

presente, no qual o MPF moveu ação civil

pública contra a TVSBT Canal 11 do Rio de

Janeiro, o E. Superior Tribunal de Justiça negou

provimento ao recurso especial interposto pela

emissora-ré, aplicando o disposto no art. 245

do ECA para manter condenação a pagamento

de multa correspondente a noventa salários

mínimos por ter a emissora “transmitido fora

do horário recomendado para o público infanto-

juvenil o filme ‘Os últimos Durões’, sem

qualquer finalidade educativa, artística,

cultural ou informativa”(RESP n.º 6449292,

Segunda turma, Relator Ministro Franciulli

Nett, j. 21/6/2005, v.u., DJ 22/8/2005).”34

Por fim, tendo em vista tais argumentos, o

Desembargador Federal manteve a multa cominatória de R$

100.000,00 por cada veiculação irregular na programação do SBT,

a ser revertida ao Fundo mencionado na Lei n.º 8.242/91.

Sendo assim, não há o que se falar em “negação

do Estado Democrático de Direito” como assevera a autora. Isso

porque ao mesmo tempo em que a Constituição garantiu a

34 Processo 2006.03.00.087942-3 – AG 278307 – Origem 2006.61.00.015992-2 – 19ª Vara São Paulo – SP. Desembargador Federal Márcio Moraes – 3ª Turma.

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liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica

e de comunicação, independente de censura ou licença (art. 5º,

IX), estabeleceu alguns princípios de observância obrigatória

quando a manifestação dessas atividades fosse realizada através

do rádio e televisão.

E como externa Marcos Alberto Sant Anna

Bitelli35, “remanesce no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

obstáculos intransponíveis ao sistema classificatório. Tratam-se

dos arts. 74, 75, 76, 254, 255 e 256 do ECA, que estabelecem

proibições aos agentes de comunicação de flexibilizar o acesso aos

conteúdos mesmo que os pais ou responsáveis assim o desejam.

Portanto, aquela determinação constitucional apenas

classificatória transforma-se em proibição, mesmo para o

titular do pátrio poder.”

Ante todo o exposto, tendo em vista que as

atitudes da ré foram causas de veementes violações aos Direitos

Humanos, que fundamentaram a Ação Civil Pública n.º

2005.61.00.24137-3, justifica-se impor a ela o cumprimento

integral e obrigatório do Termo de Acordo Judicial nela celebrado.

Isto porque tal gravame se deu por

inobservância, em sua programação, de diversos preceitos

constitucionais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana. Na

realidade, as condutas anteriores da concessionária denotam a

profunda falta de respeito aos Direitos Humanos, o que justificou a

35 http://www.bitelli.com.br/pt/artigos/conteúdo.php?id_artigo=15.

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inserção da cláusula primeira, alínea “j” e cláusula terceira daquele

acordo judicial.

IV – DO PEDIDO

Do exposto, o Ministério Público Federal

requer de Vossa Excelência repudiar todas as teses da autora,

julgando totalmente improcedente a presente demanda.

Requer, ainda, que a análise de conexão da

presente Ação Declaratória com a Ação Civil Pública n.º

2005.61.00.024137-3, suscitada a fls. 282, seja novamente

analisada, mas agora pelo(a) Juiz(a) Federal Titular da 2ª Vara

Cível de São Paulo.

Por fim, por tratar-se de questão exclusivamente

de direito, o Ministério Público Federal requer, desde logo, seja

julgada a lide, não havendo necessidade de produção de prova

testemunhal ou documental.

Nestes termos,

Pede Deferimento.

São Paulo, 27 de novembro de 2006.

SERGIO GARDENGHI SUIAMA

Procurador da República

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Maria Elise Sacomano

Estagiária do Ministério Público Federal

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