boas, frans - um ano entre os esquimós

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ti M!'Í'".AS DA ANtliOPOIOGlA Dl BOAS l o compreensível -- era insustentável. Assim, ganhei um novo ponto de visia que me revelou a importância de estudar a interação entre o orgâni- t:o e o inorgânico, acima de tudo entre a vida de um povo e seu ambiente l ísico. Surgiu então meu plano de considerar como a tarefa da minha vida u (seguinte] investigação: até que ponto podemos considerar os fenôme- i sós da vida orgânica, especialmente os da vida psíquica, a partir de um f )onto de vista mecanicista, e que conclusões podemos tirar dessa consi- deração? Para resolver essas questões, preciso de um conhecimento pelo menos geral de fisiologia, psicologia e sociologia, o que até agora não f Jossuo e devo adquirir. Lamento não poder lhe enviar a tempo nenhum dos meus trabalhos. i Aqui, Boas inclui uma lista dos trabalhos psicofísicos que publicou em l 882.] Por enquanto, desisti de meu trabalho psicofísico, pois não tive tempo de fazer experimentos durante o treinamento militar. [Aqui, ele faz referência a um trabalho de física que seria publicado em breve.] Ago- ra estudo a dependência da migração dos esquimós atuais em relação à configuração e às condições físicas do ambiente. Trata-se, é claro, de um trabalho muito extenso que não pode ser terminado logo. Eu o estou considerando principalmente de um ponto de vista metodológico, para descobrir até que ponto se pode chegar, estudando um caso muito espe- cífico e longe de ser simples, na determinação da relação entre a vida de um povo e o ambiente. Se eu tiver, em um futuro próximo, oportunidade de estudai", tentarei resolver essas questões. Além disso, quero terminar e sintetizar meus es- tudos psicofísicos, para os quais preciso de mais material de observação antes de poder acabá-los de forma apropriada. Tenho ainda alguns estu- dos meteorológicos menores que gostaria de terminar o mais rápido pos- sível, para poder dedicar todas as minhas energias ao estudo da questão que escolhi para ser o trabalho da minha vida. UM ANO f. MT «E O 'i ESQUIMÓS TEXTO S Um ano entre os esquimós* A descrição de algumas experiências que tive no Ártico não trará aventu- ras emocionantes, corno naufrágios e escapadas por um triz, pois não as vivi. Minha narrativa estará centrada na vida diária dos habitantes dessas costas cercadas de gelo, os esquimós. Eles foram os meus companheiros cm todas as excursões. Eu costumava viajar de aldeia em aldeia. Assim, a sorte deles era a minha sorte, e as pequenas aventuras da vida deles eram as minhas aventuras. Espero que a aparente falta, na minha descrição, de cenas emocionantes e perigos iminentes seja compensada pelo fato de que minhas experiências são as de todo um povo, de que as minhas difi- culdades e perigos eram aqueles que os esquimós têm de enfrentar e com- bater durante toda a vida. Quando nosso navio se aproximou pela primeira vez das praias som- brias da Terra de Baffin — uma das grandes ilhas que formam o arqui- pélago ártico — os esquimós nos avistaram, tripularam um barco e subi- ram a bordo de nossa escuna. Eu mal imaginava que em pouco tempo olharia para aquele pequeno sujeito sujo, de cabelos compridos e olhos brilhantes, com sentimentos de interesse caloroso, para não dizer ami- zade; mal imaginava a cordialidade com que seria acolhido em suas pe- quenas cabanas. Alguns dias depois o navio nos deixou. Fiquei com meu criado entre os esquimós. Acho desnecessário descrever suas estaturas baixas e rostos chatos; suas roupas de pele com acabamento perfeito; os casacos de cau- das longas das mulheres, que carregam as crianças em imensos capuzes dos próprios casacos; ou as botas largas que chegam aos quadris. Nem vou falar sobre a embarcação rápida, o caiaque, que habilmente manejam com o remo de pá dupla. Passei setembro e os primeiros dias de outubro em breves excursões nos arredores do lugar em que tinha desembarcado, pois a estação já es- tava avançada demais para empreender longas viagens. As encostas mar- rons das montanhas começavam a ser mais uma vez cobertas com um manto branco de neve, e o gelo se formava nas baías. As ventanias rugi- riam sobre o rnar em algumas semanas. O gelo se formava rapidamente, * Bulletin ofthe American Geographical Society 19 (1887): 383-402.

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Page 1: BOAS, Frans - Um ano entre os esquimós

ti M!'Í'".AS DA ANt l iOPOIOGlA Dl BOAS

l o compreensível -- era insustentável. Assim, ganhei um novo ponto devisia que me revelou a importância de estudar a interação entre o orgâni-t:o e o inorgânico, acima de tudo entre a vida de um povo e seu ambientel ísico. Surgiu então meu plano de considerar como a tarefa da minha vidau (seguinte] investigação: até que ponto podemos considerar os fenôme-i sós da vida orgânica, especialmente os da vida psíquica, a partir de umf )onto de vista mecanicista, e que conclusões podemos tirar dessa consi-deração? Para resolver essas questões, preciso de um conhecimento pelomenos geral de fisiologia, psicologia e sociologia, o que até agora nãof Jossuo e devo adquirir.

Lamento não poder lhe enviar a tempo nenhum dos meus trabalhos.i Aqui, Boas inclui uma lista dos trabalhos psicofísicos que publicou eml 882.] Por enquanto, desisti de meu trabalho psicofísico, pois não tivetempo de fazer experimentos durante o treinamento militar. [Aqui, elefaz referência a um trabalho de física que seria publicado em breve.] Ago-ra estudo a dependência da migração dos esquimós atuais em relaçãoà configuração e às condições físicas do ambiente. Trata-se, é claro, deum trabalho muito extenso que não pode ser terminado logo. Eu o estouconsiderando principalmente de um ponto de vista metodológico, paradescobrir até que ponto se pode chegar, estudando um caso muito espe-cífico e longe de ser simples, na determinação da relação entre a vida deum povo e o ambiente.

Se eu tiver, em um futuro próximo, oportunidade de estudai", tentareiresolver essas questões. Além disso, quero terminar e sintetizar meus es-tudos psicofísicos, para os quais preciso de mais material de observaçãoantes de poder acabá-los de forma apropriada. Tenho ainda alguns estu-dos meteorológicos menores que gostaria de terminar o mais rápido pos-sível, para poder dedicar todas as minhas energias ao estudo da questãoque escolhi para ser o trabalho da minha vida.

UM ANO f. MT «E O 'i ESQUIMÓS

T E X T O S

Um ano entre os esquimós*

A descrição de algumas experiências que tive no Ártico não trará aventu-ras emocionantes, corno naufrágios e escapadas por um triz, pois não asv iv i . Minha narrativa estará centrada na vida diária dos habitantes dessascostas cercadas de gelo, os esquimós. Eles foram os meus companheiroscm todas as excursões. Eu costumava viajar de aldeia em aldeia. Assim, asorte deles era a minha sorte, e as pequenas aventuras da vida deles eramas minhas aventuras. Espero que a aparente falta, na minha descrição, decenas emocionantes e perigos iminentes seja compensada pelo fato deque minhas experiências são as de todo um povo, de que as minhas difi-culdades e perigos eram aqueles que os esquimós têm de enfrentar e com-bater durante toda a vida.

Quando nosso navio se aproximou pela primeira vez das praias som-brias da Terra de Baffin — uma das grandes ilhas que formam o arqui-pélago ártico — os esquimós nos avistaram, tripularam um barco e subi-ram a bordo de nossa escuna. Eu mal imaginava que em pouco tempoolharia para aquele pequeno sujeito sujo, de cabelos compridos e olhosbrilhantes, com sentimentos de interesse caloroso, para não dizer ami-zade; mal imaginava a cordialidade com que seria acolhido em suas pe-quenas cabanas.

Alguns dias depois o navio nos deixou. Fiquei com meu criado entreos esquimós. Acho desnecessário descrever suas estaturas baixas e rostoschatos; suas roupas de pele com acabamento perfeito; os casacos de cau-das longas das mulheres, que carregam as crianças em imensos capuzesdos próprios casacos; ou as botas largas que chegam aos quadris. Nemvou falar sobre a embarcação rápida, o caiaque, que habilmente manejamcom o remo de pá dupla.

Passei setembro e os primeiros dias de outubro em breves excursõesnos arredores do lugar em que tinha desembarcado, pois a estação já es-tava avançada demais para empreender longas viagens. As encostas mar-rons das montanhas começavam a ser mais uma vez cobertas com ummanto branco de neve, e o gelo se formava nas baías. As ventanias rugi-riam sobre o rnar em algumas semanas. O gelo se formava rapidamente,

* Bulletin ofthe American Geographical Society 19 (1887): 383-402.

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AS P R E M I S S A S DA ANTROPOLOGIA DE BOAb

O inverno chegara. Os esquimós tinham construído cabanas de neve e ca-sas de pedra, que eram cobertas com arbustos e turfa. Grandes lâmpadasardiam no interior, fornecendo luz e calor. Os bancos de gelo tinham seformado sob o abrigo da terra, e os homens saíam todos os dias para ca-çar focas na beirada do banco de gelo. Ali permaneciam esperando queuma foca subisse à tona. Assim que o caçador a via, arremessava o arpão.A carcaça era puxada para cima do gelo. Os caçadores devem observaras condições do tempo; pois, se uma ventania repentina começa a soprarda terra, o gelo fica propenso a quebrar e a ser carregado para o mar.Lembro-me de um jovem que foi assim afastado da terra e viu-se incapazde retornar para a costa. Por oito dias ele andou à deriva, de um lado paraoutro, à mercê dos ventos. Fortes quedas de neve cobriram o gelo à deri-va, e a arrebentação das ondas quebrou o banco de gelo. A morte o fitavasem cessar. No entanto, ele não se desesperou, nem mesmo perdeu a pa-ciência. Zombando de sua própria desgraça, compôs a seguinte canção:

Aya, é maravilhoso sobre o gelo! / Muito belo. / Olhe meu caminhosolitário! / Tudo neve, neve derretida e gelo! / É belo! /Aya, é maravi-lhoso sobre o gelo! / Muito belo. / Olhe minha terra natal! / Neve,neve derretida e gelo! / É belo! Aya, acordando de meus cochilos naaurora, / Campos monótonos de gelo / E sendas sombrias de água /Contemplo. / Aya, oh, quando chegar à terra / Será belo! / Quando ter-minará esta peregrinação? / Quando chegarei em casa? / Então serábelo!

Quando ficou mais frio, o campo de gelo se tornou mais extenso. Noinício de dezembro o mar estava suficientemente congelado para permitira viagem. Essa é a época do ano em que os nativos se visitam, e por issoera a estação mais favorável para minhas próprias viagens e explorações.Eu tinha comprado um trenó e cães. No começo do inverno fiz excursõescurtas para aprender a dirigir o trenó. Iniciei minha primeira viagem emdezembro, e a partir de então até mais ou menos o fim de julho permane-ci sempre andando de um lado para outro, fazendo o levantamento dascostas e do interior da Terra de Baffin.

Costumava ficar nas aldeias dos esquimós e examinar os arredores.Assim que terminava o trabalho, passava para a próxima vila. Andei aolongo de toda a costa. Nas aldeias, vivia com os esquimós nas suas casasde neve. Em geral, propunha a um homem que conhecia bem a região que

UM ANO ENTRE OS ESQUIMÓS

me acompanhasse por alguns dias, e como eu tinha cães melhores e umIrene melhor que os esquimós, minha oferta era aceita com alegria. Essasviagens duravam geralmente duas semanas, e durante esse tempo o ho-mem ia caçar focas enquanto eu explorava o terreno.

Vou descrever um dia dessas viagens., pois isso dará uma boa idéia davida dos esquimós no inverno, ao ar livre.

De manhã cedo, a mulher cozinhava a primeira refeição do dia, en-quanto o homem preparava o trenó, que consiste simplesmente em patinsbaixos conectados por barras transversais. Quando em uso, a parte infe-rior dos patins é coberta por um manto de gelo para que o trenó possadeslizar mais facilmente sobre a neve. A carga consistia em nossos sacosde dormir, meus instrumentos astronômicos, nosso equipamento de caça,laças para a neve, uma lâmpada e um pedaço de carne e gordura de foca.Depois que se prendia essa carga leve com amarras, os cães eram ar-ícados e colocados no trenó. Estávamos prontos para partir. No primeirotlia de uma viagem os cães estão geralmente bem descansados. E difícilrefreá-los enquanto ainda não está tudo pronto. Assim que o condutor gri-ta "H!", eles partem pelas rampas de neve, passando pelas pedras de geloempilhadas na praia. O trenó salta sobre todos os obstáculos, e o viajanteprecisa empregar toda a sua força e atenção para se agarrar ao veículo eevitar as rochas e os pedaços de gelo salientes.

Quando o trenó chega ao campo de gelo ininterrupto que cobre o mar,deve-se cuidar dos arreios e tirantes dos cães antes de o grupo estar pron-to para a partida. Quando tudo está em boa ordem, os viajantes sentam-seno trenó, o condutor na parte da frente; ele toma o chicote, que tem cercade 7,5 metros de comprimento, e todos partem.

Quando o gelo está nivelado e a neve é dura, é muito agradável andarnum trenó leve puxado por bons cães. Nessas circunstâncias, pode-se fa-cilmente percorrer cerca de 112 quilômetros por dia. Mas, mesmo nessecaso, dirigir um trenó é trabalho duro, que requer considerável habilidadee atenção. Depois de algum tempo, um ou outro dos cães torna-se pre-guiçoso. O condutor então grita seu nome e lhe dá uma chicotada; mas énecessário atingir o cão invocado, pois se outro for atingido, ele se senteinjustiçado e se volta contra o cão cujo nome foi gritado; o guia, que nãopermite nenhuma briga entre os cães, entra na rixa, e logo todo o bandoestá amontoado numa massa uivante e mordente. Nenhuma quantidade dechicotadas e batidas consegue separar os animais em luta. A única coisa

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que se pode lazer é esperar que sua ira diminua e depois arruinar os liran-tes, a essa altura tão enredados que preeisam ser novamente amarrados.

Mas é necessário ter cautela para fazer isso. Com chicotadas leves emsuas cabeças, deve-se fazer com que os cães se deitem. Enquanto os ti-rantes estão sendo amarrados, o guia olha para trás astutamente. Assimque tudo está pronto, ele se levanta de um salto, todos os outros cães oseguem, e logo partem antes que o condutor possa se agarrar bem ao tre-nó. Se o chicote e as luvas ficam para trás, é necessário voltar num gran-de círculo para recuperá-los.

Antes de conhecer as peculiaridades dos cães, eu freqüentemente fa-lava com meu companheiro, perguntando-lhe o nome dos promontórios,baías, ilhas etc. Enquanto conversávamos, os cães se voltavam para tráse de repente todos se sentavam, olhando para nós como se quisessem sa-ber do que estávamos falando. Eles não permitem nenhuma conversa en-tre os viajantes. Todos têm de falar sempre com eles. O condutor dirá:"Aq aq — corram, corram! Ah! Você vê aquela ilha, aquela ilha peque-na? Há uma casa nela, uma bela casinha! Agora, corram!", e assim pordiante. Se ele quiser virar para a direita, ele atira o chicote para a esquer-da e canta: "Aua, já aua, au aua", e enquanto ele continua a agir dessemodo, os cães viram cada vez mais para a direita. Se fizer muito frio, épreciso correr de vez em quando ao lado do trenó, para se aquecer, e porisso os viajantes estão em geral bastante cansados na hora de parar emontar o acampamento.

A primeira coisa a ser feita é construir uma casa de neve. Os blocosde neve são cortados com uma faca ou formão, sendo depois arranjadospara formar uma abóbada. Claro, essa casa, que é construída apenas parauma noite, é muito pequena, mas ainda assim exige cerca de duas horasde trabalho. Depois acende-se o fogo e derrete-se um pouco de neve. En-quanto um dos homens realiza esse trabalho, o outro desarreia os cães eleva os arreios para dentro da casa. O trenó é descarregado e tudo trans-portado para dentro da cabana para que os cães não devorem os apetre-chos. Os viajantes levam cerca de quatro horas para preparar sua refei-ção, que consiste invariavelmente em água e carne de foca crua e gelada.Como eu tinha equipamentos de cozinha melhores, conseguíamos fazercafé ou sopa. Era uma grande atração para os esquimós que viajavam co-migo. A roupa não é tirada durante a noite, mas conservada no corpo até

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UM A N O l N f RI. D",

( juc sc fuça unia estada mais longa. Essas cabanasde neve não aquecerai tn i i lo durante uma única noite, quando o termômetro maica 40* ou 50*iihiiixo de /.ero, embora a porta seja selada corai um bloco de ne^e e a.iatit|Kidíi fique acesa a noite inteira. Assim, as noites são bastante descon-fortáveis, particularmente porque as casas sã» tão pequenas que não épossível sentar-se com as pernas estendidas. Eu geralmente ficava nvuit»Icl í / do partir na manhã seguinte e continuar a viagem.

Descrevi a viagem sobre gelo liso e neve dura. Quando o viajante temtU; passar por bancos de gelo acidentado, e quando a neve profunda e ma-t ' i ; t obstrui o caminho, a viagem é mais laboriosa. O condutor tem de iri Io lado direito do trenó, empurrá-lo e guiá-lo pelo rneio dos blocos dejído com todas as forças. Deve estimular os cães continuamente; mesmoiissirn eles se sentam, em intervalos de minutos, para olhar lastirnosamen-ie na direção do mestre, como se quisessem dizer: "Não agüentamosmais." Quando quedas de neve repentinas surpreendem os grupos de via-jíintes, eles às vezes correm perigo de vida. As focas não freqüentam osbancos de gelo quebrados e, além disso, a neve oculta os seus buracos derespiração. No inverno, fornos surpreendidos por uma ocorrência dessetipo. Nosso grupo era composto por três pessoas, um esquimó, meu cria-do e eu. Como era a minha primeira viagem, eu não sabia muito sobreessas excursões. Quando estávamos a uns 40 quilômetros do povoado queeu pretendia visitar, surpreendeu-nos uma nevasca que cobriu o gelo comuma camada de 60 a 120 centímetros de neve. Nossos cães foram incapa-zes de prosseguir. Tivemos de abandonar o trenó, os cães e tudo o mais, eseguir para o povoado a pé. Depois de uma marcha laboriosa de cerca dequase 5 quilômetros, baixou uma névoa, entramos num banco de geloacidentado e em pouco tempo perdemos o caminho. A bússola não adian-tava, pois eu não sabia a posição do lugar. Felizmente, depois de algumashoras, a lua apareceu no céu e a névoa se dissipou. Mas só conseguimosencontrar a vila depois de uma marcha de trinta horas a uma temperaturade 48" abaixo de zero, andando durante todo o tempo sobre gelo aciden-tado, e por muitas horas em neve funda. Os pés de meu infeliz criadocongelaram, e ele teve de ficar naquele lugar por vários meses.

Nessa ocasião conheci a hospitalidade dos esquimós. Quando entra-mos na cabana, meu novo amigo estava ansioso para nos ajudar a tirar asroupas. Recebemos uma cama quente. Enquanto dormíamos, uma foca foicortada, embora, em conseqüência do tempo ruim, as provisões estives-

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A '> P H l- M I S S A S DA A N l R o C O L C) G l A l J p ti O A',

sem escassas; preparou-se urna abundante refeição, que nos foi servidalogo que acordamos. Enquanto isso, a "dona da casa" tinha secado nos-sas roupas e estava ocupada em consertá-las. Em suma, recebemos todoo conforto possível. À noite todos se reuniram em nossa casa, alguns sen-tados na saliência da cabana, alguns acocorados ou de pé sobre o chão,ansiosos por ouvir sobre o nosso infortúnio. Durante a noite soprou umaventania que endureceu a neve; na manhã seguinte, vários homens parti-ram para buscar nossas provisões e nossos cães. Tais são os incidentes eas dificuldades das viagens no inverno; mas é agradável e aprazível viajarno inverno, em comparação a andar de trenó no verão. O gelo, nessa épo-ca, está coberto com um lençol de água que chega a uma profundidadede 90 a 120 centímetros. Tendo de patinhar nesse lago frio como gelo, oviajante deve tomar cuidado para evitar os grandes sorvedouros que seformam sobre cada buraco de foca e as rápidas correntes que jorram dasfendas que cruzam o fluxo em todas as direções. Tudo brilha com umaluz azul e branca que fere os olhos e causa cegueira da neve.

Mas vou voltar às minhas viagens no inverno. Já disse que, enquantoeu fazia o levantamento da região, os esquimós costumavam caçar focas,um trabalho muito cansativo e desagradável no inverno. As focas cavamburacos no gelo, pelos quais elas vêm à tona para respirar. Os cães fare-jam esses buracos. Quando encontram um deles, o caçador espera ao seulado até escutar a respiração do animal. Às vezes ele permanece ali, semse mover, durante um dia inteiro, o arpão na mão direita, a linha do arpãoenrolada no braço esquerdo. Assim que escuta o animal, lança o arpãoverticalmente para baixo.

Na primavera usa-se outro método de caça. Nessa estação, as focasrastejam sobre o gelo e ficam deitadas ao lado de seus buracos, dormindoe tomando sol. De vez em quando, o animal cauteloso levanta a cabeça eolha ao. redor para se assegurar de que ninguém se aproxima. Os esqui-mós, que usam roupas de pele de foca nessa época do ano, deitam-se so-bre o gelo e arrastam-se na direção da caça. Quando o animal olha ao re-dor, eles se deitam e imitam os seus movimentos. Quando a foca volta ase deitar, aproximam-se com cautela. Por fim, chegam suficientementeperto para atacá-la com o arpão.

No começo do inverno, tive a oportunidade de ver um dos grandes fes-tivais desses esquimós que tem um interesse incomum, pois está intima-mente relacionado com suas idéias religiosas. Quando no final do outono

UM ANO l ' W l III OS

as tempestades estrondeiam sobre a terra, liberando mais uma ve2 o mard*; seus grilhões gelados, quando os bancos de gelo são pressionados «nscontra os outros e empilhados numa desordem selvagem, os esquimósacreditam escutar as vozes dos espíritos que habitam o ar carregado demnklades. Esses espíritos atacam as aldeias e trazem doenças e morte,mau tempo e fracassos na caça, Os piores desses espíritos são Sedna, asenhora do mundo subterrâneo, e seu pai, diante de quem os esquimósmortos sucumbem.

As antigas lendas que as mães contam durante as longas noites deinverno aos seus filhos, que escutam temerosos, falam de Sedna: era umaVQZ ura homem que vivia com sua filha Sedna num lugar solitário. Suaesposa morrera há muito tempo, e os dois levavam uma vida quieta.Sedna cresceu e tornou-se uma bela moça, e os jovens vieram de todosos lugares para pedir sua mão. Mas nenhum deles conseguiu conquistarseu coração orgulhoso. Certa primavera, quando o gelo se rompera, umagaivota veio voando do mar e cortejou Sedna com uma canção sedutora."Venha comigo", disse, "venha para a terra dos pássaros, onde nunca háfome. Minha tenda é feita de belas peles de pássaros; meus irmãos, asgaivotas, lhe trarão tudo o que seu coração desejar; suas penas a vestirão;sua lâmpada vai estar sempre cheia de óleo, sen pote cheio de carne."Sedna não resistiu a essa corte e eles partiram juntos para a terra dos pás-saros. Quando, enfim, chegaram à região dos pássaros, depois de umalonga viagem, Sedna descobriu que seu esposo a tinha enganado vergo-nhosamente. Sua tenda era coberta com peles de peixe, cheias de bura-cos, que davam livre entrada ao vento e à neve. Em vez de peles de renasbrancas, sua cama era feita de couro duro de morsa; e ela tinha de vivercomendo os míseros peixes que os pássaros lhe traziam. Logo ela desco-briu que tinha jogado a sorte fora quando, no seu tolo orgulho, tinha re-jeitado os jovens esquimós. No seu sofrimento ela cantava: "Áya! Oh, pai,se você soubesse o quanto sou miserável, você viria me ver e fugiríamoscorrendo no seu barco sobre as águas. Os pássaros me tratam cruelmente,sou a estranha. Os ventos frios rugem ao redor da minha cama; eles rnedão comida ruim — oh, venha me buscar e levar para casa! Aya."

Depois de um ano, quando o mar se agitava de novo com ventos maisquentes, o pai deixou sua terra para visitar Sedna. A filha o saudou ale-gremente e implorou que a levasse para casa. Com pena da filha, o pailevou-a em seu barco enquanto os pássaros estavam fora, caçando. Am-

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n r, r n r m n s f f l s PA A N T R O P O L O G I A D f BOAS

bos deixaram rapidamente a região que t inha causado tantos sofrimentosa Sedna. Quando voltou para casa à noite e não encontrou a mulher, agaivola ficou muito zangada. Chamou os companheiros e todos saíramvoando em busca dos fugitivos. Logo os avistaram e provocaram umagrande tempestade. O mar se elevou com imensas ondas, que ameaçavamdestruir o par. Compreendendo o perigo mortal, o pai decidiu oferecerSedna aos pássaros. Jogou-a para fora do barco. Ela se agarrou com todaa força à beirada do barco. O pai cruel pegou uma faca e cortou as pri-meiras falanges de seus dedos. Caindo no mar, eles foram transforma-dos em focas. Sedna agarrou-se ao barco com mais força, as segundas fa-langes dos dedos caíram sob a ação da faca afiada, e saíram nadandocomo focas barbadas. Quando o pai cortou os tocos dos dedos, eles setornaram baleias.

Nesse meio tempo, a tempestade tinha acalmado, pois as gaivotasachavam que Sedna se afogara. O pai então permitiu que ela voltasse aentrar no barco. Mas, desde essa época, ela nutriu um ódio mortal ao paie jurou amarga vingança. Depois que desembarcaram na praia, ela man-dou seus cães morderem os pés e as mãos do pai enquanto ele estava dor-mindo. Depois disso, ele amaldiçoou a si mesmo, à sua filha e aos cãesque o tinham mutilado; então a terra se abriu e tragou cabana, pai, filha ecães. Eles vivem desde então na terra de Adlivun, da qual Sedna é asenhora.

As focas, as focas barbadas e as baleias, que cresceram dos dedos deSedna, aumentaram rapidamente e logo encheram todas as águas, tornan-do-se a comida por excelência dos esquimós. Sedna os odeia, porque elescaçam e matam as criaturas que nasceram de sua carne e seu sangue.O pai, que só pode se mover rastejando, aparece aos moribundos; e osfeiticeiros freqüentemente vêem sua mão mutilada agarrar e carregar osmortos, que têm de passar um ano na morada funesta de Sedna. Doisgrandes cães ficam deitados no limiar e só se movem para deixar os mor-tos entrar. É escuro e frio lá dentro. Nenhuma cama de peles de renasconvida ao repouso; o recém-chegado tem de se deitar sobre couros du-ros de morsa. Somente aqueles que foram bons e bravos sobre a Terraconseguem escapar de Sedna e levam vidas felizes na terra superior deKudlivun. Essa terra é cheia de renas; lá nunca faz frio. A neve e o gelonunca aparecem. Aqueles que sofreram uma morte violenta também po-

7 A

u M A.HO l™ w n«; o>:, r s«

iletn ir para os campos dos abençoados. Mas, quem esteve cora S&tlna«leve ficar para sempre na. terra de Adi min, caçando baleias e morsas..S V»MI todos os outros espíritos do mal, Sedna se demora no outono entrens esquimós. Mas, enquanto os outros habitam o ar e a água, ela se le-vi inia das profundezas da terra. É urna estação de muito trabalho paia osIriliceiros.* Em toda cabana podemos escutai cantos e orações, em todanisa eonjuram-se os espíritos. As lâmpadas ardem com uma chama bai-x«t. O feiticeiro senta-se numa sombra mística no fundo da cabana. Tira ociisiico externo e puxa sobre a cabeça o capuz de sua roupa interna. Mur-murando palavras incompreensíveis, sacode as mãos febrilmente. Emitesons que dificilmente podem ser atribuídos a uma voz humana. Por firn,MCIJ espírito guardião responde à invocação. O sacerdote deita- se em tran-se c, quando volta a si, promete, cora expressões incoerentes, a ajuda dos

bons espíritos.A tarefa mais difícil, a de afastar Sedna, é reservada aos feiticeiros

mais poderosos. Uma corda é enrolada no chão de uma grande cabana,de maneira a deixar uma pequena abertura no topo, que representa o bu-raco da respiração de uma foca. Dois feiticeiros colocam-se ao lado, depé, um deles segurando na mão a lança de caçar focas, como se estivessevigiando um buraco de foca no inverno, o outro segurando a linha do ar-pão. Outro sacerdote senta-se no fundo da cabana, com a função de atrairSedna com cantos mágicos. Por fim, ela surge entre as rochas duras. Oshomens escutam sua respiração pesada. Quando emerge do chão, ela en-contra os feiticeiros que esperam ao lado do buraco. Recebe o golpe doarpão e torna a afundar com pressa, irada, arrastando atrás de si o arpãoque os dois homens seguram com toda a força. É só com um esforço de-sesperado que ela consegue desvencilhar-se e retornar para sua moradacm Adlivun. Nada fica com os dois homens, a não ser o arpão borrifadode sangue, que eles mostram com orgulho.

Sedna e os outros espíritos do mal são por fim afastados, e no dia se-guinte celebra-se um grande festival para os jovens e os velhos em honrado acontecimento. Mas eles ainda precisam ter cuidado, pois Sedna feri-da está muito enraivecida e vai agarrar os que encontrar fora da cabana.Assim, nesse dia, todos usam amuletos protetores no topo dos capuzes.

Boas usa o termo wizard, que pode ser traduzido por mago ou feiticeiro e que hojereceberia o atributo de xamã. [N. da T.]

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A-S PRFMBSM OA A N T R O P O i O f i l A Í3C BOA',

()s homens se reúnem cedo no meio da aldeia. Assim que todos che-gam, correm gritando e pulando ao redor das casas, seguindo a trajetóriado sol. Feito o circuito, visitam cada cubana, onde a mulher deve estaresperando por eles. Quando escuta o barulho do grupo, ela sai e atira umprato cheio de pequenos presentes — carne, berloques de marfim e arti-gos de pele de foca — na multidão vociferante, e cada um ganha o queconseguir agarrar. Nenhuma cabana é poupada nessa ronda.

Depois os homens se dividem em dois grupos: os ptármigas, aquelesque nasceram no inverno; e os patos, ou os filhos do verão. Uma grandetira de pele de foca é estendida no chão. Cada grupo segura uma das pon-tas e tenta com toda a força arrastar o grupo oposto para o seu lado. Se osptármigas cedem, então o verão ganhou o jogo; pode-se esperar que obom tempo prevaleça nos próximos meses.

Tendo sido decidida a disputa das estações, as mulheres trazem parafora uma grande caldeira de água e cada pessoa pega o seu copo. O gru-po permanece perto da caldeira, enquanto o mais velho é o primeiro a darum passo à frente entre eles. Ele tira uma taça de água da caldeira, borri-fa algumas gotas no chão, vira o rosto para o lar da sua juventude e de-clara seu nome e o do lugar em que nasceu. É imitado por todos os ou-tros habitantes da aldeia, até as crianças menores, representadas por suasmães. As palavras dos anciãos são ouvidas com respeito e as dos caçado-res ilustres são recebidas com aplausos efusivos.

Então eleva-se um grito de surpresa e todos os olhos se viram parauma cabana de onde saem duas figuras gigantescas e majestosas. Usambotas pesadas: as pernas estão inchadas de um modo formidável por esta-rem enfiadas em várias calças; os ombros estão cobertos com um casacode mulher; no rosto, trazem uma máscara medonha de pele de foca. Namão direita carregam o arpão; nas costas, bóias infladas de pele de foca;na mão esquerda, a raspadeira com que as peles são preparadas. Em si-lêncio, com longos passos, os kailertetang aproximam-se do grupo, querecua gritando, pressionando para trás. Solenemente, o par conduz os ho-mens a um lugar adequado, organiza todos em fila, e contra esse grupodispõe as mulheres numa fila oposta. Eles formam pares corn os homense as mulheres, e esses pares correm, perseguidos pelos kailertetang, até acabana da mulher, onde passam o dia seguinte. Tendo cumprido o dever,os kailertetang vão para a costa e invocam o vento norte que traz bomtempo, enquanto mandam o vento sul, desfavorável, se afastar.

I I M ANO l H TB» i)', r S C) t) IN fi'i

Assim que terminam as palavras mágicas, todos os homens atacamos kailertetang com grande barulho. Agem como se tivessem armas nasmãos e quisessem matar os dois espíritos. Um finge perfurá-los com alança, outro apunhalá-los com uma faca; tim finge cortar seus braços epernas, outro bater impiedosamente nas suas cabeças. A bóia que elescarregam nas costas é rasgada e fica murcha, e os dois logo se deitamcomo se estivessem mortos ao lado das armas quebradas. Os esquimós osdeixam para pegar os seus copos, e os kailertetang acordam para umanova vida. Cada homem derrama um pouco de água nas suas bóias, ofe-rece um copo para eles e pergunta sobre o futuro, a sorte das caçadas e osacontecimentos da vida. Os kailertetang respondem em murmúrios que oinquiridor deve interpretar por si mesmo.

Já contei uma tradição dos esquimós. Eles gostam muito de contaressas histórias e têm um enorme estoque de lendas, das quais conseguicoletar uma quantidade considerável. A cena em que as tradições sãotransmitidas é muito interessante. Eu gostava dessas ocasiões, pois nadapode ser mais instrutivo para o viajante do que escutar canções e lendasdo povo que ele deseja estudar. O homem que relata as tradições tira ocasaco externo e senta-se no fundo da cabana, de frente para a parede.Ele levanta o capuz, veste as luvas e prepara-se com uma breve can-ção. A audiência fica de pé ou se acocora no chão das cabanas, e então achama das lâmpadas é diminuída. Apenas uma luz fraca ilumina o peque-no espaço. Vou contar uma das mais características dessas histórias, as-sim como a escutei numa aldeia no estreito Davis. Trata-se do conto de

Qaudjaqdjuq.

O conto de QaudjaqdjuqHá muito tempo havia um pobre menino órfão que não tinha protetore era maltratado por todos os habitantes da aldeia. Ele nem tinha per-missão para dormir na cabana. Deitava-se fora, no corredor frio, nomeio dos cães, que lhe serviam de travesseiros e acolchoado. Nem lhedavam tampouco carne; atiravam-lhe um couro de morsa velho e duro,que ele era obrigado a comer sem faca. Levava uma vida miserável enão crescia, continuando a ser o pobre pequeno Qaudjaqdjuq. Ele nemousava juntar-se às brincadeiras das outras crianças, pois elas tambémo maltratavam por causa de sua fraqueza.

Quando os habitantes da aldeia se reuniam para dançar e festejar,Qaudjaqdjuq costumava deitar-se no corredor e espiar sobre o umbral.

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AS f f l t 'M ISSAS DA AN l KOIHM < > < > I A DlUM ANO I N t H I < > • • , l S

De vc'i em quando, um dos homens o levantava pelas narinas c o pu-xava para dentro da cabana para zombar do menino. Como ele era fre-qüentemente levantado pelas narinas, elas ficaram muito grandes, em-bora ele continuasse pequeno e fraco.

Um dia, o homem da Lua, que tinha visto como os homens maltra-tavam Qaudjaqdjuq, desceu para ajudá-lo. Arreou os cães no seu trenóe veio para a Terra. Quando chegou perto da cabana, parou e gritou:"Qaudjaqdjuq, saia!" Qaudjaqdjuq respondeu: "Não vou sair, vá em-bora!" Mas, quando o homem pediu pela segunda e terceira vez quesaísse, ele obedeceu, embora estivesse muito assustado. Então o ho-mem da Lua foi com Qaudjaqdjuq para um lugar em que havia gran-des blocos de pedra. Depois de chicoteá-lo, perguntou: "Você se sentemais forte agora?" Qaudjaqdjuq respondeu: "Sim, eu me sinto maisforte." "Então levante aquele bloco de pedra ali", disse ele. ComoQaudjaqdjuq não foi capaz de levantá-lo, ele o chicoteou mais umpouco, e então de repente Qaudjaqdjuq começou a crescer, primeiropelos pés, que passaram a ter um tamanho extraordinário. Mais umavez o homem da Lua lhe perguntou: "Você se sente mais forte agora?"Qaudjaqdjuq respondeu: "Sim, eu me sinto mais forte." Mas, comoainda não conseguia levantar a pedra, recebeu mais chicotadas, depoisdas quais adquiriu grande força. Levantou o bloco de pedra como sefosse um pequeno seixo. O homem da Lua disse: "Assim está bem.Amanhã de manhã vou mandar três ursos, então você poderá mostrarsua força."

Ele retornou à Lua, mas Qaudjaqdjuq, que agora tinha se tornadoQaudjuqdjuaq (isto é, "o grande Qaudjaqdjuq"), voltou para casa, chu-tando as pedras e fazendo-as voar para a direita e para a esquerda.À noite, ele se deitou mais uma vez entre os cães para dormir. Na ma-nhã seguinte, esperou pelos ursos. Logo apareceram três grandes ani-mais, assustando todos os homens, que não ousavam sair das cabanas.

Então Qaudjuqdjuaq enfiou as botas e correu para o gelo. Os ho-mens que olhavam pela janela disseram: "Olhem, não é Qaudjaqdjuq?Os ursos logo vão acabar com ele." Mas ele agarrou o primeiro pelaspatas traseiras e esmagou sua cabeça nurn iceberg que havia perto; ooutro não teve melhor sorte; o terceiro, entretanto, ele carregou até aaldeia. Usou o urso para matar alguns de seus perseguidores. Outrosele asfixiou com as mãos ou cortou as suas cabeças, gritando: "Isso épor vocês terem abusado de mim! Isso é por vocês terem me maltra-tado!" Aqueles que ele não matou fugiram correndo, para nunca mais

vullar. Foram poupados apenas uns poucos que tinham sido bondo-sos com cie, quando ainda era o pobre Qaudjaqdjuq. Ele viveu c setornou um grande caçador, viajando por toda a região e realizandomuitas façanhas.

Nessa história, o homem da Lua aparece como o protetor dos órfãos,Hle é urn dos espíritos poderosos na mitologia dos esquimós. Mas, alémdo homem da Lua, muitos espíritos menores são conhecidos. São chama-dos tornait e aparecem na forma de homens, ursos ou pedras. Com suaajuda, um homem pode se tomar o que se chama angakoq, uma espéciede sacerdote ou feiticeiro. Os espíritos o ajudam a descobrir as causas dadoença ou da morte, e assim ele se torna o curandeiro. Nas suas palavrasmágicas eles empregam uma linguagem peculiar, composta em grandemedida de raízes arcaicas. É extraordinário que algumas dessas palavras,que coletei na costa da baía de Baffin, sejam encontradas na língua detribos do Alasca. Isso mostra que, em tempos antigos, existiu uma cone-xão próxima entre os esquimós do nordeste da América e os habitantestio Alasca. O angakoq, ou sacerdote, exerce grande poder sobre as men-tes dos esquimós. Seus comandos são estritamente obedecidos, e suasprescrições a respeito de se abster de certos tipos de trabalho ou alimentotambém são rigidamente observadas. É estranho que os esquimós, quetêm um suprimento muito limitado de animais para alimentação, impo-nham-se restrições alimentares. Ainda assim, suas regras a esse respeitosão numerosas. Por exemplo, é impossível induzi-los a comer carne demorsa durante a temporada de caça aos cervos ou vice-versa. Focas ecervos não devem ser postos em contato. Embora não sejam asseados, osesquimós sempre se lavam antes de mudar de um alimento para outro.Acredita-se em geral que os esquimós são sujos, mas posso lhes assegu-rar que não é assim em todos os lugares. Em algumas cabanas no estreitode Cumberland, encontrei os habitantes limpos e com uma boa aparênciasob todos os aspectos, enquanto em outros lugares dava-se exatamente ocontrário. Lembro-me de uma aldeia que visitei no inverno. Tudo pareciatão sujo e cheio de óleo de morsa que fiquei enojado, Quando retorneipara a tribo no estreito de Cumberland, eu lhes contei a minha observa-ção. Todos os esquimós riram e uma mulher me disse: "Você não sabiadisso? Quando vêem gordura, sentam-se no meio da gordura para comê-la. Não se importam de sujar os casacos brancos. Mas nós somos comoas gaivotas. Também temos de tirar nosso alimento da gordura e do óleo,

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AS HHFMI5SAS PA ANTROPOl fttf! A Of

nuis, como aqueles pássaros, rios mantemos afastados e pegamos cuida-dosamente o que queremos."

A viagem para a tribo que acabei de mencionar foi notável em váriosaspectos. Na terra dos esquimós, a chegada de estranhos é um aconteci-mento, e grandes cerimônias estão ligadas a esse fato. Os nativos da al-deia formam uma fila enquanto jogam com pequenas bolas e cantam. Unihomem forte se coloca na frente da fila e espera o estranho. O último seaproxima, os 'braços dobrados sobre o peito, a cabeça inclinada para olado direito. Então o nativo lhe dá um golpe terrível na bochecha, e emseguida espera o golpe do estranho. Assim eles continuam por um longotempo, até um dos homens ser vencido. No final da proeza, o estranhoé convidado a entrar nas cabanas, e a partir daquele momento ele é ami-go e companheiro dos nativos. Quando cheguei, os homens não sabiamquem iria chegar e formaram uma fila. Mas, assim que descobriram umhomem branco, o primeiro a visitar sua aldeia, eles se puseram a gritarmuito alto, o que induziu as mulheres e as crianças a saírem das cabanasbaixas. Todos começaram a dançar, gritar e cantar, uma balbúrdia queainda soa nos meus ouvidos. A novidade — "Qodhmaql Qodlunaql", istoé, "Um homem branco! Um homem branco!" — tinha-se espalhado comincrível rapidez por toda a aldeia. Todos estavam ansiosos para ver o re-cém-chegado; as crianças se escondiam timidamente atrás das longascaudas dos casacos de suas mães, gritando com medo e excitação. Emsuma, foi uma cena que sempre vai estar em primeiro plano nas minhaslembranças da vida dos esquimós.

Depois de muitas pequenas aventuras, e depois de uma relação longae íntima com os esquimós, foi com um sentimento de tristeza e pesar queme separei de meus amigos árticos. Eu tinha visto que eles desfrutavam avida, e uma vida dura, como nós; que a natureza também é bela para eles;que os sentimentos de amizade também estão arraigados nos seus cora-ções; que, apesar de levar uma vida rude, o esquimó é um homem comonós; que seus sentimentos, suas virtudes e suas deficiências são baseadosna natureza humana, como os nossos.

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F A R T E II

Pontos de vista antropológicos básicos

..»s tentara informar-se sobre suas possibilidades de trabalho nos Esta-M Unidos durante uma visita no inverno de 1884, quando ret<l,,,, de Baffin, mas foi só depois de mais dezoito meses na Ale:,*• cie finalmente se estabeleceu na América. Nesse ínterim, rabatt

.,,1, a orientação de Adolf Bastian, o principal etnólogo da AleiM «liando exposições do material do Alasca e do Noroeste do C

iluncu Etnográfico Real em Berlim. Enquanto isso, *^"™?rrsuhados de sua pesquisa sobre os esquimós (Boas 1885, lperíodo ele se afastou do determinismo geográfico e adotou uUkica e psicológica das diferenças culturais humanas. A mudança•vidente no primeiro texto aqui incluído, uma carta escrita emlohn Wesley Powell, diretor do Bureau de Etnologia Americana, aHH-SCS depois que Boas completou sua primeira viagem de ci uiúmbia Britânica e se estabeleceu em Nova York como edit

I t á l i a da revista Science.Mal tinha fixado residência permanente nos Estados Unidos, Boas

Ciou sua crítica - que acabaria por se tornar um ataque frontal-,,,k-ntação evolucionista predominante na antropologia amenpara evitar um confronto direto com Powell, que controlava uma pá,, onsiderável dos recursos para a pesquisa antropológica nes;•lirigiu o ataque a Otis T. Mason, curador de etnologia no MuseuMal dos Estados Unidos; quando o próprio Powell, mais tardedisputa, Boas bateu em retirada. Boas tinha consultado aMuseu Nacional quando voltara da Terra de Baffin em 1884,vez quando estava a caminho da Costa Noroeste em lt lamara que elas eram "ininteligíveis". Como apontou Masonvia em grande parte ao fato de terem sido coletadas por Horaü1840 e ainda não terem sido classificadas. Mas os principio