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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011 Constituição, Tempo e Destruição [em Sartre] Constitution, Time and Destruction [in Sartre] Diego Guimarães 1 - Universidade Federal de Minas Gerais Resumo: Trataremos, através da filosofia de Husserl e Sartre (principalmente), da consciência constituinte e da posterior destruição do constituído, ou seja, analisaremos a relação temporal entre constituição e destruição, ao mesmo tempo em que estabeleceremos relações entre a transcendência e o nada. Palavras-chave: Consciência, Constituição, Destruição, Temporalidade, Transcendência. Abstract: We are going to treat, through philosophy of Husserl and Sartre (principally), about the constituent consciousness and the posterior destruction of the constituted, it means, we are going to analyze the temporal relation between constitution and destruction, in the same time that we are going to establish relations between the transcendence and the nothingness. Keywords: Consciousness, Constitution, Destruction, Temporality, Transcendence. Introdução artindo da análise do conceito de transcendência, bem como de outros conceitos fenomenológicos, tais como os de redução, intencionalidade e objeto intencional, definiremos a consciência constituinte e a relacionaremos com o transcendente. Veremos que essa relação se dá temporalmente, através da organização sucessiva antes-depois, sendo esta uma estrutura fundamental do ser-Para-si. Após esse detalhamento sobre a constituição e o tempo, daremos um passo rumo ao “nada no coração do ser”, através do estudo sobre a conduta humana destruição 2 . Será então possível, através da descrição dessa conduta, evidenciar o nada da realidade humana e sua importância para a transcendência. 1 Graduando em Filosofia pela UFMG, bolsista PET (MEC/SESu). E-mail: [email protected] Pesquisa desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva. 2 Na primeira parte de O ser e o nada, itens 1 e 2 do Capítulo I, Sartre faz uma investigação sobre as condutas humanas interrogação e destruição. “Mas cada uma das condutas humanas, sendo conduta do homem no mundo, pode nos revelar ao mesmo tempo o homem, o mundo e a relação que os une [...]” (SARTRE, 2005, p. 44). P

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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da

Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011

Constituição, Tempo e Destruição [em Sartre]

Constitution, Time and Destruction [in Sartre]

Diego Guimarães1 - Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: Trataremos, através da filosofia de Husserl e Sartre (principalmente), da consciência constituinte e da posterior destruição do constituído, ou seja, analisaremos a relação temporal entre constituição e destruição, ao mesmo tempo em que estabeleceremos relações entre a transcendência e o nada. Palavras-chave: Consciência, Constituição, Destruição, Temporalidade, Transcendência. Abstract: We are going to treat, through philosophy of Husserl and Sartre (principally), about the constituent consciousness and the posterior destruction of the constituted, it means, we are going to analyze the temporal relation between constitution and destruction, in the same time that we are going to establish relations between the transcendence and the nothingness. Keywords: Consciousness, Constitution, Destruction, Temporality, Transcendence.

Introdução

artindo da análise do conceito de transcendência, bem como de outros

conceitos fenomenológicos, tais como os de redução, intencionalidade e objeto intencional,

definiremos a consciência constituinte e a relacionaremos com o transcendente. Veremos que

essa relação se dá temporalmente, através da organização sucessiva antes-depois, sendo esta

uma estrutura fundamental do ser-Para-si. Após esse detalhamento sobre a constituição e o

tempo, daremos um passo rumo ao “nada no coração do ser”, através do estudo sobre a

conduta humana destruição2. Será então possível, através da descrição dessa conduta,

evidenciar o nada da realidade humana e sua importância para a transcendência.

1 Graduando em Filosofia pela UFMG, bolsista PET (MEC/SESu). E-mail: [email protected] Pesquisa desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva. 2 Na primeira parte de O ser e o nada, itens 1 e 2 do Capítulo I, Sartre faz uma investigação sobre as condutas humanas interrogação e destruição. “Mas cada uma das condutas humanas, sendo conduta do homem no mundo, pode nos revelar ao mesmo tempo o homem, o mundo e a relação que os une [...]” (SARTRE, 2005, p. 44).

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Para efetuarmos este estudo, utilizaremos, principalmente, O ser e o nada (1943) e

todas as outras obras de Sartre, estritamente filosóficas, anteriores a esta, a saber: A

transcendência do ego (1934), A imaginação (1936), Esboço para uma teoria das emoções

(1939) e O imaginário (1940). Além destas obras, utilizaremos o volume I do Ideias para

uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (Ideias I) e as Investigações

Lógicas, obras de Husserl que nos ajudará a compreender os conceitos fenomenológicos

necessários para nossa empreitada. Outro texto que nos será útil é o ensaio publicado por

Sartre no volume I de Situações, em 1947, onde o autor aborda a fenomenologia husserliana,

principalmente o conceito de intencionalidade.

Constituição

Com a teoria exposta em A transcendência do Ego, a consciência transcendental como

espontaneidade impessoal, Sartre coloca a consciência existindo apenas enquanto ato e, além

disso, coloca-a como totalmente vazia: não há nada na consciência, nem mesmo o Ego. A

este, analisado por Sartre sob dois aspectos, o Eu e o Mim3, que juntos são o Ego, o filósofo

confere o caráter de objeto4. Totalmente vazia e impessoal, a consciência, e não um eu

individual, constitui o mundo da realidade humana. A imaginação e O imaginário têm a

mesma tese de A transcendência do Ego como princípio: a vacuidade da consciência.

Enquanto em A imaginação5 o autor prepara o terreno para uma descrição fenomenológica da

imagem, em O imaginário ele efetua esse exercício e expande a idéia de constituição do

mundo a partir da consciência, com conceitos que lhe serão caros pelo resto de sua carreira

filosófica. As relações entre a liberdade, o nada e a constituição do mundo são expostas

através das relações que Sartre estabelece, na sua teoria da imagem, entre o imaginar e o

perceber. A principal característica pertencente a ambos diz respeito ao posicionamento: tanto

3 “O Eu é o Ego como unidade de ações. O Mim é o Ego como unidade de Estados e de qualidades”. Tradução livre de: “Le Je c’est l’Ego comme unité des actions. Le Moi c’est l’Ego comme unité des États et des qualités” (SARTRE, 2003, p. 44). 4 “Meu Ego é, ele próprio, um ser do mundo, tal qual o Ego de outra pessoa. Sartre fundava assim uma de suas crenças mais antigas e mais obstinadas: há uma autonomia da consciência irrefletida [...]” (BEAUVOIR, 2010, p. 184). 5 “Não há, não poderia haver, imagens na consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato, não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa” (SARTRE, 2008, p. 137).

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em uma, quanto na outra, há uma tese6. Porém, o perceber é uma tese realizante, enquanto que

a imaginação é uma tese irrealizante. Em outras palavras, se enquanto percebemos

constituímos o real, ao imaginarmos, constituímos o irreal, a partir da negação da realidade. A

estreiteza da relação entre imaginação e percepção Sartre evidencia na parte final de O

imaginário: da mesma maneira que negamos o mundo ao imaginar, o negamos ao perceber,

pois este também é um ato transcendental da consciência e, conseqüentemente, exige um

recuo para poder posicionar7. Assim, posicionar é nadificar, trata-se de um único ato, pois

posicionar-se demanda uma transcendência da consciência, que é caracterizada pela liberdade

e, conseqüentemente, pelo nada que possibilita essa transcendência.

A consciência transcendental é a consciência constituinte. Como Sartre afirma no

Esboço para uma teoria das emoções, essa consciência transcendental e constituinte é

atingida (alcançada) pela redução fenomenológica8. Para darmos seqüência a este estudo é

imprescindível recorrermos a Husserl para deixarmos evidentes alguns conceitos de sua

fenomenologia, tal como o conceito de redução, que está tanto na base da filosofia

husserliana, quanto na base da filosofia sartreana.

A fenomenologia pode ser definida como uma ciência da consciência pura

transcendental, cujo objetivo é descrever as relações entre uma consciência pura (consciência

independente de eu, seja um eu psicológico ou um eu em geral) e o objeto por ela

intencionado (o objeto tal como ele aparece à consciência). Essa descrição é o caminho e o

processo das reduções (fenomenológica, psicológica e transcendental) e seu objetivo último é

6 Tese no sentido fenomenológico de colocar como existente. 7 “Assim, a análise crítica das condições de possibilidade de toda imaginação nos conduziu às seguintes descobertas: para imaginar, a consciência deve ser livre para relacionar toda a realidade particular e esta liberdade deve poder definir-se para um 'ser-no-mundo' que é, ao mesmo tempo, constituição e nadificação do mundo; a situação concreta da consciência no mundo deve a qualquer instante servir de motivação singular à consciência do irreal. Assim, o irreal – que é sempre duplo nada: nada de si mesmo com relação ao mundo, nada do mundo com relação a si mesmo – deve sempre ser constituído sobre o fundo do mundo que ele nega, sendo bem entendido, por outro lado, que o mundo não se livra somente a uma intuição representativa e que este fundo sintético demanda simplesmente ser vivido como situação”. Tradução livre de: “Ainsi l’analyse critique des conditioins de possibilité de toute imagination nous a conduit aux découvertes suivantes: pour imaginer, la conscience doit être libre par rapport à toute réalité particulière et cette liberté doit pouvoir se définir par un « être-dans-le-monde » qui est à la fois constituition et néantisation du monde; la situation concrète de la conscience dans le monde doit à chaque instant servir de motivation singulière à la constituition d’irréel. Ainsi l’irréel – qui est toujours double néant : néant de soi-même par rapport au monde, néant du monde par rapport à soi – doit toujour être constitué sur le fond du monde qu’il nie, étant bien entendu par ailleurs que le monde ne se livre pas seulement à une intuition représentative et que ce fond synthétique demande simplement à être vécu comme situation” (SARTRE, 1986, p. 356-7). 8 “Se quisermos fundar uma psicologia, teremos que remontar mais acima que o psíquico, mais acima que a situação do homem no mundo, até a origem do homem, do mundo e do psíquico: a consciência transcendental e constitutiva que atingimos pela 'redução fenomenológica' ou 'colocação do mundo entre parênteses'" (SARTRE, 2009, p. 21).

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encontrar o que o objeto intencionado tem e que permanece para uma consciência pura, em

outras palavras, as reduções levam à essência do objeto intencional9, que é o sentido do objeto

fático. Portanto, a consciência (o transcendental) age intencionalmente sobre o objeto (o

transcendente), visando-o, dirigindo-lhe toda a sua atenção. A consciência só age dessa

maneira, intencionalmente, e, “a essa necessidade de existir como consciência de outra coisa

que não si mesma, Husserl chamou de intencionalidade” (SARTRE, 1947, p. 31). Se a

consciência existe apenas enquanto se dirige a um objeto e esse objeto só é alcançável, em

sentido, por esse ato, podemos concluir que o objeto, através da intencionalidade10, constitui-

se na e para a consciência11.

Na Introdução de O ser e o nada, Sartre afirma: “A consciência é consciência de

alguma coisa: significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer

dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é” (SARTRE, 2005, p. 34).

Assim, podemos analisar a transcendência a partir de dois modos de ser: transcendente e

transcendental. O transcendente é plena positividade, ele é si mesmo, é em si; é devido a tais

características que Sartre o chama de ser-Em-si. Já o transcendental, denominado ser-Para-si,

não é mais do que possibilidade; preso em um circuito de possíveis que não se concretizam

(circuito da ipseidade12), o Para-si é falta, é o que é à maneira de não sê-lo; ele não é o que é e

é o que não é. Ele não é o que é porque é possibilidade de ser qualquer coisa. O ser

transcendental é nada para poder ser qualquer transcendente. Apenas se distanciando no e do

nada é possível a transcendência e, portanto, a consciência transcendental, totalmente livre,

tem o nada como fundamento e, justamente por isso, ela pode ser um ser que ela não é, ou, o

que é mais útil afirmar para nosso estudo, é por isso que a consciência constitui. 9 “Tal como a percepção, todo vivido intencional possui – é justamente isto que constitui o ponto fundamental da intencionalidade – seu 'objeto intencional'” (HUSSERL, 2006, p. 206). 10 “A intencionalidade é aquilo que caracteriza a consciência no sentido forte, e que justifica ao mesmo tempo designar todo o fluxo de vivido como fluxo de consciência e como unidade de uma única consciência” (HUSSERL, 2006, p. 190). 11 Sobre a autodoação de sentido pela consciência, André de Muralt escreve na Metafísica do fenômeno: “Assim, a autodoação de sentido da subjetividade transcendental ganha uma significação nova e singularmente esclarecedora. O objeto em geral é motivado transcendentalmente na subjetividade constituinte. Esta, por sua vez, deve motivar-se, isto é, exibir seus títulos de validade transcendental, de seu legítimo direito transcendental; isso porque tudo deve ser legitimado transcendentalmente e, uma vez que aqui se trata de subjetividade transcendental, é preciso dizer que a própria subjetividade transcendental deve ser motivada numa evidência constitutiva, ou seja, nela e por ela mesma. É por isso que a consciência transcendental de si é a última palavra da fenomenologia, consistindo na evidência constitutiva da própria subjetividade transcendental: é nela que o pressuposto fundamental de todo objeto encontra sua origem motivadora, isto é, sua intuitividade apodítica. A subjetividade transcendental constitui-se, portanto, na medida em que toma consciência transcendentalmente de si mesma e, ao se constituir, ela dá a si mesma seu sentido”(MURALT, 1998, p. 23-4). 12 “Na ipseidade, meu possível se reflete sobre minha consciência e a determina como aquilo que é. [...] O Para-si é si mesmo lá longe, fora de alcance, nas lonjuras das suas possibilidades. E esta livre necessidade de ser longe do que é em forma de falta constitui a ipseidade [...]” (SARTRE, 2005, p. 156).

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Não só a constituição, mas também a destruição, é ato na e para a consciência. Da

mesma maneira que o constituído só é vivido enquanto ato, destruir é um ato de constituir

frente a algo constituído previamente, ou seja, alterar um constituído constituindo algo outro.

Só é possível destruir o que se tem por existente, só é possível destruir algo que era antes.

Assim, entre o constituído e o destruído há uma relação de antes e depois. “É no 'tempo' que o

Para-si é seus próprios possíveis no modo de “não ser”; é no tempo que meus possíveis

aparecem nos limites do mundo que tornam meu” (SARTRE, 2005, p. 157). Para melhor

compreendermos a constituição e a destruição, é necessário, portanto, uma análise sobre o

tempo.

Tempo

O ser-Para-si é à distância, longe de si. É si apenas na medida em que se relaciona com

um Em-si, à medida que se faz Em-si, à medida que é passado. Apenas no antes o humano

tem algum é Em-si, apenas no passado ele está definido, pois o passado é passado de um

presente, havendo uma permanência de algo ou alguém que era antes. Ele, o passado, é algo

que era e não é mais da mesma maneira, é um Para-si convertido em Em-si. “O passado é um

Para-si recapturado e inundado pelo Em-si” (SARTRE, 2005, p. 197).

Não é o passado que é um presente, mas o contrário: o presente é presente de um

passado à maneira do era e isso significa que não me dissocio de meu passado, que mais que

o ter, eu o sou. Contudo, como salienta Sartre, “não o sou, já que eu o era” (SARTRE, 2005,

p. 169). Sou e não sou meu passado, pois o sou à maneira do Para-si, este que é o próprio

presente. Mas esse presente não é o instante, significado comum que lhe é atribuído, pois o

instante pressupõe um é, um momento em que se é algo definido, e a realidade humana não se

define assim. Enquanto o passado é um ser que sou à maneira de não sê-lo (o Em-si da

realidade humana), o presente é presença a um ser que não sou. “A presença a... é uma

relação interna do ser que está presente com os seres aos quais está presente. [...] Presença a...

significa existir fora de si junto a...” (SARTRE, 2005, p. 174). Nesse sentido, o Para-si é

presença a um ser-Em-si.

Já que o transcendental deve ser sempre presença a algo e nunca sê-lo, o ser-Para-si é

necessariamente possibilidade. Isso é o futuro. Ele não tem ser, ele é característica (lei

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ontológica) do Para-si, ou seja, somente posso ser o futuro: “Significa que o futuro constitui o

sentido de meu Para-si presente, como o projeto de sua possibilidade, mas não determina de

modo algum meu Para-si por-vir, já que o Para-si está sempre abandonado nesta obrigação

nadificadora de ser o fundamento de seu nada” (SARTRE, 2005, p. 183).

Passado, presente e futuro, a temporalidade, é uma totalidade vinculada de maneira

sucessiva13 e irreversível, ou seja, essas três dimensões temporais obedecem à relação antes-

depois. Não é a temporalidade que é, o Para-si é que se temporaliza.

[...] a temporalidade só pode designar o modo de ser de um ser que é si-mesmo fora de si. A temporalidade deve ter a estrutura da ipseidade. Com efeito, somente porque o si é si lá adiante, fora de si, em seu ser, pode ser antes ou depois de si, pode ter, em geral, um antes e um depois (SARTRE, 2005, p. 192).

Vimos, portanto, como a consciência constituinte (o transcendental, o Para-si) se

organiza através da relação antes-depois. É nesse depois que repousa a possibilidade de

destruir, assunto que desenvolveremos na próxima parte.

Destruição

Ao falarmos de destruição, não estamos tratando de um pensamento, mas de um fato

objetivo: o constituído está no mundo e qualquer ação concreta sobre ele é uma ação sobre o

mundo. Depois de uma tempestade14, por exemplo, não há mais ou menos do que antes. Há

modificação apenas para um testemunho que possa comparar o que era antes com o que é

agora. Apenas um ser que se relaciona com outros seres pode agir de tal maneira sobre eles,

destruí-los, levá-los de um Em-si a outro Em-si. Uma tempestade não é capaz de destruir

nada, mas o homem, tudo.

A destruição é um depois que se aplica a um antes, a uma constituição prévia. Para que

ela aconteça, é necessário que haja “uma relação entre o homem e o ser” (SARTRE, 2005, p.

49), e essa relação é uma transcendência da consciência constituinte e transcendental ao

transcendente. Ela, a destruição, é uma conduta humana: “[...] presume que o ser humano

primeiro repouse no bojo do ser para em seguida dele desgarrar-se por um recuo nadificador”

13 Sucessão é a “ordem cujo princípio ordenador é a relação antes-depois” (SARTRE, 2005, p. 185). 14 Exemplo do próprio Sartre. Cf. SARTRE, 2005, p. 48.

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(SARTRE, 2005, p.68). Como vimos, isso se dá como presença: o Para-si faz-se presente a

um Em-si, ou seja, a consciência constitui por si própria o seu objeto, tal como o intenciona. É

ao visar esse objeto, ao direcionar toda a sua atenção para constituí-lo, que nasce a

possibilidade de destruí-lo.

Para haver a destruição, o homem deve “apreender” um ser como destrutível

(SARTRE, 2005, p. 49), o que “pressupõe um corte limitativo”, ou, em outras palavras, uma

nadificação. Ao nadificar, o ser-Para-si torna para si o que é em si, e, além disso, nada fica,

nada há: “O ser é isso, e, fora disso, nada” (SARTRE, 2005, p. 46). Através da análise da

conduta humana, Sartre chega à conclusão de que o que possibilita a transcendência do ser

humano é o nada15. Este, o nada, vem do próprio homem, não é nem ser nem não-ser: o nada

vem ao ser pelo humano16. Trata-se de um duplo movimento de nadificação, pois, ao fazer

surgir o nada, o homem infesta-se de não-ser (SARTRE, 2005, p. 66). Assim, podemos

concluir que somente na ação17 do ser-Para-si é que há o nada:

O nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme (SARTRE, 2005, p.64).

O homem recua em seu nada18, nadificando para instalar o mundo, constituí-lo, e, da

mesma maneira, recua no nada para destruí-lo.

15 O que pode ser notado, em certa medida, já em Husserl: “[...] nós colocamos todas essas teses 'fora de ação', não compartilhamos delas; dirigimos nosso olhar que apreende e investiga teoricamente para a consciência pura em seu ser próprio absoluto. Isso, portanto, é o que resta como o resíduo fenomenológico que se buscava, e resta, embora tenhamos 'posto' o mundo inteiro, com todas as coisas, os seres viventes, os homens, inclusive nós mesmos, 'fora de circuito'. Não perdemos propriamente nada, mas ganhamos todo o ser absoluto, o qual, corretamente entendido, abriga todas as transcendências mundanas, as 'constitui” em si'. (HUSSERL, 2006, §50, p.117). Portanto, o resíduo último é uma correlação entre a consciência constituinte e o nada, ou seja, entre o ser e o nada. 16 E isso significa que somente no ser pode haver o nada. “Significa que o ser é anterior ao nada e o fundamenta”. Cf. SARTRE, 2005, p. 58. 17 “O nada não pode ser nada, a menos que se nadifique expressamente como nada do mundo; quer dizer, que, na sua nadificação, dirige-se expressamente a este mundo de modo a se constituir como negação do mundo. O nada carrega o ser em seu coração”. (SARTRE, 2005, p.60). 18 Ao recuar, o homem leva o nada ao mundo. Cf. SARTRE, 2005, p. 65.

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Submetido em: 04/09/2011 Aceito em: 20/10/2011