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Constituioe proCesso

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Constituioe proCesso

2007

CoordenadoresFredie didier Jr.

professor-adjunto da Faculdade de Direito da universidade Federal da Bahia (graduao, mestrado e doutorado). professor dos cursos JuspoDiVM e LFG sistema

de ensino telepresencial. Mestre (uFBA) e Doutor (puC/sp). Advogado e consultor jurdico. www.frediedidier.com.br

Luiz rodrigues WambierDoutor em Direito pela puC/sp. Mestre em Direito pela universidade estadual

de Londrina. professor do curso de Mestrado em Direito da universidade de ribeiro preto. professor do curso de especializao em Direito processual Civil

da puC/sp. Membro do instituto Brasileiro de Direito processual. Advogado.

Luiz manoeL gomes Jr.Mestre em processo Civil pela puC/sp. professor de Direito processual

Civil e prtica Forense da Faculdade de Direito de Barretos. Doutor (puC/sp). Coordenador do curso de Mestrado em Direito da universidade

de ribeiro preto. ps-Graduado em Direito empresarial. Advogado.

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Capa: Carlos rio Branco BatalhaDiagramao: Mait Coelho [email protected]

Conselho EditorialDirley da Cunha Jr.Fernanda MarinelaFredie souza Didier Jr.Gamil Fppel el Hirechenestor tvora

Jos Marcelo Vigliarpablo stolze Gaglianorobrio nunes Filhorodolfo pamplona Filhorodrigo reis Mazzeirogrio sanches Cunha

todos os direitos desta edio reservados edies JuspoDiVM.

Copyright: edies JuspoDiVM terminantemente proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorizao do autor e da edies JuspoDiVM. A violao dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislao em vigor, sem prejuzo das sanes civis cabveis.

rua rodrigues Dria, 163 Jardim Armaotelefax.: (71) 3363.5050Cep: 41750-030 salvador Bahiae-mail: [email protected]

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sumrio

Notas dos coordenadores ............................................................................. 9

Captulo IGuarda compartilhada de filhos aps a rupturado casamento/unio estvel e o direito de convivncia (art. 227/CF):subsdios da interdisciplinaridade para a adequada instruodo processo e fundamentao da deciso ....................................................... 13Andr Bonelli Rebouas

Captulo IIBreves comentrios sobre a regulamentao da smula vinculante .............. 27Arthur Mendes Lobo

Captulo IIIA competncia especial por prerrogativa de funo para ex-agentespblicos: uma anlise do julgamento das ADi 2797-DF e 2860-DF ............. 51Artur Ferrari de Almeida e Eduardo Ferreira Jordo

Captulo IVAplicao da garantia do Juiz natural no Judicirio do estado da Bahia ..... 79Edval Borges da Silva Segundo

Captulo Vprincpios constitucionais relativos priso processualno Brasil: o problema da inefetividade:Diagnstico crtico e alternativas de superao ............................................. 97Elmir Duclerc

Captulo VIDistribuio do nus da prova luz do princpio da igualdade .................... 115Erica Rusch Daltro Pinto

Captulo VIIos princpios fundamentais processuais e sua aplicao nas relaes de emprego ....................................................... 155Flvia Moreira Guimares Pessoa

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Captulo VIIIo devido processo legal e a exclusodo scio: notas ao art. 57 do Cdigo Civil ..................................................... 169Fredie Didier Jr.

Captulo IXAnotaes sobre o princpio constitucional do juiz natural ........................... 173Geisa de Assis Rodrigues

Captulo XAs premissas do poder constitucional. um novo constitucionalismo ............ 199Juventino de Castro Aguado e Olga Apda. Campos Machado Silva

Captulo XIMecanismos processuais de controle social do estado reguladorcontemporneo brasileiro: limites atuao das agncias reguladoras ......... 251Lucas de Souza Lehfeld

Captulo XIIos arts. 49 e 50 da Lei 10.931/2004 e o direito fundamental moradia ....... 285Luiz Rodrigues Wambier

Captulo XIIIConstituio e redistribuio de processos na justia do trabalho ................. 291Manoel Jorge e Silva Neto

Captulo XIVDefinindo a importncia da teoria do abuso de direito processual frente aos princpios constitucionais ............................................ 307Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega e Frederico Garcia Pinheiro

Captulo XVJurisdio constitucional e alguns aspectos da ao de mandado de segurana individual ................................................ 341Marta Maria Gomes Silva

Captulo XVIDireito Fundamental processualizao ....................................................... 367Miguel Calmon Dantas

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Captulo XVIIA competncia constitucional do estadomembro para legislar sobre processo ............................................................. 437Patrcia da Costa Santana

Captulo XVIIIFuno social da microempresa e empresa de pequeno porte ....................... 469Paulo Roberto Colombo Arnoldi

Captulo IXsobre o Direito Fundamental Jurisdio ..................................................... 547Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

Captulo XXReflexes sobre o Princpio da Proporcionalidade ........................................ 573 no Direito processual contemporneoRicardo Maurcio Freire Soares

Captulo XXIA fungibilidade luz dos princpios constitucionais: incidncia do princpio da proporcionalidade ............................................... 603Rita de Cssia Corra de Vasconcelos

Captulo XXIIA nova Competncia da Justia do trabalho (uma Contribuio para a Compreenso dos Limitesdo novo Art. 114 da Constituio Federal de 1988) ...................................... 625Rodolfo Pamplona Filho

Captulo XXIIIo princpio da proporcionalidade e o poder de criatividade judicial ............ 653Sabrina Dourado Frana Andrade

Captulo XXIVo Juiz natural e a competncia das varasde substituio do estado da Bahia ................................................................ 681Sebstian Borges de Albuquerque Mello

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notas dos Coordenadores

com muita satisfao que apresentamos essa coletnea de trabalhos sobre as relaes entre o direito processual e a Constituio.

so textos produzidos por professores e alunos dos programas de ps-gradu-ao da universidade Federal da Bahia (uFBA) e da universidade de ribeiro preto (unAerp), em so paulo. trata-se do incio de um projeto de integrao destes dois programas, que d o primeiro passo oferecendo ao pblico esse belo conjunto de textos.

os professores da uFBA Manoel Jorge silva neto, rodolfo pamplona Filho, Geisa de Assis rodrigues e Fredie Didier Jr., um dos coordenadores deste livro, trouxeram suas contribuies. os dois primeiros enfocaram peculiaridades do processo jurisdicional trabalhista; Geisa cuidou do princpio do juiz natural e o ltimo examinou o art. 57 do Cdigo Civil, luz da eficcia horizontal e imedia-ta dos direitos fundamentais.

Da unAerp enviaram seus trabalhos os professores Lucas de souza Lehfeld, Maria Cristina Vidotte Blanco tarrega, rita de Cssia Correa de Vas-concelos, Juventino de Castro Aguado, paulo roberto Colombo Arnoldi e Luiz rodrigues Wambier. Lucas trata de questo atualssima, a respeito de que mui-to pouco se produziu, at aqui, na doutrina brasileira: o controle da atuao das agncias reguladoras. Maria Cristina, em co-autoria com o advogado e professor goiano, Frederico Garcia pinheiro, trata de hipteses de abuso de direito processual, frente aos princpios constitucionais. rita oferece trabalho ligado ao princpio da fungibilidade, luz da Constituio Federal. Juventi-no, em trabalho feito em co-autoria com a procuradora Federal e Mestre em Direito pela unAerp, olga Campos Machado silva, trata das premissas do poder constitucional. paulo Arnoldi trata da funo social da microempresa e da empresa de pequeno porte. Wambier, a seu turno, escreve sobre o direito fundamental moradia, sob o enfoque especfico que a esse tema deu a Lei 10.931/2004.

patrcia santana, mestranda pela uFBA e procuradora autrquica, examinou o conceito de norma de procedimento, indispensvel para a definio das com-petncias constitucionais legislativas. rica rusch, advogada e tambm mestran-da pela UFBA, verificou em que medida possvel aplicar as normas constitu-cionais no estudo sobre o nus da prova.

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Miguel Calmon Dantas, procurador do estado da Bahia e mestrando pela uF-BA, apresenta uma belssima contribuio para a teoria do processo, pensamento que precisar ser difundido e que vem sendo trabalhado no curso de teoria do processo, ministrado por um dos coordenadores desta coletnea, na mencionada universidade: o direito fundamental processualizao dos procedimentos.

trs doutorandos em Direito do recm-criado curso de Doutorado da uFBA contriburam com a coletnea: ricardo Maurcio, professor-assistente na mesma universidade, tratou do princpio da proporcionalidade, mesmo tema, embora sob outro enfoque, de sabrina Dourado, professora da FtC e graduada pela uni-FACs; Flvia pessoa, professora da universidade Federal de sergipe, desenvol-veu o tema da aplicao dos direitos fundamentais processuais s relaes de emprego; sebastian Mello, professor das Faculdades Jorge Amado, cuidou, tam-bm, da garantia do juiz natural, mesmo tema abordado, embora com enfoques distintos, por edval Borges segundo, mais novo bacharel em direito pela uFBA, que nos apresenta um trecho do seu trabalho de concluso de curso.

elmir Duclerc e Andr Bonelli, embora no sejam alunos da uFBA, so ilustres processualistas baianos, que foram convidados a participar deste projeto e apresentar as suas contribuies. o primeiro tratou, de maneira sistemtica, dos princpios constitucionais processuais penais; o segundo, dos aspectos constitu-cionais da ao de guarda de filhos.

eduardo Jordo e Artur Ferrari, egressos do curso de graduao em Direito da uFBA, e atualmente mestrandos na universidade de so paulo, enfrentam o polmico tema da competncia especial por prerrogativa de funo para ex-agentes pblicos, examinando o posicionamento do stF a respeito.

pedro Henrique, mestre pela universidade Federal das Alagoas e partici-pante do grupo de pesquisa coordenado por um dos coordenadores deste livro, apresenta excerto de sua dissertao de mestrado, em que expe o que ele con-vencionou chamar de direito fundamental jurisdio.

Arthur Mendes Lobo, advogado e aluno do programa de Mestrado da unA-erp, trata de tema atual, polmico e importantssimo para os operadores do Di-reito: comenta a regulamentao da smula vinculante. Marta Maria Gomes sil-va, do mesmo programa da unAerp, analisa relevantes aspectos do mandado de segurana, em sede de jurisdio constitucional.

est lanada, como dissemos logo ao incio desta apresentao, a semente da integrao entre os programas de ps-graduao da uFBA e da unAerp.

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trata-se de universidades de diferentes regies do pas, com linhas de pesquisa distintas, mas, ambas, com objetivos convergentes, ligados ao aprimoramento do estudo do Direito e de suas mltiplas implicaes scio-econmicas e polticas.

salvador/Curitiba/ ribeiro preto, cidades brasileiras, vero de 2007.

Fredie Didier Jr.

Luiz Rodrigues Wambier

Luiz Manoel Gomes Jr.

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* Mestrando (uCsal). professor da Faculdade rui Barbosa e da universidade Catlica do salvador.

CaptuLo iguarda CompartiLhada de FiLhos aps a ruptura

do Casamento/unio estveL e o direito de ConvivnCia (art. 227/CF): subsdios da interdisCipLinaridade

para a adequada instruo do proCesso e Fundamentao da deCiso

Andr Bonelli Rebouas*

A guarda dos filhos menores quando da ruptura familiar provocada pela se-parao ou divrcio litigioso tem sido decidida, de ordinrio, segundo a adoo de critrios interpretativos excessivamente literais, focados numa leitura fisiol-gica do art. 1.584, caput, do Cdigo Civil. preciso porm ter em vista que o tema deve ser tratado conforme os princpios que aliceram a proteo integral ao interesse do menor que a Constituio consagra, os quais, por sua vez, devem ser colhidos com o necessrio auxlio interdisciplinar da psicologia e sociologia, principalmente, considerando os diversos matizes e questionamentos que cercam os atores envolvidos pais e filhos , mas tendo a prole como protagonista.

os pressupostos da guarda no ordenamento jurdico brasileiro, as suas moda-lidades e os critrios de racionalidade observados segundo os fatos da causa, so aportes dos quais o juiz se vale para decidir quem dos consortes revela melhores condies de exerc-la (art. 1.584 do Cdigo Civil) ou se ambos concomitante-mente o que seria desejvel , podem faz-lo no sentido de preservar o direito de convivncia (art. 227 da Constituio Federal). esta escolha reclama, todavia, uma percepo mais ampla do julgador quanto subjetividade dos envolvidos, exigindo-lhe um conjunto de informaes que devem passar por abordagens multidisciplinares associados ao novo desenho constitucional do Direito de Fa-mlia, sem o que a sua deciso estar desconectada da realidade a ser regulada.

por isso, rompendo as amarras das tradies, devem os intrpretes do Direito perseguir esses novos enfoques. Como alerta Gustavo tepedino (2004, p. 307)

Cuida-se, pois, de uma reconstruo das categorias do direito de famlia, reno-vado pelos valores existenciais, processo hermenutico cuja importncia avulta no exame da filiao. A relao parental, com efeito, e em particular a filiao, pe em evidncia uma srie de situaes jurdicas existenciais incompatveis com

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o tratamento dogmtico tradicionalmente forjado nas relaes patrimoniais. ou seja, estudam-se com freqncia as relaes entre pais e filhos a partir da estrutura do direito subjetivo, categoria tpica dos direitos patrimoniais e, por isso mesmo, inapto a servir de paradigma para as situaes jurdicas existenciais que medeiam o reconhecimento da filiao e a educao dos filhos como processo destinado afirmao e ao desenvolvimento da personalidade.

Impe-se que seja verificado, nesse propsito, se a guarda unilateral aquela que permite a apenas um dos pais a custdia da criana ou adolescente no ps-separao litigiosa , atende realmente proteo integral da criana, garantin-do-lhe o direito de convivncia com os pais, diante do que se pode dar espao dignidade dessa pessoa humana em formao, conforme patenteado na Consti-tuio Federal. De igual modo, deve-se visualizar se os mecanismos de instruo processual e as tcnicas de interpretao e deciso hoje disponveis oferecem ao juiz os elementos necessrios correta fundamentao interdisciplinar de sua deciso.

num primeiro momento interessante destacar o que boa parte da doutrina e da jurisprudncia tem posto em termos da guarda do menor depois da ruptura, em meio a conflitos, da sociedade conjugal. Tm esses segmentos, refletindo o dizer da Lei Civil, enfatizado a guarda unilateral como sendo a mais adequada para os filhos de pais separados que no acordam sobre suas custdias, calcando esse raciocnio, precipuamente, no argumento de que a guarda compartilhada entre os pais seria algo incompatvel com a ruptura litigiosa do consrcio conjugal. sin-tetizando esse entendimento eduardo de oliveira Leite (1997, p. 264) adverte que

em Direito Civil, a expresso no tem sentido, ou imprpria, como j alertava Fulchiron, porque o conceito civilista da guarda indissocivel da presena da criana. enquanto a famlia permanece unida, a guarda conjunta perfeitamente admissvel. Questionar-se-ia sobre a realidade de tal expresso quando a famlia j se encontra separada. A separao dos pais e o inevitvel afastamento de um dos genitores da presena do filho impediria a guarda conjunta. Guarda conjunta no guarda, atribuio de prerrogativas.

Com freqncia, nossos tribunais tm caminhado na mesma direo (tJrs, ApCv 70005760673, j. 12/03/03; tJrs, ApCv 70002792919, j. 01/11/01), sendo de destacar o acrdo, no mnimo curioso, do tJMG (ApCv 1.0000.00.344568-1/000, DJ 05/02/04) que julga extinto, por impossibilidade jurdica do pedido, o processo no qual o pai pleiteia a guarda compartilhada do filho menor que encon-trava-se sob a custdia exclusiva da me. Chega-se ao cmulo, neste caso, de se firmar a convico de que o ordenamento brasileiro no reconhece nem acolhe o compartilhamento da guarda como modo de garantir o direito da criana de conviver com os pais.

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no difcil constatar, por outro lado, que a maioria das decises judiciais, ao unilateralizar a guarda o faz em direo da me, menosprezando a figura paterna na formao da subjetividade da criana/adolescente. A um s tempo, essas decises criam um cruel e pavoroso distanciamento dos filhos em ralao ao pai, imprimindo a este a dor da perda da reciprocidade do amor ante a au-sncia do convvio. Isto pode ser reflexo de uma cultura em que se superestima o papel da mulher na famlia, nem sempre para notabiliz-la, mas (nas entrelinhas) para circunscrev-la, numa viso pejorativa, s prendas e muros domsticos.

interessantes as observaes de Leila Maria torraca de Brito (2004, p. 360), retiradas dos seus estudos da psicologia em linha de auxlio ao direito,

Assim, no se pode desprezar o fato de que, na sociedade ocidental, os estudos iniciais sobre a relao materno-infantil indicavam que as mulheres seriam por-tadoras do instinto materno, determinismo biolgico que fixava lugares e atribui-es e forjava esteretipos. Definia-se, ainda, que s a expresso do amor materno saberia dosar os cuidados e carinhos necessrios ao adequado desenvolvimento infantil. Quento aos homens, eram preparados para zelar pela honra da famlia, ao mesmo tempo em que eram afastados das tarefas domsticas. Como demonstram os estudos sobre gnero, as desigualdades em relao aos direitos e deveres entre homens e mulheres eram naturalizadas e legitimadas culturalmente. Dessa forma, a fiscalizao, prevista inicialmente na legislao como prerrogativa do pai visi-tante, retratava o mesmo como figura de autoridade, afastado do contexto dirio com os filhos e a quem caberia avaliar o desempenho da ex-mulher na promoo do desenvolvimento infantil.

Hoje, percebe-se que o significado do nascimento engloba, alm do nascimento de um filho, o nascimento dos genitores nos lugares estruturais de pai e me, papis que aprendemos a desempenhar. tal condio pode ser enfraquecida, porm, quan-do a educao da criana passa a ser encaminhada, prioritariamente, pelo genitor responsvel pela guarda. Atribuir ao genitor classificado como visitante o lugar prioritrio de fiscal contraria as indicaes atuais tanto dos documentos internacio-nais quanto das Cincias Humanas, que recomendam uma ampla aproximao e participao de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, sendo que o lugar e as funes dos genitores devem ser referendados pelos textos jurdicos.

o modelo unilateral de guarda adotado pela legislao no tende a incremen-tar tenses e hostilidades entre os partcipes da famlia? As decises judiciais estariam recepcionando o direito da criana convivncia familiar de que fala o art. 227 da Constituio? De que mecanismos dispe o juiz para avaliar, perceber as nuances psico-sociais que se desenham, e decidir sobre qual dos pais deve ser o destinatrio da custdia do menor ou em que medida ela deve ser com-partilhada? o processo judicial, nos moldes em que est posto, instrumento verdadeiramente adequado viabilizar a tutela da guarda no melhor interesse do ncleo familiar?

GuArdA compArtilhAdA de filhos Aps A rupturA do cAsAmento/unio estvel

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Ser que ns juzes, advogados e promotores j paramos para refletir sobre o pensar, o sentir e o viver do filho menor que, a partir da deciso de um estranho a ele, passa a conviver exclusivamente com um dos genitores, sendo-lhe apre-sentando o outro como um visitante/fiscal? Um visitante que, por fora de um excelentssimo comando judicial, passa a ter poucos dias especficos para v-lo; escassos turnos para am-lo, s pressas; limitadas horas para brincadeiras, mili-metricamente sistematizadas para no se perder tempo. se no bastasse, a pedido de genitor guardio, o juiz instado a aplicar astreintes para o genitor visitante que ultrapassa os estpidos horrios pr-fixados, os quais, nesse cenrio, se cons-tituiriam em obrigao de fazer no adimplida!

para equao do problema, um contorno epistemolgico com suporte em Lacan, J. sebastio oliveira, pedro Carcereri, rolf Madaleno e Grisard, entre tantos outros , h que circundar o indevido modo usual de fixao judicial da guarda do menor de forma disjuntiva, o que aferido pelo julgador que nem sem-pre dispe, numa perspectiva interdisciplinar, de ferramentas adequadas para deci-dir. Como se trata de questo multifacetada, a sua abordagem exige a apurao do contexto scio-antropolgico e suas conseqncias sobre a estrutura psicolgica do menor e dos pais, fundamentos que o juiz, isoladamente, no alcana.

em nome do direito de convivncia a ser observado por uma tica inter-disciplinar, na crena de uma instruo processual e em tcnicas de deciso que possibilitem essa concepo e, ainda, firme em critrios mais eqitativos para se determinar o presente e o futuro de um ser (ainda) em formao, com reflexos diretos e irreversveis na construo de sua subjetividade, que se estabelece o fio condutor deste ensaio: o impasse entre as duas convices aparentemente para-doxais, quais sejam, o direito do filho convivncia familiar e o direito dos pais, aps a separao, de t-los em sua companhia e guarda.

tendo como pressuposto essa dupla verdade, que trabalha com sentimen-tos, emoes, inseres culturais e psquicas, no se pode negar que a Constitui-o Federal trouxe ao Direito de Famlia uma nova tbua axiolgica, vertendo seu eixo para a preservao e valorizao da pessoa. exigiu dos intrpretes do Direito uma releitura dos conceitos do Cdigo Civil, do estatuto da Criana e do Adolescente e do Cdigo de processo Civil luz da prpria Constituio. esta uma nova realidade para o trato dos interesses e conflitos no ncleo familiar. Joo Baptista Villela (1980, p. 132), denomina de intinerrio da liberdade essa mudana da famlia, em razo do aprofundamento afetivo ocorrido no interior do grupo, que lhe deu novo rosto.

na contemporaneidade, a famlia est sendo moldada sob novos paradigmas, passando a ser o principal locus de construo da realizao pessoal de seus

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membros. Como decorrncia dessas mudanas, em contraposio a um quadro outrora pincelado com as linhas do domnio autoritrio e ensimesmado dos pais, o menor passou a ser o ponto central da entidade familiar, o seu novo interlocu-tor (perLinGieri, 1997, p. 244), e isto com efeitos concretos e importantes em nossas Leis e nosso Direito, no modo de interpret-los e de aplic-los. no sem razo que o estatuto da Criana e do Adolescente eCA, destaca o valor intrnseco do menor como ser humano e a necessidade de especial respeito a sua condio de pessoa em desenvolvimento.

Com o foco mais direcionado para o melhor interesse da criana e do adoles-cente, aconselhvel a substituio, sempre que for o mais indicado, da guarda unilateral pela guarda compartilhada ou conjunta. tal modelo denota ainda um forte efeito simblico: reafirma a necessidade da criana poder estar disponi-bilidade , tanto com a me como com o pai, reforando em si sentimentos de inspirao e aceitao mtuas, to importantes para a sua construo psquica. Assim, pai ou me no guardio deixaria de exercer o indesejvel papel de vi-sitante (art. 1.589 CC), o que termina por retirar da famlia uma de suas mais significativas caractersticas: a intimidade do convvio.

esta salutar intimidade da criana com seus pais, que s a efetiva convivn-cia proporciona, no pode ser ceifada pela sentena que separa judicialmente os casais. O convvio e os seus efeitos devem protrair-se no tempo, infiltrando-se no cotidiano de pais e filhos, inobstante a cessao do matrimnio. No consistente pensar de Joo Carlos petrini (2004, p. 51/52)

tal a densidade das experincias da maternidade e da paternidade, da filiao, da fraternidade, que se desenvolvem no ambiente familiar que so destinadas a durar pelo resto da vida. A relao conjugal, mesmo quando interrompida, costuma estender seus efeitos para alm do tempo de sua du-rao. os vnculos familiares realizam uma relao na qual a pessoa entra com a totalidade da sua existncia, de seu temperamento, de suas capaci-dades e limites, diferentemente do que ocorre com quase todos os outros ambientes da vida, nos quais se estabelecem relaes parciais, limitadas a capacidades especficas.

A Conveno internacional sobre os Direitos da Criana, de 1989, ressalta a importncia da manuteno e continuidade dos laos da criana e ascendente, a fim de preservar o seu bem-estar. Os pais, mesmo que separados pelos seus prprios conflitos, tm o dever de preservar tais laos com os filhos, vnculos que so pilares de vida da pessoa, como destaca Lacan (1996, p. 01) afirmando que o homem desde antes de seu nascimento e para alm da morte, est preso na cadeia simblica que fundou a linhagem.

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preciso abrir a mente para os novos contedos e significados do poder familiar, locuo posta na Lei brasileira (art. 1.630 e segs., CC) que deve ser entendida no como fonte de fora acintosa a ser exercida conjuntamente pelos pais, a fim de revelar a igualdade de suas potencialidades no disputado coman-do da famlia. Longe disso, esse poder familiar s tem sentido se for tradutor dos melhores interesses dos filhos na direo da dignidade e da cidadania. Ser, ento, que se poderia extrair dos aludidos dispositivos do Cdigo Civil, numa interpretao conforme a Constituio, o abrigo guarda compartilhada? esta uma provocao que merece reflexes

Por qu os filhos no podem continuar a ter o direito de serem educados paz para amar e serem amados , por ambos os pais aps a ruptura litigiosa do casamento? por qu a esses pais tambm no dado o direito de convivncia com sua prole? A alterao da estrutura de convivncia parental desliza, ine-vitavelmente, modificao da relao filial? E como fica o vazio afetivo e a responsabilidade dos pais no guardies ante a impossibilidade de acompanhar e influir no desenvolvimento da personalidade e na construo do imaginrio de seus filhos? Como entender a convivncia familiar sob a perspectiva de um direito fundamental de pais e de filhos?

so perguntas que envolvem respostas em mo dupla e os juizes, por mais que queiram, no esto habilitados a compreend-las sozinhos. se se devem ser analisados os aspectos jurdicos e psico-afetivos dos filhos, que necessitam de proteo a seus direitos e de acompanhamento quotidiano com orientao, equi-lbrio e amor; no se deve tambm perder de vistas que os pais precisam do convvio terno e contnuo dos filhos. Sem esse caminhar cclico no se pode pensar na famlia como um ncleo sadio de formao da pessoa humana. sem se considerar essa conjuntura no se pode pensar em julgamento justo.

em uma perspectiva de ampliao e fortalecimento do princpio da paterni-dade/maternidade responsvel, para alm de mero enunciado dos preceitos cons-titucionais, necessrio que os aplicadores do Direito busquem, de fato, o aux-lio dos princpios previstos na Constituio, de modo a exortarem a convivncia familiar dos filhos com seus pais, como elo estruturador da personalidade, como espao prprio para a afetividade e embrio do exerccio da cidadania.

o Direito, como uma das cincias sistematizadoras das relaes intersubjeti-vas, precisa abarcar para si elementos colhidos da interdisciplinaridade da cultu-ra humana, com vistas a contribuir para melhor aparelhar advogados, promotores e juizes no trato das questes que envolvem a guarda de crianas e adolescentes, quando da ruptura do casamento advinda da separao ou do divrcio.

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necessrio que se compreenda com clareza que a proteo aos reais inte-resses do menor clama por entender a famlia como um ncleo que organiza a personalidade e molda o indivduo para o seu estar na sociedade, donde no se pode pensar que, no caso de falncia do matrimnio, os filhos possam ser, ne-cessariamente, alvo de destinao para guarda de um s dos pais, conforme con-sagra o Cdigo Civil (arts. 1.584/1.588) e insistentemente prescrevem decises judiciais, porque isto segrega o amor e alveja a estabilidade emocional familiar.

inconcebvel que possa haver apreenso, pela criana, de valores como equidade, reciprocidade, tolerncia, generosidade, se o sistema judicirio, com arrimo da Lei Civil, ao formalizar a partilha do matrimnio nas aes de separa-o/divrcio, realiza a partio do amor e da convivncia entre pais e filhos, pro-duzindo uma realidade de conflito, competitividade, insegurana e indignidade para a criana e o genitor no guardio.

o estado no pode celebrar o dissenso familiar, fruto das decises procla-madas nos processos judiciais, que deveriam, em essncia, promover a harmonia social, o bem estar dos cidados e de suas famlas. preciso que os operadores da atividade jurisdicional olhem para dentro das pessoas a fim de que o Direito possa ser aplicado a partir da subjetividade de cada um e com os ajustes sociais/normatizantes que forem adequados. A melhor interpretao da Lei ser aquela realizada por esse prisma, onde em derredor do Direito gravitam a psicologia, a sociologia, a antropologia, etc. no se deve decidir essas questes de modo isolado, afinal, nada sozinho, seno nada.

o eCA, entretanto, j sinaliza nessa direo. num primeiro momento res-salta o dever dos pais (arts. 4 e 19) dos dois, portanto , de conviverem com os filhos, sem excepcion-la no ps separao. Conviver em famlia , tambm, um direito mtuo e recproco de todos os atores que integram esse ncleo. por outro lado, os insumos da interdisciplinaridade para o trato da questo, de modo a contribuir para que a prtica forense possa conjugar princpios do direito, da psicologia, da sociologia e da antropologia em direo construo de um ser humano melhor, tambm no foram esquecidos pelo estatuto.

embalado nos novos ventos soprados pela Constituio Federal, aquele Diploma traz para seu texto mecanismos que inovam em termos de instruo processual, melhor aparelhando o juiz para motivar a deciso num cenrio que agrega, alm do direito, outros insights do conhecimento humano. Basta ver que o ECA institucionaliza o que denomina de equipe interprofissional, cuja regula-o consta dos seus arts. 150 e 151, destinada a assessorar a Justia da infncia e da Juventude, competindo-lhe, com mais especificidade, fornecer subsdios por

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escrito, atravs de laudos, ou informaes verbais prestadas em audincia, bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientao, encaminhamento, preveno e outros, tudo sob a subordinao do juiz, mas sendo assegurada a equipe multiprofissional a livre manifestao do ponto de vista tcnico.

esses trabalhos desenvolvidos por socilogos, assistentes sociais e/ou psi-clogos instrumentam o juiz durante todo o processo, prestando-lhe auxlio in-dispensvel para compor os fundamentos da deciso judicial. isso ocorre, por exemplo, em relao ao estudo psicossocial que indicar para o magistrado os motivos dos quais poder valer-se para avaliar as condies do pretendente adoo ( 1 do art. 51); ou ainda na hiptese em que tiver de decidir sobre a suspenso ou perda do poder familiar, quando poder o julgador determinar a realizao de estudo social ou percia feita por equipe interprofissional ( art 161 e segs.).

O mesmo ocorre para os casos em que o juiz ter que definir os destinos do menor a ser colocado em famlia substituta, posto que determinar a realizao de estudos sociais por equipe interprofissional para fins de estabelecer a guarda provisria da criana/adolescente (arts. 167/168).

sem esquecer, ainda no campo das inovaes processuais trazidas pelo eCA, da indita possibilidade do prprio juiz re-decidir o mrito do que acabou de sentenciar (art. 198, Vii e Viii), o que se traduz numa importante exceo ao princpio do esgotamento da atividade cognitiva previsto no art. 463 do CpC. o que se pode notar que o estatuto est atento nova realidade jurisdicional, que exige que a deciso proferida pelo Juiz seja edificada sobre os vrios alicerces do saber humano. A sentena, contm, assim, um composto de elementos da antropologia, da psicologia, da sociologia e tambm do direito.

esta construo multifacetada fruto de uma abordagem zettica desse fen-meno jurdico que envolve a guarda do menor e o seu direito convivncia fami-liar. o juiz no pode se desvencilhar de questes como o sentimento de perda da criana a quem foi negado o direito de conviver e as conseqncia psicolgicas da advindas. No pode menosprezar a dor e aflio de ambos, pais e filhos, obri-gados a viverem separadamente. no tem, por exemplo, como avaliar, sozinho, o perfil comportamental, que sinalizam a presena de traos psicticos, neurticos ou depressivos do pai ou da me a quem no se deve conceder a titularidade da guarda. no consegue vislumbrar a existncia de certos transtornos psquicos do menor, ocasionados pelo afastamento do convvio de um dos pais. s a Lei subsidiar o julgador? Mesmo o Direito, apenas com sua dogmtica jurdica, auxiliar o juiz a caminhar na direo da justa deciso?

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Certamente que no. necessrio investigar outros campos do conhecimento humano para associ-los operao jurisdicional. A propsito, srgio sampaio Ferraz Jr. (2003, ps. 43 e 47)

preciso reconhecer que o fenmeno jurdico, com toda a sua complexidade, ad-mite tanto um enfoque zettico, quanto um enfoque dogmtico, em sua investiga-o. isso explica que sejam vrias as cincias que o tomem por objeto. em algu-mas delas, predomina o enfoque zettico, em outras, o dogmtico. o campo das investigaes zetticas do fenmeno jurdico bastante amplo. Zetticas so, por exemplo, as investigaes que tm como objeto o direito no mbito da sociologia, da antropologia, da psicologia, da histria, da filosofia, da cincia poltica, etc.. Nenhuma dessas disciplinas especificamente jurdica. Todas elas so disciplinas gerais que admitem, no mbito de suas preocupaes, um espao para o fenmeno jurdico. A zettica jurdica corresponde, como vimos, s disciplinas que, tendo por objeto no apenas o direito, podem, entretanto, tom-lo como um de seus objetos precpuos. o jurista, em geral, ocupa-se complementarmente delas. elas so tidas como auxiliares da cincia jurdica sticto sensu. esta ltima, nos ltimos 150 anos, tem-se configurado como um saber dogmtico. bvio que o estudo do direito pelo jurista no se reduz a esse saber. Assim, embora ele seja um especialista em questes dogmticas, tambm, em certa medida, um especialista nas zetticas.

nenhum juiz deve, pois, olhar apenas para a Lei; enxergar to s os dog-mas do direito extrados dos textos legais ou deles gerador e, assim, imaginar que est decidindo conforme o ideal de justia. nem sempre o direito, visto por essa apertada tica positivista, tem todas as respostas ou oferece todas as solu-es. As relaes jurdicas-humanas no podem ser resolvidas na perspectiva de quem est observando objetos, mas com o sentido de quem est julgando sujeitos (complexos) e suas condutas. o intrprete deve proceder assim ao apreciar as situaes concretas que lhes forem submetidas.

A Constituio da Alemanha deu um grande passo nesse sentido, nos termos do 3 do seu art. 20, segundo o qual a atividade jurisdicional deve sujeitar-se Lei e ao Direito. isto nos ajuda a colocar as coisas nos seus devidos lugares. o ato de interpretar fatos, condutas e desejos, para sobre eles poder dispor im-positivamente, deve ser em conformidade com as Leis mas tambm segundo um universo de valoraes emanadas da cincia humanas, inclusive do direito.

robert Alexy (2005, p. 53/54), com apoio em pronunciamento do tribunal Constitucional Federal da Alemanha, faz consideraes importantes sobre esse consrcio lei + direito + concepo de justia da coletividade, que a Constituio daquele pas preconiza:

o tribunal constata, primeiro, que em relao ao art 20, 3, da Lei Fun-damental o Direito no se identifica com o conjunto de leis escritas. O juiz no est, por-tanto, constrangido pela Lei Fundamental a aplicar ao caso concreto as indicaes

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do legislador dentro dos limites do sentido literal possvel. A tarefa do aplicador do Direito pode exigir, em especial, evidenciar e realizar valoraes em decises mediante um ato de conhecimento valorativo em que no faltam elementos vo-litivos. tais valoraes so imanentes ordem jurdica constitucional, mas no chegam a ser expressas nos textos das leis ou o foram apenas parcialmente. o juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua deciso deve ser fundamentada em uma argu-mentao racional. Deve ter ficado claro que a lei escrita no cumpre sua funo de resolver o problema jurdico de forma justa A deciso judicial preenche, ento, essa lacuna, segundo os critrios da razo prtica e as concepes gerais de jus-tia consolidadas na coletividade.

essas consideraes do tribunal Constitucional Federal podem ser consideradas razes jurdicas-constitucionais. (grifamos)

se, como dito, a lei no cumpre a sua funo de resolver o problema de forma justa, seja porque no expressam as valoraes emanadas da Constituio seja porque o fazem apenas parcialmente, indispensvel que o juiz atue com olhos fincados na Carta constitucional, mas percebendo-a zeteticamente num ne-cessrio recorte interdisciplinar. o que a coletividade consolida como justo , em regra, fruto da sua cultura, dos valores tico-histricos que cristalizou consciente e inconscientemente. isto no pode ser desdenhado por quem julga porque quem julga o faz em nome do povo e por ele.

Numa ordem sequencial pode-se afirmar que o individuo integra a famlia, que, de sua vez, compe a coletividade como seu elemento estruturador. A boa formao da criana, nessa cadeia indivduo > famlia > sociedade, , portanto, essencial harmonia das relaes sociais. Da porque a Constituio de 1988 foi to incisiva ao dispor que a famlia base da sociedade (art. 226) e que dever da famlia, da sociedade e do estado e a seguramente est includo o juiz com as decises que produz , assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profis-sionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, convivncia familiar e comu-nitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (art. 227, caput).

Quando h ruptura da sociedade conjugal e quando, nesse caso, os pais no consensam sobre a guarda do menor, o juiz s determinar, disjuntivamente, com qual dos pais a criana dever permanecer em custdia (art. 1.584 do C-digo Civil) se, aps criteriosa apreciao da situao ftica concreta, realizada sob o ponto de vista interdisciplinar, restar inquestionvel que o convvio com um dos genitores manifesta e incontornavelmente prejudicial criana ou ado-lescente. por isso cremos que o referido dispositivo tradutor de hiptese ex-cepcional de resoluo de conflitos dessa natureza. Diametralmente oposto do que vem decidindo parte da jurisprudncia, a norma do Cdigo Civil no pode

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querer significar que a guarda compartilhada nica possvel de proporcionar a garantia do direito convivncia familiar , s ser possvel se assim concorda-rem os pais.

o direito de convivncia com a famlia, e no particular com ambos os pais, norma de interesse pblico a ser aplicada pelo juiz, independentemente de reque-rimento dos genitores. Quem, em ltima anlise, deve conceber aquilo que reve-la a integral proteo aos anseios do menor, no sentido de preservar os princpios da dignidade da pessoa humana em formao e da paternidade responsvel (CF, art. 226, 7) o prprio juiz, o que independe do fato de que a ruptura tenha sido consensual ou litigiosa.

Chegar a decidir como o fez o acrdo do tribunal de Justia de Minas Ge-rais, conforme mencionado alhures, entendendo que a pretenso de guarda com-partilhada deduzida pelo pai no guardio constitui-se em pedido juridicamente impossvel; ou ainda pensar, consoante segmentos doutrinrios j referidos, que a expresso para o direito civil no tem sentido ou imprpria, equivale a igno-rar a famlia como o maior dos fenmenos humanos de coexistncia. raciocinar assim o mesmo que olhar para a famlia sem v-la. Luis edson Fachin (2002, p. 14/15), com inegvel sensibilidade, diz

A famlia, como fato cultural, est antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurdico. Mais que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de convi-vncia, na cultura, na histria; prvia a Cdigos e posteriores a emolduraes. no universo jurdico, trata-se mais de um modelo de famlia e de seus direitos. V-la to s na percepo jurdica do Direito de Famlia olhar menos que a ponta de um iceberg. Antecede, sucede e transcende o jurdico, a famlia como fato e fen-meno.

Como fenmeno que habita as divisas do Direito, mas que tambm vasa as suas fronteiras, no pode, sob nenhum argumento sensato, ser visto apenas pelos olhos de quem, sem ouvir o corao, pensa o Direito s com o crebro. reclama que o exegeta tenha braos mais longos para manusear outros ramos do saber humano, em cooperao constante. o juiz tem o dever, pela letra da Constituio Federal, de assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o di-reito sade, inclusive psquica; educao, tambm em seu sentido mais lato de cidadania; ao lazer, como possibilidade de dar asas s brincadeiras que os co-locam em estado de felicidade; cultura, que informa e conforma; dignidade, que os fazem respeitar o prximo e por ele serem respeitados; e, por derradeiro, convivncia familiar que proporciona criana/adolescente e a seus pais o apren-dizado recproco do afeto e generosidade. esse juiz, que tem sobre os ombros o dever/funo de assegurar todos esses direitos, no tem como faz-lo sozinho,

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com o respaldo apenas no seu conhecimento jurdico que carreou das leis.

para o menor que j sofre a profunda dor (s vezes inevitvel) causada pela separao dos pais, no poder ainda conviver com ambos aps a falncia matri-monial impingir-lhe um duplo sofrimento. e mais: o juiz que decide pela unila-teralizao da guarda, fazendo-o to s pelo seu ilibado saber jurdico, sem, pois, atentar para esse poliedro de emoes e sentimentos que envolvem pais e filhos, estar atuando com negligncia, discriminao, violncia, crueldade e opresso, tudo o quanto a Constituio expressamente abomina e probe.

REFERNCIas bIbLIoGRFICas

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CaptuLo iibreves Comentrios sobre a reguLamentao

da smuLa vinCuLante

Arthur Mendes Lobo*

sumrio 1. introduo. 2. natureza Jurdica da smula Vinculante. 3. A regulamentao da smula Vincu-lante estatuda pela Lei 11.417/2006. 3.1. Da Legitimidade Ativa. 3.2. Da proposta ex offcio. 3.3. interveno de terceiros nos pedidos de smula Vinculante. 3.4. Fases do procedimento. 3.5. requisitos para edio, revi-so ou Cancelamento da smula. 3.6. A inconstitucionalidade da modulao temporal dos efeitos Vinculantes. 3.7. Da reclamao como instrumento de Controle dos efeitos Vinculantes. 3.7.1 Hipteses de Cabimento da reclamao e seus pressupostos processuais. 3.7.2 Da inexistncia de prazo Decadencial para a propositura da reclamao. 4. Do Cabimento de Ao rescisria contra a coisa julgada de sentena que viola literal dispo-sio de smula Vinculante. 5. o provvel Aumento de processos no supremo tribunal Federal. 6. Do Cabi-mento de Medida Cautelar no pedido de edio, reviso ou Cancelamento de smula Vinculante. 7. o efeito Vinculante da smula em face das Decises do poder Legislativo quando este exerce Atividade Jurisdicional. 8. Modificaes nos Procedimentos Administrativos. 9. Concluso. 10. Referncias bibliogrficas.

1. INTRoDUo

Desde a vigncia do Cdigo de processo Civil, em 11.01.1973, a sociedade brasileira passou por profundas transformaes que ocasionaram a sobrecarga no nmero de processos e, por conseguinte, a lentido da prestao jurisdicio-nal. nesse perodo, a populao brasileira aumentou em aproximadamente 100 milhes de habitantes. A nova ordem constitucional garantiu o acesso Justia e criou novos mecanismos para o controle judicial dos atos da administrao pblica. Consolidaram-se os direitos chamados de terceira e quarta gerao, bem como os microssistemas de tutela dos interesses metaindividuais e de proteo dos indivduos hipossuficientes. Novos institutos protegeram especialmente o consumidor, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a criana, o adoles-cente, o idoso, os deficientes fsicos etc.

Conseqncia inevitvel foi o aumento progressivo de demandas judiciais. porm, tal aumento no veio acompanhado do necessrio investimento pblico em infra-estrutura e agentes pblicos em nmero razovel, indispensveis que so administrao da Justia.

* Mestrando em Direito pela unAerp/sp; especialista em Direito Ambiental pela uGF/rJ; ex-professor substituto da puC/MG e Advogado.

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Sem uma musculatura eficiente, leia-se sem a instalao de novos rgos proporcionalmente ao aumento de processos, o processo judicial tornou-se ex-tremamente moroso, o que gerou, e ainda gera, insatisfao notria dos cidados brasileiros.

Com o objetivo de conferir maior celeridade aos provimentos jurisdicionais, o poder Constituinte Derivado, por meio da emenda Constitucional n 45 de 30 de dezembro de 2004, introduziu um novo preceito fundamental na Magna Car-ta, fazendo-o pela insero do inciso LXXViii, in verbis:

LXXViii a todos, no mbito judicial e administrativo, so assegurados a razo-vel durao do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitao.

Dessa forma, foi positivado o princpio da durao razovel do processo, que confere embasamento jurdico para diversas reformas processuais e procedimen-tais que se seguiram publicao daquela emenda.

sobre o tema, comenta nelson nery Junior:

A norma garante aos brasileiros e residentes no Brasil o direito razovel durao do processo, judicial ou administrativo. razovel durao do processo conceito legal indeterminado que deve ser preenchido pelo juiz, no caso concreto, quando a garantia for invocada. Norma de eficcia plena e imediata (CF 5, 1) no neces-sita de regulamentao para ser aplicada. Cabe ao poder executivo dar os meios materiais e logsticos suficientes administrao pblica e aos Poderes Legislativo e Judicirio, para que se consiga terminar o processo judicial e/ou administrativo em prazo razovel.

A mesma emenda Constitucional n 45/2004 tambm inseriu em nosso orde-namento a smula Vinculante, ao dispor, no art. 103-A, que:

Art. 103-A. o supremo tribunal Federal poder, de ofcio ou por provocao, mediante deciso de dois teros dos seus membros, aps reiteradas decises sobre matria constitucional, aprovar smula que, a partir de sua publicao na imprensa oficial, ter efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder sua reviso ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

1 A smula ter por objetivo a validade, a interpretao e a eficcia de normas determinadas, acerca das quais haja controvrsia atual entre rgos judicirios ou entre esses e a administrao pblica que acarrete grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica.

2 sem prejuzo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovao, reviso ou cancelamento de smula poder ser provocada por aqueles que podem propor a ao direta de inconstitucionalidade.

3 Do ato administrativo ou deciso judicial que contrariar a smula aplicvel ou que indevidamente a aplicar, caber reclamao ao supremo tribunal Federal que,

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julgando-a procedente, anular o ato administrativo ou cassar a deciso judicial reclamada, e determinar que outra seja proferida com ou sem a aplicao da s-mula, conforme o caso.

A smula vinculante brasileira inaugura, em todo o mundo, uma nova sis-temtica que admite a elaborao de normas cogentes, munidas de efeito erga omnes e providas de comando genrico e abstrato, assim como so as leis, porm com uma caracterstica peculiar, a de serem elaboradas e editadas pelo Judicirio.

o objetivo do poder Constituinte Derivado foi conferir maior agilidade aos julgamentos, na esperana de que a smula vinculante uniformizar os julgamen-tos e ir inibir a interposio de recursos, pois uma vez aplicado o entendimento da smula na sentena de primeiro grau, saber, de antemo, a parte sucumbente que os tribunais no podero reform-la, sob pena de seu acrdo ser objeto de reclamao perante o supremo tribunal Federal.

entendemos que a smula vinculante representa mais uma forma de con-trole de constitucionalidade, semelhana do que ocorre com as decises na Ao Direta de inconstitucionalidade, na Ao Direta de Constitucionalidade e na Argio de Descumprimento de preceito Fundamental, pois seu comando no pode ser ignorado por nenhum rgo judicirio ou da administrao pblica, sob pena de ser decretada, em sede de reclamao, a cassao a deciso judicial ou a anulao o ato administrativo.

Assim, a expectativa do legislador de que, em razo da regulamentao da smula vinculante, sua plena aplicao se torne uma realidade hbil a reduzir consideravelmente o nmero de recursos nos tribunais e o tempo de vida do processo. sem ter, obviamente, a pretenso de esgotar o tema, analisaremos, neste breve estudo, alguns requisitos, pressupostos e procedimentos institudos pelo legislador infraconstitucional atravs da Lei 11.417, de 20 de dezembro de 2006, e algumas de suas repercusses prticas.

2. NaTUREZa JURDICa Da sMULa VINCULaNTE

ensina-nos slvio de Figueiredo teixeira que:

no plano histrico, a separao do direito ingls do direito romano encontra suas razes na ocupao da inglaterra pelos brbaros.

Destrudos os traos do domnio romano de quatro sculos, consolidou-se com o passar do tempo o sistema implantado, conhecido como common law, calcado no precedente judicial e nos costumes, em contrapartida ao romano, igualmente conhecido como civil law, fundado no direito escrito e codificado.

Breves comentrios soBre A reGulAmentAo dA smulA vinculAnte

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o common law, tambm denominado case law, um corpo de princpios, pre-cedentes e regras, que busca sustentao no em regras fixas, mas em princpios voltados para a justia, a razo e o bom senso determinados pelas necessidades da comunidade e pelas transformaes sociais, partindo-se do pressuposto de que tais princpios devem ser susceptveis de adaptao s novas condies, interesses, relaes e usos impostos requeridos pelo progresso da sociedade.

Ao tratar dos fundamentos da common law, Leslie scarman assevera que esse sistema corresponde a um direito consuetudinrio (costumary law) desen-volvido, modificado e s vezes fundamentalmente reorganizado pelos juizes e tribunais que atuam atravs dos tribunais.

para roberto rosas, nos pases de common law, a deciso judicial em deter-minado feito constitui um preceito erga omnes, que se impe aos demais casos. o chamado precedente, que tem fora de lei. sistema vivel em estados sem oscilaes polticas e sociais.

slvio de Figueiredo teixeira sintetiza que no common law a regra a cria-o do direito pelos tribunais, sob o comando do direito costumeiro, atravs do judge-made law ou casemade law, em que tem vigorosa aplicao o chamado bindingprecedent (precedente obrigatrio) e efetiva presena o instituto da equity.

entendemos que, muito embora o Direito Brasileiro tenha seguido o sistema romano-germnico, tendo como fonte primria e imediata a lei, adotando-se nor-mas predeterminadas como fonte de obrigao, hodiernamente possvel afir-mar que h uma forte tendncia de incorporao do sistema da common law ao nosso ordenamento jurdico. isso porque a Jurisprudncia passou a ter maior re-levncia, tanto para os atos, haja vista os novos requisitos exigidos interposio de inmeros recursos, no sentido de no contrariarem smulas e jurisprudncia dominante dos tribunais, quanto para a vinculao erga omnes de determinadas decises.

pode-se dizer que, dentre as fontes do direito brasileiro, a Jurisprudncia vem conquistando, a cada dia, maior destaque, tanto no texto constitucional atravs de emendas que disciplinaram a reforma do Judicirio, quanto nas leis infraconstitucionais, que concretizaram a quarta onda de reforma do Cdigo de processo Civil.

A origem palavra Jurisprudncia deriva do latim juris-prudentia, que signifi-ca prudncia do direito, tomada a expresso prudncia como virtude intelectual voltada para a prtica, para a ao honesta, leal e justa.

ensina-nos Miguel reale que, no Brasil, o conceito de jurisprudncia quer significar a prtica dos tribunais, quando caracterizada por certa continuidade,

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isto , forma de revelao do direito que se processa atravs do exerccio da jurisdio, em virtude de uma sucesso harmnica de decises dos tribunais.

roberto rosas considera a jurisprudncia como um cdigo norteador das decises a seguir (...) a reiterao de casos anlogos passados para o rol dos fatos consumados, que somente podem ser revistos em virtude de motivos relevantes ou alterao das suas origens ou fonte emanadora: a lei, a doutrina, etc.

importa, notar desde j que, em determinadas situaes, o confronto entre Jurisprudncias dos tribunais ou entre a Jurisprudncia e os rgos da Adminis-trao pblica, pode provocar, preenchidos os requisitos legais, pedido de edio de smula com efeito vinculante e erga omnes, instituto que ser analisado nos prximos captulos. Assim, pode-se afirmar que a smula vinculante fonte de direito, situada no mesmo nvel hierrquico que a lei.

equivale dizer, que, diante dos efeitos vinculantes e erga omnes, em sendo declarada inconstitucional uma lei pela smula vinculante, passaram a vigorar os dispositivos desta, imediatamente aps a sua publicao. De outro modo, se uma smula vinculante for contrariada por lei que lhe posterior, as disposies daquela deixaro de prevalecer, passando a vigorar os termos da lei nova, pelo menos at que nova smula seja editada tratando da matria.

Fica clara a grande inovao da smula Vinculante em nosso ordenamento jurdico, eis que ela confere nova roupagem ao sistema brasileiro, que passa a ter maiores semelhanas com o sistema anglo-saxo, j que os operadores do direito tero de dar mais valor s casusticas dos tribunais, em razo dessa nova fonte do direito.

At se poderia pensar, num primeiro momento, que inconstitucional a idia de se inserir em nosso ordenamento uma smula com efeito vinculante e erga omnes, eis que ela ofenderia clusula ptrea da Constituio Federal de 1988, prevista no art. 5, inciso ii, segundo a qual: ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei. porm, nos parecer que este dispositivo no traz a exigncia de lei em seu sentido formal, mas sim genericamente considerada. e ainda que assim no o fosse, havendo autorizao expressa na Constituio, introduzida pela emenda Constitucional n 45/2004 e em lei formal, nada impede a imposio de obrigaes, diante da delegao prvia do poder Legislativo, semelhana do que ocorre com as leis delegadas, medidas provisrias e atos administrativos que emanam normas gerais.

Ficamos, pois, com Francesco Carnelutti quando assevera que: o processo jurisdicional pode servir tambm para a formao de comandos novos, gerais ou

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particulares. nesta acepo, o processo jurisdicional chama-se processo disposi-tivo. A jurisdio , portanto, uma fonte jurdica, ao lado da legislao.

entendemos que a smula vinculante tem natureza jurdica de fonte do direi-to, por ser uma jurisprudncia sistemtica, pois na lio de norberto Bobbio:

freqente entre os juristas a opinio de que a cincia jurdica moderna nasceu em compasso com a jurisprudncia exegtica a da jurisprudncia sistemtica, ou, em outras palavras, quando a jurisprudncia se elevou ao status de cincia, tornan-do-se sistemtica .

para se chegar jurisprudncia sistemtica, necessrio desenvolver anali-ticamente, mediante regras pr-estabelecidas, alguns postulados iniciais, prove-nientes de julgamentos de casos concretos, com base em semelhanas, para ento formar conceitos cada vez mais gerais, para chegar a conceitos generalssimos que permitam unificar a interpretao quanto a determinado tema.

nelson nery Junior e rosa Maria de Andrade nery conceituam smula co-mo sendo o conjunto das teses jurdicas reveladoras da jurisprudncia reiterada e predominante no tribunal e vem traduzida em forma de verbetes sintticos nu-merados e editados. O objetivo da smula fixar teses jurdicas in abstracto que devem ser seguidas pelos membros do tribunal, de modo a facilitar o exerccio da atividade jurisdicional.

os mesmos doutrinadores comentam que o ordenamento permite que co-existam duas smulas no stF: a) vinculante; e b) no-vinculante ou simples conforme se atenda ou no os requisitos impostos pela Constituio Federal.

Mas o que seria esse efeito vinculante da smula ora analisada?

Gilmar Ferreira Mendes esclarece que a eficcia erga omnes e o efeito vin-culante deveriam ser tratados como institutos afins, mas distintos. Para ele o conceito de efeito vinculante em relao aos rgos e agentes pblicos insti-tuto jurdico desenvolvido no Direito processual alemo, que tem por objetivo outorgar maior eficcia s decises proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando fora vinculante no apenas parte dispositiva da deciso, mas tam-bm aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Grnde). A declarao de nulidade de uma lei no obsta sua reedio, ou seja, a repetio de seu contedo em outro diploma legal. tanto a coisa julgada quanto a fora de lei (eficcia erga omnes) no lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vincu-lante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Grnde) da deciso, obriga o legislador a observar estritamente a interpretao que o tribunal confe-riu Constituio. Conseqncia semelhante se tem quanto s chamadas normas

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paralelas. se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma Lei do estado A, o efeito vinculante ter o condo de impedir a aplicao de norma de contedo semelhante do estado B ou C (Cf. Christian pestalozza, comentrio ao 31, i, da Lei do tribunal Constitucional Alemo (Bundesverfassungsgerichtsgesetz) in: Direito Processual Constitucional (Verfassungsprozessrecht), 2 edio, Ver-lag C.H. Beck, Munique, 1982, pp. 170/171, que explica o efeito vinculante, suas conseqncias e a diferena entre ele e a eficcia seja inter partes ou erga omnes).

Concordamos com esse posicionamento, pois veremos adiante que, quando se trata da chamada smula Vinculante, objeto do presente estudo, a obedincia aos seus comandos ho de ser seguidos por todos os rgos do poder Judicirio e da Administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e mu-nicipal.

porm, resta indagar se a smula vinculante realmente tem o condo de im-pedir o Legislativo de editar lei nova que contrarie o fundamento daquela s-mula, pois como vimos na lio de Gilmar Mendes o efeito vinculante obriga o legislador a observar estritamente a interpretao que o tribunal conferiu Constituio.

em um primeiro momento, poderia parecer que contrarie o estado Demo-crtico de Direito e o princpio da separao-Diviso dos poderes por impedir o Legislativo de desenvolver a sua funo precpua. entretanto, com os novos contornos doutrinrios do tribunal Constitucional e da nova teoria da diviso dos Poderes, tendemos a afirmar que, sim, o efeito vinculante obriga o legislador a observar estritamente a interpretao que o tribunal conferiu Constituio. Vejamos o porqu:

Cappelletti aponta a necessidade de um judicirio distinto do tradicional, ressaltando que (...) a dura realidade da histria moderna logo demonstrou que os tribunais - tanto que confrontados pelas duas formas acima mencionadas de gigantismo estatal, o legislativo e o administrativo - no podem fugir de uma inflexvel alternativa. Eles devem de fato escolher uma das duas possibilidades seguintes: a) permanecer fiis, com pertincia, concepo tradicional, tipica-mente do sculo XiX, dos limites da funo jurisdicional, ou b) elevar-se ao nvel dos outros poderes, tornar-se enfim o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador.

Amrico Bed Freire Jnior assevera que, hodiernamente, h uma grande preocupao tanto jurdica, quanto poltica, de se criar um novo perfil para a

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atuao do poder Judicirio, permitindo a efetivao dos direitos fundamentais. para ele certo que uma postura mais ativa do Judicirio implica em possveis zonas de tenses com as demais funes do poder, todavia no se defende uma supremacia de qualquer das funes, mas sim a supremacia da Constituio, que implica que o Judicirio no um mero carimbador de decises polticas das demais funes. preciso, portanto, conciliar o texto constitucional com uma prtica constitucional adequada, e tal misso somente pode ser cumprida se o poder Judicirio no pensar mais no dogma do princpio liberal da legalidade, mas sim no princpio da Constitucionalidade dos atos.

Ainda na lio de Amrico Bed Freire Jnior, o legislador no o nico responsvel por viabilizar a Constituio, o Juiz tem a misso constitucional de impedir aes ou omisses contrrias ao texto, sem que com essa atitude esteja violando a Constituio. o Juiz no a mais a simples boca da lei, mas sim intr-prete constitucional qualificado que vai permitir que a Constituio no soobre numa realidade instvel como a que vivemos. tal postura nsita nova leitura da separao de poderes, adequada a nosso tempo de globalizao e falta de paradigmas. no podemos pensar a separao de poderes com os fundamentos de uma sociedade que no mais existe; ao contrrio, devemos construir um prin-cpio que possa ter aplicao em nossos dias. para o cumprimento desse mister indispensvel vislumbrar no princpio da separao de funes no um fim em si mesmo, mas um meio para a efetivao da Constituio, devendo o Judicirio, portanto, nesse novo momento, atuar diretamente na preservao da supremacia da Constituio.

segundo o jurista Fernando paulo suordem: na sua dimenso orgni- co-funcional, o princpio da separao dos poderes deve continuar a ser encara- do como princpio da moderao, racionalizao e limitao do poder poltico estatal, no interesse da liberdade. tal constitui seguramente o seu ncleo imu-tvel.

percebe-se, portanto, que, sob a nova tica do princpio da diviso das fun-es estatais, o Judicirio merece as atribuies que lhe sero outorgadas pela Constituio para instituir smulas de efeito vinculante, justamente para defen-der os preceitos da prpria Constituio.

Cumpre esclarecer, ainda, que o efeito vinculante da smula brasileira diver-ge do efeito vinculante do direito alemo porque o primeiro abrange matria de mrito e processual, enquanto que o segundo apenas matria de mrito.

o que ensina Gilmar Ferreira Mendes:

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De imediato, impende ressaltar que a doutrina constitucional somente reconhe-ce efeito vinculante s decises de mrito (sachentscheidungen) proferidas pelo Bundesverfassungsgericht. o efeito vinculante no imanta julgados de carter ex-clusivamente processual, no abrangendo, por isso, decises de simples carter interlocutrio.

entendemos que, diversamente do Direito alemo, nada obsta que a smula vinculante brasileira estabelea norma processual, por exemplo, determinando que no cumprimento de sentena o devedor dever ser intimado pessoalmente para pagamento.

Constata-se, pois, que em razo do efeito vinculante, tanto os princpios ex-trados da parte dispositiva da smula, quanto os fundamentos determinantes da deciso, vinculam todos os tribunais e autoridades administrativas nos ca-sos futuros, razo pela qual ela no pode ser aplicada indevidamente, ou seja, inadmissvel interpretao diversa daquela proferida nos votos vencedores dos Ministros do supremo tribunal Federal, salvo na hiptese de reviso ou cance-lamento por esta Corte Constitucional.

Analisaremos, a seguir, as regras pr-estabelecidas da smula vinculante, partindo da Constituio Federal.

3. a REGULaMENTao INFRa-CoNsTITUCIoNaL

A Lei 11.417, de 20 de dezembro de 2006, ter vigncia a partir da vacatio legis, isto , a partir de 20 de maro de 2007.

ela dispe sobre a edio, reviso e cancelamento de enunciados de smu-las vinculantes, regulamentando o art. 103-A da Constituio Federal. Vejamos, portanto, os seus principais postulados, para melhor entender o procedimento e os aspectos gerais desse novo instituto.

3.1. Da legitimidade ativa

podemos dividir os legitimados para propor a edio, reviso ou cancela-mento da smula vinculante em dois grupos distintos: i) legitimados para pedido direto ou concentrado; e ii) legitimados para pedido incidental ou difuso.

por legitimados para pedido direto ou concentrado, entende-se aqueles que podem pedir a edio, reviso ou cancelamento sem que, necessariamente, te-nham que figurar como parte em demanda na qual se discuta, in concreto, a matria a ser sumulada.

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equivale dizer, no necessrio que tais legitimados sejam litigantes em uma ao autnoma para interpor esse pedido.

os legitimados para pedido direto de smula vinculante esto arrolados nos incisos do art. 3, da Lei 11.417/06, in verbis:

Art. 3 so legitimados a provocar a edio, reviso ou cancelamento de smulas com efeito vinculante:

i o presidente da repblica;

ii o Advogado-Geral da unio;

iii a Mesa do Congresso nacional ou de suas Casas;

iV o procurador-Geral da repblica;

V o Conselho Federal da ordem dos Advogados do Brasil;

Vi o Defensor pblico-Geral da unio;

Vii partido poltico com representao no Congresso nacional;

Viii confederao sindical ou entidade de classe de mbito nacional;

iX a Mesa de Assemblia Legislativa ou da Cmara Legislativa do Distrito Fe-deral;

X o Governador de estado ou do Distrito Federal;

Xi o procurador-Geral de estado ou do Distrito Federal;

Xii o procurador Geral de Justia do Ministrio pblico de estado ou do Distrito Federal e territrios;

Xiii o Defensor pblico-Geral de estado ou do Distrito Federal e territrios;

XiV os tribunais superiores, os tribunais de Justia de estados ou do Distrito Federal e territrios, os tribunais regionais Federais, os tribunais regionais do trabalho, os tribunais regionais eleitorais e os tribunais Militares.

note que todos os legitimados para propor Ao Direta de inconstituciona-lidade, arrolados nos incisos do art. 103 da Constituio Federal tambm foram legitimados diretos propositura da smula vinculante.

De outra feita, o Municpio o nico ente legitimado para pedido incidental ou difuso, pois somente poder requerer a edio, reviso ou cancelamento de smula vinculante incidentalmente ao curso de processo em que seja parte.

uma questo que vem a lume saber se este processo deve necessariamen- te referir-se a feito da competncia do supremo tribunal Federal, por exem-plo, recurso extraordinrio, ou se o pedido de smula vinculante pode se dar na

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pendncia de qualquer processo em trmite em qualquer juzo ou tribunal do pas, bastando que a matria a ser sumulada esteja sendo discutida no caso concreto.

Quer nos parecer que a melhor exegese da norma no sentido de autorizar o pedido incidental do Municpio que atue como parte em qualquer processo, e no necessariamente em processos que tramitem no supremo tribunal Federal (re-curso, medida cautelar, suspenso de segurana, aes de competncia originria etc). isso porque, onde a lei no restringiu, no cabe ao intrprete faz-lo.

por outro lado, dispe o 1, do art. 3, que havendo pedido incidental do Municpio, o julgamento do processo principal envolvendo concretamente a ma-tria a ser sumulada no poder ficar suspenso at que seja acolhida ou rejeitada a edio do enunciado vinculante.

porm, entendemos que, se for necessria a suspenso do processo principal para evitar dano irreparvel ou de difcil reparao, o relator do pedido de edi-o, reviso ou cancelamento de smula vinculante deve sobrestar o feito at a apreciao do pedido formulado pelo Municpio.

em que pese a lei dispor que o pedido incidental do Municpio de edio, reviso ou cancelamento de smula no autoriza a suspenso do processo, enten-demos que o julgamento do feito principal dever, sim, ser suspenso para evitar, em casos excepcionais, prejuzo de difcil reparao.

imaginemos, v.g., um Municpio que pleiteia o cancelamento de uma s-mula que se mostra eivada de inconstitucionalidade. Acaso o processo principal prossiga e venha a ser julgado antes do cancelamento da smula, este de pouco adiantar, posto que a smula inconstitucional j ter sido aplicada e talvez at a deciso j tenha transitado em julgado.

3.2. Da proposta ex offcio

tanto no texto constitucional (art. 103-A, caput), quanto no texto da Lei 11.417/06 (art. 2) h previso de propositura de ofcio da smula Vinculante.

teria essa previso violado o princpio da inrcia do Judicirio?

entendemos que no, pois o que o Judicirio no pode diligenciar em favor da parte, buscando solues para casos concretos. nada o impede, contudo, de pretender que as decises judiciais e administrativas sejam sumuladas de modo

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a unificar determinado entendimento, para assim fortalecer a aplicao desse en-tendimento para conferir celeridade aos processos e evitar decises conflitantes que invariavelmente maculam a imagem do Judicirio.

Ademais, o supremo tribunal Federal como guardio maior da harmonia da Constituio Federal no poderia permanecer inerte diante das normas e deci-ses polmicas que violam ou arriscam violar a sua disposio.

Lado outro, no justifica deixar que perdurem incongruncias nos provimen-tos dos tribunais ptrios, pois isso viola o princpio da segurana jurdica.

Resta saber se o pedido ex officio de aprovao, reviso ou cancelamento da smula Vinculante pode ser realizado por qualquer Ministro do supremo tribu-nal Federal ou se necessitaria de aprovao da respectiva turma.

pensamos que, ante a omisso da Constituio Federal e da Lei 11.417/06, qualquer Ministro do stF, individualmente, tem legitimidade para proposio direta e concentrada da smula vinculante, pois estar tratado de discusso abs-trata e genrica, sem adentrar na relao ftica de determinada demanda.

3.3. Interveno de terceiros nos pedidos de smula vinculante

Dispe o art. 3, 2 da Lei 11.417/06, in verbis:

2 no procedimento de edio, reviso ou cancelamento de smula com efeito vinculante, o relator poder admitir, por deciso irrecorrvel, a manifestao de ter-ceiros na questo, nos termos do regimento interno do supremo tribunal Federal.

em que pese a questo da interveno de terceiros ainda ser objeto de regu-lamentao pelo supremo tribunal Federal, em seu regimento interno, enten-demos que por se tratar de matria processual, no poder o rgo jurisdicional restringir de qualquer forma a participao de qualquer terceiro que demonstre interesse jurdico ou econmico na edio, reviso ou cancelamento da smula.

no texto originrio do projeto de Lei 6.636/06 que deu origem Lei 11.417/06, o artigo supramencionado continha a expresso o relator poder ad-mitir, por deciso irrecorrvel, a manifestao de terceiros, mesmo aqueles sem interesse estritamente jurdico na questo.

Assim, a despeito de o texto originrio no ter prevalecido quando da pu-blicao da Lei 11.417/06, entendemos que a mera supresso da caracterizao do terceiro interveniente no lhe retira a prerrogativa de intervir no pedido de smula vinculante, ainda que seu interesse seja meramente econmico e no estritamente jurdico.

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Acaso a matria seja regulamentada de modo diferente, no regimento interno da suprema Corte, entendemos que haver ofensa Constituio Federal, pois a legitimidade ad causam do terceiro interessado matria reservada lei, e se a lei no limitou explicitamente os requisitos desse terceiro, devem ser aplicadas as regras do Cdigo de processo Civil.

3.4. Fases do procedimento

o procedimento inaugurado por ofcio de Ministro do supremo tribunal Federal ou por petio inicial do co-legitimado.

Caso a inicial no tenha sido intentada pelo procurador-Geral da repblica, este obrigatoriamente ser intimado para proferir parecer.

Colhida a manifestao do procurador-Geral da repblica, e a eventual ma-nifestao de terceiros, o pedido seguir para o plenrio, que para a votao dever ter a presena de no mnimo 8 (oito) Ministros, do contrrio o julgamento ser suspenso, at que comparea o nmero mnimo retro mencionado, para a prolao da deciso num ou noutro sentido.

no prazo de 10 (dez) dias aps a sesso que aprovar, rever ou cancelar a s-mula, o supremo tribunal Federal far publicar em seo especial do Dirio da Justia e do Dirio Oficial da Unio o respectivo enunciado.

3.. Requisitos para edio, reviso ou cancelamento de smula vinculante

para fundamentar o pedido de edio da smula vinculante, o legitimado deve demonstrar que a matria a ser sumulada de cunho eminentemente cons-titucional, isto , viola, nega vigncia ou interpreta a Constituio Federal de forma direta.

Alm disso, deve demonstrar que h controvrsia atual entre rgos judici-rios, para enfocar a necessidade e relevncia da uniformizao da jurisprudncia, pois pelo princpio da unidade da Jurisdio e tambm da segurana Jurdica, a coeso dos provimentos medida que se impe, a cada dia com maior in-tensidade, para afastar a imagem social de um Judicirio moroso, ineficiente e incoerente.

Veja que a controvrsia entre rgos judicirios deve ser atual, isto , no se pode utilizar precedentes antigos, cujo entendimento j tiver sido superado por outro de mesma instncia ou de instncia superior. no h um prazo razovel para inferir essa atualidade, devendo ser analisada caso a caso.

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outra hiptese em que se admite o pedido de edio da smula vinculante quando houver controvrsia atual entre rgos judicirios e a Administrao pblica.

outro requisito que as referidas controvrsias devem acarretar grave inse-gurana jurdica.

entendemos que toda insegurana jurdica grave, mas se o legislador fez constar esse adjetivo no o fez sem objetivo, j que a lei no traz palavras inteis. pensamos que a gravidade da insegurana jurdica h de ser demonstrada para que seja feito um juzo de admissibilidade prvio pelo relator, pois, do contrrio seriam colocadas em pauta situaes de pouca ou nenhuma repercusso social.

Finalmente, exige-se a comprovao de relevante multiplicao de processos sobre questo idntica.

Ao nosso sentir teria sido mais razovel que a norma tivesse usado a expres-so controvrsia que tenha acarretado ou venha acarretar relevante multiplica-o de processos. isso porque no raras vezes estaremos diante de decises da Administrao pblica em confronto com algumas poucas decises judiciais, mas j se podendo antever que tais decises iro se multiplicar progressivamente.

Finalmente, exige-se a demonstrao de que a matria objeto da smula te-nha sido decidida reiteradas vezes. o termo reiteradas decises, previsto no caput do art. 2 da Lei 11.417/06, nos confere a idia de que a matria constitu-cional a ser sumulada, ainda que se mostre controvertida entre os rgo jurisdi-cionais ou entre estes e a administrao pblica, dever, tambm, ter sido objeto de varias decises.

portanto, inconcebvel uma smula vinculante tratando de normas recente-mente introduzidas no ordenamento jurdico, pois faltaria o requisito das reitera-das decises de enfoque constitucional.

entendemos que no necessariamente essas reiteradas decises devam ser oriundas do supremo tribunal Federal em controle difuso de constitucionalida-de, como por exemplo, invocando-se acrdos divergentes proferidos em recur-sos extraordinrios. entendemos ser possvel admitir, por exemplo, o processa-mento do pedido de smula vinculante diante de controvrsia entre julgados de tribunais estaduais ou entre esses e julgados do superior tribunal de Justia, desde que eles envolvam matria constitucional.

no mesmo sentido, entendemos que cabvel um pedido de edio de s-mula vinculante diante de decises administrativas que reiteradamente versarem sobre comandos contidos na Constituio Federal.

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3.. a inconstitucionalidade da modulao temporal dos efeitos vinculantes

Quando se trata de definir o momento da eficcia de uma deciso proferida em controle de constitucionalidade, o supremo tribunal Federal tem assentado o seguinte entendimento:

A declarao de inconstitucionalidade reveste-se, ordinariamente, de eficcia ex tunc (rtJ 146/461-462 - rtJ 164/506-509), retroagindo ao momento em que edi-tado o ato estatal reconhecido inconstitucional pelo supremo tribunal Federal. - o supremo tribunal Federal tem reconhecido, excepcionalmente, a possibili-dade de proceder modulao ou limitao temporal dos efeitos da declarao de inconstitucionalidade, mesmo quando proferida, por esta Corte, em sede de controle difuso. precedente: re 197.917/sp, rel. Min. Maurcio Corra (pleno). - revela-se inaplicvel, no entanto, a teoria da limitao temporal dos efeitos, se e quando o supremo tribunal Federal, ao julgar determinada causa, nesta formular juzo negativo de recepo, por entender que certa lei pr-constitucional mostra-se materialmente incompatvel com normas constitucionais a ela supervenientes. - A no-recepo de ato estatal pr-constitucional, por no implicar a declarao de sua inconstitucionalidade - mas o reconhecimento de sua pura e simples revogao (rtJ 143/355 - rtJ 145/339) -, descaracteriza um dos pressupostos indispensveis utilizao da tcnica da modulao temporal, que supe, para incidir, dentre ou-tros elementos, a necessria existncia de um juzo de inconstitucionalidade. - ina-plicabilidade, ao caso em exame, da tcnica da modulao dos efeitos, por tratar-se de diploma legislativo, que, editado em 1984, no foi recepcionado, no ponto con-cernente norma questionada, pelo vigente ordenamento constitucional.

nota-se, pois, que no controle de constitucionalidade, concentrado ou difuso, o Supremo Tribunal Federal pode flexibilizar o momento em que a sua deciso produzir efeitos, ou seja, pode fixar uma data, antes da qual determinada norma ainda ser considerada constitucional e aps a qual a norma ser retirada do or-denamento jurdico vigente.

J no que tange ao marco inicial da produo dos efeitos da smula vinculan-te, a Lei 11.417/06, aplicou a mesma tcnica de modulao temporal dos efeitos. seno vejamos:

Art. 4. no procedimento para edio de smula, e tendo em vista razes de se-gurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o supremo tribunal Federal restringir os efeitos vinculantes ou decidir que s tenha eficcia a partir de data certa.

porm, entendemos que esse dispositivo inconstitucional. Vejamos por-que:

Vimos que o legislador tentou conferir smula Vinculante o mesmo tra-tamento dado Ao Direta de inconstitucionalidade, Ao Direta de Cons-titucionalidade (art. 102, 2, da CF/88) e Argio de Descumprimento de preceito Fundamental (1).

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entretanto, no se pode olvidar que essas aes no tiveram marco inicial pa-ra a produo de seus efeitos regulado expressamente pela Constituio Federal.

No caso especfico da Smula vinculante a Constituio Federal foi bastante clara ao fixar o marco inicial desses efeitos, dispondo que eles sero produzidos a partir da publicao na imprensa oficial (art. 103-A, caput), razo pela qual, no pode o legislador criar a possibilidade de se proceder modulao ou limi-tao temporal dos efeitos da smula vinculante.

se a prpria Lei 11.417/2006 determina, em seu art. 2, , que a publica-o deve se dar at 10 (dez) dias aps a sesso que houver julgado o pedido de edio, reviso ou cancelamento da smula Vinculante, no h como permitir a fixao de outro marco inicial para a gerao de seus efeitos no mundo jurdico.

em outras palavras, se a Constituio Federal determina que os efeitos vin-culantes sero gerados a partir da publicao oficial da mencionada smula, no pode a lei infraconstitucional autorizar que o supremo tribunal Federal decida que a Smula s ter eficcia a partir de data certa.

De acordo com o art. 4 da Lei 11.417/2006, sendo julgada e editada uma s-mula ela teria efeitos vinculantes na data fixada pelo Supremo Tribunal Federal, que poderia ser posterior data de publicao. e por no fazer coincidir, neces-sariamente, a data inicial dos efeitos vinculantes com a data de publicao, como estabelece a Constituio Federal, o aludido art. 4 se mostra inconstitucional.

3.7. Da reclamao como instrumento de controle dos efeitos vinculantes

Com o escopo de assegurar a autoridade das decises o supremo tribunal Federal, o interessado pode utilizar de instrumento de defesa processual deno-minado reclamao.

Desde a promulgao da Constituio Federal, a reclamao prevista no art. 102, inciso i, alnea l, in verbis:

Art. 102. Compete ao supremo tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituio, cabendo-lhe:

i - processar e julgar, originariamente:

l) a reclamao para a preservao de sua competncia e garantia da autoridade de suas decises; (...)

No que tange especificamente smula vinculante, cumpre dizer que a emenda constitucional 45/2004, introduziu o instituto da reclamao no art. 103-A, 3, ao dispor que:

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3 Do ato administrativo ou deciso judicial que contrariar a smula aplicvel ou que indevidamente a aplicar, caber reclamao ao supremo tribunal Federal que, julgando-a procedente, anular o ato administrativo ou cassar a deciso judi-cial reclamada, e determinar que outra seja proferida com ou sem a aplicao da smula, conforme o caso.

3.7.1. Hipteses de cabimento da reclamao e seus pressupostos processuais

note-se que o interessado-reclamante pode ser prejudicado: i) pela no apli-cao da smula vinculante; ii) pela sua aplicao indevida.

no primeiro caso, o objetivo da reclamao fazer com que o juiz, tribunal ou autoridade administrativa aplique a smula. Aqui resta indagar se a obrigato-riedade de aplicao da smula se estenderia tambm aos fundamentos jurdicos que levaram sua edio.

imagine, v.g., que uma determinada smula declare inconstitucional a lei x por violao ao princpio do contraditrio. posteriormente, o legislador edita a lei y, revogando expressamente a lei x, porm trazendo exatamente o mes-mo preceito declarado inconstitucional pela smula. nesse caso, entendemos que, muito embora a smula no tenha aplicao direta e literal por se tratar da lei x j revogada, ela ter aplicao pelos seus fundamentos jurdicos. Logo, a lei y no poder ser aplicada pelos rgos judicirios e pelas esferas da admi-nistrao pblica, diante da sua inconstitucionalidade. Assim, pensamos que os fundamentos da smula tambm so vinculantes.

outra hiptese de cabimento da reclamao quando a aplicao da smula indevida. imaginemos, por exemplo, que uma determinada smula exija licita-o nos contratos celebrados com a administrao pblica direta, que em um caso concreto o juiz aplique a referida smula na contratao celebrada por sociedade de economia mista. Aqui, teremos uma aplicao indevida da smula vinculante, que poder ser atacada via reclamao no supremo tribunal Federal.

repare que, em ambas hipteses, ao julgar procedente a reclamao, o su-premo tribunal Federal no substituir a deciso anulada, mas apenas declarar sua nulidade e determinar que o juiz ou autoridade administrativa que a prola-tou, profira novo julgamento. o que se v da parte final do 3, do art. 103-A da Constituio Federal, reiterada, ipsis litteris, no 2 art.7 da lei 11.417/2006.

Quanto aos pressupostos de cabimento da reclamao, temos que destacar que, nos termos do 1, do art. 7 da lei 11.417/2006, contra omisso ou ato da administrao pblica, o uso da reclamao s ser admitido aps esgotamento das vias administrativas.

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permissa venia, esse pressuposto no nos parece ser absoluto e merece ser analisado com cautela. isso porque diante de deciso administrativa recorrvel, porm no sujeita a efeito suspensivo, pode o particular sofrer dano irreparvel ou de difcil reparao. Assim entendemos que, muito embora o particular ainda no tenha esgotado as vias administrativas, se a deciso que lhe for desfavorvel ofender o enunciado da smula vin