constitucionalismo emini ta · do ponto de vista jurídico tem-se que o direito à igualdade é...

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2020 feminista CONSTITUCIONALISMO ORGANIZAÇÃO Bruna Nowak PREFÁCIO Dra. Marie Christine Fuchs COORDENAÇÃO Christine Oliveira Peter da Silva Estefânia Maria de Queiroz Barboza Melina Girardi Fachin edição AUTORES ALESSANDRA GOTTI AMÉLIA SAMPAIO ROSSI ANA CARLA HARMATIUK MATOS CAROLINA FREITAS GOMIDE CHRISTINE OLIVEIRA PETER DA SILVA DESDÊMONA TENÓRIO DE BRITO TOLEDO ARRUDA ERIKA CARVALHO FERREIRA FERNANDA DE CARVALHO LAGE HELOISA FERNANDES CÂMARA HUMBERTO SIERRA OLIVIERI LAURA CLÉRICO LÍGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA LILIANA RONCONI MARÍA DE LOS ÁNGELES RAMALLO MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA MARÍA LUISA RODRÍGUEZ PEÑARANDA MARIE-CHRISTINE FUCHS MELINA GIRARDI FACHIN NICOLE GONDIM PORCARO PATRÍCIA PACHECO RODRIGUES POLIANNA PEREIRA DOS SANTOS ROBERTA CAMINEIRO BAGGIO SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFLUG MARQUES SARAH F. M. WEIMER VITÓRIA PEREIRA ROSA Expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero

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2020

feministaCONSTITUCIONALISMO

ORGANIZAÇÃO

Bruna Nowak

PREFÁCIODra. Marie Christine Fuchs

COORDENAÇÃO

Christine Oliveira Peter da SilvaEstefânia Maria de Queiroz Barboza

Melina Girardi Fachin

2ª edição

AUTORESALESSANDRA GOTTI • AMÉLIA SAMPAIO ROSSI • ANA CARLA HARMATIUK MATOS • CAROLINA FREITAS GOMIDE

• CHRISTINE OLIVEIRA PETER DA SILVA • DESDÊMONA TENÓRIO DE BRITO TOLEDO ARRUDA • ERIKA CARVALHO FERREIRA • FERNANDA DE CARVALHO LAGE • HELOISA FERNANDES CÂMARA

• HUMBERTO SIERRA OLIVIERI • LAURA CLÉRICO • LÍGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA • LILIANA RONCONI • MARÍA DE LOS ÁNGELES RAMALLO • MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA • MARÍA LUISA

RODRÍGUEZ PEÑARANDA • MARIE-CHRISTINE FUCHS • MELINA GIRARDI FACHIN • NICOLE GONDIM PORCARO • PATRÍCIA PACHECO RODRIGUES • POLIANNA PEREIRA DOS SANTOS • ROBERTA CAMINEIRO BAGGIO

• SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFLUG MARQUES • SARAH F. M. WEIMER • VITÓRIA PEREIRA ROSA

Expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero

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QUEDA DEMOCRÁTICA/DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E GÊNERO

Heloisa Fernandes Câmara

Sumário: 1. Democracia liberal e seu declínio; 2. Autoritarismos e gênero; 3. Brasil e o retrocesso às pautas feministas e de diversidade; 4. Considerações finais; 5. Referências.

Nos últimos anos assiste-se ao processo de declínio da democracia liberal. O fenômeno tem sido tratado em diferentes perspectivas e por diversos autores. Como exemplo, temos os conceitos de recessão demo-crática (Larry Diamond), decadência democrática (Tom Gerald Daly), autoritarismo competitivo (Levitsky e Way), populismo constitucional (Paul Blokker), legalismo autocrático (Kim Schappele), decomposição constitucional (Jack Balkin), crise constitucional (Jack Balkin e Stan-dford Levinson).

Diante de cenários distintos, chamaremos este processo de declínio democrático ou ressurgimento de autoritarismos. A variedade de termos não é estética, ela ressalta diferenças na forma como o fenômeno tem ocorrido nos países de acordo com situações políticas e jurídicas espe-cíficas. Parte da literatura que trata de queda da democracia liberal sob o viés de gênero o faz tendo por análise países populistas, autoritários e a queda democrática decorrentes de sistema neoliberal, situações nota-damente diversas. Não se trata, portanto, de equivaler tais experiências, mas estruturar como aspecto comum a apropriação da retórica acerca de gênero diante da queda democrática. Neste tocante os regimes tem se apropriado de visão de gênero atrelada ao papel tradicional de mãe den-tro da estrutura familiar, além de manifestações abertamente misóginas das principais lideranças partidárias de forma que o antifeminismo em

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Heloisa Fernandes Câmara

suas diversas vertentes tem sido a cola ou articulação que tem mantido a articulação entre vários partidos com os de extrema direita1. Este pro-cesso tem levado a retrocessos tanto em direitos sexuais e reprodutivos quanto em proteção de gênero em sentido amplo.

Para tratar da relação entre gênero e queda democrática este artigo está dividido em três partes. Na primeira serão delineadas característi-cas do processo de declínio democrático atual. Será revisada parte da literatura atual sobre a relação entre declínio democrático e constitucio-nalismo. Também nessa parte será brevemente apresentada a relação entre igualdade de gênero e democracia. Em sequência trato de como estes movimentos autoritários tem tratado questões relacionadas à gê-nero. Essa relação se dá na dupla perspectiva de que tais movimentos ancoram-se em discursos antifeministas e anti-LGBT, em defesa dos pa-péis sociais tradicionalmente estabelecidos. A segunda forma de com-preender essa relação se dá pelos efeitos, ou seja, como países em que há declínio democrático tem alterado políticas públicas relacionadas à igualdade de gênero. Na última parte trato da situação brasileira atual e das ameaças às políticas públicas e direitos relacionados à gênero.

É fundamental estabelecer que o antifeminismo não é um movimen-to novo, mas que ganha impulso nos novos governos populistas e de ex-trema direita, retroalimentando tais discursos. Pela limitação de espaço não foi possível aprofundar a análise e alcance dos movimentos antife-ministas, mas devido à importância do tema é importante que esteja na agenda de pesquisas tanto sobre direitos relacionados à gênero quanto no estudo sobre os novos autoritarismos.

1. DEMOCRACIA LIBERAL E SEU DECLÍNIO

Após os processos políticos ocorridos na década de 1970 no sul da Europa e América Latina iniciou-se na Ciência Política linhas de estudo que pretendiam compreender o processo de transição para e consolida-ção da democracia2. As linhas chamadas de transitologia e consolidologia

1. VON BARGEN, Henning, Unmüßig, Barbara. Anti-feminism: the hinge connecting the right--wing periphery and the centre. Heinrich Böll Stiftung: Gunda Werenr Institute – Femi-nism and Gender Democracy, 11 maio 2018. Disponível em: <https://www.gwi-boell.de/en/2018/05/11/anti-feminism-hinge-connecting-right-wing-periphery-and-centre>. Aces-so em: 16 set. 2019.

2. Segundo Mainwaring et al, para ser democrático deve-se avaliar quatro dimensões: a – o che-fe do Executivo e o Legislativo devem ser escolhidos em eleições competitivas e livres, b – o direito de voto deve ser extensivo à grande maioria da população adulta, c – a proteção de

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MULHER E PODER NO BRASIL

Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques1

e Patrícia Pacheco Rodrigues2

Sumário: 1. Introdução; 2. O princípio da igualdade na Constituição de 1988; 3. Igualdade entre homens e mulheres; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas

1. INTRODUÇÃO

O tema da Mulher e o Poder no Brasil além de ser atual e relevante traz consigo uma série de inquietações e também discussões, tanto no campo jurídico, como social. No entanto, o seu enfrentamento é neces-sário para a busca da igualdade entre os sexos e para a consolidação do Estado Democrático de Direito, pois ele pressupõe a participação de todos os cidadãos no processo de tomada de decisão do Estado.

Do ponto de vista jurídico tem-se que o direito à igualdade é asse-gurado no Brasil, desde a primeira Constituição, qual seja, a de 1824 e esteve presente em todos os demais Textos Constitucionais. A isonomia está prevista na Constituição de 1988 em seu art. 5º, que é dividido em setenta e oito incisos e contém quatro parágrafos e que trata dos direitos

1. Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho e advogada. Currículo lattes: <http://lattes.cnpq.br/4568093820920860>.

2. Mestranda em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE) na linha de pesquisa: justiça e o paradigma da eficiência. Delegada de Polícia Civil em São Paulo. Currículo lattes: <http://lattes.cnpq.br/5702557396011791>.

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Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marquese Patrícia Pacheco Rodrigues

e deveres individuais e coletivos. O rol de direitos ali presentes é mera-mente exemplificativo.3

Os direitos individuais são cláusulas pétreas, e como tal não podem ser abolidos por emenda à Constituição (art. 60, §4º, inc. IV). Limitam o poder estatal, na medida em que proíbem ingerências “indevidas na esfera jurídica individual.”4 Constituem-se em uma verdadeira carta de direitos do cidadão. Houve um significativo aumento da previsão de di-reitos individuais em relação ao disposto na Constituição de 1967, bem como dos meios para garanti-los.

A igualdade é assegurada em toda sua amplitude, ou seja, abarca o seu aspecto formal consistente na impossibilidade de a lei discriminar por critérios que não sejam legítimos e também o critério material que se encontra diretamente relacionado com a proteção da dignidade da pessoa humana e visa a propiciar ao indivíduo condições para que possa usufruir em igualdade de condições dosdemais bens da vida, tais como: saúde, educação, moradia, alimentação e trabalho.

O Texto Constitucional expressamente também assegura a igualda-de entre homens e mulheres nos termos da Constituição. Isso implica dizer que é autorizado ao Texto Constitucional fazer distinções entre ho-mens e mulheres com vistas a assegurar a tão almejada isonomia. Nesse particular, tem-se a obrigatoriedade de prestação de serviço militar ape-nas para homens, uma reserva de mercado de trabalho para mulheres, bem como distinção no tocante ao regime de previdência social, princi-palmente, no que concerne a idade e os anos de contribuição.

Na atualidade, ainda se fazem presente resquícios da cultura pater-nalista dos séculos passados. Tiveram importantes movimentos femi-nistas e sociais de apoio a emancipação da mulher, na busca da imple-mentação da igualdade de fato que ainda não foi concretizada. A história e a cultura são responsáveis pela desigualdade de gênero, que cresce onde existem papéis e posturas discriminatórias.

As mulheres ainda aprendem o papel social de submissão, e os ho-mens o papel de domínio. Tais concepções surgem desde a infância, no âmbito familiar, do que por disciplinas legais. Portanto, trata-se de um

3. MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva. 2. ed., 1986, p. 425.

4. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coim-bra: Almedina, 2002, p. 407.

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Cap. 7 • MULHER E PODER NO BRASIL

jogo de poder, e a mulher se mantém na sociedade com menos poder político, econômico e menos prestígios sociais. O que, inevitavelmente, vem influenciando na qualidade de vida e no acesso destas aos espaços de poder.

No momento atual, as distinções normativas com vistas a assegurar a igualdade ente homens e mulheres, ganha novos contornos na medida em que as mulheres conquistam cada vez mais espaço no cenário políti-co e econômico e também em relação ao papel por elas desempenhados nas Forças Armadas, nas empresas privadas e principalmente no Poder. Nesse sentido, o presente estudo pretende analisar com acuidade essas novas nuances no que se refere à isonomia entre homens e mulheres.

2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O princípio da igualdade é assegurado no caput do art. 5º da Cons-tituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.A garantia da igualdade é um dos pressupostos necessários para alcançar uma democracia efetiva. Ela é um dos princí-pios fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro, um dos pilares do arcabouço constitucional.

Num primeiro momento o ordenamento jurídico buscou-se asse-gurar a igualdade formal, ou seja, a igualdade na lei consistente na ve-dação de tratamento discriminatório5. Posteriormente passou-se a ga-rantir a igualdade material, ou seja, “o tratamento uniforme de todos os homens”6, igualdade de oportunidade em face dos bens da vida. Foi nesse contexto que foram criadas as ações afirmativas, que são as ações que visam assegurar, afirmar o princípio da isonomia, cuja modalidade mais conhecida é o regime de cotas.7São ações que buscam assegurar às minorias o acesso aos bens da vida, saúde, educação, emprego...

O sistema de cotas já é aplicado no ordenamento jurídico pátrio no tocante ao acesso às universidades de afro descentes, descendentes de índios e alunos oriundos de escola pública. Trata-se de um valioso ins-trumento de inclusão das minorias na sociedade, na medida em que se

5. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor; Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. 2. ed. 1999, p. 48.

6. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 22. ed. rev. e atual. por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, 2010, p. 284.

7. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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A IMPORTÂNCIA DA IGUALDADE DE GÊNERO E DOS INSTRUMENTOS PARA A SUA EFETIVAÇÃO NA DEMOCRACIA:

ANÁLISE SOBRE O FINANCIAMENTO E REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL

Polianna Pereira dos Santos1 e Nicole Gondim Porcaro2

Sumário: 1. Introdução; 2. Democracia e questões de gênero; 3. Democracia de gênero no ordenamento jurídico brasileiro; 4. A política de cotas na legislação eleitoral brasileira; 5. Financiamento de campanha; 7. Democracia de gênero e os instrumentos para sua implementação; 8. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

A Carta de 1988 marca a transição democrática e a institucionali-zação dos direitos humanos no Brasil, inaugurando uma nova dogmáti-ca constitucional, na qual ela assume posição central dentro do sistema

1. Mestre em Direito Político – UFMG. Especialista em Ciências Penais – IEC – PUC/MG. Bacha-rel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Diretora Presidente da Associação Visibilidade Feminina. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP. Assessora no Tribunal Superior Eleitoral.

2. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-graduada em Direi-tos Fundamentais pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Ius Gentium Conimbrigae (IGC) da Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universi-dade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogada. Diretora Administrativa da Associação Visi-bilidade Feminina.

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Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

jurídico. Eleva a participação política ampla e igualitária como direito fundamental, declarando que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, de forma a instituir a paridade de gênero como princípio visceral da ordem constitucional, inclusive estabelecendo como dever do Estado tomar medidas apropriadas à inserção igualitária da mulher na política.

Essa perspectiva constitucional se insere no contexto de reconheci-mento da igualdade de gênero como elemento essencial para uma socie-dade que se pretenda democrática3 e para o aumento da qualidade dessa democracia4. A questão da desigualdade de gênero com reflexos na bai-xa representação política é uma realidade mundial, em que as mulheres continuam sub-representadas e marginalizadas nos espaços decisórios institucionais.

O Brasil se insere nessa realidade global de desigualdade no tra-tamento entre homens e mulheres. É exemplificativo disso o fato de as mulheres terem sido um dos últimos contingentes sociais a conquistar direitos políticos nas democracias contemporâneas5. No Brasil, o direito ao voto das mulheres somente foi regulamentado em 24 de fevereiro de 1932, com o primeiro Código Eleitoral. O voto da mulher era, contudo, facultativo6.

3. DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

4. LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Editora Record, 2003.

5. Conforme esclarece Robert Dahl, “(…) há cerca de quatro gerações – por volta de 1918, mais ou menos ao final da Primeira Guerra Mundial –, em todas as democracias ou repúblicas independentes que até então existiam, uma boa metade de toda a população adulta sempre estivera excluída do pleno direito de cidadania: a metade das mulheres”. DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 13.

6. Enquanto o art. 2º definia como eleitor “o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”, o art. 121 estabelecia a facultatividade desse voto, ao es-tatuir que “os homens maiores de sessenta anos e as mulheres em qualquer idade podem isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral”. Para se candidatar, era necessário ser eleitor e possuir quatro anos de cidadania, não havendo nenhuma restrição legal de gênero para o exercício dos direitos políticos passivos das mulheres a partir desse momento. Cabe salientar, no entanto, que embora as democracias modernas prometam um grau mínimo de igual respeito mediante a universalização do sufrágio, esse arranjo nor-mativo é insuficiente a fazer com que a igualdade se realize na prática, em especial no que diz com os membros de grupos com um histórico de marginalização. FUKUYAMA, Francis. Identidade: A exigência de dignidade e a política do ressentimento. Lisboa: Dom Quixote, 2018, p. 15.

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Cap. 11 • A IMPORTâNCIA DA IGUALDADE DE GêNERO…

Paralelamente a isso, temos que as eleições de 2018 resultaram na maior bancada feminina da história da democracia brasileira, com 77 mulheres eleitas, o que representa apenas 15% das vagas. Aumentou a quantidade de eleitas mulheres em todo o espectro ideológico e par-tidário. O presente artigo se propõe a analisar uma variável nova nas eleições de 2018 – a exigência de observância de percentual mínimo de financiamento por gênero – e seus impactos.

Num primeiro momento, serão apresentadas as premissas teóri-cas a partir das quais esse estudo se estrutura, a respeito da essencial correlação entre democracia e gênero. Buscou-se expor a ficção de neu-tralidade, ou a falsa neutralidade que em muitos momentos impede ou dificulta o reconhecimento da desigualdade de gênero que é marca das sociedades patriarcais. É possível falar, portanto, em democracia de gê-nero, não como redundância, mas para marcar esse aspecto e essa cor-relação de forças.

A análise que se segue, da Constituição da República de 1988 edos Tratados Internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil que, por essa razão, apresentam status constitucional, tem por finalidade ressaltar que a democracia constitucional brasileira não se contenta com um mecanismo pautado simplesmente pela vontade da maioria. Seu ponto de partida é uma cidadania coletiva que reflete a liberdade e a igualdade, o que inclui, necessariamente, a igualdade de gênero. Ainda que assim seja, as regras atuais do sistema político bra-sileiro não têm se mostrado suficientes para garantir uma participação igualitária.

Para a melhor compreensão do gap de gênero, apresenta-se o his-tórico da regulamentação das cotas de gênero no Brasil, que surgem em 1995. Desde então, o que se percebe é a manutenção do baixo percentu-al de mulheres eleitas, ainda quando comparados ao período, pós Cons-tituição de 1988, em que não havia ainda referida regulamentação.

Há, todavia, a mudança importante de cenário nas eleições de 2018. Ainda que o percentual de mulheres eleitas continue baixo – 15% – ele representa um aumento significativo de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados em relação às eleições de 2014 – 9,9%. Passa-se, portan-to, a uma análise das mudanças na lei e em sua interpretação que nos pa-rece expor a relevância de instrumentos para a promoção da igualdade de gênero para a melhor qualidade da democracia, ou para a promoção da democracia de gênero.

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Polianna Pereira dos Santose Nicole Gondim Porcaro

2. DEMOCRACIA E QUESTÕES DE GÊNERO

O princípio da igualdade política é fundamento central para a op-ção pela democracia entre os demais regimes, não só pelo direito de es-colher quem governa, mas também pelo direito, de todos, de poder ser escolhido e participar na tomada de decisões que afetam a si mesmo e a toda a sociedade. Todavia, a existência de eleições per se não assegura o respeito ao princípio democrático.

Nesses termos, o grau de inclusividade do sistema político – isto é, a extensão com que os direitos civis e políticos são garantidos a todos os cidadãos sem exceção7 – é uma condição fundamental de sua conso-lidação. Considerando que a participação nas instituições públicas é um meio especialmente efetivo de influenciar as regras políticas e as políti-cas públicas do Estado, parece inegável que a participação equitativa de homens e mulheres seja uma condição mínima para a eficácia das insti-tuições democráticas e da própria democracia representativa.

Como ensina Dahl8, o exercício igualitário da cidadania passa neces-sariamente pela existência de condições efetivas que assegurem a influ-ência de todos os membros adultos da sociedade, em sua diversidade, no processo de tomada de decisões que os afetam.

Autoras feministas como Philips9, Young10 e Mansbrigde contestam o modelo hegemônico de democracia e de Estado “neutro”, e salientam a importância da inclusão feminina na política para o aprofundamento da democracia, indicando que a representação descritiva11, ou seja, uma

7. A inclusão política das mulheres é “condição indispensável de realização da igualdade políti-ca”. MOISÉS, José Álvaro; SANCHEZ, Beatriz Rodrigues. Representação política das mulheres e qualidade da democracia: o caso do Brasil. In: MOISÉS, José Álvaro (Org.). O Congresso Na-cional, os partidos políticos e o sistema de integridade: representação, participação e controle interinstitucional no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2014, p. 97.

8. DAHL, Op. Cit., p. 49-50.

9. PHILLIPS, Anne. The Politics of presence. Oxford: Clarendon Press, 1995.

10. YOUNG, Iris Mansion. Representação política, identidade e minorias. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 67, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67>. Acesso em: 10 ago. 2019.

11. Mansbrigde define: “Na representação descritiva, a própria pessoa e a vida do representante de certa forma traduzem a classe maior que ele representa. Legisladores negros representam cidadãos negros, legisladoras representam as mulheres, e assim por diante.” (Tradução livre). MANSBRIDGE, Jane. Should Blacks Represent Blacks and Women Represent Women? A Con-tingent “Yes”. The Journal of Politics, v. 61, n. 3, 1999 (pp. 628-57), p. 629.

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A EQUIDADE DE GÊNERO NO PROGRAMA CONSTITUCIONAL

DAS RELAÇÕES FAMILIARES

Ana Carla Harmatiuk Matos1

e Lígia Ziggiotti de Oliveira2

Sumário: 1. Introdução; 2. Atmosfera constituinte, movimentos sociais de mulheres e os direitos das famílias; 3. Igualdade de gênero em famílias conjugais e parentais; 4. A relevância da previsão constitucional da união estável; 5. A relevância da previsão constitucional da monoparentalidade; 6. Entidades familiares constitucionalizadas: um movimento de interpretação contínua; 6. Proteção constitucional da criança, do adolescente e da pessoa idosa: propostas a partir da igualdade de gênero; 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

Há pouco mais de trinta anos, o vigor da Constituição da República Brasileira oferecia um panorama renovado para as relações de Direito Civil. As temáticas que lhe diziam respeito, historicamente incluídas na lógica codificadora, marcaram-se pela racionalidade oitocentista pró-pria a movimentos jurídicos modernos.

1. Mestra e Doutora em Direito pela UFPR e mestre em Derecho Humano pela Universidad Inter-nacional de Andalucía. Tutora Diritto na Universidade di Pisa – Italia. Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora Colaborado-ra do Mestrado profissional em Direito da UNIFOR. Diretora da Região Sul do IBDFAM. Vice--Presidente do IBDCivil. Autora de livros e artigos. Conselheira Estadual da OAB-PR. Advogada.

2. Doutora em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição. Professora de Direito Civil da Universi-dade Positivo. Autora de livros e artigos. Membra das Comissões de Estudos sobre Violência de Gênero e de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PR. Advogada.

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Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti de Oliveira

Como se sabe, o fenômeno de produção de Códigos Civis tratou-se de uma consagração do ideário burguês e liberal predominante no sé-culo XIX na conjuntura ocidental. Compreendidos como constituições da vida privada, estes marcos normativos atravessaram séculos e têm, ainda, um profundo significado ao imaginário jurídico.

A ressignificação oferecida, contudo, pela conjuntura constitucional brasileira do final do século XX às relações consideradas, classicamente, como de Direito Privado deve ser tida como uma relevante oxigenação dos pilares que têm estruturado o pensamento civilista: contrato, pro-priedade e família.

O Direito das Famílias contemporâneo, indubitavelmente, recebeu influxos diretos do texto constitucional, que trouxe, especialmente, en-tre os seus artigos 226 e 230, as principais contribuições para o campo. Selecionam-se como principais irradiações de sua tábua de princípios a pluralidade das entidades familiares reconhecidas como produtoras de efeitos jurídicos; a quebra das assimetrias discriminatórias por gênero e por geração no plano normativo formal; e a seleção de vulnerabilidades no seio dos eixos conjugal e parental para a especial proteção do Estado.

Nesta cadência, o programa constitucional das relações familiares enfrenta a sexista divisão de poderes impetrada, ao longo do século XX, no Código Civil Brasileiro entre os cônjuges; retira a centralidade jurí-dica do matrimônio no ordenamento; posiciona-se, contrariamente, à hierarquia patriarcal entre pais e filhos, reconhecendo, enfim, estes últi-mos como sujeitos de direito; e inclui também a população idosa como vulnerada socialmente.

Tais temáticas têm íntima vinculação com a equidade de gênero, de modo que o objetivo do presente texto consiste em demonstrar a exten-são dos elos existentes entre os direitos das mulheres e o atual progra-ma constitucional das relações familiares.

2. ATMOSFERA CONSTITUINTE, MOVIMENTOS SOCIAIS DE MU-LHERES E OS DIREITOS DAS FAMÍLIASÉ bastante desconhecida, na dogmática jurídica, a contextualização

dos momentos de positivação de direitos.

Este perfil de abordagem contribui para que se conclua que tal en-caminhamento normativo se dá naturalmente, o que não corresponde à complexidade das lutas sociais que encaminham, em geral, a produção legislativa relacionada às minorias políticas.

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Cap. 14 • NO PROGRAMA CONSTITUCIONAL …

De acordo com Teresa Cristina de Novaes Marques e Hildete Pereira de Melo, é equivocado atribuir as mudanças jurídicas a tendências mo-dernizantes da sociedade, minimizando a importância dos atores polí-ticos que participaram da tensão necessária à superação do status quo positivado3.

Como observam as autoras, “pensar que os elaboradores das leis respondem prontamente a mudanças sociais é desconsiderar os proces-sos políticos como um problema histórico, pois, no mais das vezes, os le-gisladores resistem a adotar inovações”4. Neste sentido, os movimentos sociais de lutas por direitos se constituem como importante peça para a positivação e para a concretização das normas.

O movimento constituinte possui potente condão de demonstrar os influxos produtivos entre os movimentos sociais e o direito positivado. Como é sabido, ao representar o fim da ditadura militar no país, a atmos-fera constituinte significou um marco de participação popular na elabo-ração do pacto democrático. Houve composição de percepções bastante plurais dos grupos articulados no país – a ponto de se fazer possível a crítica de que a amplitude de pontos de vista produziu até mesmo con-tradições arriscadas para a efetividade do texto constitucional.

No que toca o movimento social de mulheres, afirma-se que houve notável êxito no processo de influência aos constituintes. Sem dúvidas, a partir dos anos 80, ocorreu uma efervescência de pensamentos e de ações feministas no Brasil5. Organizadas por uma frente que reunia os principais movimentos sociais de mulheres no país – o Conselho Nacio-nal da Condição da Mulher (CNDM) – elas produziram a chamada Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Desta última, aproveitaram--se 80% das pautas6.

3. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulhe-res casadas no Brasil entre 1916 e 1962 ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Floria-nópolis, v. 16, n. 2, Maio/Agosto 2008.

4. MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de. Os direitos civis das mulhe-res casadas no Brasil entre 1916 e 1962 ou como são feitas as leis. Estudos Feministas, Floria-nópolis, v. 16, n. 2, Maio/Agosto, 2008, p. 465.

5. JARDIM, Céli Regina. Feminismo, história e poder. Rev. Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 36, 2010, p. 17.

6. PITANGUY, Jacqueline. Movimento de mulheres e política de gênero no Brasil. Disponível em: <http://www.cepal.org/mujer/proyectos/gobernabilidad/documentos/jpitanguy.pdf>. Acesso em: 13 ago. de 2019.