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Contemplando pedras em KiotoMesmo em um momento de crise, o Japão ainda reverencia a natureza17 de abril de 2011 | 0h 00
Marco Giannotti - O Estado de S.Paulo
Ledo engano pensar sumariamente que o Japão inteiro está neste momento tremendo,sofrendo as agruras de uma iminente crise nuclear. Para quem está ao sul de Tóquio,distante cerca de 600 quilômetros da capital, o tempo é das sakuras, das cerejeirasfloridas. Todos os japoneses celebram o advento da primavera visitando os parquesrecobertos por cerejeiras. Não se trata de uma espécie frutífera, foi desenvolvidaexclusivamente para fins estéticos. Tudo o que é belo carrega consigo sua dimensãoefêmera. Essas flores duram apenas duas semanas e celebram a passagem do tempo.
As cerejeiras passam a ser progressivamente cultivadas, pois são de origem local, em vezdas ameixeiras, que vêm da China. Eram em particular admiradas pelos samurais,soldados indicados pelo imperador, mas que tinham grande poder e autonomia no século12, porque mostravam um modo, uma forma de vida exemplar: embora seu florescer sejabreve, é belo; as flores caem em conjunto, pétala por pétala, e dão lugar às folhagens quevêm a seguir.
Vale salientar que o imperador aqui é visto de maneira distinta dos reinados presentes noOcidente. Seu papel é mais do que simbólico e carrega consigo uma herança divina,mesmo que tenha abdicado desse seu poder após a Segunda Guerra Mundial.
O calendário japonês é feito de acordo com o imperador, de modo que cada ano equivale aum determinado reinado. Kioto mantém uma rixa com a atual capital, pois, na verdade, oimperador jamais oficializou sua saída da antiga capital. Para os cidadãos daqui, ele estáainda em ferias em Tóquio.
Em paralelo à sua presença quase invisível, pois ele raramente é visto, se nota a presençaconstante de duas religiões que fazem parte da identidade japonesa: o xintoísmo e obudismo. A primeira tem uma origem propriamente japonesa, advém de mitos animistase trata, antes de tudo, da vida cotidiana, do dia a dia. A outra advém da Índia, passandopela China e chegou ao Japão no século 6.º.
O budismo é importante na administração da vida após a morte. É comum que umjaponês diga que não tem religião, mas que celebre em alguns momentos determinadosritos xintoístas e que enterre seus parentes em cemitérios budistas.
Já o xintoísmo adquire um papel proeminente novamente a partir da restauração Meiji,
/Cultura
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em 1868, na qual o Japão é reunificado sob o reinado de um único imperador dotado depoder divino. Ele reencarna o papel do primeiro imperador, Jimmu Tenno (cerca de 600a.C.), filho da principal divindade xintoísta, Amaterasu, a deusa solar.
Pelo fato de ser identificada com uma religião do Estado e celebrar o nacionalismo,muitas vezes essa religião entra em conflito com a filosofia budista, que advém do exteriore é portanto mais internacional, unindo países como a Índia, China e o Japão.
Os templos budistas têm, portanto, maior autonomia e em alguns momentos buscavam secontrapor ao poder imperial. Em outros momentos, as religiões se fundem, de modo quecertas divindades xintoístas aparecem como manifestações do Buda. No plano ético, aveneração da natureza e o sentimento de estabilidade grupal são princípiosdeterminantes. A árvore celebrada pelos templos budistas é o pinheiro, pois suas folhasnunca caem e estão eternamente verdes.
Jardim zen. No famoso jardim de pedras em Ryoan-ji, temos a expressão máxima dojardim zen. Fundado em 1473 por um dos nobres mais poderosos do período, HosokawaKatsumoto, vassalo do xogunato de Ashikaga Yosimasa, o templo foi construído quandoHosokawa se deu conta de que não iria viver muito mais tempo e decide então se retirarpara uma vida com monges. De fato, ele morre no mesmo ano em que o templo foiconstruído. A concepção do jardim é atribuída ao pintor e jardineiro Soami (1472?-1525).
Com formato retangular, medindo 25 metros por 10 metros, o jardim contém 15 pedrasirregulares rodeadas por musgo e são envoltas por pedregulhos brancos minuciosamentedispostos, formando um desenho ondulado. Ao seu lado, há um pavilhão onde se podecontemplar o jardim por horas a fio. Para alguém familiarizado com a artecontemporânea, trata-se de uma das mais belas instalações jamais vistas.
Quanto mais se observa, mais o tamanho das pedras parece adquirir uma escalamonumental, e o observador parece diminuir, como na famosa descrição da experiênciado sublime do romantismo alemão. Elas parecem sempre distintas, conforme o ponto devista, mas salientam a sensação de permanência e estabilidade, em contraponto aosuntuoso jardim que ora apresenta sakura, ora celebra o outono e a passagem do tempo.
Em uma terra que treme, esse jardim celebra o oposto, a experiência zen do Satori, dodespertar para a vida. Num momento em que toda a nação se torna mais solidária devidoà tragédia do terremoto, seguido por um tsunami que destroçou Fukushima, essas pedrassão o exemplo da capacidade japonesa de procurar estabilidade quando tudo que "é sólidoparece se desmanchar no ar" a qualquer instante.
***
P.S.: Agradeço ao professor Ikunori Sumida, da Kyoto University of Foreign Affairs, poralgumas informações valiosas fornecidas para este artigo.
ESPECIAL PARA O ESTADO
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KIOTO
Ledo engano pensar sumariamente que o Japão inteiro está neste momento tremendo,sofrendo as agruras de uma iminente crise nuclear. Para quem está ao sul de Tóquio,distante cerca de 600 quilômetros da capital, o tempo é das sakuras, das cerejeirasfloridas. Todos os japoneses celebram o advento da primavera visitando os parquesrecobertos por cerejeiras. Não se trata de uma espécie frutífera, foi desenvolvidaexclusivamente para fins estéticos. Tudo o que é belo carrega consigo sua dimensãoefêmera. Essas flores duram apenas duas semanas e celebram a passagem do tempo.
As cerejeiras passam a ser progressivamente cultivadas, pois são de origem local, em vezdas ameixeiras, que vêm da China. Eram em particular admiradas pelos samurais,soldados indicados pelo imperador, mas que tinham grande poder e autonomia no século12, porque mostravam um modo, uma forma de vida exemplar: embora seu florescer sejabreve, é belo; as flores caem em conjunto, pétala por pétala, e dão lugar às folhagens quevêm a seguir.
Vale salientar que o imperador aqui é visto de maneira distinta dos reinados presentes noOcidente. Seu papel é mais do que simbólico e carrega consigo uma herança divina,mesmo que tenha abdicado desse seu poder após a Segunda Guerra Mundial.
O calendário japonês é feito de acordo com o imperador, de modo que cada ano equivale aum determinado reinado. Kioto mantém uma rixa com a atual capital, pois, na verdade, oimperador jamais oficializou sua saída da antiga capital. Para os cidadãos daqui, ele estáainda em ferias em Tóquio.
Em paralelo à sua presença quase invisível, pois ele raramente é visto, se nota a presençaconstante de duas religiões que fazem parte da identidade japonesa: o xintoísmo e obudismo. A primeira tem uma origem propriamente japonesa, advém de mitos animistase trata, antes de tudo, da vida cotidiana, do dia a dia. A outra advém da Índia, passandopela China e chegou ao Japão no século 6.º.
O budismo é importante na administração da vida após a morte. É comum que umjaponês diga que não tem religião, mas que celebre em alguns momentos determinadosritos xintoístas e que enterre seus parentes em cemitérios budistas.
Já o xintoísmo adquire um papel proeminente novamente a partir da restauração Meiji,em 1868, na qual o Japão é reunificado sob o reinado de um único imperador dotado depoder divino. Ele reencarna o papel do primeiro imperador, Jimmu Tenno (cerca de 600a.C.), filho da principal divindade xintoísta, Amaterasu, a deusa solar.
Pelo fato de ser identificada com uma religião do Estado e celebrar o nacionalismo,muitas vezes essa religião entra em conflito com a filosofia budista, que advém do exteriore é portanto mais internacional, unindo países como a Índia, China e o Japão.
Os templos budistas têm, portanto, maior autonomia e em alguns momentos buscavam se
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contrapor ao poder imperial. Em outros momentos, as religiões se fundem, de modo quecertas divindades xintoístas aparecem como manifestações do Buda. No plano ético, aveneração da natureza e o sentimento de estabilidade grupal são princípiosdeterminantes. A árvore celebrada pelos templos budistas é o pinheiro, pois suas folhasnunca caem e estão eternamente verdes.
Jardim zen. No famoso jardim de pedras em Ryoan-ji, temos a expressão máxima dojardim zen. Fundado em 1473 por um dos nobres mais poderosos do período, HosokawaKatsumoto, vassalo do xogunato de Ashikaga Yosimasa, o templo foi construído quandoHosokawa se deu conta de que não iria viver muito mais tempo e decide então se retirarpara uma vida com monges. De fato, ele morre no mesmo ano em que o templo foiconstruído. A concepção do jardim é atribuída ao pintor e jardineiro Soami (1472?-1525).
Com formato retangular, medindo 25 metros por 10 metros, o jardim contém 15 pedrasirregulares rodeadas por musgo e são envoltas por pedregulhos brancos minuciosamentedispostos, formando um desenho ondulado. Ao seu lado, há um pavilhão onde se podecontemplar o jardim por horas a fio. Para alguém familiarizado com a artecontemporânea, trata-se de uma das mais belas instalações jamais vistas.
Quanto mais se observa, mais o tamanho das pedras parece adquirir uma escalamonumental, e o observador parece diminuir, como na famosa descrição da experiênciado sublime do romantismo alemão. Elas parecem sempre distintas, conforme o ponto devista, mas salientam a sensação de permanência e estabilidade, em contraponto aosuntuoso jardim que ora apresenta sakura, ora celebra o outono e a passagem do tempo.
Em uma terra que treme, esse jardim celebra o oposto, a experiência zen do Satori, dodespertar para a vida. Num momento em que toda a nação se torna mais solidária devidoà tragédia do terremoto, seguido por um tsunami que destroçou Fukushima, essas pedrassão o exemplo da capacidade japonesa de procurar estabilidade quando tudo que "é sólidoparece se desmanchar no ar" a qualquer instante.
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P.S.: Agradeço ao professor Ikunori Sumida, da Kyoto University of Foreign Affairs, poralgumas informações valiosas fornecidas para este artigo.
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