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A construção discursiva dos discursos intolerantes
Diana Luz Pessoa de Barros*
Neste estudo, o objetivo principal é apresentar uma proposta teórica e
metodológica, fundamentada na Semiótica discursiva francesa, para o exame dos
discursos intolerantes de diferentes tipos - racista, fascista, separatista, sexista, purista e
outros, contribuindo dessa forma, na perspectiva dos estudos da linguagem, para o
exame da intolerância, que tem sido estudada por historiadores, sociólogos, psicólogos,
entre outros, nos mais diversos campos do conhecimento. Para tanto são estabelecidas
algumas hipóteses de como se constrói discursivamente a intolerância, ou seja, de quais
são os procedimentos e estratégias usados nesses discursos e de qual é o quadro de
valores em que eles se colocam. Serão considerados quatro tipos de procedimentos de
construção dos discursos intolerantes e preconceituosos: os de organização da narrativa,
sobretudo do percurso da sanção; os de constituição dos percursos passionais, com base
nos estudos da modalização, da aspectualização e da moralização discursivas; os de
elaboração dos temas e das figuras semânticas do discurso, que mais claramente
expõem suas determinações ideológicas inconscientes; os de formação da organização
geral do discurso, na perspectiva de sua tensividade.
Antes, porém, de se passar ao exame desses procedimentos, algumas questões e
dificuldades devem ser apontadas em relação ao material analisado. Em primeiro lugar,
os discursos intolerantes não constituem um gênero textual ou discursivo, pois para
definir um gênero é necessária a estabilidade de composição, de temática e de estilo, no
âmbito de uma dada esfera de ação (religiosa, midiática, escolar, familiar, etc.). Os * Universidade Presbiteriana Mackenzie, Universidade de São Paulo- Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, CNPq – Brasil e-mail: [email protected]
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discursos intolerantes participam de várias esferas de ação ou mesmo de todas, e têm
composição e estilos também diferentes, só podendo ser classificados tematicamente, ou
seja, pela organização do plano do conteúdo, tal como será mostrado e exemplificado no
desenvolvimento deste estudo. Em outras palavras, no caso dos discursos intolerantes,
há apenas “estabilização” temática, pois há discursos intolerantes em diferentes esferas
de atividades (política, religiosa, familiar), de gêneros diversos (notícias, sermões, bate-
papo, etc.) e de tipos diferentes (narrativo, descritivo, etc.). A segunda questão, no
recorte do material a ser examinado, é a dos critérios para essa seleção, ou seja, de como
classificar os discursos de intolerantes. Dois aspectos estão sendo considerados: o
reconhecimento social de que certos discursos são preconceituosos, intolerantes,
discriminatórios e/ou a observação de que apresentam as características arroladas, neste
estudo e em outros, como próprias desse tipo de discurso. Com isso pode-se observar se
há ou não concordância dos dois aspectos mencionados.
1. Exame narrativo dos discursos intolerantes: discurso de sanção
Para o exame narrativo dos discursos intolerantes, a hipótese que no momento se
apresenta (Barros, 1995, 2005, 2008a, 2008b, 2008c) é a de que esse discurso é,
sobretudo, um discurso de sanção aos sujeitos considerados como maus cumpridores de
certos contratos sociais: de branqueamento da sociedade, de pureza da língua, de
heterossexualidade e outros. Esses sujeitos são, portanto, no momento do julgamento,
reconhecidos como maus atores sociais, maus cidadãos - pretos ignorantes, maus
usuários da língua, índios bárbaros, judeus perigosos, árabes fanáticos, homossexuais
pervertidos - e punidos com a perda de direitos, de emprego, ou até mesmo com a
morte. Concebida a organização narrativa dessa forma, a intolerância dos discursos
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encontra, sempre, justificativas. Os exemplos que seguem mostram a sanção narrativa
decorrente da interpretação de que contratos sociais foram rompidos:
Imigração ameaça “pacto social” francês, diz Sarkozy
No lançamento de “Ensemble [Juntos], seu novo livro, o candidato conservador à
Presidência da França, Nicolas Sarkozy, reafirmou ontem suas diretrizes de campanha e
voltou a defender “a identidade nacional” e um maior controle do fluxo migratório como
forma de garantir a manutenção “do pacto social” francês. “Há uma França exasperada. E
por que está? Porque a identidade nacional foi posta em risco por uma imigração
descontrolada, pela fraude ou pelos desperdícios de fundos”. (...) “O Controle da imigração
é uma obrigação para salvaguardar nosso pacto social. Do contrário, explodirá”, discursou.
(Folha de São Paulo, 03/04/2007, p. A11).
Bergamo “censura” rua de imigrantes. Cidade do norte da Itália impõe horário para lojas e
restringe bebidas em área de chineses, africanos e latinos
A prefeitura diz que a medida que proíbe a reunião e o consumo de bebidas à noite somente
nessa rua, além de obrigar o comércio a fechar mais cedo, pretende combater o tráfico de
drogas (Folha de São Paulo, 28/11/2010).
Jornal publica fotos de homossexuais e pede enforcamento.
Um jornal de Uganda publicou reportagem trazendo uma lista de gays e lésbicas do país
com suas fotos e endereços, gerando fúria entre ativistas que dizem que o grupo, já
marginalizado no país africano, corre risco de enfrentar mais ataques. Segundo a rede de
TV CNN, o jornal “Rolling Stone” – sem ligação com a revista dos EUA de mesmo nome –
publicou a lista de cem pessoas no início do mês e, ao lado, uma faixa amarela dizendo:
“Enforquem-nos” (Folha de São Paulo, 03/04/2007).
O primeiro texto trata, sobretudo, da ruptura de contrato, no caso do “pacto
social” francês, o que põe em risco a “identidade nacional” e justifica as sanções que
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serão atribuídas aos imigrantes, com as novas leis. O segundo exemplo reforça as
“punições”, mas menciona também os contratos sociais rompidos: os imigrantes são
criminosos (ladrões, traficantes, estupradores). Em referendo na Suíça, para decidir pela
expulsão ou não de imigrantes que infrinjam a lei, um dos cartazes favoráveis à
expulsão diz: “Ivan S., Estuprador e logo mais Suíço?” (“Ivan S., Violeur et bientôt
Suisse?”). O terceiro e último exemplo parece dizer que não há necessidade de
explicitar as quebras contratuais, pois são tão conhecidas pela sociedade, que só resta
punir os infratores com a morte.
2. Exame dos percursos passionais do ódio e do medo
A semiótica trata dos percursos passionais dos discursos com base nos estudos
da modalização, em geral, e da modalização tensiva, em particular, da aspectualização, e
da moralização discursivas, em relação às normas sociais (Greimas, 1970, 1976, 1983;
Greimas et Courtés, 1979; Greimas e Fontanille, 1993; Fontanille e Zilberberg, 2001,
Zilberberg, 2006, Landowski, 1997). Muita simplificadamente, pode-se dizer que o
estudo das paixões na semiótica começou com o exame das modalizações do ser ou do
modo de existência dos sujeitos, e de suas combinações e incompatibilidades. As
paixões são, nesse quadro, definidas como efeitos de sentido discursivos de arranjos (ou
desarranjos) de modalidades. A descrição das paixões se faz, assim, em termos de
sintaxe modal, ou seja, de relações modais e de suas combinações sintagmáticas, que
produzem efeitos de sentido “afetivos” ou “passionais”. As combinações de
modalidades, por sua vez, são aspectualizadas no discurso pela continuidade e pela
descontinuidade ou, em outras palavras, pela intensidade ou pela extensidade do tempo,
do espaço e do ator-sujeito, e tornam-se paixões que duram, como a amargura; paixões
pontuais e mais intensas, como o deslumbramento; paixões excessivas, como o ódio ou
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o desespero; ou insuficientes, como a indiferença, e assim por diante. As paixões são,
finalmente, moralizadas, ou seja, avaliadas socialmente. O medo, por exemplo, é, em
muitas sociedades e momentos históricos, avaliado negativamente, e decorrem daí, entre
outros, o percurso passional de “vergonha de ter medo”, e a forte valorização positiva da
“coragem”. Nas notícias sobre a morte de Bin Laden, essa moralização apareceu de
forma muito explícita. O texto de Jorge Zaverucha, na Folha de S. Paulo, de 7 de maio
de 2001, p. A3, considera “corajosa” a decisão de Obama de atacar Bin Laden, e
termina com a citação de Winston Churchill, para quem “a coragem é a primeira das
qualidades humanas porque é a que garante as demais”.
A hipótese aqui desenvolvida é a de que predominam nos discursos intolerantes
dois tipos de paixões – as paixões ditas malevolentes (antipatia, ódio, raiva, xenofobia,
etc.) ou de querer fazer mal ao sujeito que não cumpriu acordos sociais (tal como
mencionado no item 1), e a que se contrapõem paixões benevolentes, tais como o amor
aos iguais, aos de sua cor, a sua religião, a sua pátria; e as paixões do medo do
“diferente” e dos danos que ele pode causar. Os sujeitos intolerantes são sempre sujeitos
apaixonados.
O percurso passional da malquerença é o que foi descrito por Greimas (1983) em
seu estudo sobre a cólera. O sujeito parte de um estado inicial de espera confiante, em
que quer conseguir certos valores e acredita que outro sujeito fará com que ele os
obtenha. Ao tomar conhecimento de que isso não acontecerá, ou seja, de que aquele em
quem confiou nada fará para que ele consiga os valores desejados ou mesmo fará com
ele não os obtenha, o sujeito sofrerá as paixões da decepção e da frustração e, com o
crescimento da tensão, as do desespero e da insegurança. Sem os valores almejados e
em crise de confiança, o sujeito procurará resolver sua falta e passará a querer fazer mal
a quem o colocou, segundo o simulacro construído, nessa situação (Barros, 1990). A
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malevolência parece ser o caminho para que as coisas sejam postas em seus “devidos
lugares”, mesmo que a falta primeira não se resolva com isso. As paixões malevolentes
caracterizam, no domínio do público, a xenofobia, por exemplo, e, nesse mesmo
âmbito, a paixão benevolente contrária é a do patriotismo, em que se quer fazer bem à
pátria. O sujeito do ódio em relação ao estrangeiro, ao diferente, aos “maus” usuários da
língua, é também o sujeito do amor à pátria, à sua língua, ao seu grupo étnico, aos de
sua cor, à sua religião. É esse jogo entre o querer fazer mal e o querer fazer bem que
caracteriza passionalmente o sujeito apaixonado intolerante. Observe-se, no exemplo
que segue, a manifestação de malevolência do torcedor de futebol, que acreditou em seu
time, que se decepcionou com uma grande derrota e que quer fazer mal àqueles que
considera culpados por essa perda de confiança, mesmo que, com as ações
malevolentes, a falta só seja resolvida passionalmente:
A torcida, por sua vez, pichou o muro do parque Antártica com xingamentos ao time e com
o pedido de demissão do atacante Luan e do lateral Rivaldo, expulso na derrota para o
Coritiba. (...) Luan também teve o carro atingido por um coquetel molotov (uma bomba
caseira), jogado por sobre o muro do centro de treinamento. “Futebol é paixão. E alguns
extrapolam. Eles tiveram uma decepção e acabaram se excedendo”, disse o vice-presidente
de futebol palmeirense, Roberto Frizzo. (Folha de São Paulo, 07/05/2011, p. D3).
Distinguem-se, semioticamente, duas etapas nos percursos passionais do sujeito
intolerante, que, em geral, acorrem juntas nos discursos intolerantes. A primeira,
descrita acima, é aquela em que o sujeito se torna malevolente em relação ao outro, que,
“diferente”, não cumpriu o contrato de identidade, e benevolente em relação à pátria,
aos iguais, aos idênticos. Essa primeira etapa, a mais passional da intolerância, é a do
preconceito (Barros, 2005; Leite, 2008; Bueno, 2006).
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A segunda fase, a da intolerância propriamente dita, é aquela em que o sujeito
preconceituoso (decepcionado, frustrado, desesperado, inseguro e que tem ódio) passa à
ação, ou seja, completa sua competência e age contra o outro (o causador da falta, o
odiado). Greimas, no texto citado (1983), propõe, nesse caso, as ações apaixonadas de
vingança ou de revolta, que se distinguem, assim, da justiça desapaixonada. São ou
devem ser diferentes, portanto, as sanções apaixonadas da intolerância, das sanções
desapaixonadas da justiça. Essas diferenças aparecem também na moralização social,
responsável pela condenação, muito frequente, da vingança. As notícias sobre a morte
de Bin Laden tratam, muitas delas, do debate entre os que consideram como justiça e os
julgam ser vingança a ação do governo dos EUA, e também da valorização moral
positiva ou negativa da vingança:
O presidente Barack Obama anunciou na madrugada de hoje que o terrorista saudita Osama
bin Laden, 54, líder da rede Al Qaeda foi morto por tropas dos EUA ontem no Paquistão.
“Digo às famílias que perderam seus parentes (nos ataques de 11 de setembro) que a justiça
foi feita”, disse Obama, em cadeia nacional. (...) Tão logo a imprensa americana começou a
noticiar a morte do terrorista, milhares de pessoas foram festejar em frente à Casa Branca.
(...) Aos gritos de “obrigado, Obama!” e “USA!”, uma multidão se aglomerou em frente à
Casa Branca. A maioria cantava o hino nacional. Muitos eram estudantes. “Estou aqui
porque sou americano. É a nossa essência celebrar em um grande momento como este”,
disse Ben Krimnel, 19, enrolado em uma bandeira americana. (Folha de S. Paulo,
02/05/2011, p. A11).
“A justiça foi feita”, afirmou Obama em seu pronunciamento após a ação. Para comemorar
tal “justiça”, milhares de pessoas saíram às ruas e aclamaram seu presidente como um
herói; diversos líderes mundiais afirmaram que essa é uma “vitória contra o terror”. Mas
trata-se mesmo de justiça? Ou a ação dos EUA deve ser considerada como uma mera
vingança? (José Rodrigo Rodriguez,“V”de vingança, Folha de S. Paulo, 07/05/2011, p.A3).
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Got him! Vengeance at last! US nails bastard. (Pegamos ele! Vingança, finalmente. EUA
capturam bastardo) (Primeira página do New York Post, 02/05/2011).
Familiares de vítimas dizem estar agradecidos
Charles Wolf, que perdeu sua mulher Katherine, no atentado, disse ter ficado “muito
contente em agradecer o homem que vingou a morte de sua mulher”. (...) Margie Miller,
mulher do bombeiro Joel, diz que a morte de Bin Laden não muda o fato de que seu marido
está morto, mas deve dar a sensação de “trabalho realizado” aos militares que participaram
da operação que levou à morte o terrorista. (...) “Se Bin Laden tivesse sido julgado e preso,
não haveria justiça”, afirma o pai [de uma das vítimas brasileiras do 11 de Setembro] (Folha
de S. Paulo, 06/05/2011, p. A14).
Qualquer consciência condenaria Bin Laden à morte. Contudo, do jeito que ele morreu, não
foi caso de justiça, mas de vingança pessoal. (Carlos Heitor Cony, Folha de S. Paulo,
08/05/2011, p. A2).
O êxito festejado da morte de Bin Laden foi pela morte em si mesma. Não buscou outro
sentido senão o da vingança, não propriamente cristã, pela monstruosidade do maior de
seus crimes (Jânio de Freitas, Folha de S. Paulo, 03/05/2011, p. A6).
Decisão de Obama atende a apelo populista por “vingança”
O dilema das sociedades contemporâneas é equilibrar as necessidades de uma Justiça
racional, calcada no utilitarismo, com o respeito à sensibilidade jurídica da população, que,
como mostra a reação à morte de Bin Laden, ainda caminha perigosamente perto da
vingança. Ao sancionar a decisão final em vez da captura do terrorista saudita, Barack
Obama, que já foi professor de direito constitucional na Universidade de Chicago, parece
não ter resistido aos apelos populistas (Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo, 05/05/2011,
p.A14).
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No primeiro exemplo, de anúncio da morte de Bin Laden, não se fala de
vingança e sim de justiça, mas uma análise discursiva, do texto completo, mostra o
percurso passional da vingança e não o desapaixonado da justiça. O caráter passional da
vingança e, ao mesmo tempo, sua moralização positiva mostram-se claramente no
segundo exemplo, da primeira página do jornal New York Post, com pontos de
exclamação, uso da primeira pessoa e de xingamentos (“bastardo”), e no terceiro, com
depoimentos de parentes dos que morreram no atentado de 11 de setembro. Além disso,
no terceiro exemplo, o fato de a vingança não resolver a falta, a não ser passionalmente,
surge na fala de um dos parentes. Nos demais casos, a moralização negativa da vingança
aparece nas oposições entre vingança e justiça, no uso de “mas”, de “senão”, de “mera
vingança”, de “apelo populista”, e a moralização positiva, nos festejos, aclamações,
agradecimentos e manifestações patrióticas.
Outro exemplo atual de vingança, fortemente passional, e em que aparecem as
alternâncias entre a benevolência em relação aos considerados “iguais” e a malevolência
contra os que não cumpriram os contratos sociais construídos pelo ”vingador” em seus
simulacros intersubjetivos, pode ser encontrado nos vídeos do atirador que matou
crianças numa escola no Rio1:
“A maioria das pessoas me desrespeitam, acham que sou um idiota, se aproveitam de minha
bondade, me julgam antecipadamente”, afirma Wellington no vídeo. “São falsas, desleais.
Descobrirão quem eu sou da maneira mais radical, numa ação que farei pelos meus
semelhantes, que são humilhados, agredidos, desrespeitados em vários locais,
principalmente em escolas e colégios, pelo fato de serem diferentes, de não fazerem parte
1 É preciso examinar melhor o discurso do bullying, que, embora tenha também o preconceito como ponto de partida, apresenta muitas diferenças em relação ao da intolerância, e, entre elas, principalmente, o fato de que, nesses discursos, quem pratica o bullying busca afirmar-se no grupo, ou mesmo autoafirmar-se.
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do grupo dos infiéis, dos desleais, dos falsos, dos corruptos, dos maus. São humilhados por
serem bons”, diz. (Folha de S. Paulo, 14/04/2011, p.C6).
Em relação às paixões do medo retomaram-se para este estudo o texto de Iuri
Lotman (1976), sobre os conceitos de vergonha e de medo, e o de José Luiz Fiorin
(1992), também sobre essas paixões. Os dois autores consideram que o medo é inerente
à natureza humana e necessário à sobrevivência da espécie.
O medo é uma paixão do saber sobre o futuro (Fiorin, 1992:57), enquanto o ódio
é, como foi visto, uma paixão do crer, da confiança: o ódio, em relação às modalidades
epistêmicas, está na esfera da certeza e da dúvida, o medo, na do conhecimento e da
ignorância.
Fiorin distingue dois tipos de medo: o medo dissuasório, que leva o sujeito a agir
segundo determinada norma social, ou seja, o medo da sanção pragmática negativa do
destinador; e o medo do outro que ocorre, sobretudo, nas situações de desigualdade
social, ou seja, o medo das ações do outro e das privações por ele ocasionadas. Nesse
caso, o outro não é mais o destinador dos contratos que o sujeito assumiu, mas o anti-
sujeito que com ele disputa valores. É esse medo do outro, do diferente que, em geral,
caracteriza o discurso intolerante. Como foi acima mencionado, ter medo é, em geral,
moralizado negativamente pela sociedade, e a coragem, fortemente valorizada. No
entanto, nos discursos intolerantes, o medo do outro (de sua violência, imoralidade, etc.)
e das perdas que ele poderá ocasionar (falta de emprego, de moradia, de vaga na
universidade, de segurança, etc.), segundo os simulacros construídos, serve como
justificativa para as ações intolerantes. As paixões do medo juntam-se às paixões do
ódio ou provocam essas paixões malevolentes, e fazem crescer de intensidade os
percursos passionais e as ações intolerantes. Isso pode ser observado nos exemplos que
seguem:
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Ataques xenófobos em Johannesburgo, principal cidade sul-africana, mataram pelo menos
12 pessoas no final de semana. Dezenas de imigrantes foram feridos e centenas se
refugiaram em igrejas e delegacias para escapar da violência. Multidões furiosas culpam os
estrangeiros – muitos deles zimbabuanos que deixaram um país em colapso econômico e
crise política – pelo desemprego e pela crise habitacional na África do Sul (Folha de S.
Paulo, 13/05/2008).
Moradias de africanos na UNB são atacadas
Ontem de madrugada, dez alunos africanos sofreram um ataque na Universidade de
Brasília. Para os universitários o ato foi motivado por racismo. As portas dos três
apartamentos que ocupam no alojamento estudantil foram incendiadas e os extintores de
incêndio de dois andares foram esvaziados. (...) “Meu colega acordou sufocado pela fumaça
e pulou pela janela para pedir ajuda”, disse um deles, aluno de ciências políticas, 26 anos.
Ele, assim como seus colegas, não quis se identificar. “Isso foi premeditado, colocaram
blocos com toalhas molhadas de gasolina nas nossas portas. Temos medo de outro ataque
ou até de um assassinato”. “Temos medo e me sinto humilhado. Uma vez já discutiram
comigo. Falam que viemos para tirar o lugar deles, e diziam ‘negro, volte para a Àfrica’”,
contou outro, aluno de economia, 24 anos. (Folha de S. Paulo, 29/03/2007, p. C4).
Parlamento italiano aprova em definitivo lei anti-imigrantes
(...) As “rondas cidadãs” poderão fazer patrulhas para manutenção da segurança, cuja
deterioração no país é atribuída pelo governo aos imigrantes (Folha de S. Paulo,
03/07/2009, p. A13).
Com baixa popularidade - a taxa de aprovação do governo é de 34%, segundo o instituto
CSA – Sarkozy faz do desmantelamento dos acampamentos dos ciganos irregulares uma
nova vitrine da sua política de segurança. (...) “Há 20 anos existem expulsões dos ciganos.
Mas, agora, o governo associa a onda de violência e os ciganos, avalia Alexandre Le Clève,
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porta-voz da associação de assistência a estrangeiros Hors La Rue. (Folha de S. Paulo,
20/08/2010, p. A16).
As ações intolerantes decorrentes do medo do outro crescem, em geral, em
momentos de crise. Fiorin, no texto citado, mostrou a escalada do medo nos anos 90, e
ela se faz sentir, nos tempos atuais, sobretudo em relação aos imigrantes. Muitos
governantes e partidos políticos têm usado o medo que incutem na população, sob a
forma de um saber sobre os riscos da imigração, para justificar ações intolerantes contra
imigrantes. Ao mesmo tempo, utilizam essas ações políticas para angariar votos dos que
temem ou passam a temer, alertados pelo governo e pelos políticos, esses estrangeiros.
3. Exame dos temas e figuras dos discursos intolerantes
Temas e figuras constituem o nível semântico dos discursos: os temas são os
conteúdos semânticos tratados de forma abstrata, e as figuras, o investimento
semântico-sensorial dos temas. Os temas e figuras são determinados sócio-
historicamente e trazem para os discursos o modo de ver e de pensar o mundo de
classes, grupos e camadas sociais, assegurando assim o caráter ideológico desses
discursos (Fiorin, 1988, p.1-19).
Nos discursos intolerantes, os temas e figuras estão relacionados à oposição
semântica fundamental entre a igualdade ou identidade e a diferença ou alteridade. A
partir daí vários temas e figuras são desenvolvidos, conforme as diferenças sejam de
etnia, religião, gênero e outras. Para tratar das diferenças, os discursos do preconceito e
da intolerância constroem alguns percursos temáticos e figurativos, de que
mencionaremos quatro: a animalização do “outro”; a “antinaturalidade” do diferente”; o
caráter doentio da diferença; a imoralidade do “outro”.
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Com o tema da animalização, o discurso preconceituoso atribui ao “outro” traços
físicos e características comportamentais de animais, desumanizando-o. O “diferente”
perde os atributos de ser humano. Esse tema, embora mais frequente nos discursos
racistas em relação ao negro, aparece em todos os tipos de discursos racistas, mas
também em outros discursos intolerantes, como, por exemplo, nos homofóbicos. Nos
textos racistas nas eleições no Peru e no homofóbico que foi usado em prova por
professor de uma faculdade particular do Piauí, essa animalização (“pentear macaco” e
“estilo animal”) do “diferente” é facilmente observada:
Uma onda de racismo tomou conta da internet, dos jornais e das redes sociais peruanas
diante da vitória do candidato da esquerda, no primeiro turno do pleito presidencial. (...) Na
internet, blogs e o Facebook amanheceram lotados de xingamentos aos “cholos” (termo
depreciativo para se referir a indígenas) e “índios” favoráveis a Humala. “Porcaria de cholo,
se você for presidente eu prefiro ser preso”, dizia um internauta. “Ollanta é um índio de
merda, e todos os pobres votam nele porque vai tirar o dinheiro das pessoas normais”,
afirmava outro. (...) Até os jornais peruanos entraram na guerra suja verbal. No editorial de
ontem do jornal “Peru21”, o diretor Fritz Du Bois afirmava: “É tão evidente a tentativa de
Humala de se branquear e se apresentar como moderado que é difícil dar resultados”. No
diário “Correo”, o diretor ultraconservador Aldo Mariatégui foi mais longe e disse que “já
começou a operação de pentear o macaco”. (Folha de S. Paulo, 11/04/2011, p. A17).
O artigo, sem assinatura, é contrário à aprovação de projeto sobre a união civil
homoafetiva. Um trecho diz que a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo “contraria a
ordem das coisas”. (...) A aluna homossexual NYSS, 20, disse que ficou chocada,
principalmente ao ler o último parágrafo – onde se justifica que homossexuais não podem
expressar o amor, pois a relação sexual é feita “no mais puro estilo animal” (Folha de S.
Paulo, 09/12/2010, p. C10).
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Ao colocar o “outro” como antinatural, com o segundo tema, o discurso
intolerante vai tratá-lo ainda como “anormal”. Os iguais, ao contrario, são
“naturalizados” e considerados “normais”. Os exemplos acima desenvolvem também
esse tema: o candidato de origem indígena não é uma “pessoa normal” e a
homossexualidade “contraria a ordem das coisas”.
Com o terceiro tema, o da doença física e mental, o diferente é considerado
como doente e como louco, em oposição aos sadios de corpo e mente. A doença é
encarada como algo vergonhoso, de que o doente deve sentir-se também culpado. Ao
tema da saúde, somam-se, muitas vezes, características do discurso estético. Dessa
forma, a doença é feia, é esteticamente condenável, e, por outro lado, ser feio ou gordo é
doentio. Esse tema é característico, sobretudo, dos discursos homofóbicos que tratam a
homossexualidade como doença, mas também dos preconceituosos em relação aos
gordos, aos feios, aos surdos, aos cegos, aos fanhos, e pode aparecer em discursos
racistas e outros. Exemplifica-se com o “Rodeio das Gordas”, realizado por alunos da
UNESP, com os resultados de uma pesquisa sobre preconceito em relação a gordos ou
com as dificuldades de um pai em encontrar escolas que aceitassem seu filho deficiente:
O vencedor era quem mantivesse garota presa nos braços por mais tempo, após dizer a frase
“ Você é a menina mais gorda que eu já vi na vida”. (Folha de S. Paulo, 29/10/2010, p. C4).
Maioria não casaria com gordo, diz estudo.
Metade dos paulistanos e dos cariocas declara que não se casaria com uma pessoa obesa,
revela pesquisa inédita do HCor (Hospital do Coração), que será divulgada hoje em um
fórum sobre nutrição que acontece em São Paulo.(...) Os homens são os que mais rejeitam o
casamento com uma pessoa obesa (54% contra 46% das mulheres). Os de classe social A
lideram a rejeição: 66% contra 44% da classe B e 51% da classe C. Na avaliação de 81%
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dos entrevistados, o excesso de peso também interfere no sucesso profissional. (Folha de S.
Paulo, 05/11/2010, p.C1).
Na infância, ele era sempre o último a ser chamado nas “peladas” com os amigos. Na
adolescência, era deixado de lado nos bailinhos e só conseguia dançar música lenta se
alguma amiga o convidava. Na juventude, teve dificuldade para conseguir namorada e
também sofreu discriminação no ambiente de trabalho. (...) “Sempre fui gordo. Sei que
nunca serei magro. Já sofri muito por isso, mas hoje não mais. Sou feliz assim”. (...) Ele
lembra quando trabalhava em um banco e deixou de ser promovido para o cargo de auxiliar
de gerente, mesmo tendo mais conhecimento e habilidade do que o colega que conseguiu a
vaga. “Meu chefe disse que precisava de uma pessoa com aparência melhor”. (Folha de S.
Paulo, 05/11/2010, p.C1).
Com paralisisa, Kaio, 8, só foi aceito em colégio público na sexta tentativa
“Ninguém disse ‘não’ diretamente, mas falavam que a escola não estava preparada para
receber meu filho, que não tinha professor e que era melhor eu procurar outro lugar que
pudesse cuidar melhor dele”, relata o pai, que é garçom. Na sexta escola, a diretora não só
aceitou a criança como transferiu a turma da primeira série para o térreo, só para facilitar o
acesso de Kaio, que se locomove com a ajuda de aparelhos. (Folha de S. Paulo, 17/08/2010,
p. C1).
Os discursos intolerantes que desenvolvem o quarto tema, o da imoralidade, da
falta de ética do “diferente”, são dos tipos mais diversos: certas culturas são
consideradas “imorais”, a homossexualidade é “vergonhosa” e “promíscua”, algumas
variedades de língua são “erradas” e assim por diante. No exemplo abaixo, negros e
homossexuais são “mal-educados”, “promíscuos” e de “maus costumes”:
Congresso, gays e negros reagem contra declarações de deputado. Bolsonaro associa
namoro com negra a promiscuidade; depois diz que se referia a homossexuais.
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(...) No quadro, “O Povo Quer Saber”, do programa CQC, da TV Bandeirantes, a cantora
Preta Gil perguntou como ele reagiria se seu filho se apaixonasse por uma negra. O
parlamentar, que tem um extenso histórico de polêmicas relacionadas a direitos civis e
humanos, respondeu: “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu
não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambientes
como lamentavelmente é o teu”. Após o programa ir ao ar na noite de anteontem, Bolsonaro
tentou se justificar. Disse que, na realidade, pensou que a pergunta se referia a um
relacionamento gay. ”Essa se encaixa na resposta que eu dei. Para mim ser gay é
promíscuo, sim”.(...) Na entrevista, o deputado também disse que não iria a desfiles gays
porque não promove os “maus costumes”, que daria “porrada” se pegasse um filho
fumando maconha e que sente saudade dos generais que presidiram o país durante a
ditadura militar. (Folha de S. Paulo, 30/03/2011, p. C1).
O “diferente”, o “outro” é, portanto, nos discursos preconceituosos e
intolerantes, não-humano ou animalizado, antinatural e anormal, doente, sem estética e
sem ética. A expressão “uma gente diferenciada”, usada por uma moradora de
Higienópolis, contrária à instalação de estação de metrô no bairro, resume bem essa
caracterização semântica do “outro”:
“Eu não uso o metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o
tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente
diferenciada...” (Folha de S. Paulo, 13/08/2010, p.C4).
Resta observar apenas que a expressão “gente diferenciada” criou debate
linguístico, pois “diferenciado”, no Novo dicionário Aurélio é o que é distinguido,
diverso, diferente, ou seja, ser “diferenciado” não sofre valorização positiva ou
negativa. O uso mais freqüente n língua, porém, tem sido o da valorização positiva do
“diferenciado”: uma pessoa diferenciada tem qualidades especiais, um restaurante
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diferenciado é melhor que outros e assim por diante. A valorização negativa, tal como
ocorre na fala da moradora de Higienópolis acima citada, é menos comum. A discussão
linguística aproxima-se da que acontece no belíssimo conto de Guimarães Rosa “O
famigerado”. É uma pena que o fato atual ocorra em um discurso preconceituoso.
4. Exame da organização geral tensiva do discurso intolerante
Zilberberg (2007) propõe duas categorias, o exercício e o acontecimento, a que
correspondem duas grandes orientações discursivas, ou seja, pode-se falar em discurso
do exercício e em discurso do acontecimento. O discurso do exercício é o discurso dos
fatos extensos e ordinários, que se caracteriza pela organização mais racional e casual
da dependência – se A, então B –, como ocorre com os discursos históricos, no dizer do
autor. O discurso do acontecimento, por sua vez, é o dos fatos intensos e
extraordinários, que apresenta organização mais passional e concessiva – B, apesar de
A–, como nos discursos míticos. Os discursos preconceituosos e intolerantes são,
sobretudo, discursos do acontecimento, pois têm caráter fortemente passional e de
reação ao inesperado. No entanto, muito frequentemente, o discurso intolerante assume
a orientação mais inteligível e racional, e, sobretudo, causal, do discurso do exercício,
para que, dessa forma, a intolerância e o preconceito tenham uma causa, uma razão,
uma justificativa. Decorre daí o fato de os discursos intolerantes serem narrativas de
sanção, pois, assim organizados, eles explicitam a ruptura de contratos como causa da
sanção intolerante. Um dos procedimentos usados para estabelecer a razão ou as causas
da intolerância é a de explicá-las com os discursos da ciência. Os discursos racistas, por
exemplo, se apóiam nos discursos da biologia e da genética, sobretudo no século XIX, o
discurso do preconceito em relação à diversidade de gênero, no da medicina, e assim
por diante.
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Há, portanto, discursos intolerantes que se apresentam como discursos do
acontecimento e ooutros que se constroem como discursos do exercício. A escolha ou a
predominância de uma orientação discursiva e não da outra depende da época, dos
grupos envolvidos e das estratégias usadas. As orientações discursivas têm papel
fundamental na relação entre enunciador e enunciatário do discurso. O enunciador, ao
dar a seu discurso a orientação do exercício ou a do acontecimento, usa estratégias para
a persuasão de seu enunciatário. No caso dos discursos intolerantes, ele apresenta como
racionais, e até mesmo justificados pela objetividade da ciência, discursos
marcadamente passionais.
Como conclusão, deve-se dizer, que, se os discursos intolerantes apresentam as
características acima descritas, para a construção de discursos tolerantes e para que haja
aceitação social, é preciso elaborar discursos com estratégias, temas e valores contrários
aos aqui examinados. Os contratos deverão ser os de multilinguismo, de mistura, de
mestiçagem, de diversidade sexual, de diálogo com as diferença, de pluralidade
religiosa, para que o “diferente”, o “outro”, não seja mais considerado como aquele que
rompe pactos e acordos sociais, por não ser “humano”, por ser contrário à “natureza”,
por ser doente e sem ética ou estética, mas, ao contrário, seja visto como aquele que
garante novos e promissores contratos sociais. A sanção positiva e as paixões
benevolentes, que nos discursos intolerantes só se aplicam aos “iguais, ao “nós”, se
estenderiam, assim, aos diferentes, a “eles”. Os estudos da linguagem podem e têm dado
sua contribuição para que esse caminho se faça.
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