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CONSTANTINA ARAÚJO - OS TRAJES DE CENA, OS TRAJES DA MULHER. Constantina Araújo – costumes of the theater, costumes of the woman. Prof. Dr. Fausto Viana (Escola de Comunicações e Artes/ Universidade de São Paulo) Resumo: O Núcleo de Traje de Cena da ECA USP recebeu em doação trajes de cena da soprano Constantina Araújo (1922-1966), usados em apresentações no Brasil e na Europa. O fato é que junto com a coleção veio uma agradável surpresa: trajes cotidianos da cantora, com história muito particular- mas que desafia a política de incorporação do Núcleo. Para responder ao “E agora? O que fazer com esses objetos museais?” foi elaborado esse artigo. Palavras- chave: Traje de cena. Moda. Museu. Abstract: The Research Center of Performance Costumes at ECA USP has received a donation of costumes from the soprano Constantina Araújo (1922-1966), used in presentations in Brazil and Europe. The fact is that with the donation, we had a pleasant surprise: everyday costumes of the singer, with a very singular story- but challenging the Center’s politics of acquisition. This article has been written to answer the question: “What do we do now with these museum objects?” Key words: Theatrical costumes. Fashion. Museum. 1. O traje como objeto material no museu, em coleções particulares ou públicas. O regimento do Núcleo de Pesquisa sobre Traje de Cena, fundado em 2012 e ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, deixa claro que o Núcleo estuda o vestuário- ou ainda, de forma mais específica, figurino, roupa de cena, traje cênico- utilizado nas mais diversas manifestações cênicas, como o teatro, o circo, o cinema, a televisão, a dança, a performance e outras variantes contemporâneas de arte. São dois eixos principais. Um parte do traje de cena enquanto elemento atuante do espetáculo e toda a significação que ele adquire ao fazer parte do rito artístico em que está inserido. Nesta situação, o que se avalia de forma quase subjetiva são as sensações, efeitos artísticos, interferências e reações causadas no espectador. O outro trata do traje enquanto objeto que carrega em si a memória do fazer cênico e que por isso se torna um dos poucos elementos que trazem vestígios do que foi a encenação da qual fez parte. Trata-se muito mais neste caso de memória, que permite a análise do material com que foi confeccionado, estudos de cores, confecção, procedência, formas, modelagem, 223

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CONSTANTINA ARAÚJO - OS TRAJES DE CENA, OS TRAJES DA MULHER.

Constantina Araújo – costumes of the theater, costumes of the woman.

Prof. Dr. Fausto Viana (Escola de Comunicações e Artes/ Universidade de São Paulo)

Resumo: O Núcleo de Traje de Cena da ECA USP recebeu em doação trajes de cena da soprano Constantina Araújo (1922-1966), usados em apresentações no Brasil e na Europa. O fato é que junto com a coleção veio uma agradável surpresa: trajes cotidianos da cantora, com história muito particular- mas que desafia a política de incorporação do Núcleo. Para responder ao “E agora? O que fazer com esses objetos museais?” foi elaborado esse artigo. Palavras- chave: Traje de cena. Moda. Museu. Abstract: The Research Center of Performance Costumes at ECA USP has received a donation of costumes from the soprano Constantina Araújo (1922-1966), used in presentations in Brazil and Europe. The fact is that with the donation, we had a pleasant surprise: everyday costumes of the singer, with a very singular story- but challenging the Center’s politics of acquisition. This article has been written to answer the question: “What do we do now with these museum objects?” Key words: Theatrical costumes. Fashion. Museum. 1. O traje como objeto material no museu, em coleções particulares ou públicas. O regimento do Núcleo de Pesquisa sobre Traje de Cena, fundado em 2012 e ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, deixa claro que o Núcleo estuda o vestuário- ou ainda, de forma mais específica, figurino, roupa de cena, traje cênico- utilizado nas mais diversas manifestações cênicas, como o teatro, o circo, o cinema, a televisão, a dança, a performance e outras variantes contemporâneas de arte. São dois eixos principais. Um parte do traje de cena enquanto elemento atuante do espetáculo e toda a significação que ele adquire ao fazer parte do rito artístico em que está inserido. Nesta situação, o que se avalia de forma quase subjetiva são as sensações, efeitos artísticos, interferências e reações causadas no espectador. O outro trata do traje enquanto objeto que carrega em si a memória do fazer cênico e que por isso se torna um dos poucos elementos que trazem vestígios do que foi a encenação da qual fez parte. Trata-se muito mais neste caso de memória, que permite a análise do material com que foi confeccionado, estudos de cores, confecção, procedência, formas, modelagem,

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texturas, peso e uma série de características mais palpáveis e às quais necessariamente não se tem acesso quando o traje está em cena. Assim, o Núcleo pesquisa as diferentes variantes e possibilidades dos dois eixos do projeto e, acima de tudo, sua intersecção, representada por aquele instante precioso em que na encenação (independente do meio ou mídia) o trabalho artístico se funde aos diversos elementos que compõe materialmente o espetáculo. Quando justificamos para a Universidade a importância do Núcleo, deixamos claro que dentro de uma visão holística do espetáculo, o figurino é sem dúvida parte fundamental, mesmo quando se apresenta em formatos às vezes imperceptíveis. O figurino faz parte de um acontecimento bastante difícil de documentar: “a atuação no palco, a expressão artística que depende da interação entre os artistas e o seu diálogo com o público – que desaparece a cada noite quando cai o pano”, como disse Lisbet Grandjean, diretora do Museu de Teatro de Copenhague, na Dinamarca. De acordo com ela, o que sobra são “...as coisas (sic) usadas no

teatro para criar a performance: as palavras do autor, a música do compositor, os sketches do

coreógrafo, os trajes, os cenários, adereços, programas, pôsteres, fotografias, vídeos. E claro, os

performers1” Patrice Pavis, pesquisador francês, também afirma que

“... um fragmento aparentemente anódino afigura-se muitas vezes característico do conjunto e é preciso saber reconhecer tais detalhes ‘insignificantes’ que, muitas vezes, se abrigam em alguns elementos materiais privilegiados do espetáculo. Cada sistema significante vale por si, mas constitui igualmente um eco sonoro, um amplificador que diz respeito então a todo resto da representação. (PAVIS, 2003:162)

O figurino pressupõe um conjunto, e muitas vezes o que se encontra preservado são alguns trajes de uma determinada representação. Ou seja, considera-se que cada traje represente de forma autônoma um documento histórico e, portanto uma ferramenta para o estudo da história do teatro. Encara-se que cada traje preservado é parte representativa dentro do sistema significante do figurino. O traje de cena, muitas vezes acidentalmente, é o único elemento que atravessa a história das representações teatrais, tornando-se seu único testemunho material. No caso da doação de Constantina, fica evidente a adequação dos trajes de cena ao perfil do Núcleo, que incorpora trajes de cena em recorte bastante preciso. A peça precisa, para

1 In Revista Museum International, The performing arts. Vol XLIX, n°2, april 1997, pp. 7-12.

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entrar na coleção, ter algum dos seguintes critérios principais: antiguidade do traje (e são tão poucos os trajes que sobram de épocas mais remotas); técnica de confecção (que poderá fornecer meios de estudo para pesquisadores em geral) e criador do traje, o designer, considerando-se sua importância para o mundo das artes cênicas. Mas e o acervo de trajes pessoais, de uso cotidiano, e nesse caso, moda2? Maria Cláudia Bonadio, que vem pesquisando acervos têxteis no MASP- Museu de Arte de São Paulo, escreveu para o Colóquio de Moda de 2013 o texto Moda é coisa de museu, e ao citar Ulpiano Bezerra de Menezes discute o sentido dos objetos:

Os atributos intrínsecos dos artefatos, é bom que se lembre, incluem apenas propriedades de natureza físico-química: forma geométrica, peso, cor, textura, dureza etc. etc. Nenhum atributo de sentido é imanente. [...] Por certo, tais atributos são historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e grupos nas operações de produção, circulação e consumo de sentido. Por isso, seria vão buscar nos objetos o sentido dos objetos”.3

Susan Pearce, na introdução de Interpreting objects and collections (2006), discute que todo o material existente em um museu foi, um dia, parte de um processo relacional com seu proprietário, incluindo seu corpo. No nosso caso, o corpo é o próprio suporte dos objetos em questão. Ela defende também que, para muitos curadores como ela, as coleções são o coração de um museu. “Em um sentido fundamental”, ela diz, “a posse de coleções, de objetos reais e espécimes, é o que distingue o museu de outros tipos de instituições” (p.125). É curioso o fato de que Pearce segue discutindo que a questão da curadoria dos artefatos é uma preocupação central, mas que muito pouco vinha sendo feito para que a disciplina “cultura material” fosse desenvolvida. Hoje, ela afirma, há uma consciência do que o objeto representa. O objeto abarca informações únicas sobre a natureza do homem em sociedade: a elucidação das abordagens pelas quais essas informações poderão ser reveladas é nossa tarefa, a contribuição única que as coleções museológicas podem fazer para o entendimento de nós mesmos. (idem) Qual seria, portanto, para Pearce, um modelo de estudo para artefatos/objetos? Inspirada em McClung Fleming, ela considera que o objeto tem história, o material de 2 O conceito de moda e indumentária já foi discutido amplamente, mas vale dizer que nem tudo que é indumentária é moda, mas tudo que é moda faz parte da indumentária. No caso de Constantina, o material é moda dos anos 50 e 60, com estilo e muito... charme! 3 O texto está disponível em http://coloquiomoda.com.br/anais/anais/8-Coloquio-de-Moda_2012/GT06/ARTIGO-DE-GT/Moda_e_coisa_de_museu.pdf

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que é feito, sua construção, seu design e sua função. Desdobrando essa análise, ela primeiro propõe que se identifique o objeto, em descrição fatual. Na sequencia, sugere que se faça uma avaliação do objeto, seu julgamento e sua comparação com outros objetos. A partir disso, uma análise cultural, a relação do artefato com sua cultura, e os aspectos destacados da cultura do objeto. Por fim, ele propõe a interpretação do objeto, seu significado, através dos valores da cultura do presente. Há, portanto, uma clara indicação das informações que são contidas no objeto e aquelas que são informações suplementares a ele (no roteiro acima: comparação, aspectos destacados, valores da cultura do presente). Pois ao Núcleo chegou uma coleção de trajes de cena- core da nossa atividade. O que fazer então com os trajes aparentemente não ligados ao nosso trabalho? 2. Apresentando: Constantina Araújo

Fig.1-Constantina Araújo em São Paulo, 1948.4 A fig.2 mostra Constantina em cena, na ópera Oberom,

personagem Princesa Rezia, no Ópera de Paris. 1954. Constantina Araújo nasceu em São Paulo, em 28 de maio de 1922. O pai era português e a mãe napolitana. A vocação para o canto e a música foi desenvolvida no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Iniciou a carreira radiofônica na Rádio Cultura e na Gazeta5. A estreia em teatro foi em 1947, no papel de Leonora em Il Trovatore, no Municipal de São Paulo. “Acho que não convenci”, ela declarou para a Paulicéia em revista, “pois não me deram nem atenção nem esperanças”.

4 Todas as imagens utilizadas nesse texto pertencem ao Núcleo de Traje de Cena. 5 Informação na revista Paulicéia em revista- o rádio em seu lar, de março de 1951.

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O quadro seria revertido quando decidiu ir embora para a Itália. Lá, conseguiu um contrato de três anos com o Scala de Milão. Apresentou-se no Covent Garden (Londres); na Espanha; em Portugal; na Suíça e na Alemanha. Seguiu em brilhante carreira. Cantou a Aída, de Verdi, talvez seu papel de maior reconhecimento e destaque; Madame Butterfly, Vespri Siciliani, Mefistófeles, Um ballo in

maschera, Andrea Chenier... Em 1966, veio ao Brasil para pequena intervenção cirúrgica e teve uma embolia pulmonar no pós-cirúrgico, falecendo em 04 de março.

Figura 3- Constantina na revista Elle francesa, de fevereiro de 1954. A legenda da foto, em linhas gerais, dizia: “Os vocalizes da vedette: Constantina Arauzo(sic), 27 anos, brasileira, a soprano dramática mais pura do mundo (seu papel exige três oitavas plenas do muito grave aos contra-agudos), ensaia com o maestro de canto do Scala, Sr.Lehman”. 3. Apresentando: Os trajes de Constantina.

Fig.4- Em foto publicada na La Settimana Illustrada, de março de 1951, podemos ver Constantina costurando seus trajes. Ela fazia tanto os de cena como muitos de seus trajes pessoais.

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Os trajes de cena recebidos incluem cinturões, adereços vários da ópera Aída, de ópera chinesa, perucas, apliques de cabelo, penas, galões para aplicação em roupas, uma sombrinha chinesa, sapatos, toucas, um diadema, brincos, anéis, saiotes e seis vestidos de cena.

Figura 5- Constantina Araújo em Un ballo in maschera, temporada lírica do Scala de Milão, 1951-52.

Figura 6- Um dos vestidos de Constantina, recebidos em doação.

Figura 7- Constantina Araújo em Aída, sem data.

Figura 8- O vestido hoje.

Figura 9- Brincos de Aída

Figura 10- Adereço de Aída.

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Esperamos ainda classificar os trajes de acordo com as óperas que ela cantou. Ela tinha um caderno onde anotava todas as óperas das quais participou, e quanto recebeu em cada uma, que até o momento não foi cedido ao Núcleo. É possível identificar os trajes de ópera pelo seu estilo, mas para garantirmos uma melhor classificação, não faremos isso nesse momento. Os trajes cotidianos incluem cerca de trinta vestidos; combinações, anáguas, saiotes, saias, casacos, luvas, cinta-liga, cintos, sapatos, corpetes, maiôs, camisolas... Muitos dos vestidos e roupas têm identificação dos fabricantes: lojas de Milão, de Paris, de Nova York... A qualidade do material é impressionante e o estado de conservação das peças é muito bom.

Figura 11- Em Veneza, com o representante da Revista do Rádio (jan/1957).

Figura 12- O vestido hoje.

Figura 13- Em Veneza, com amigas. Há uma divertida série de fotos em que elas se deixam fotografar juntas, todos os dias, com trajes diferentes, basicamente no mesmo lugar.

Na figura 14, o vestido hoje.

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Complementando a doação, recebemos o baú em que os trajes de ópera estavam guardados e outras malas que continham os trajes pessoais. Em uma das malas, encontramos o material de costura- linhas, botões e agulhas, mas que não foram doados ainda. Encontramos muitos fragmentos de tecido, muitos enrolados e que davam a impressão de serem meros retalhos. Ao abrimos as amarras, percebemos que eram roupas que tinham sido desmontadas para receber ajuste, e estes trajes agora vão ser reconstruídos para reintegrarem a coleção Constantina Araújo. 4. Romance, imaginação, afeto: isso afeta um traje? No livro de Pearce há um curioso relato que parece ser perfeito para uma analogia com o nosso caso. Ela descreve uma jaqueta de oficial do exército, que pertenceu a um oficial que foi baleado (mas não morreu) na batalha de Waterloo, em 1815, no National Army Museum em Londres. O traje foi doado ao museu e hoje está na exposição de longa duração. O oficial que a usou não teve uma vida interessante, não progrediu no exército, não fez nada que chamasse a atenção. Mas o fato é que a jaqueta tem o que Pearce chama de “poder da coisa real”, ou seja, as pessoas têm interesse em ver aquela jaqueta porque ela é portadora de signos que impressionaram e foram sendo transferidos de geração para geração. Primeiro, o seu tipo de material e cor, vermelha; suas condecorações, a possibilidade de identificar a qual rank o dono pertencia... E por aí segue, pois a peça, conforme apresentado acima, traz informações contidas no objeto e outras suplementares a ele. No caso dos trajes de cena de Constantina, fica fácil traçar um paralelo entre a jaqueta e o(s) nosso(s) objeto(s). Os trajes de cena já trazem em si este apelo pelo reconhecimento público. Os trajes contam histórias do passado, de artistas bem sucedidos, flamboyants, passionais, admirados ou detestados. De alguma forma, pode haver o risco da fetichização, ou seja, admirar o traje porque pertenceu a uma celebridade, sem reconhecer no traje seu valor artístico, histórico de concepção e execução, ou seja, tudo que o qualifica a fazer parte de uma coleção de museu. Mas vamos pensar em Renata Araújo, falecida aos 83 anos na cidade de São Paulo em 2013? E que tinha, em 1966, 36 anos? Renata era irmã de Constantina Araújo, nossa cantora, e foi ela quem foi à Milão para desfazer o apartamento da irmã após sua morte. Foi Renata quem trouxe todo o material

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descrito no item 03 desse artigo: dos sapatos aos vestidos, dos adereços de cena às sombrinhas, passando pelas anáguas e todo o resto. As fotos! Revistas... Toda a informação que de alguma maneira poderia manter sua irmã viva- ainda que no imaginário. Renata cuidou desse material por quase cinquenta anos. Há muitas intervenções nos trajes, que já pudemos observar, feitas até mesmo recentemente- é o caso de alguns zíperes de plástico, por exemplo, em substituição a antigos de ferro, que enferrujam. Uma coleção tão bem cuidada, tão bem guardada por tantos anos... E que fomos buscar em um apartamento em Pinheiros, a última casa em que habitou Renata. Daqui em diante, cada um poderá estabelecer uma linha de raciocínio, criando a sua história e estabelecendo a sua forma de ver as coisas. O autor oferece apenas uma. Penso que Renata deveria admirar profundamente a irmã, falecida tão jovem em 1966. Uma irmã artista certamente gostaria, na minha leitura de Renata, de ver seu legado artístico preservado- e o que sobrou daquele instrumento/corpo que era ela mesma, Constantina? Suas coberturas corporais, seus instrumentos de fascinação cênica, de transmutação na arte... Seus trajes de cena. Para ela, a irmã era precursora e destemida. Saiu do Brasil para a Itália em um período histórico (década de 40) em que não era “bem visto socialmente” uma mulher sozinha e solteira se aventurar pelo mundo. Se a irmã era uma heroína no palco, como não o seria na vida cotidiana? Isso mudaria o status dos seus trajes cotidianos. Constantina era de fato- pelo que se vê nas fotos- uma bela mulher, com jeito passional, quadris largos, cintura fina adequada aos padrões do período, pernas grossas, colo volumoso, sorriso franco, carismática... Pelo que ouvi, namorava bastante. Viajou pela Europa, mas também foi aos Estados Unidos- em época que não era barato fazer isso- e fazia isso com amigas americanas ricas. Suas roupas de viagem e seus trajes cotidianos foram guardados por Renata como foi guardada a jaqueta do nosso soldado- um símbolo de ligação com a guerra, com aquela batalha em especial. Ao que nos remete o guarda-roupa de Constantina? Ao milagre econômico dos anos 50, da reconstrução pós-guerra, do joie de vivre, de aproveitar a vida, de viajar, de ser feliz... Das promessas do futuro! Que é o que a maioria de nós deseja. Assim, não é difícil tornar os trajes cotidianos- a moda e o glamour da artista fora de cena em objetos musealizados... Que provavelmente foi o que Renata possibilitou através de trabalho árduo durante todos os últimos cinquenta anos.

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5. Conclusão A coleção de trajes de cena e pessoais de Constantina Araújo trouxe ainda uma nova surpresa. No fundo de uma das malas, pudemos achar moldes usados para a confecção de vestidos. O molde, por si só, é um curioso instrumento do modo de fazer do período.É cortado em jornal, emendado por um alinhave de linha branca. Nada de fitas adesivas ou cola- alinhave. E a data do jornal dá uma ideia do período em que foi feito... (ver Fig.16).

Figura 15- Molde de vestido

Figura 16-A data impressa no jornal, que não necessariamente se refere ao dia em que o traje foi desenhado.

Na verdade, a justificativa maior para que uma coleção de trajes de cena como a do Núcleo de Traje de Cena da ECA USP abarque essa coleção de trajes sociais é que uma coleção complementa a outra em alguns sentidos muito importantes:

x Pela confecção dos trajes, já que muitos deles- tanto de cena como sociais- foram confeccionados pela mesma pessoa. No caso, uma artista.

x Pela manutenção conjunta dos trajes por uma só pessoa no seu apartamento por 50 anos, que já confere singularidade à coleção. E que fica ainda mais reforçada por ser uma familiar da cantora.

x Os trajes oferecem possibilidades de pesquisa tanto no segmento moda como no segmento artes cênicas.

x O conjunto oferece a possibilidade de investigar relações sociais da mulher tanto no nível pessoal como no profissional, permitindo um olhar antropológico para o período a que os trajes pertencem.

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Há também um conteúdo de beleza intrínseco a coleção. São lindos trajes, o que os torna atraentes e de interesse do público em uma eventual exposição, por exemplo.

Como diz Pearce, “só é possível para esses trajes carregarem esses signos porque, ao contrário de nós mesmos, que devemos morrer, eles portam uma relação ‘eterna’ com o passado, e é isso que nós podemos experimentar como o poder do ‘objeto de verdade’”. (2006:25)

6. Referências PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. PEARCE, Susan. Interpreting objects and collections. Londres: Routledge, 2006. Revista Museum International, The performing arts. Vol. XLIX, n°2, april, 1997, pp. 7-12.

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