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A FABRICAÇÃO DOS MITOS: CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO POLÍTICO-HERÓICO DE CAMACAN Renato Zumaeta Costa dos Santos 1 Professor da Educação Básica E-mail: [email protected] Palavras-chave: Camacan. Política. Poder. Identidade. 1.1 Camacan 2 : Origens do processo de ocupação territorial Estamos vivendo os últimos instantes da nossa influência, como desbravadores (JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 5). Assim, em 29 de agosto de 1978, escreveu o Jornal da Bahia 3 , veículo informativo de circulação estadual que fez a cobertura jornalística da visita do então governador baiano, Roberto Figueira Santos, ao município de Camacan, naquela data. Festividades e inaugurações tratava-se do período de comemorações pelos dezessete anos de emancipação política movimentavam a pequena urbe, cuja população era de 25.211 habitantes (IBGE, 1978, p. 98). O referido encarte, de oito páginas, publicou um breve levantamento histórico da cidade, entrevistas com os descendentes dos fundadores de Camacan e matérias que repetiam os discursos dos colonizadores, políticos e “heróis” da história camacanense. A declaração na epígrafe deste trabalho, retirada daquela reportagem, era de Boaventura Ribeiro de Moura ou “Boinha”, como ficou popularmente conhecido. Ele foi o primeiro prefeito de Camacan (1963-1966) e influenciou decisivamente as eleições dos dois prefeitos que o sucederam. 4 A fala de Boaventura Ribeiro de Moura sugere, inicialmente, a seguinte reflexão, entre outras possíveis: por que o tom de despedida da fala do ex-prefeito perante o seu reduto 1 Estudante do curso de Pós Graduação Lato Sensu em História do Brasil da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA) e Professor de História na Rede Estadual do município de Camacan, BA. 2 Camacan é um município do Estado da Bahia e está situado na microrregião sul. Parte de sua história política é objeto de estudo deste trabalho. 3 O Jornal da Bahia foi um periódico brasileiro da cidade de Salvador, que circulou entre 1958 e 1994. Foi, por muitos anos, um veículo progressista, ligado à esquerda, que fez história na imprensa da Bahia. 4 Os prefeitos que sucederam Boaventura Ribeiro de Moura foram, respectivamente, Eutácio Carlos Araújo (1967-1970) e Flaviano de Jesus Filho (1971-1972).

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  • A FABRICAO DOS MITOS:

    CONSTRUO DO IMAGINRIO POLTICO-HERICO DE

    CAMACAN

    Renato Zumaeta Costa dos Santos1

    Professor da Educao Bsica

    E-mail: [email protected]

    Palavras-chave: Camacan. Poltica. Poder. Identidade.

    1.1 Camacan2: Origens do processo de ocupao territorial

    Estamos vivendo os ltimos instantes da nossa influncia, como

    desbravadores (JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 5).

    Assim, em 29 de agosto de 1978, escreveu o Jornal da Bahia3, veculo informativo de

    circulao estadual que fez a cobertura jornalstica da visita do ento governador baiano,

    Roberto Figueira Santos, ao municpio de Camacan, naquela data. Festividades e

    inauguraes tratava-se do perodo de comemoraes pelos dezessete anos de emancipao

    poltica movimentavam a pequena urbe, cuja populao era de 25.211 habitantes (IBGE,

    1978, p. 98). O referido encarte, de oito pginas, publicou um breve levantamento histrico da

    cidade, entrevistas com os descendentes dos fundadores de Camacan e matrias que repetiam

    os discursos dos colonizadores, polticos e heris da histria camacanense.

    A declarao na epgrafe deste trabalho, retirada daquela reportagem, era de

    Boaventura Ribeiro de Moura ou Boinha, como ficou popularmente conhecido. Ele foi o

    primeiro prefeito de Camacan (1963-1966) e influenciou decisivamente as eleies dos dois

    prefeitos que o sucederam.4

    A fala de Boaventura Ribeiro de Moura sugere, inicialmente, a seguinte reflexo, entre

    outras possveis: por que o tom de despedida da fala do ex-prefeito perante o seu reduto

    1 Estudante do curso de Ps Graduao Lato Sensu em Histria do Brasil da Universidade Estadual de Santa

    Cruz (UESC/BA) e Professor de Histria na Rede Estadual do municpio de Camacan, BA. 2 Camacan um municpio do Estado da Bahia e est situado na microrregio sul. Parte de sua histria poltica

    objeto de estudo deste trabalho. 3 O Jornal da Bahia foi um peridico brasileiro da cidade de Salvador, que circulou entre 1958 e 1994. Foi, por

    muitos anos, um veculo progressista, ligado esquerda, que fez histria na imprensa da Bahia. 4 Os prefeitos que sucederam Boaventura Ribeiro de Moura foram, respectivamente, Eutcio Carlos Arajo

    (1967-1970) e Flaviano de Jesus Filho (1971-1972).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Peri%C3%B3dicohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil

  • poltico? Na mesma direo, vale ponderar: de onde veio, ento, o poder e o status de

    desbravador com o qual o mesmo se identificava? Acreditamos que vale, inicialmente,

    ponderarmos acerca da atuao dos chamados desbravadores nas origens da formao de

    Camacan como cidade.

    Para melhor entendimento, preciso deixar claro que no perodo inicial da formao

    poltico-administrativa de Camacan, entre 1961 at 1973, o poder local fora liderado pela

    famlia Ribeiro de Moura. Alguns dos membros dessa famlia ocuparam lugar de destaque nas

    decises sobre o destino da poltica camacanense e da constituio urbana da cidade.

    Assim, esse trabalho discute a relao entre o mandonismo poltico5 da famlia Ribeiro

    de Moura com a consolidao daquela cidade. Este quadro relaciona-se s antigas razes

    que remontam ao final do sculo XIX, uma vez que a referida famlia aparece nos principais

    relatos e documentos acerca de expedies de plantio das primeiras roas de cacau e da

    ocupao desta microrregio camacanense, como nos mostra a reportagem do Jornal da

    Bahia, a seguir:

    Cada um conta a histria e, em cada relato, fica evidente o orgulho dos pais e

    a justificativa que todos tm para o apego terra. Somando-se tudo e

    observando a chamada rvore genealgica, sensvel o fato de que tudo se

    resume famlia Moura Ribeiro (JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 5).

    O resultado daquele processo aponta-nos para a glria dos referidos desbravadores

    que foram consagrados pela histria camacanense, registrada atravs dos relatos orais e

    escritos da memria oficial do municpio. Seus feitos foram eternizados com a avidez da

    sociedade sul-baiana em produzir um passado emrito e glorioso. Suas aes foram

    consagradas por geraes, at serem absorvidas como preldio de sua prpria identidade. Na

    citao abaixo, a consagrao dos feitos dos desbravadores vem tona:

    1889 o ano em que Camacan foi fundada, o mesmo ano da Proclamao da

    Repblica. Naquela poca a famlia de Joo Elias Ribeiro morava na regio

    do Rio Pardo, Canavieiras. Segundo contam, era uma famlia respeitada,

    corajosa, determinada e com uma viso de progresso. [...] Joo Elias Ribeiro

    [...] nasceu em Canavieiras em 20 de julho de 1842 e casou-se em 1872 com

    a Sra. D. Carolina Ribeiro. [...] Os grandes pioneiros e desbravadores das

    terras de Camacan so seus filhos e podemos cit-los com destaque: Antonio

    Elias Ribeiro, Joo Ribeiro Vargens e Boaventura Elias Ribeiro (JORNAL

    INFORMATIVO CIDADE, 2005, p. 05).

    5 Estamos utilizando o termo mandonismo poltico na perspectiva assinalada por: CARVALHO, Jos Murilo de.

    Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discusso Conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2,

    1997. Disponvel em: .

    Acesso em: 26 jun. 2010.

  • As repeties direcionadas populao local anualmente,6 como assinalada acima, nos

    mostram que os descendentes de um agricultor da cidade de Canavieiras, Leandro Ribeiro,

    foram ento considerados pioneiros e desbravadores do municpio de Camacan. Contudo,

    esse sobrenome Ribeiro recebeu a incluso de outros nomes que fazem parte do quadro

    simblico-glorioso da memria camacanense, atravs de adaptaes nominais e casamentos.

    As incorporaes deram origem aos troncos Vargens e Moura.7

    Deste modo, possvel perceber que o incio da ocupao do territrio de Camacan se

    deu por uma nica famlia, e no por trs famlias como vinha sendo apontado pelos estudos

    sobre esta regio.8 O fato que houve um considervel domnio da famlia Ribeiro, ora como

    Ribeiro Vargens, ora como Ribeiro de Moura, ou ainda como Ribeiro simplesmente. O

    prprio ncleo urbano atual de Camacan est situado exatamente entre a Fazenda Camacan e

    a Fazenda Joo Elias Ribeiro (propriedades das referidas famlias) e ocupam terras que

    pertenciam quela primeira da o nome da cidade.

    Dessa forma, entendemos que as imagens, smbolos e o senso da identidade

    camacanenses so construes produzidas por uma elite agrria/poltica local, que manteve

    por um longo perodo os mecanismos de consolidao e preservao da sua hegemonia nesta

    regio. As narrativas acerca da importncia da atuao dos desbravadores assinalaram nesta

    direo. Entretanto, tambm permitem acompanhar como os interesses econmicos e sociais

    de uma famlia e/ou grupo social atuaram na distribuio poltico-administrativa que

    formaram algumas das cidades da regio, como foi o caso de Camacan.

    6 As informaes a respeito dos discursos e imagens que se repetiram e continuam se repetindo sobre a formao

    da identidade camacanense foram obtidas com base nos textos do encarte especial do Jornal da Bahia, j referido

    neste captulo; em entrevistas; estudos monogrficos; e nas publicaes produzidas, sobretudo, no perodo das

    comemoraes pela emancipao poltica de Camacan, conforme os informativos anuais da Prefeitura

    Municipal; da Comisso Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira CEPLAC e do Banco do Nordeste, que

    evocavam, exaustivamente, o passado glorioso dos sujeitos construtores da cidade em seus textos. 7 Joo Elias Ribeiro (um dos netos de Leandro Ribeiro) foi um exemplo disso. Conforme o relato da prpria

    famlia, o mdico Joo Elias teria incorporado o nome Vargens a si prprio, no perodo em que se graduava em

    Salvador. Outro exemplo de incorporao de novos nomes aos descendentes dos Ribeiro vem de Ana Ribeiro.

    Neta de Leandro Ribeiro e irm do mdico Joo Ribeiro Vargens ela casou-se com um comerciante sergipano,

    Joviano Pinheiro de Moura. Do casamento, realizado em 1910, no municpio de Canavieiras, tiveram nove

    filhos, dentre eles estava Boaventura Ribeiro de Moura, que veio a ser o primeiro prefeito de Camacan, em 1963. 8 Entre esses estudos, podemos destacar os trabalhos acadmicos de Charles Nascimento de S, Os Intelectuais e

    a Emancipao Poltica de Camacan (Monografia, Ilhus: UESC, 2000) e Festa da Cidade: cultura e turismo

    na periferia do cacau (Dissertao de Mestrado, Ilhus: UESC, 2003); alm dos estudos monogrficos de

    Valdirene Silva Guimares, Um Olhar Sobre a Cidade: Camacan 1953 1964 (Ilhus: UESC, 2001) e David

    Silva Rodrigues, Origens do Processo de Ocupao do Territrio de Camacan (Ilhus, UESC, 2003).

  • 1.2. Famlia Ribeiro de Moura: construo do poder poltico e da cidade

    As origens do processo de ocupao do territrio de Camacan apresentam uma grande

    concentrao de poder e terras dos membros da famlia Ribeiro e seus respectivos

    desdobramentos nominais, Vargens e Moura. Contudo, aps o falecimento do antigo lder

    poltico daquela regio, Dr. Joo Vargens, em dezembro de 1944 (COSTA, 1963), abriu-se o

    caminho para o surgimento de uma nova liderana poltica para Camacan. Esse comando foi

    exercido por seus descendentes, sobretudo, o tronco familiar Moura, como veremos adiante.

    A Tabela 1, a seguir, ajuda-nos a compreender o quanto significativo foi o crescimento

    demogrfico da regio de Camacan e Pau-Brasil9 na dcada de 1940. Esse crescimento

    resultou, possivelmente, da fixao de trabalhadores diretos e indiretos no povoado que ali se

    formou, conforme podemos observar dos dados daquele perodo, na referida tabela.

    Tabela 1 Taxa de crescimento demogrfico nos municpios da regio cacaueira.

    Municpios Taxas de crescimento anual (em %)

    Perodo 1940-50 1950-60 1960-70 1970-80

    Camacan 8,72 3,38 1,56 5,83

    Itabuna 3,40 4,54 3,95 2,94

    Pau-Brasil 9,08 5,19 2,85 2,04

    Ubat 4,68 5,44 3,51 2,94

    Una 2,03 4,72 2,17 5,36

    Fonte: SILVA, Sylvio C. B. de Mello et al. O subsistema urbano regional de Ilhus-Itabuna. 1987, p.

    124.

    Segundo S (2003), a partir de 1953, com a elevao do povoamento categoria de

    distrito, a revolta contra a administrao municipal de Canavieiras ganhou fora. Apesar da

    elevao de status em Camacan, as condies socioeconmicas da populao eram

    9 O municpio de Pau-Brasil encontra-se muito prximo (22 km) de Camacan, por essa razo, talvez, tambm

    tenha acompanhado o crescimento dessa microrregio.

  • precrias (casas de madeira, esgotos a cu aberto, falta de gua encanada, calamento e rede

    eltrica).10

    Com uma populao crescente e, ainda, uma produo de cacau em processo de

    expanso, a emancipao poltica se aproximou. A contribuio de Camacan para com

    Canavieiras, nesse perodo, j ultrapassava a arrecadao dessa ltima, de acordo com os

    discursos dos vereadores [canavieirenses] desse perodo (S, 2003, p. 28).

    As informaes acima nos permitem considerar acerca de algumas razes pelas quais

    surgia o forte desejo de se buscar a autonomia poltica daquele distrito, frente sua sede,

    Canavieiras. A partir do falecimento do Dr. Joo Vargens, a ausncia de um lder

    centralizador das aes polticas-administrativas tornou-se ainda maior. Sobre essa questo,

    no ser demais aqui destacar uma passagem do estudo de Maria Joaquina Moura Pinto

    (2004), sobre o recm-formado povoado de Camacan:

    Com a morte de Joo Vargens, surgiu uma lacuna no mundo poltico desta

    Regio, um vazio. [...] Mas, o amadurecimento poltico da Regio no se fez

    tardar, surgindo nos irmos Moura os novos herdeiros da poltica local de

    Joo Vargens, por sinal tambm netos do patriarca Joo Elias Ribeiro

    (PINTO, 2004, p. 90).

    Em Camacan, outro fator tambm tornou-se determinante: a construo e a definio

    da identidade social local. A valorizao da liderana de Joo Ribeiro Vargens passou a

    definir fronteiras, atravs da identificao direta dos novos sujeitos inseridos naquela lgica

    poltica. Como vimos na citao acima, os Moura assumiram aquela herana, formando um

    elo com a histria passada atravs da forte assimilao da memria do seu antecessor e guia

    poltico.

    importante considerarmos que a formao de um lder, aquele que representa um

    grupo e, posteriormente, classificado como heri, tem seu momento oportuno

    especialmente em situaes de crise histrica conjuntural.11

    Nos momentos de ruptura do ritmo histrico da continuidade e da

    normalidade, o grupo social tende a necessitar de um novo tutor, de um novo

    10

    Quanto a essas informaes, foi de grande importncia para a leitura da obra: Os Intelectuais e a Emancipao

    Poltica de Camacan. Monografia, Ilhus: UESC, 2000, especialmente o seu captulo I: Camacan. 11

    Para essas concluses, foram relevantes as leituras do captulo A fabricao do carisma: a construo mtico

    herica na memria republicana gacha. In: FLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cludio P. (Org.). Mitos e heris:

    construo de imaginrios. 1. ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998. p. 141-160. E, ainda, Para

    uma introduo ao imaginrio poltico. In: GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Polticas. Traduo de

    Maria Lcia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 09-24.

  • guia, que possa construir em torno de si um imaginrio poltico que permita

    a compreenso da inteligibilidade perdida (FELIX, 1998, p. 143).

    Essas consideraes nos levam a identificar a figura de Joo Vargens com a que foi

    elevada condio de lder e heri em Camacan. Ele passou a simbolizar a identidade do

    grupo e, de certa maneira, guiar os passos futuros. Assim, preciso lembrar que, mesmo

    com os novos lderes, a imagem do Dr. Joo Vargens era cultuada e constantemente

    homenageada.

    Para reforar a imortalidade do sujeito heri, os discursos dos jornais passaram a

    destac-lo, deixando transparecer as virtudes pessoais, morais e polticas daquela

    personalidade, como nos mostra a Figura 1, abaixo. Alm da difuso jornalstica, a criao de

    smbolos (como monumentos) tendem a intensificar a presena do heri, como vemos na

    Figura 2, a seguir.

    Figuras 1 e 2 Detalhe do encarte especial do Jornal da Bahia, de 1978, destacando a figura de

    Joo Vargens como poltico. Ao lado, colorida, a imagem do busto de Dr. Joo Vargens,

    localizada em praa homnima, na principal avenida de Camacan, que tambm tem o seu nome.

    Fontes: JORNAL DA BAHIA, 1978, p. 04; e fotografia do acervo do autor, 2009.

    vlido destacar um trecho da entrevista concedida por Boaventura Ribeiro de

    Moura, em 1999, pesquisadora Maria Joaquina Moura Pinto (2004, p. 91): O cidado da

  • cidade recm-criada era um indivduo diferente do homem rural, habitante do municpio h

    decnios. Os urbanos eram bem mais recentes, sem nenhum vnculo de tradio dos rurais.

    Nesta passagem, Boaventura Moura (PINTO, 2004) recorre, talvez, ao discurso de

    identificao com seu territrio e com a histria que considera do seu povo. Podemos

    perceber, em suas palavras, que havia um grupo pioneiro pr-estabelecido. Os demais

    habitantes no faziam parte do mesmo por terem chegado depois, quando a posse inicial j

    havia sido constituda. Sobre essa identidade de grupo, a historiadora Loiva Otero Flix

    (1998) nos chama a ateno:

    [...] ao definir a identidade dos seus iguais, automaticamente define, nas suas

    fronteiras, os excludos os oponentes ao seu modo de ser e perceber o

    mundo social aqueles que no tm uma memria comum e no possuem a

    legitimidade social do grupo em questo (FLIX, 1998, p. 144).

    O mito poltico12

    Joo Vargens fez seu grupo sucessor. A famlia Ribeiro de Moura

    passou, ento, a liderar o movimento em prol da emancipao poltica do municpio. Um

    plebiscito foi realizado no dia 11 de junho de 1961, com a permisso do ento governador da

    Bahia, o senhor Juracy Magalhes, para que a populao expressasse sua vontade em relao

    emancipao. A votao trouxe resultado favorvel municipalizao do distrito. Assim,

    todo o trabalho dos articuladores do movimento pr-emancipao foi configurado em 31 de

    agosto de 1961, atravs da Lei Estadual n. 1.465 daquele ano, e publicado no Dirio Oficial

    do dia seguinte. As eleies para prefeito ocorreriam um ano depois (S, 2000).

    importante destacarmos uma valiosa informao a respeito da participao da

    famlia Moura nesse processo. Jos Ribeiro de Moura, irmo de Boaventura Ribeiro de

    Moura, tornou-se suplente de deputado estadual pelo Partido Social Democrtico - PSD,

    1959-1963, assumindo o cargo por diversos perodos na Assemblia Legislativa da Bahia, em

    Salvador.13

    O peridico Dirio de Itabuna, que noticiava com freqncia as informaes e

    decises do movimento emancipacionista de Camacan, tambm registrou esta articulao

    poltica, em 20 de janeiro de 1958:

    [...] em meio a aclamaes gerais, foi lanada a candidatura do Sr. Jos

    Ribeiro de Moura a deputado estadual. [...] Vrios amigos deste fizeram uso

    12

    Para este trabalho, o conceito de mito utilizado atravs de dois entendimentos: o mito poltico fabulao,

    deformao ou interpretao objetivamente recusvel do real. Mas, narrativa legendria, verdade que ele

    exerce tambm uma funo explicativa, fornecendo certo nmero de chaves para a compreenso do presente

    (GIRARDET, 1987, p. 13). 13

    Informao retirada dos arquivos da Assemblia Legislativa da Bahia, disponvel no stio oficial desta

    instituio: . Acesso em: 10 jun. 2010.

    http://www.al.ba.gov.br/v2/biografia.cfm?varCodigo=570

  • da palavra hipotecando-lhe solidariedade e integral apoio, uma vez que todos

    estamos certos de que o mesmo despreendimento (sic) e a mesma coragem

    que o Sr. Jos Ribeiro de Moura tm demonstrado na luta emancipacionista,

    caracterizaro a sua atuao na assemblia legislativa do Estado da Bahia

    (DIRIO DE ITABUNA, 20 jan. 1958, p. 06).

    Essas informaes nos permitem considerar a proximidade dos Moura com o poder

    poltico estadual, que pode ter contribudo significativamente para a assinatura do projeto de

    lei que emancipou Camacan, em 1961. A imagem do Deputado Jos Moura (Figura 3, abaixo)

    junto ao Governador da Bahia, em exerccio, Orlando Moscoso, no momento da assinatura da

    lei, foi reproduzida com exausto nos jornais da regio e continua sendo publicada,

    principalmente no perodo das comemoraes desta data, anualmente, como reforo da

    memria desta famlia e conscientizao do valor herico atribudo mesma.

    Figura 3 Deputado Estadual Jos Ribeiro de Moura ( esquerda) ao lado do Governador da

    Bahia, em exerccio, Orlando Moscoso, no ato da assinatura do Projeto de Lei Estadual 1.465/61

    que emancipou o antigo distrito de Camacan.

    Fonte: INFORMATIVO CIDADE, 2005, p. 06.

    A partir daquela assinatura, o novo municpio ganhou autonomia e o quadro poltico

    foi ocupado pelo grupo que liderou o movimento de emancipao.14

    Possivelmente, para a

    famlia Moura, nada poderia representar seu poder econmico e poltico, de melhor forma: era

    14

    O grupo poltico que nos referimos foi liderado pela famlia Ribeiro/Vargens/Moura (Cf. S, 2000).

  • Boaventura Ribeiro de Moura o principal candidato a prefeito de Camacan. Ocorridas as

    eleies, ele assumiu a prefeitura em 1963 e perpetuou o seu dirigismo poltico por uma

    dcada.

    Camacan, ainda na dcada de 1960, poderia ser considerada como local estratgico.

    Sobretudo por sua forte economia dentro da regio produtora de cacau. A Tabela 2, abaixo,

    nos apresenta dados importantes para uma cidade recm-formada. Superava Itabuna

    cinqenta anos mais antiga em nmero de fazendas, e seguia bem prxima, no quesito

    produo, de Itajupe e da prpria Itabuna. Com apenas quatro anos de emancipao poltica,

    Camacan despontava na quarta posio em produo de amndoas de cacau na regio, com

    seiscentas e trinta e nove fazendas implantadas. Vale lembrar que a CEPLAC15

    havia

    inaugurado seu escritrio regional no novo municpio, no ano de 1964.

    Tabela 2 Produo de Cacau em arrobas (@) por Municpio (1965)

    Municpio Nmero de Fazendas reas mdias (hectares) Produo(@)

    Absoluto % regional Fazendas Cultivadas Total

    Ilhus 1.131 9,1 73 35 1.164.297

    Itabuna 615 5,0 70 51 811.777

    Itajupe 526 4,2 49 34 638.188

    Camacan 639 5,1 69 33 602.406

    Uruuca 336 2,7 87 45 497.464

    Fonte: SANTOS, Renato Zumaeta Costa dos. Cacauicultura: A Ceplac e a Vassoura de Bruxa em

    Camacan. Cadernos do CEDOC, Ilhus, Editus - UESC, v. 8, p. 145, 2007.

    Por isso, provvel que a famlia Moura tenha se preocupado em reter o poder poltico

    de Camacan, pois esta j apresentava fortes indicadores econmicos com potencial para

    tornar-se um importante centro do sul da Bahia. As decises polticas seriam tomadas pelo

    grupo que governasse a prefeitura da cidade e, conseqentemente, os destinos do municpio

    seriam, assim, deliberados.

    Vale lembrar que a rea urbana estava localizada em propriedades do grupo familiar

    Ribeiro-Vargens-Moura. As reas dos distritos, tambm. A possibilidade de crescimento

    15

    Sobre o processo de implantao do escritrio da CEPLAC em Camacan, ver o estudo monogrfico de Luiz

    Cludio Zumaeta Costa; Sociedade e Economia: A presena da CEPLAC em Camacan (1964-1974).

  • acelerado, provavelmente, gerou apreenso naquelas famlias, pois acarretaria a perda de

    territrios das suas respectivas fazendas para o processo de expanso urbana. Segundo os

    dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, no ano de 1960, Camacan j

    possua 19.698 habitantes.16

    Alm disso, o local era carente de muita infra-estrutura: estradas, pontes, energia

    eltrica, educao, sade e saneamento bsico ainda eram sonhos da populao na dcada de

    1960 (S, 2000). No somente para o ncleo urbano, mas, sobretudo, para as fazendas, a

    introduo desses recursos garantiriam benefcios na mesma proporo. Portanto, possvel

    avaliar que, para essas famlias, foi preciso acompanhar de muito perto as decises sobre a

    cidade, j que, as mesmas, poderiam produzir reflexos em suas propriedades latifndios

    limtrofes do ncleo urbano camacanense.

    Nas eleies municipais seguintes, ocorridas em 1966 e 1970, saram-se vencedores os

    candidatos apoiados pelo grupo da famlia Moura, respectivamente, os senhores Eutcio

    Carlos Arajo e Flaviano de Jesus Filho, demonstrando o continusmo daquele grupo no

    poder local. Essa permanncia, possivelmente, foi bastante significativa para a continuidade

    da construo dos smbolos que formavam o imaginrio poltico sob as imagens dos seus

    ancestrais desbravadores.

    Em 1972, com a eleio do padre Auxncio Costa Alves, houve um rompimento do

    continusmo da famlia Moura no poder. Essa ruptura representou um duro golpe nas foras

    polticas tradicionais. Porm, ao fim deste mandato, os principais mandatrios (leia-se: famlia

    Ribeiro de Moura) retomaram o poder poltico com a eleio de Luciano Jos de Santana.

    De 1977 a 1982, a gesto de Luciano Santana marcou pela instituio da Festa

    Camacan e o Cacau, em comemorao data de emancipao poltica do municpio. A festa

    tinha por objetivo realizar uma comemorao que fizesse jus ao porte econmico de

    Camacan. Festas, danas, msicas, diverso e palestras passaram a ser realizadas todos os

    anos a partir de 1977.

    Na comemorao seriam lembrados ainda o cacau, os pioneiros, os lderes, as figuras

    mais proeminentes e o governador. O prefeito e seus correligionrios pretendiam promover

    um acontecimento nico para enaltecer a emancipao e perpetuar na memria da populao a

    imagem dos fundadores da cidade, consolidando a identidade social e cultural de Camacan.

    16

    Dados retirados da tabela Balano Demogrfico do Municpio de Camacan entre 1960 e 2000. In: SANTOS,

    Renato Zumaeta Costa dos. Cacauicultura: A Ceplac e a Vassoura de Bruxa em Camacan. Cadernos do CEDOC,

    Ilhus, Editus - UESC, v. 8, p. 169, 2007.

  • O trabalhador rural pela primeira vez seria lembrado, com a quebra do cacau. Esse

    evento tambm faz parte das comemoraes do aniversrio de Camacan e transferiu um dos

    momentos da colheita do cacau das propriedades para a praa pblica. Vrias duplas de

    trabalhadores, representando seus respectivos patres e fazendas, precisavam quebrar a maior

    quantidade de cacau em menor tempo. A dupla vencedora recebe um prmio em dinheiro e o

    status de mais velozes e eficientes naquela funo. Contudo, essa premiao repercutia

    positivamente e em maior escala para a fazenda que eles trabalhavam e, principalmente, para

    o seu proprietrio.

    Assim, uma bancada poltica assegurou-se no poder, atravs da fabricao de um

    discurso que a apresentava como grupo da maioria. Este processo, que comeou desde o final

    do sculo XIX com as primeiras plantaes de cacau no territrio de Camacan, atingiu seu

    pice quando foram consagradas aos irmos Ribeiro de Moura as glrias pela emancipao e

    dirigismo poltico de Camacan, especialmente no perodo da Festa Camacan e o Cacau.

    Este trabalho, portanto, prope um esforo inicial de: analisar, atravs dos documentos

    e imagens apontadas no texto, as possveis origens do mandonismo e do imaginrio poltico

    em torno dos feitos do grupo familiar Ribeiro/Vargens/Moura, perpetuadas na memria

    camacanense. Da mesma forma, buscamos analisar como a constituio daquela cidade foi

    marcada pelos interesses econmicos e sociais daquela famlia.

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