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Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. (Fenomenologia da percepção, Maurice Merleau-Ponty)

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Page 1: Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o ... · O antropólogo Franz Boas. 3, por exemplo, afirma que não só ... Em um ano entre os esquimós, Boas narra sua experiência

Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. (Fenomenologia da percepção, Maurice Merleau-Ponty)

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3 O corpo como constructo social

O ponto de partida, que constitui a espinha dorsal de toda a

tese, é o alinhamento com a visão da antropologia1 de que o corpo

é um constructo social. É o meio pelo qual ele e todos os demais

existem como resultado direto das “maneiras através das quais os

homens – de sociedade a sociedade – sabem servir-se de seu

corpo, [seja de uma forma tradicional ou não]” (MAUSS, 2004:401,

acréscimo das autoras). O entendimento, nesse contexto, é de que

o corpo [...], enquanto portador de um comportamento, é o

primeiro dos objetos culturais (MARLEAU-PONTY, 1996:467)

O corpo, em última instancia, é depositário de uma série de

atos colocados no sujeito. Isto é, não por ele próprio, mas por toda

a sociedade da qual faz parte de acordo com o lugar que nela

ocupa (MAUSS, 1974: 408). Logo, o corpo é possuidor de uma

história contextualmente localizada em termos de tempo e espaço,

a partir das variáveis: sexo, pertencimento sociocultural e idade (LE

GOFF E TRUONG: 2010).

Portanto, o sentido conferido ao corpo pela cultura a qual

pertence tem em vista um sistema de valor cujo fundamento acaba

por gerar ação e comportamento, conforme assinala Le Breton

(2012:8). Desse modo, o corpo só pode ser compreendido no

interior da cultura que o institui e lhe dá forma. Ou seja, não pode

ser apreendido fora das representações que se faz dele.

1 Foi usado antropologia de forma genérica para fazer alusão tanto ao que se refere à antropologia cultural, quanto social.

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Em resumo, estar intrínseco à condição corpórea, ser algo

eminentemente construído, esculpido, trabalhado, turbinado ou, se

preferirem, manufaturado. Por sua vez, “essa manufatura não é

contingente, posterior, eventual, e sim constitutiva do sujeito e de seu

corpo, simultaneamente” (PORTINARI, 2002, p. 142).

O reivindicar e o aclamar por uma forma física natural e verdadeira

nada mais é que reproduzir os ideais que, segundo Barthes (2011),

norteiam as sociedades ocidentais modernas. Em outras palavras, nada

mais é que transformar a cultura em pseudo natureza, através de um

processo que se dá na interface entre o “real”, o simbólico e o

imaginário.

Em outras palavras, por um lado, existe todo um imaginário

sociocultural sobre o que os sujeitos idealizam como um corpo natural.

Por outro, há as manifestações concretas deste imaginário de corpo

naturalizado incidindo em práticas cotidianas, como: adoção de um

visual considerado orgânico2 que se caracteriza pela valorização das

linhas de expressão, das rugas, dos fios de cabelo cinzas, da recusa às

cirurgias plásticas reparadoras e aos procedimentos de cunho estético –

vide BOTOX, ácido hialurônico, glicerol, lifting facial com luz pulsada etc.

– da busca por um modo de vida mais integrado à natureza e tantas

outras formas de manifestações deste culto a um estilo de vida

orgânico.

3.1 O corpo “in natura” atravessado pela culturas

Este pressuposto de desnaturalização, que leva ao entendimento

de que o corpo é uma “construção simbólica e não uma realidade em si” 2 Uma versão contemporânea da estética hippie.

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(LE BRETON, 2012:118), tem como embasamento a ideia da

inexistência de um “estado de natureza humana em seu grau zero”

(CUCHE, 1999:11). Compreende-se, dentro desta perspectiva, que

“o aparato biológico constituinte da fisiologia humana, assim como

o seu aparelho psicológico se incrustam a um simbolismo corporal

que lhe afere um significado” (LE BRETON, 2009:9).

O antropólogo Franz Boas3, por exemplo, afirma que não só

noções sobre como nascer, morrer, mas as distinções de traços

físico-raciais e de sexo são também intermediadas, atravessadas

pela cultura. Além disso, reconhece como parte indissociável desse

processo, as manifestações das necessidades fisiológicas

identificadas nos atos de comer, dormir, defecar, urinar, copular e

desejar sexualmente, assim como no modo de correr, andar, nadar

etc.

Esta perspectiva desnaturalizante inclui ainda a expressão

dos sentimentos de frio, calor, dor, alegria tristeza, tal qual assinala

Le Breton (2009) ao se reportar ao argumento de Marcel Mauss,

quando este afirma que:

não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por

3 Em um ano entre os esquimós, Boas narra sua experiência na ilha de Baffin junto este povo. Nesse trabalho, faz uma análise descritiva sobre os caracteres físicos dos esquimós, suas vestimentas, a maneira como interagiam entre si, a sua relação com os cães, os mecanismos utilizado nas construção de suas casas, as suas formas de caçar e como viajam no inverno e no verão. Analisa também os cultos religiosos através da lenda de Sedna e do menino chamado “Qaudjaqdjuq” desprezado por todos da aldeia, por ser pequeno e fraco. Em outros textos, a exemplo de Os métodos da etnologia, Os objetivos da pesquisa antropológica, Raça e progresso, Boas rejeita qualquer tentativa de determinismo biológico. Afirma que, para entender um povo, é preciso incluir a história do desenvolvimento da forma corporal, de suas funções fisiológicas, sua mente, seus valores, suas crenças e modos de fazer e ser. Para um exame mais aprofundado, verbi gratia, Boas (2004a; 2004b)

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manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação (MAUSS, 2001:147)4.

Em revista, o que se quer dizer é: tanto as ideias sobre cada

uma destas noções, quanto as respostas para tais necessidades

fisiológicas e expressão de sentimentos integram todo um sistema

simbólico e de valores próprios de uma sociedade. No caso das

ocidentais modernas, elas também funcionam como demarcadores

internos de diferenças regionais e de distinção social enquanto um

bem simbólico5.

A eficácia desse simbolismo corporal é garantida na e pela

coletividade. Esta se incumbe de ratificá-lo, “a partir de vínculos

que se estabelecem como princípios organizadores socioculturais. A

percepção, apreensão e incorporação 6 destes simbolismos

transcorre no decurso do seu emprego em rituais e situações

concretas do cotidiano” (LE BRETON, 2009:1), enquanto um

4 Mauss (1979:153) analisa o choro e o canto da mulher nos cultos funerários australiano. Para ele, todas as expressões coletivas – de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos dos sujeitos – em termos individuais e coletivos – são formas de linguagem. Afirma, assim, que os gritos são como frases e palavras. É preciso, segundo o autor, emití-los somente porque todo os sujeitos (os indivíduos que conformam um coletividade) entendem. Nesse sentido, argumenta que é mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de declarar aos outros, pois assim é preciso fazer. De acordo com sua acepção, o sujeito se manifesta, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É, portanto, essencialmente uma ação simbólica. 5 No que concerne às diferenças regionais, em algumas cidades do sertão nordestino, por exemplo, era comum a contratação de carpideiras até uns cinquenta anos atrás. Com relação aos hábitos como bem simbólico, fazem parte todas as regras protocolares de etiqueta usadas nas mais diversas situações sociais. 6 O termo incorporação está associado ao que Bourdieu (1992:269-294) define como habitus. Isto é, as habilidades laborativas, competências e percepções que os sujeitos adquirem com o tempo em suas vivências sociais através da apreensão –disposições para sentir, pensar e agir – das normas e convenções sociais que são historicamente mutáveis. Este processo se dá, principalmente, por meio de educação familiar e escolar.

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conjunto de regras de comportamento socialmente aceitos e

esperados.

A sua transmissão se dá através de treinamento e imitação

que aparece sob a ótica de um modo de vida, modus, tônus,

matéria, maneiras e jeito, cujo objetivo final consiste em fazer

adaptar o corpo ao seu emprego. Nesse contexto, o processo

educacional disciplinador “visa a garantir condições propícias para

interiorização dessa ordem simbólica” (LE BRETON, 2009:16).

3.1.1 A corporeidade reflexiva

No encadeamento destas ideais, o corpo ocidental não é

visto aqui nos termos de uma divisão de caráter substancial entre

mente/eu/corpo, como sugerem as representações modernas

intrínsecas ao dualismo cartesiano7.

Em outras palavras, o corpo não é percebido a partir de uma

divisão entre a sua estrutura biológica e a sua condição de agente

ativo e sensível. Isso porque o corpo como propriedade do sujeito –

este corpo biológico que todos nós possuímos – é moral, estético,

atuante e sensível (CROSSLEY, 2005:2)8.

Dentro desta acepção, é apreendido como parte de um

repertório social, cujo modelo evoca a junção/associação do ser e

do ter à medida que, ao mesmo tempo, se é e se tem um corpo,

7 Deixa-se de lado, assim, a ideia de uma modernidade calcada no dualismo cartesiano, o qual remete à cesura do sujeito em relação ao seu próprio corpo. De acordo com tal princípio, ter um corpo mais que ser o seu corpo é o grande arquétipo desse modelo dualista (LE BRETON, 2012:8). 8 It does not often even reflect the emergent stratification between the body as a biochemical structure and the body as a sensuous, active agent. ‘My body’, the body I ‘have’, is a moral, aesthetic, acting and sensuous being.

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conforme sugere o sociólogo Nick Crossley 9 . O que pode ser

percebido na afirmação: “eu sou meu corpo”.

Trata-se, assim, de uma acepção de corpo definida, por

Crossley (2005; 2006), como corporeidade reflexiva. Seu teor

desafia qualquer dualismo ao insistir que tanto os projetos de

manutenção da aparência física quanto os de sua transformação

são reflexivos:

Definindo nossas relações e ações sob a perspectiva de que nossos corpos são reflexivos, estou fazendo a suposição a saber: nós somos o nosso corpo. Se eu fosse qualquer outra coisa senão o meu próprio corpo, este relacionamento não seria de ordem reflexiva porque o sujeito e o objeto neste liame interacional seriam coisas, seres distintos (CROSSLEY, 2006:1)10. Logo, é preciso ter em mente que, para o autor,

corporeidade reflexiva implica na ideia de que o objeto e o sujeito

de uma percepção, pensamentos, sentimentos, desejo ou ação são

os mesmos (CROSSLEY, 2006:1).

Mais exatamente, diz respeito à capacidade de perceber as

emoções, de refletir e de atuar sobre o próprio corpo, a partir de

uma habilidade socialmente adquirida pelo sujeito de se posicionar

como “outro”. Isto é, de se assumir no papel de outro para alcançar

uma visão de si próprio, a partir de uma perspectiva externa.

Através desse processo, de acordo com Crossley (2006), o

sujeito passa a ter a sensação de que possui qualidades distintas

daquelas identificadas como “naturalmente” suas. Nesse sentido, é 9 Pouco conhecido no Brasil, o sociólogo é muito citado nos trabalhos sobre modificações corporais, na Europa. 10 In defining our relations and actions towards our bodies as reflexive I am making an assumption; namely, that we are our bodies. If I were something other than my body then my relation to my body would not be reflexive because the subject and object in the relationship would be distinct beings.

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preciso que se conceba a consciência reflexiva como um

movimento paradoxal, na medida em que traz consigo esta

sensação vívida de separação e posterior conexão entre o eu e o

corpo.

Assim, num primeiro momento, se dá o afastamento

temporário do eu. Com isto, gera-se uma ruptura momentânea

entre sujeito e objeto, de modo a conceber sua objetificação.

Nesse processo, a corporeidade, segundo Crossley (2006), é

experimentada, até certo ponto, de maneira semelhante a um

objeto externo. Logo, o sujeito pode, erroneamente, ser levado a

considerá-la como algo exterior ao seu verdadeiro eu.

Numa segunda fase, este objeto externo – que é abstraído da

consciência reflexiva do sujeito – é reintegrado ao eu, e, por

conseguinte, à identidade do sujeito, por meio de experiências que

o tangenciam como uma propriedade. Isto é, que indicam a sua

posse, como sugere, por exemplo, o enunciado: “meu corpo,

minhas regras”11.

Para o autor, é preciso ainda atentar para as variabilidades de

significados embutidos nas imagens e nas práticas que, ao mesmo

tempo, dão forma e são conformadas pelo corpo, enquanto

propostas de manutenção ou de modificação da aparência corporal.

Neste caso, deve-se ter em mente que o entendimento

acerca destas práticas é tributário do sentido que os sujeitos lhes

conferem. Isto quer dizer que há uma interação contínua entre o

significado – como uma propriedade originária da percepção ou do

discurso – e a prática. Um molda o outro num processo

ininterrupto.

11Campanha contra a PL 5790/2013 do Deputado Rogério Peninha Mendonça, PMDB / SC, que criminaliza a prática do eyeball tattoing no Brasil.

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Do ponto de vista em questão, fica evidente que o corpo não

é entendido como objeto passivo. É, em realidade, sujeito e agente

de tais práticas ou dos significados projetados sobre ele. Crossley

(2005) avança nesta ideia através da exploração daquilo que define

como técnicas corporais reflexivas (TsCR)12.

Com este conceito, o autor procura explicitar que cada

sociedade – incluindo as associações que se conformam no interior

daquelas cuja constituição se dá em função da divisão social – tem

um repertório próprio de TsCR13 que incidem sobre o corpo. Desse

modo, estas vem a desempenhar um papel central na construção

da reflexividade do sujeito.

A apreensão das TsCR é vista como parte do processo por

meio do qual o sentido do eu se desenvolve. Isto porque elas

fomentam a sua constituição e o seu posicionamento como sujeito

através do processo de aprendizagem em desempenhar o papel de

um outro em relação si próprio.

Mais um aspecto a ser considerado, segundo Crossley

(2005), diz respeito à importância das TsCR nos movimentos em

direção a constituição identitária dos sujeitos. Isso porque ao

mesmo tempo em que muitas delas são orientadas para a

preservação e manutenção de aspectos particulares do eu, fazendo

parte de uma rotina do sujeito, há aquelas que retratam os 12 Uma ideia desenvolvida a partir do conceito de técnicas corporais elaborados por Mauss (1974). 13Este repertório, por conseguinte, é um elemento no conjunto mais amplo de representações coletivas de uma dada sociedade. Uma parte da rotina diária dos sujeitos é executar as técnicas socialmente incorporadas deste repertório. O que inclui tomar banho, lavar as mãos, escovar os dentes e os cabelos, vestir-se, barbear-se ou maquiar-se, depilar-se, cortar os cabelos e as unhas etc., além de piercings, tatuagens ou cirurgia cosmética e demais práticas que envolvem a manipulação física do corpo.

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deslocamentos do sujeito em direção às modificações corporais.

Indicam, por conseguinte, mudanças, transformação e trajetórias,

de modo que servem para marcar um novo capítulo em uma

narrativa de vida (CROSSLEY:2005:14-15).

Nick Crossley desenvolve o conceito de TsCR a partir do

enunciado de Merleau-Ponty (1999:137): “se toco a minha mão,

sempre alcanço um ponto no qual a experiência se desloca entre o

ato de tocar e de ser tocado”. O que o leva a afirmar que “as duas

experiências nunca se equiparam. Assim, é com todas as técnicas

corporais reflexivas. O eu e o comigo mesmo oscilam e interagem,

mas nunca coincidem” (CROSSLEY:2005:13).

O conceito de TsCR está, portanto, intimamente associado às

ideias desse filósofo francês sobre (auto) percepção, que se

constitui através da experiência sensorial do sujeito em suas

relações com o mundo objetivo.

Para Merleau-Ponty (1999), o corpo é percebido como um

meio geral de se ter o mundo. Nesse sentido, aquilo que seria visto

como da ordem natureza entrecruza-se à cultura. O autor afirma,

assim, que tanto a natureza penetra na vida pessoal dos sujeitos e

se entrelaça a ela, quanto os comportamentos se emaranham aos

aspectos fisiológicos do homem sob a forma de um mundo cultural:

brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, o homem manifesta através destes gestos um novo núcleo de significação [...] que não pode ser alcançado pelos meios naturais do corpo; é preciso então que o corpo se construa como um instrumento, de modo a projetar em torno de si um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 1999: 203).

A este respeito, o antropólogo David Le Breton afirma ser o

corpo um tema propício à análise antropológica por ser um suporte

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identificatório do homem. “Sem o corpo que lhe dá um rosto,

afirma o autor, o homem não existiria. Viver consiste em reduzir

continuamente o mundo ao seu corpo, a partir do simbólico que o

encarna” ( LE BRETON, 2013:7).

3.1.2 A (con)formação do corpo no ocidente

O tratamento sociocultural do qual o corpo é objeto remete,

portanto, à ideia de que “cada sociedade, no interior de sua visão

de mundo, delineia um saber singular sobre o corpo”, que funciona

como um conjunto de verdades forjadas a seu respeito.

Desse modo, tanto as concepções quanto as representações

sobre o corpo “são tributárias de um estado social, a partir uma

definição particular de pessoa, [que igualmente se distingue de uma

estrutura social a outra]” (LE BRETON, 2012: 8-9, acréscimo das

autoras). Isso porque, obviamente, o entendimento sobre aquilo

que se concebe como pessoa encontra-se diretamente subordinado

às noções e ideias que os homens, em diversas épocas de sua

história, criam a seu respeito (MAUSS, 2003:171)14.

14Apesar de um aspecto um tanto evolucionista, Marcel Mauss concebe a noção de pessoa, a partir das caracterizações sociais que um dado povo faz a este respeito. Analisando os índios Pueblos de Zuñi, os habitantes do noroeste americano e da Austrália, o autor acaba por evidenciar como cada um deles concebe e articula sua noção de pessoa. Para uma análise mais aprofundada, ver, por exemplo, Mauss (2003) e Goldman (1999:21-39). Dento desta mesma linha, Le Breton (2012) mostra, por exemplo, como a caracterização de pessoa aparece, entre os caranques, entrelaçada ao universo. Seus corpos, revela o autor, são concebidos como extensão do reino vegetal. Os músculos remetem à polpa ou ao caroço das frutas, os intestinos são equiparados ao emaranhados de cipós da floresta, os rins e outras glândulas recebem o nome da folha ou da fruta, cuja aparência se assemelha ao seu formato e assim por diante.

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No caso das sociedades ocidentais modernas, os arquétipos

socioculturais que (con)formam o corpo estão abalizados num

modelo particular de pessoa que tem como fundamento um senso

de consciência acerca do eu como valor moral e jurídico. Refere-se

a um conjunto de ideias calcadas na noção de indivíduo não apenas

em termos do sujeito empírico que fala, pensa e quer, mas,

sobretudo, como valor societário que lhe confere a qualidade de

decidir e agir por conta própria enquanto sujeito racional,

independente e autônomo (DUMONT, 2000:75)15.

Este formato, que se baseia numa crença na qual o indivíduo

reina de forma soberana e absoluta, se constitui sob a “eclosão de

um pensamento racional, positivo e laico sobre a natureza, cuja

característica se dá por um distanciamento progressivo das

tradições populares” (LE BRETON, 2012:9).

Popularmente conhecido como individualismo, tal conjunto de

valores inicialmente se restringia às práticas e mentalidades de

certos segmentos eruditos, pertencentes aos meios urbanos e

oriundos de camadas sociais privilegiadas em termos político-

econômico, da Europa Ocidental do século XVII. Numa etapa

posterior, torna-se um continuum de princípios que passa a

15 Louis Dumont analisa a gênese da noção de indivíduo, a partir de um esquema dual no qual o holismo indiano aparece em contraposição ao individualismo do ocidente moderno. A partir daí, o autor sugere que – tanto na cultura hindu quanto no universo cristão – a ideia de indivíduo está subordinada a de sociedade. Desse modo, o indivíduo como valor está fora e acima da organização social e política. No caso em particular do cristianismo, o “indivíduo-fora-do-mundo” é valorizado tão somente por ser a expressão do divino, do transcendente e, segundo Weber (2001), um ideal. A dramática mudança se dá no limiar da Reforma Protestante. Seu novo santuário – a consciência individual de cada cristão – acaba por levar à afirmação do indivíduo e à liberdade de consciência. Na concepção dumontiana, a teologia emerge como a instituição fundante do indivíduo como ser moral independente e autônomo, que decide e age por conta própria. “Agora além de estar no mundo, o valor individualista reina sem restrições nem limitações” (DUMONT, 2000: p.63).

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conduzir, no ocidente, a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo,

reger os vínculos sociais que são estabelecidos entre eles.

Na sua transcursão, irrompe-se o discurso que assinala o

sujeito como único e singular. Sendo assim, o “corpo passa a ser

percebido como fator de individuação, enquanto fronteira precisa

que marca a diferença entre um sujeito em relação ao outro” (LE

BRETON, 2012:70 -71).

Dito de forma mais esclarecedora, este processo – que

caracteriza a ascensão das ideias do individualismo – se desenvolve

no âmbito da emergência, constituição e sedimentação de uma

nova elite16 sociocultural que elege o corpo, físico e social, como

instrumento de fixação do poder e, de seu domínio, no plano

político-econômico.

A partir daí, difunde-se uma cultura de valorização do corpo

sob espécies de preceitos normatizadores, que passam a governar

a conduta dos sujeitos e ao mesmo tempo reger sua aparência em

termos estético, biomédico, sexual. Não é errôneo afirmar que,

muitas vezes, esta cultura adquire um caráter eugênico. Nesse

sentido, solidifica-se como expansão infinita de vida, cuja forma se

manifesta através de aparências físicas que exaltam o vigor, a

saúde e a juventude através de certa economia de controle dos

corpos e das emoções (FOUCAULT, 2003: 177-178).

A instituição, normatização e fundamentação da arte de

governar os corpos e, por tabela, a conduta do homem ocidental

moderno, ocorre em três vertentes: o pressuposto de autonomia

do corpo balizado pela razão que traz como ideário e imaginário o

16 Para Foucault (2003) esta elite está associada ao período de ascensão da burguesia à hegemonia social. Ao eleger o corpo como seu emblema, desloca o lugar ocupado pelo “sangue” no imaginário da nobreza feudal. O corpo torna-se, assim, o centro de seus investimentos e preocupações.

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entendimento de que o sujeito é livre e autônomo no plano de suas

escolhas e valores. Logo, ele passa a ser igualmente visto como

responsável pelo seu próprio destino e, inclusive decidindo sobre

qual forma de governo a sociedade em que vive deve ter. Nesta

conjuntura, a consciência da responsabilidade pessoal conduz à

emancipação do político e ao nascimento da democracia (LE

BRETON, 2012:63).

A segunda refere-se à personificação, ou melhor, incorporação

dos “valores da biomedicina, que encarnam um saber oficial sobre o

corpo (LE BRETON, 2012:9). Neste caso, o saber médico está

diretamente vinculado ao que Michel Foucault define como

biopoder: uma estratégia geral de poder que atua diretamente

sobre a vida dos sujeitos; uma política que incide diretamente sobre

aquilo que, “na espécie humana, constitui suas características

biológicas fundamentais” (FOUCAULT, 2008a:3).

A terceira e última vertente se refere ao amplo repertório no

qual a estética se institui, tal qual assinala Eagleton (1993:76), à

maneira de uma dimensão norteadora e difusora do gosto e das

sensibilidades das camadas médias, enquanto um produto da

tradição democrática que tem como base os ideais individualistas.

Neste sentido, a estética é percebida como um dispositivo que

abrange a totalidade da nossa vida sensível. Refere-se ao

movimento de nossos afetos e aversões. Em outras palavras, à

forma de como o mundo atinge o corpo em suas superfícies

sensoriais (EAGLETON,1993:17).

Os seus valores dão origem, segundo Terry Eagleton, à

emergência de uma ordem social calcada num novo formato de

hegemonia política. Com a estética, o exercício do poder não ocorre

apenas pela repressão, mas, sobretudo, pela produção e

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proliferação de normas e formas interiorizadas. A conformidade, o

consentimento e a “livre aderência” funcionam como uma espécie

de “antídoto ao poder opressor”, ou melhor dizendo, constituem

um arranjo sedutor de convívio com ele:

Porque para o poder ser legitimado individualmente, deve ser constituída, no interior do indivíduo, uma nova forma de perspectiva interna que fará o trabalho desagradável da lei com ele mesmo, e de um modo ainda mais eficaz, já que a lei, agora, aparentemente, evaporou (EAGLETON, 1990:27).

Tendo em vista o que foi dito, apresenta-se a seguir a

caracterização detalhada destes três princípios conformadores do

sujeito ocidental moderno. Ou seja, far-se-á uma breve exposição

sobre como eles repercutem nas práticas do dia a dia, nos

discursos, nas representações e no imaginário que empregam corpo

na vida cotidiana (LE BRETON, 2012:8), sob as argamassas do

individualismo fundante do sujeito, enquanto valor fundamental da

ideologia ocidental moderna de homem e de sociedade

3.1.2.1 A autonomia dos corpos?

O imaginário ocidental moderno de total independência e

autossuficiência dos sujeitos está diretamente relacionados às

ideias de Immanuel Kant acerca da razão, da autonomia e de sua

doutrina da moral, cujos princípios acabam fundamentando a

constituição do direito moderno.

Na perspectiva kantiana, a razão determina e rege a conduta

dos sujeitos, conferindo-lhes um sentido moral para as suas ações

em função da liberdade que o homem tem de dirigir a própria vida

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como soberano de si mesmo. Para o filósofo, ficar à disposição do

outro significa não somente negar ou abandonar esta

autossuficiência que lhe é “natural”, mas também legitimar o

servilismo e a opressão social, na media em que “a crença na

desigualdade torna as pessoas desiguais”, tal qual sugere

Schneewind (2005: 532) em suas considerações a respeito do

pensamento de Kant.

Outro dado a ser considerado acerca da moral kantiana,

refere-se à recusa da ideia de recompensas para tornar a

moralidade efetiva 17 . No seu ponto de vista, o ato

interessado/interesseiro18 não pode explicar adequadamente o que

é moral nem oferecer uma orientação apropriada para a sua ação:

faz-se algo porque é o certo a fazer e, do contrário, o sujeito não

conseguiria encarar a própria imagem no espelho. Desse modo,

qualquer ato realizado por imposições externas sai da esfera da

moralidade.

17Kant, assim como os pensadores não crentes (antivoluntaristas) da filosofia moral moderna – a exemplo de Hume, Betham e os radicais franceses – recusam uma concepção de autonomia como obediência/ sujeição às leis divinas: fazer o que se quer não significa apenas atuar em conformidade ao que é verdadeiro, moralmente bom ou útil, mas fazer o uso da razão que fora concedida por Deus à humanidade. Esta é a ideia geral que prevalece até a Idade Média e, por conseguinte, caracteriza a filosofia clássica através dos pensadores comumente conhecidos como voluntaristas. Para uma análise mais aprofundada, ver Schneewind, 2005. 18 Partilhando da noção kantiana de dever, o sociólogo Émile Durkheim afirma que, em um primeiro momento, o cumprimento do ato moral se dá de forma obrigatória, pois é parte de sua natureza ser realizada como um esforço pessoal, a partir de constrangimento do sujeito. Porém diferentemente de Kant, considera que “para que possamos ser seu agente, é preciso que interesse, de alguma maneira, a nossa sensibilidade, que nos apareça, de alguma forma, como desejável” (Durkheim, 1970:51). Na sua visão, funciona como uma ferramenta social que possibilita a vida em grupo, de modo que o desaparecimento de todos os códigos morais, segundo o autor, muito provavelmente, nos varreria junto com eles.

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A moralidade baseada na autonomia da vontade é concebida,

portanto, como um mandamento da razão (KANT, 2007:47). A sua

representação se dá em termos de obediência a uma lei que damos

a nós mesmos. Numa espécie de tautologia, “ser autônomo é ser

livre no sentido moralmente relevante e a liberdade moral se

expressa ou se torna evidente na ação autônoma”(SCHNEEWIND,

2013, sp.).

Desse modo, o principio supremo de moral, formulado por

Kant (2007) como imperativo categórico19, conduz à constituição

do direito no âmbito da teoria e da prática. Sob a universalidade da

lei, é garantida a liberdade de todos:

Parece-me que a verdadeira significação da palavra pragmático se pode assim determinar da maneira mais exata. Chamam-se pragmáticas as sanções que decorrem propriamente não do direito dos Estados como leis necessárias, mas da prevenção pelo bem-estar geral (KANT, 2007:53). Este axioma kantiano que é percebido, acima de tudo, como

uma ilustração do motor ideológico fundante do sujeito moderno,

acaba por fomentar e legitimar os movimentos contemporâneos

que reivindicam obtenção de maior controle sobre a vida na esfera

pessoal e privada. Em outras palavras, é percebido como

combustão para decolagem das marchas que vociferam pela

liberdade dos corpos a partir do argumento no qual se sustenta que

o sujeito, enquanto indivíduo, é soberano sobre si mesmo, sua

mente e seu corpo.

19 Para Kant (2007:59) o mandamento é: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.

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O que equivale também dizer, na perspectiva foulcaultiana,

que não existe poder sem liberdade e capacidade de revolta.

Portanto, evocar a responsabilidade de cada um pelos próprios

atos, como prerrogativa de uma autonomia da vontade guiada

única e exclusivamente pela própria razão, dá poder às vozes

outrora abafadas, que agora gritam pelos quatro cantos do país: o

corpo é meu, a decisão é minha!20 .

Figura 9: Campanha contra a petição que criminaliza eyeball tattoing

Empoderado por esta máxima que assevera o pessoal como

sendo também uma questão política, o corpo subjugado emerge

como agente, veículo e suporte de resistência política às formas de

sua sujeição. Isso acontece, conforme Lupton (1995:132), tanto

em termos de ações coletivas em direção a objetivos políticos

específicos – vide os movimentos ativistas como a marcha das

vadias, da maconha etc. – quanto no que diz respeitos a lutas em

micro nível que aparecem em práticas cotidianas não conformistas

aos imperativos/ dispositivos de poder sob formas de subjetivação:

20 Outra versão da campanha em repudio ao projeto de lei que pretende proibir o eyeball tattoing no Brasil.

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O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde, contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor (FOUCAULT, 2002:146) Em outras palavras, o poder adentrado no corpo, segundo

Foucault (2002:146) encontra-se exposto no próprio corpo, dando

assim uma sensação que titubeia/oscila. Ele, de fato, pode recuar.

Eu tenho a sensação de ser incômodo para o senso comum, para o modelo padrão ocidental, burguês, branco, cristão, machista e heterossexual. Tenho a sensação de que ser e ter o corpo modicado cria ranhuras no status quo. É anárquico e poético. Por outro lado, no meu mundinho particular, estou feliz assim ou na experiência desse processo todo. É como se eu fosse completando um grande quebra-cabeça. Há quem diga que é o encontro do self (entrevista concedida por T. Angel, em 20 jul. 2013). Entretanto, uma das características básicas do poder, como

já dito anteriormente, é a capacidade de se deslocar, de investir em

outros lugares. Sua estratégia é de uma constante e infinita

guerrilha:

Muita gente careta modificada. Pin up de studios, e de uma fora geral, é uó. Estética da punheta. A tatuagem nos studios é super machista e nada transgressora. Tem até máquina de remoção de tatuagem. Comercial puro. As convenções de tatuagem achava legais antes, mas sempre me incomodou essa coisa de folhinha de borracharia. Hj são super normatizadas. Agora, tem um circuito de tattoo muito legal, super politizado, punk. É um encontro chamado Tattoo Circus. Começou na Europa, mas já teve em SP e RJ. É feito sem grana de patrocinadores, só com tatuadoras e poucos

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tatuadores, todos punks, anarquistas, mínimos preços e toda renda revertida pra presos políticos (Entrevista concedida por Filipe Espíndola, em 28 out.2015), Em resumo, esta situação de “guerrilha” sugere que, embora

o poder apareça sempre indissociável de práticas de assujeitamento

dos corpos, ao mesmo tempo seu trânsito, entre e sob os corpos,

evidência o potencial criativo do ser humano. Isto é, transforma-se

em possibilidades efetivas de organização coletivas, segundo uma

ótica utópica que visa a libertar/liberar os corpos de suas amarras,

como bem enfatiza Ruiz (2000) ao retratar a capacidade de luta –

definida como potencial agnóstico – de enfretamento dos de todas

as pessoas, mas em especial dos despossuídos. Para o autor, esta

“capacidade de luta não depende de una filosofia concreta, mas de

um componente vital e existencial do ser humano que o impele a

operar sobre o sistema social que provoca sua situação de

exclusão”21 (RUIZ, 2000:42).

3.1.2.2 Biopoder

No que concerne à normatização e à positivação dos corpos

no âmbito da biopolítica, estas envolvem uma atuação direta sobre

os outros e sobre nós mesmos, a fim de criar populações de corpos

vigorosos e saudáveis, em conformidade com as normas e as

práticas “institucionalizadas” pela biomedicina.

21 La capacidad de lucha no depende de una filosofía concreta, sino que es un componente vital y existencial del ser humano que le impele a operar sobre el sistema social que provoca su situación de exclusión.  

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Neste contexto, são elaborados programas voltados para a

administração da saúde e da higiene pública. Em paralelo,

desenvolvem-se projetos urbanísticos e arquitetônicos com vistas

a criar cidades salubres (SENNET, 2008:346), de modo a ajudar a

garantir a saúde dos corpos individualmente e em toda a sua

coletividade. No campo do design, por exemplo, a revolução

industrial pode ser vista como experiência que cuida dos artefatos

domésticos, urbanos, hospitalares etc., assim como os meios de

comunicação favorecem a circulação de ideias e de campanhas

voltados para a promoção da saúde, como sugere Forty (2007).

Tais ações abarcam um certo número de proposições22 que,

segundo Foucault (2008b:3), se fundamentam nas sociedades

ocidentais modernas, a partir do século XVIII no domínio do

liberalismo. Referem-se a uma estratégia geral de poder sobre a

vida humana, enquanto um complemento ao poder disciplinar23.

Deixa-se claro, assim, que não há uma supressão da disciplina.

A biopolítica “é de outro nível. Está noutra escala, tem outra

superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente

diferentes” (FOUCAULT, 2008a: 289).

Nesse sentido, enquanto o poder disciplinar atua sobre os

corpos dos sujeitos individualmente, o biopoder age sobre eles em

termos coletivos e globais. Os problemas específicos da vida e da

22Para Foucault (2008b), as proposições devem ser entendidas no sentido de indicações de opção e não como regras ou teoremas. 23 Por poder disciplinar, Michel Foucault entende uma aparelhagem geral para tornar os corpos dos indivíduos dóceis e uteis através de um trabalho de adestramento preciso sobre seus corpos: família, orfanatos, escola, quartel, fábricas, oficinas e prisões. Tratam-se, segundo o autor, de técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas. Adquirem importância porque definem um certo modo de investimento político e detalhado sobre o corpo. Este processo é compreendido em termos de uma microfísica do poder, posto que desde o século XVII não cessam de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro (Foucault, 1993b:128).

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população são postos, de acordo com Foucault (2008a; 2008b),

no interior de uma tecnologia de governo que parte da

normatização da segurança, em função de perigos que ameaçam

internamente o corpo social, a economia fomentada pela política

liberal.

À vista disso, a biopolítica deve ser entendida como gestão do

capital humano (FOUCAULT, 20008b). O que, segundo Michel

Foucault, requer uma vasta produção de saber necessária à

governabilidade exercida pelo Estado. Dentro desta acepção, a

estatística passa a exercer um papel preponderante como

provedora de conhecimento acerca das forças e dos recursos que

caracterizam o Estado num determinado momento.

Assim, os dados estatísticos indicam à média referente: à

densidade demográfica – natalidade, longevidade e mortalidade – à

estimativa das diferentes categorias de indivíduos, ao cálculo das

riquezas naturais, produzidas e que circulam, aos números da

balança comercial, ao balanço dos efeitos das taxas e dos

impostos, à computação dos índices de aceitação ou rejeição do

governo etc. (FOUCAULT, 2008a:364-365).

Outro campo de intervenção da biopolítica se refere à gestão

dos sujeitos que estão fora do campo da atividade de produção.

No caso em particular, trata-se de “um conjunto de fenômenos dos

quais uns são universais e outros acidentais, mas que [...]

acarretam consequências análogas de incapacidade”. “A velhice e

os acidentes, as enfermidades e as anomalias diversas passam,

portanto, a ser administradas pelo biopoder através de mecanismos

sutis e racionais, como a poupança individual e coletiva, assim

como a seguridade social” (FOUCAULT, 2005: 290-291).

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No domínio em questão, cabe chamar a atenção para o papel

do design como reforçador desta lógica da biossegurança enquanto

instrumento de controle das condutas. Há, nesse sentido, uma série

de artefatos, cujos projetos partem de um discurso de salvaguardar

a vida dos sujeitos, a partir da instituição de uma série de normas,

que aparecem sob a forma de manuais, cuja finalidade é instruir os

sujeitos sobre como devem fazer ou usar as coisas.

No contexto vigente, a questão da saúde pública torna-se, em

alguma medida, a principal pauta da medicina. Logo, é lícito afirmar

que o biopoder adquire uma certa forma de polícia, já que os

diversos dispositivos passam a se encarregar dos corpos visando à

garantia da saúde (FOUCAULT, 2011:197).

Em tal conjuntura, o imperativo da saúde – cujo enunciado

afirma ser o dever de cada um o objetivo geral –adquire

importância capital através dos discursos de promoção da saúde.

Segundo Lupton (1995:131), são majoritariamente direcionados

para construção e consagração de um certo específico de corpo

em que seu portador é um sujeito: classe-média, racional, civilizado,

autocontrolado e consciente de sua saúde. Isto é, dirigem-se a um

sujeito contido que detém capital econômico, cultural e simbólico.

Seu corpo disciplinado/docializado não é sucumbido pelos excessos

da vontade ou volúpia.

Entretanto, os que não se vêm interpelados ou não se

reconhecem em tais apelos, se apropriam de tais discursos em seus

próprios termos, fazendo com que ressurjam em suas práticas

quotidianas sob a forma de transgressão ou de políticas

reivindicatórias que tem como foco as novas possibilidades de

corporeidade, conforme sugerem, por exemplo, as configurações de

corpos propostas pelos body mods da capital paulista.

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Cabe dizer, portanto, que o efeito colateral é que há, no

próprio corpo, formas possíveis de se rebelar contra as estratégias

de dirigir e regular modos de ser e de agir dos sujeitos e do corpo

social (FOUCAULT, 2002:146). Nos interstícios do próprio poder

emergem possibilidades internas do próprio desmantelamento.

3.1.3.3 Estética

Esta eleição do corpo como investimento do poder aparece,

em Eagleton (1993) tal qual já foi dito, como correlata ao lugar

central que é dado à dimensão estética da existência por esta nova

elite que se conforma entre os séculos XVII e XVIII.

Composta inicialmente, segundo Weber (1967:24) por

pequenos industriais emergentes, sua atitude era não somente

imbuída pelo espírito do capitalismo, como também fortemente

embasada pelo ascetismo secular.

Detentora de um estilo de vida livre e responsável, este modo

de ser e agir paulatinamente vai se estendendo sobre toda a

sociedade. Mais exatamente, seu gosto calcado num ideal de

simplicidade, sobriedade, conforto, autocontrole, limpeza e solidez,

conquistado por meio do trabalho a ser executado como uma

vocação, difunde-se por todo o corpo social, de modo a se

constituir numa espécie de hegemonia política (WEBER, 1964:81).

De tal modo que sua influencia atual aparece no domínios da arte,

do design, da produção industrial e até mesmo do próprio

comportamento dos sujeitos.

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A introjeção destes novos hábitos, gostos e costumes

transforma a relação de submissão obrigatória do sujeito a uma lei

externa numa “adesão descompromissada” aos cânones estéticos.

No tipo de relação em questão está implícita a conformação de

novo tipo de sujeito: esse que se configura como “indivíduo”:

A estética oferece à classe média um modelo extremamente versátil para suas aspirações políticas, exemplificando novas formas de autonomia e autodeterminação, modificando as relações entre lei e desejo, moralidade e conhecimento; reformulando vínculos entre o individual e a totalidade, e revendo as relações sociais com base nos costumes, nos afetos e na simpatia (EAGLETON, 1990:28).

Para além desta transformação nas relações do sujeito com a

lei, a estética torna-se, então, uma esfera de produção de sujeitos e

de formas de subjetividade, que constitui uma via de mão dupla.

Isso porque, ao mesmo tempo em que possibilita a produção de

sujeitos aderidos à norma pela introjeção da lei, a sua plasticidade e

o acento colocado sobre a autonomia da experiência individual

possibilita também a produção de problematizações, desvios e

resistências à normatização (EAGLETON, 1993: 27-28).

Ao fomentar as vivências e intensidades do corpo, com o

efeito de colonizá-lo de maneira mais eficaz, o próprio dispositivo

estético termina comprometendo o sucesso de tal investida.

Quando se enfatiza e ativa os sentidos do corpo de maneira

constante, contumaz e minuciosa acaba-se por intensificá-los para

além de um controle possível (EAGLETON,1993:28).

O corpo se constitui, portanto, ao mesmo tempo produtor,

promotor veiculador tanto de formas de subjetividade quanto de

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subjetivação, que se materializam a partir da relação com outro, tal

qual assinala, por exemplo, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty24:

Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de certo mundo, sou dado a mim mesmo como certo poder sobre o mundo; ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo (MERLEAU-PONTY, 1996: 474).

Sintetizando, a estética refere-se a algo que gira em torno do

sensível. Apresenta-se fortemente embasada num discurso sobre o

corpo, cujas implicações são de ordem social, política e ética.

Trata-se, assim, de uma ferramenta amplamente usada pelos

dispositivos de poder – tanto em seu aspecto visível quanto no

invisível – para normatizar a aparência dos sujeitos a fim de tornar

os corpos dóceis, a partir de uma estética na qual aparece nas

seguintes contraposições:

24 É preciso esclarecer que a fenomenologia elege o sujeito como critério de produção do conhecimento, a partir de sua relação com o mundo (ABBAGNANO,2000). Para Merleau-Ponty, este processo se dá por meio da experiência corporal. Já em Foucault, o que existe são tecnologias de assujeitamento, de modo que o sujeito – que tem autonomia no processo de construção de seu conhecimento – só aparece nos processos de subjetivação.

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3.1.2.3.1 Beleza x feiura

A eleição do corpo como investimento do poder, por um

lado, assume no discurso estético frequentemente a forma de

controle-estimulação: “fique nu, mas seja belo, [cisgênero, jovem,]

saudavelmente magro e bronzeado” (FOUCAULT, 2011:147,

acréscimo das autoras).

Por outro, este belo, do qual fala Foucault, ao mesmo tempo

representa e desafia a norma: o belo é a norma, mas ele também

se desloca em relação a ela para reinstituí-la em outro lugar.

Nesta acepção, Eco (2004) afirma que cada cultura, ao lado

de uma concepção própria do belo, sempre colocou a ideia do feio.

Com relação ao ocidente considera que:

Várias teorias estéticas, da Antiguidade a idade média, veem o feio como uma antítese do belo, uma desarmonia que viola as regras de proporção sobre as quais se fundamenta a beleza deste período histórico, tanto física quanto moral. Ou ainda, como algo que retira do ser aquilo que, por natureza, deveria ter (ECO, 2004:133). Seguindo as trilhas lançadas pelo alemão Karl Rosenkrantz

em uma Estética do Feio, publicada em 1853, Eco (2007) delineia

uma história daquilo que define como “feio formal”. Como ponto de

partida, vai oferecendo exemplos para ilustrar as oscilações do

gosto, ao longo dos tempos. Para tanto, esforça-se em mostrar

como a percepção do belo vai se modificando até chegar à visão

contemporânea, na qual o conceito de belo - atravessado pelos

processos de industrialização e pela tecnologia - passa a ser

contestado pelos movimentos de vanguarda.

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A partir dai, propõe três categorias de feio. A primeira delas

reside numa espécie de justificativa da fealdade, digamos assim. O

argumento central desta perspectiva é de que, no decurso

histórico, o "feio" foi continua e sucessivamente justificado por

algum motivo, seja religioso, seja como demonização do inimigo,

por exemplo.

A segunda categoria apresentada é o "feio artístico". Neste

momento, Eco (2007) vai construindo um discurso – por meio de

um texto que se intercala a imagens – sobre como a ideia de um

"feio artístico" na arte, na literatura e no cinema foi sofrendo

modificações, em função das chamadas revoluções artísticas e

culturais. O trajeto se inicia com a identificação platónica entre o

"belo" e "bom". Em seguida, passa pelas obscenidades de

Boccaccio, em pleno universo cristão, além de movimentos

artísticos como o maneirismo 25 , a poesia decadentista de

Baudelaire, o urinol de Duchamp e sua Gioconda com bigodes como

referências centrais do dadaísmo26 e as mulheres deformadas de

Picasso através do cubismo27. Finalmente, chega na estética trash

dos filmes dirigidos por John Waters28, nos anos de 1960.

25 De acordo com o crítico ensaísta o de arte Giulio Carlo Argan, o maneirismo foi um movimento artístico europeu, que se desenvolveu por volta de 1515. Teve como berço a Itália e suas principais áreas foram a pintura, escultura e arquitetura. Atualmente, muitos historiadores e críticos de artes consideram o movimento a fase germinal do Barroco. Para maiores informações, ver Argan (1993). 26 Segundo ainda Argan, o Dadá é um movimento que surge, nos anos da Primeira Guerra Mundia,l quase simultaneamente em Zurique, a partir de um grupo de artistas e poetas e nos Estados com os pintores europeus Duchamp e Picabia e o fotografo americano Stieglitz, além de Man Ray. Para maiores detalhes, ver Argan (1993). 27 Para Cottigton (1999), o cubismo teve inicio entre 1907 e 1910 em dois meios da vanguarda artística parisiense: por um lado, o círculo de Pablo Picasso e Georges Braque, cujos ateliês se concentravam em Montmartre. Por outro, o círculo dos artistas Albert Gleizes, Jean Metzinger, Fernand Léger, Henri Le Fauconnier e Robert Delaunay, na Rive Gauche, voltados para as exposições anuais do Salão de Outono e Salão dos Independentes. O cubismo tratava formas humanas e da natureza por meio de figuras geométricas, sempre no mesmo plano. A primeira grande obra cubista “Les demoiselles d'Avignon", de Picasso, é conhecida como marco inicial do movimento. Para aprofundar-se, ver Cottigton (1999).

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A terceira categoria aparece descrita pelo ensaísta italiano

como “feio em si mesmo”. Esta se refere, em especial, ao quesito

beleza física. Aqui, Eco (2007) faz alusão à existência de figuras

reais e imaginarias notoriamente conhecidas por uma feiura que

trasborda, a exemplo de Sócrates e Quasímodo, que aprendem - na

interação com o outro - a se verem como não sendo fisicamente

agradáveis às pessoas.

Tratando o tema da feiura sob esta perspectiva do espelho

enquanto um jogo de se auto-reconhecer na alteridade, no olhar do

outro, Sartre (128) narra um episódio através do qual mostra como

a feiura aparece ligada à representação que ele tinha dele mesmo.

Cinquentão e nostálgico, eu empurrei a porta da cervejaria e pedi uma bebida. Na mesa ao lado, algumas mulheres jovens e belas conversavam com grande vivacidade e pronunciavam meu nome. "Ah!, disse uma delas, 'pode ser velho, pode ser feio, mas e daí: eu daria trinta anos da minha vida para me casar com ele." Dei-lhe um olhar triste e orgulhoso, ela me respondeu com um sorriso de surpresa, levantei e parti (SARTRE, 1964:128)29.

Dentro deste aspecto, o sociólogo francês Henri-Pierre Jeudy

questiona se a beleza, ao invés da soberania do corpo como efeito

de uma sublimação, não seria uma atração por tabus e fascinação

do que é considerado feio.

28 Além de cineasta, o americano John Waters é também ator, escritor e jornalista. Desde os anos de 1970, trabalha com uma equipe regular de colaboradores que são conhecidos como Dreamlanders. Já fizeram parte da equipe: Liz Renay, que fora condenada a 27 meses de prisão por fornecer informações falsas em defesa do seu então companheiro, o mafioso Mickey Cohen, a neta do lendário magnata da imprensa William Randolph Hearst, Patty Hearst, que fora presa por ter participado de atividades criminosas junto com o grupo de guerrilheiros que havia a sequestrado, além da atriz pornô Traci Lords.  29 Tradução livre das autoras. Cincuentón y nostálgico, yo empujaba la puerta de la cervecería y pedía una caña. En la mesa de al lado unas mujeres jóvenes y hermosas hablaban con viveza, pronunciaban mi nombre. «¡Ah! —decía una de ellas—, puede ser que sea viejo, que sea feo, pero qué importa: yo daría treinta años de mi vida por casarme con él». Yo le dirigía una mirada triste y orgullosa, ella me contestaba con una sonrisa de extrañeza, yo me levantaba, me iba.

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Logo, afirma que a variabilidade de ideia de beleza – e

consequentemente dos critérios estéticos – liga-se, em particular, à

multiplicidade dos modos de percepção do corpo. Rejeita, assim, a

ideia de universalização do belo ao afirmar que não necessariamente

é a mesma coisa para toda e qualquer pessoa.

Cabe ressaltar, contudo, que não se trata de relativismo cujo

pressuposto levaria ao entendimento de que tudo é possível e se

equivale no que concerne às formas de representação da beleza e

da feiura. Para Jeudy (2002:25), é justamente o contrário. Isto é, o

corpo não se torna objeto estético senão por uma determinação

sempre progressiva das presumidas qualidades da percepção. O que

acaba levando, em consonância com o sociólogo, a uma

radicalização dos modos de apreensão estética do corpo do outro.

Em função dessa determinação subjetiva, ainda de acordo

com Jeudy, os critérios convencionais continuam a se impor,

legitimando com evidencia jamais ameaçada uma certa

universalidade da própria ideia de beleza. “Esses critérios, como se

encarnassem o ideal comum de beleza do corpo, podem ser tomado

como preconceitos e acabam por servir sempre como os mais

recentes modelos de apreciação”(JEUDY, 2002:25).

Neste caso, o autor chama atenção para o fato de que é

preciso entender que o desenvolvimento da percepção estética se

dá no entorno das imagens corporais: constrói-se e destrói-se nas

visões metafóricas do corpo (JEUDY, 2002;27).

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3.1.2.3.2 Masculino x feminino

No campo da sexualidade, as diferenças entre masculino X

feminino, homem X mulher são igualmente sustentadas por um

discurso de “enraizamento biológico, confirmadas pelas ritualidades

sociais e pelas representações culturais, controladas pelo registro

civil e, portanto, pelo Estado” (LE BRETON, 2014:sp). Constituem e

fazem parte do conjunto de normas ao qual Foucault (1988) se

refere como ideal regulatório da sexualidade.

A filósofa Judith Butler afirma que se trata de uma categoria

normativa, ao afirmar que “‘o sexo’ é um constructo ideal que é

forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples

fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo

qual as normas regulatórias materializam o ‘sexo’ e produzem essa

materialização através de uma reiteração forçada destas normas”

(BUTLER,1993:2-3).

Assim, o sexo é percebido não só como uma norma, mas

também como um conjunto de práticas que produz, demarca, cria,

diferencia e coloca em circulação os sexos por ele rotulados,

carimbados e controlados. A este respeito, a autora afirma que tais

normas atuam de forma performativa para construir os corpos em

sua materialidade, e mais especificamente para materializar a

diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo

heterossexual (BUTLER, 1993:2).

No domínio da antropologia, David Le Breton diz que o

sujeito constrói a evidência de seu comportamento como homem

ou mulher ao longo de sua infância, sem ter muita consciência do

papel a ele atribuído, enquanto parte de seu processo de

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socialização. A confirmação, diz o autor, “depende do jogo comum

da existência” (LE BRETON, 2014:sp). Nesse sentido, utiliza a

famosa frase pronunciada por Simone de Beauvoir “Não se nasce

mulher, torna-se mulher” para afirmar que não existe uma essência

masculina nem tampouco feminina, uma vez que estas noções como

tributária do sexo que as origina “se dissolvem sob as ficções mais

ou menos compartilhadas que as colocam em cena no liame social”

(LE BRETON, 2014:sp.). A condição dos sujeitos hermafroditas e

intersexuados, com os atributos dos dois sexos e

“embaralhamento” de seus órgãos, desqualifica qualquer definição

precisa. Desse modo, em função de sua anatomia, os hermafroditas

e intersexuados, involuntariamente, acabam por subverter as

categorias socialmente em uso.

BUTLER (1993:2) afirma, por exemplo, que o gênero é uma

construção cultural que se sobrepôs à superfície da matéria, ou

seja, ao corpo em sua materialidade física construída. Portanto, é

aquilo que o constitui em sua “rigidez”, em seus contornos, em

seus movimentos enquanto efeito mais produtivo do poder. O

“‘sexo’ nada mais será que uma das normas pelas quais ‘alguém’ se

torna simplesmente viável, à medida que é aquilo que qualifica um

corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural”.

Em outras palavras, o sexo não é anterior à norma, pois

sendo ele próprio uma norma, é da ordem da normatização. Como

diz FOUCAULT (2003: 147) o sexo é da ordem do imaginário

produzido pelo real do dispositivo da sexualidade. Para Butler, a

materialização (palavra que ela propõe no lugar de “construção”)

dos corpos se dá em conformidade com os modelos e discursos

pelos quais o imperativo da heteronormatividade possibilita certas

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identificações ao mesmo tempo em que impede ou nega outras

possibilidades, os colocando na condição de abjetos.

3.1.2.3.3 Jovem X velho

Entendendo também as noções de juventude e velhice como

um imbricamento entre o biológico e o cultural, os limites de cada

uma delas em termos fisiológico, psicológico e social tornam-se

bastante elásticos.

Se, por um lado, existe o ciclo biológico próprio do

ser humano – nascimento, crescimento, amadurecimento,

envelhecimento, decrepitude e morte – por outro, a forma como

como estas etapas são concebidas e representadas varia não só de

uma sociedade a outra, mas próprio interior de cada uma delas.

Ariès (2012), por exemplo, analisa como as idades da vida

foram concebidas no mundo ocidental, ao longo do transcurso

histórico. Acaba, então, por revelar que as fronteiras entre uma

fase e outra, bem como as representações simbólicas e as práticas

sociais ligadas a elas se apresentam de forma diferenciadas em

momentos distintos da história do Ocidente.

Partindo deste mesmo entendimento, Norbert Elias afirma que

se “pode notar a marcada diferença entre a posição dos que

envelhecem nas sociedades industriais de hoje e nas pré-industriais

– medievais” (ELIAS, 2001:89). Diante de tal realidade, “tem-se a

impressão de que para cada época corresponde uma idade

privilegiada e uma periodização particular da vida humana” (ARIÈS,

2012:15).

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No mundo ocidental moderno, o prolongamento da média de

vida produz dois efeitos: o primeiro refere-se à total ausência da

sensação “talvez eu fique velho um dia”, de modo a excluir qualquer

possibilidade de condescendência em relação a velhice. Neste caso,

a própria ideia de envelhecimento ativo é um reforçador desta

ideia30. A consequência direta é um olhar desumano em relação ao

velho, observado no tratamento cruel que lhe é dispensado através

do isolamento progressivo que lhe é imposto e de zombarias pela

feiura de alguns deles, pela perda de suas forças, dependência e,

especialmente, pela ausência de controle sobre de si próprio (ELIAS,

2001:83).

O segundo diz respeito à valorização da juventude como um

signo complementar de uma idade ideal, que adquire cada vez mais

importância. Dentro desta lógica vigente, o tempo passa a ser visto

como um pintor de destruição31 ou um inimigo dos esplendores do

porte humano:

A juventude como modelo é afirmada incessantemente, ou melhor, é defendida por ser naturalmente ameaçada pelo tempo [...]. Portanto, é sempre necessário lembrar que ela é o padrão de todas as avaliações de idade (ainda jovem, sempre jovem): a sua fragilidade faz o seu prestigio (BARTHES, 1988: 285)32.

30 Neste caso, a figuro do idoso remete à ideia de um velho de alma jovem, que corre, dança, joga e tem vida social agitada. 31 Termo exaustivamente utilizado por minha avó, que na época tinha aproximadamente. anos, enquanto se olhava no espelho se penteando ou se maquiando. Para os padrões estéticos hegemônicos, era considerada uma bela mulher pertencente a cultura patriarcal nordestina. Em função de uma viuvez relativamente precoce, tornou-se economicamente independente, de modo que passou a administrar seus próprios negócios e gerir a própria vida. Embora tivesse um forte senso de humor, adotasse uma postura de crítica severa aos valores patriarcais e de inteligência bastante aguçada, jamais conseguiu ter uma visão distanciada sobre o trinômio beleza feminina – idade – apelo sexual. Durante sua vida inteira, nunca conseguiu relativizar seus rígidos padrões estéticos de beleza atrelados à juventude e sensualidade. 32 Outro aspecto desta faceta diz respeito ao fenômeno contemporâneo de prolongação da juventude por sujeitos pertencentes às camadas medias e médias

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Logo, a juventude como valor se descola cada vez mais de um

recorte demográfico e objetivamente quantitativo de caráter

jurídico. Mais especificamente, agora já não se trata apenas de um

período da vida correspondente a uma faixa etária determinada no

qual se atribui ser uma fase de transição crucial, na medida em que

o sujeito é caracterizado como uma figura social e biologicamente

emblemática. Tampouco se reduz à ideia de um marco inicial

caracterizando a inserção do sujeito na vida em sociedade, estando,

a partir de uma certa idade, juridicamente capacitado a responder

por alguns de seus atos (COUTINHO, 2004: 14).

A juventude e, evidentemente, a própria condição do jovem se

tornam uma metáfora das mudanças socioculturais, posto que

passa a fazer parte de um conjunto de valores colocados em

circulação no interior da nossa sociedade, nesses últimos cinquenta

anos. Vincula-se a inúmeras características subjetivas, pois tal qual

apontam as autoras Denise Portinari e Fernanda Coutinho “ser

jovem, na cultura ocidental moderna, é, sobretudo, uma forma de

identidade, um ‘estilo de vida”(PORTINARI; COUTINHO:2006:60-61).

alta. Retratado pelos veículos de comunicação como geração canguru, sua grande característica é e retardam a criação de uma nova família e na independência material.

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Figura 10: Senhor tatuado na Tattoo Week Rio 2016, foto Natasha Ribas

que encontra na cosmética – tinturas, clareamento dental, cirurgias

plásticas e tantos outros procedimentos dermatológicos – e nos

artefatos produzidos pelo design de produtos – acessórios e

vestimenta – novas possibilidades, que concorrem para o

rejuvenescimento do aspecto físico.

3.1.2.3.4 Público x privado

No que concerne à separação dos espaços público e privado,

entende-se como parte do longo processo histórico disciplinador

por meio do qual se conseguiu criar novas sensibilidades com uma

considerável força de interiorização, talvez jamais vista no decurso

da história.

Refere-se às mudança de costumes que ocorreu no interior da

sociedade europeia, entre os séculos XIII e o século XIX. Isto é, a

todo um conjunto de regras e condutas sociais particularmente

conhecido como sociedade de corte que aos poucos vai se

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infiltrando em todo o corpo social como parte indissociável da

própria da dinâmica civilizadora ou civilizatória33 (ELIAS, 1990).

Novos “mapas de afetos” passam, então a incidir sobre a

maneira pela qual o corpo é afetado e igualmente começa a afetar

os sujeitos, a partir de uma perspectiva que alude para o

refinamento das emoções e sensibilidades.

Este processo abarca o cultivo de sentimentos, como:

decoro, pudor sexual, polidez de gestos, delicadeza da aparência,

salubridade e higiene, como também de nojo, repulsa, embaraço,

desconforto e aflição.

O que na prática corresponde aos modos de gesticular, de

sentar, de dormir, de cortejar, de se portar à mesa, de usar os

talheres, de mastigar, de sorver líquidos, de preparar e servir os

alimentos. Envolve também à adoção de uma postura adequada em

relação ao vestir-se, despir-se, à nudez, à realização das funções

fisiológicas (escarrar, assoar nariz, urinar, defecar e dos atos

sexuais).

A exposição dos corpos nus era, por exemplo, até o século

XII algo frequentemente comum. Velhos, adultos, jovens e crianças

pavoneavam de forma assusta e livre:

É muito frequente ver o pai, usando nada mais que calções, correr pelas ruas de sua casa para os banhos acompanhado da esposa e dos filhos nus [...]. Mocinhas de dez, doze, quatorze, dezesseis e dezoito anos saem inteiramente nuas - exceto quando estão usando uma bata curta, muitas vezes rasgada, e um trajo de banho esmolambado, na frente e atrás! Com isto aberto aos pés a as mãos [...] correm de suas casas, ao meio-dia, pelas longas ruas em direção aos banhos. E quantos corpos nus de rapazes de dez, doze,

33 Para Elias (1990) decorre dos avanços de um processo histórico civilizador, que não deve ser visto enquanto algo contínuo, mas, sobretudo, como estando sujeitos a interrupções e recuos

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quatorze e dezesseis anos correm ao lado delas (ELIAS, 1990: 165). A partir do século XVI, a nudez vai sendo encoberta, ficando

nos XVIII e XIX exclusivamente restrita às esferas mais intimas do

ambiente privado. Assim, o ato de mostrar-se desnudado diante de

pessoas de categoria mais alta ou igual, que inicialmente aparecerá

como uma infração verdadeiramente repugnante, aparecerá no

adulto do século XIX como “uma injunção de seu próprio ser interno

e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total ou

automático” (ELIAS, 1990: 144).

Com relação à forma como os costumes são moldados e os

impulsos controlados, Elias (1990) recorre aos manuais de “boas

maneiras”. A sua ênfase incide sobre De civilitate morum puerilium,

publicado por Erasmo em 1530, mas cuja influência perdura até

cerca de 1700.

“Indicando um novo padrão de vergonha e repugnância que

começa a se formar lentamente na alta classe secular”, Erasmo faz

alusões explicitas aos excrementos humanos. Tal investida se dá

porque na sociedade aristocrática da corte do século XVI, não

somente é permitido falar das funções corporais franca e

abertamente, como é plenamente aceitável e corriqueiro satisfazê-

las diante de outras pessoas, em ambientes públicos, como: pátios,

beirais das muralhas de um castelo, escadas, cantos da sala etc.

Em meados do século XVII, a satisfação das funções

fisiológicas vai se tornando uma atividade solitária, sendo

inicialmente importante controlar os instintos quando na companhia

de outras pessoas, por razões consciente e meramente sociais, até

se tornar um verdadeiro impropério:

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Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social das pessoas que os impõe, em relação daquela cuja companhia está. Isto muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos primeiros que eles, os socialmente superiores sentem vergonha até mesmo de seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas (ELIAS, 1990:143). Outras ferramentas de controle dos impulsos e de emoções

para o quais o autor vai chamar a atenção são os colégios

reservados a um pequeno número de clérigos de diferentes idades.

Neste contexto, os agentes disciplinadores de “razões higiênicas e

de saúde passam a desempenhar um papel importante nas ideias

dos adultos sobre o que como se conduzir em público e no

ambiente privado” (ELIAS, 1990:140).

A partir do século XIII, a família se torna a principal instituição

disciplinadora. “A dependência social da criança face aos pais torna-

se particularmente importante como alavanca para a regulação e

modelagem dos impulsos e emoções, de acordo com estes novos

requerimentos sociais” (ELIAS, 1990:142).

3.2 Na contramão da estética: movimentações que desconstroem o corpo

Contra este poder que governa a conduta dos corpos sob um

imperativo que se fundamenta, conforme sugere Foucault

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(2008a:5), em opções estéticas: “goste disto, deteste aquilo, isto é

bom, aquilo é ruim, seja a favor disso, cuidado com aquilo”, pululam

movimentos e, no caso desta pesquisa, movimentações de contra-

condutas pelas ruas das grandes cidades.

Estes movimentos e movimentações têm como embrião as

associações que emergem nas ruas de Londres, sobretudo, a partir

da segunda metade do século XX sob a tônica das subculturas. Sua

conformação se dá a partir de uma relativa proximidade de seus

membros em termos de faixa etária e situação socioeconômica34

(HEBIDIGE, 2002).

Transcritas em termos de engajamentos coletivos de estratos

marginalizados e/ou minoritários que visam promover uma ruptura

com os valores culturais preponderantes, os sujeitos proclamam sua

filiação/ seu pertencimento através de um verdadeiro exercício de

bricolage35. Isto é, remendando ou hibridizando estilos a partir de

imagens e artefatos da cultura material que lhes estão disponíveis.

Tiram, assim, o máximo de proveito do meio que os cerca,

num esforço em construir identidades que lhes confiram "relativa

autonomia” dentro de uma cultura fragmentada por diferenças

socioeconômicas, de gerações etc. Portanto, se os estratos

marginalizados e/ou minoritários se vêm sempre obrigados a “viver”

com o que o poder lhes confere ou recusa, isso não os impede de

constituir uma subcultura identitária baseada em valores e práticas

originais que dão sentido à sua existência” (CUCHE, 1999:152).

34Muito embora, segundo Hebdige (2002), estas categorias não parecem ser determinantes para a conformação das subculturas. 35 Fazendo uma analogia com o termo francês bricolage, que designa pequenos trabalhos (normalmente reparações) realizados de forma amadora por um faz tudo – como sugere a gíria carioca gambiarra - Lévi-Strauss sugere que o conhecimento “primitivo” é um tipo de pensamento que se guia pela intuição e pela vontade de conhecer o que está no mundo. Para maiores detalhes, ver Lévi-Strauss (1989).

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Estas bricolagens, por sua vez, fundem-se ao

compartilhamento de ícones e prática36 que caracterizam, assinalam

e simbolizam a condição dos membros como outsiders aos olhos

dos outros e deles mesmos. Tal condição se constitui por meio de

uma carreira bem sucedida manifestas em uma série de práticas

marginais que se desviam das regras sociais geralmente aceitas

através de um processo de violação simbólica. Em resumo, as

subculturas partilham o rótulo e a prática60 de serem classificadas

como desviantes (BECKER, 2009: 18-22) de tudo aquilo que vem

sendo qualificado como bonito, elegante, decoroso e aceitável.

No caso em particular da subcultura BM, as práticas

subvertem, em certa medida, os códigos regedores da aparência

que funcionam como vetores estimulando à adoção, em larga

escala, de determinados estilos adotados pelos segmentos médios.

O que equivale dizer que nos body mods paulistas circunscrevem

narrativas sobre o apoderamento do saber, do aparato, de técnicas

e/ou de tecnologias médico legal através de práticas marginais

utilizadas de forma amadora e experimental, que visam a produzir

mudanças radicais em seus corpos.

3.2.1 A atmosfera pulsante das cidades

Constituindo o lugar, por excelência, onde as relações de

poder se desenrolam de forma mais visível e marcante, as cidades

oferecem, assim, a oportunidade “de os sujeitos participarem da

36 Tanto HEBDIGE (2002) quanto BECKER (2009) utilizam o termo símbolo, entretanto utiliza-se prática por considerar mais adequado aos propósitos da pesquisa.

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sua própria dominação e resistência. Ou seja, a atmosfera urbana

impulsiona a conformação de arranjos que favorecem o

engajamento emocional do sujeito em determinadas posições, de

modo a se assumir em alguns discursos em detrimento de outros37

(LUPTON, 1995: 135). Desse modo, a cidade torna-se o locus

privilegiado para a produção das mais variadas e fervilhantes formas

de contra-condutas e, por conseguinte, de subjetivação.

Por suas avenidas, seus becos, suas praças, suas galerias e

suas esquinas correm e escorrem estilos de roupa, de penteados,

de maquiagem, de acessórios, de adornos, de pintar e decorar o

corpo, de redesenhar a aparência física em termos plásticos que

esbravejam contra os ditames estéticos. Ou seja, por suas vias

pulsantes, os estilos emergem como uma potência discursiva por

meio da qual os sujeitos manifestam e reivindicam deliberadamente

a sua condição marginal. Assumem-se, como dissidentes dos

cânones do bom gosto rejeitando os postulados definidos e

defendidos pelo discurso estético normatizante.

Como afirma Hebdige (2002), avisam, de forma simples e

direta, a presença da diferença, de modo a provocar suspeitas

vagas, riso inquieto e raivas dissimuladas. Ao mesmo tempo,

tornam-se símbolo da identidade marginal e fonte de valor, de

triunfo, tal como sugere o termo beleza freak dos body mods

enquanto gesto de desafio ou desprezo às diretrizes estéticas.

Em outras palavras, para aqueles que os erguem como ícone

que assinala a diferença através de uma blasfémia, os estilos se

configuram, portanto, como “táticas” de vanguarda criadas por

37 The subjects participate in their own domination as well resisting it. They have an emotional commitment to take up positions in some discourses rather than others.

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estratos minoritários e/ou grupos identitários38 marginalizados, que

ora sofrem rejeições sob a forma de perseguições e/ou denúncias,

ora são canonizados. Mais exatamente, constituem expressão de

rituais que, por vezes, são vistos como ameaça à ordem pública ou

como uma bobagem inofensiva, ostentando as contradições em

uma grande diversidade de estilos.

É imerso nessa perspectiva que Hebdige (2002)39 afirma que

as subculturas adotam práticas de contra-condutas através da

criação e produção de estilos como artifício de expressão e

celebração genuinamente underground, tornando-se, em certa

medida, subversivos de fato. Com isso, marcam o seu

pertencimento a um grupo social, além de assinalarem, conforme

sugere o antropólogo Ted Polhemus 40 , sua distinção frente

aos demais: Zooties, hipsters, beats, rockers, hippies, rude boys, punks... até os travellers, os raggamuffins e os body mods dos dias atuais são subculturas que usam um estilo característico de se vestir e decorar o corpo para traçar uma linha separando ‘Nós’ e ‘Eles’. (Polhemus, 1994: 14)41.

38 De acordo com Cuche (1999:177) a identidade social se caracteriza tanto em termos individuais quanto de grupo, cuja expressão se dá pelo conjunto de vinculações em um sistema social: segmento socioeconômico, sexo, faixa etária etc. permitindo que o sujeito se situe e ao mesmo tempo seja localizado no conjunto social. Sendo concomitantemente inclusão e exclusão, identidade possibilita a identificação como membro dentro de um grupo em oposição aos demais. 39O termo subcultura aqui empregado não está restrito ao universo juvenil. Para HEBDIGE, nas sociedades ocidentais as subculturas estão estreitamente vinculadas ao universo de jovens cuja presença é um considerada um problema. Especificamente, when young people make their presence felt by going "out of striking poses… bounds", by resisting through rituals, dressing strangely, striking bizarre attitudes, breaking rules, breaking bottles, windows, heads, issuing rhetorical challenges to the law. 40Ted Polhemus (1989) entende a subcultura sob a ótica do street style como um movimento alternativo às modas criadas pelos grandes estilistas. 41 Zooties, Hipsters, Beats, Rockers, Hippies, Rude Boys, Punks… right to today´s Travellers, Raggamuffins and Body Modifiers are subcultures which use a

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Em suma, as subculturas traduzem a luta pela posse de um

ícone/símbolo, que se estende até mesmo nas áreas mais

mundanas da vida cotidiana. É sempre uma disputa e o estilo é,

então, a área na qual as definições opostas se chocam com uma

força ainda mais dramática”42 (HEBDIGE, 2002:16).

Na personalização dos corpos contra a disciplina que emerge

da superficialidade profunda das aparências, as subculturas como

produtoras de um estilo comum retratam a apropriação, ou melhor,

o “roubo” de objetos simples, mundanos e padronizados para dar-

lhes uma função diferente daquela originalmente projetada. Um

movimento, segundo Hebdige (2002), de contraposição entre ação

e reação.

Em outras palavra, um movimento por meio do qual o objeto

é destituído de sua acepção original e revestido com outro sentido,

tornando-se assim um elemento significativo para caracterização

do grupo, uma vez que adquirem uma nova dimensão simbólica: o

emblema de um estigma; a prova/lembrança de um exilio auto-

imposto.

Um alfinete de segurança, um coturno, uma lambreta – e no

caso desta pesquisa em particular, um alargador, uma prótese

cirúrgica, por exemplo – encarnam o processo antropofágico,

parafraseando Oswald de Andrade (1976), de deglutir o objeto

mundano em um duplo significado.

Muitas vezes clandestinas, dada a estreita relação com o

ilícito, as subculturas caracterizam-se, assim, pela criatividade,

distinctive style of dress and body decoration to draw a line between “Us” and “Them. 42 Subculture is, then, always in dispute, and style is the area in which the opposing definitions clash with most dramatic force.

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astúcia e improvisação. Parafraseando Cuche (1999:149-151) ao

se referir às culturas populares, as subculturas reagem às

tentativas de assujeitamento pela ironia, provocação e mau gosto a

partir de práticas multiformes e combinatórias sempre anônimas

que enaltecem o “faça você mesmo”.

3.2.2 Os embates políticos da BM

Através das subculturas, são travadas lutas intensas pela

disputa de poder, de modo que a tensão aparece refletida em suas

superfícies. No caso específico dos body mods paulistas, os atritos

são provocados pela promoção de práticas tidas como não

naturais, produtoras de possibilidades estéticas vistas como freaks

– que literalmente significam bizarras.

Conquistadas através da apropriação amadora do saber

médico, muitas vezes estas brigas se intensificam e chegam às

manchetes de veículos de comunicação de massa. No caso do

Brasil, a pigmentação da parte branca do olho, conhecida como

eyeball tattooing, vem provocando disputas jurídicas entre as

agências sanitárias, de promoção da saúde e os entusiastas das

modificações corporais.

Isto não leva a crer que o poder da estética não impõe sua

ordem ad infinutum. Os body mods não são desprovidos de

autonomia nem de capacidade de reação. Os sujeitos não são

meros receptores apáticos dos valores culturais nos quais estão

inseridos. Apesar de estarem intimamente marcados por eles, as

tensões, conflitos e até violência frustram tais expectativas à

medida que invariavelmente não se aceita o ato de ser subjugado.

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A contrapartida é que rapidamente muitas destas práticas

são incorporadas pela indústria. Estilos/ícones de contestação

produzidos no interior são destituídos de seu significado original.

Isto é, são comercializados de forma diluída e pasteurizada através

de estratégias de mercados voltadas, sobretudo, para o público

jovem como uma "política de confrontos fotogênicos, de consumo

e de estilo de vida". Na atual recessão, a coerência imaginária da

subcultura parece estar prestes a se dissolver sob a pressão do

mercado43 (HEBDIGE, 2002:17).

Um exemplo marcante diz respeito ao uso dos alfinetes

punks pelos estilistas Viviane Westwood, Versace ou Christopher

Decamin da Balmain em suas coleções. Além disso, foi

transformado em joias nas mãos do joalheiro norte-americano Tom

Binns e, no Brasil, pela H Stern.

As subculturas são potencialmente cooptáveis. Parafraseando

Cuche (1999:150), acabam por desempenhar, de forma

involuntária, papéis integradores. Portanto, do ponto de vista da

resistência, as práticas de modificações corporais não conformistas

promovidas pelos body mods paulistas podem se esvaziar como

alude Pitts (2007:45) – mas mesmo assim podem deixar uma

marca, podem durante um certo tempo produzir um efeito de

estranhamento e de disrupção dos padrões estabelecidos.

A partir daqui, o próximo capítulo incide em “entender a

estetização dos corpos dos body mods paulistas como um ‘novo’

fenômeno e inventariar suas manifestações e efeitos sobre o

cotidiano dos indivíduos” (PORTINARI, 2000: 127).

43 It is as ‘politics of photogenic confrontations of consumption and life ‘style’. That politics has now entered a new phase. In the current recession, the imaginary coherence of subculture seems about to dissolve under the Marketing pressure.

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