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Considerações da Parashat Bereshit Por Sha’ul Bensiyon 1) Resumo da Parashá Esta parashá narra o princípio desta criação, e o começo da história da humanidade, até o Eterno decidir destruí-la devido ao pecado. Capítulo 1 - O Primeiro Relato Os três primeiros versículos introduzem o tema da criação da terra, aparentemente após um estado de caos e desolação. Os demais versículos falam acerca dos seis dias de criação, e o que foi feito em cada um deles. Capítulo 2 - O Segundo Relato Após narrar o repouso do Eterno no sétimo dia, há um segundo relato da criação, que foca mais especificamente na história do homem e da mulher, Adam e Hawá (Adão e Eva), e a sua colocação no jardim do Eden. 1

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Considerações da Parashat Bereshit Por Sha’ul Bensiyon

1) Resumo da Parashá

Esta parashá narra o princípio desta criação, e o começo da história da humanidade, até o Eterno decidir destruí-la devido ao pecado.

Capítulo 1 - O Primeiro Relato Os três primeiros versículos introduzem o tema da criação da terra, aparentemente após um estado de caos e desolação. Os demais versículos falam acerca dos seis dias de criação, e o que foi feito em cada um deles.

Capítulo 2 - O Segundo Relato Após narrar o repouso do Eterno no sétimo dia, há um segundo relato da criação, que foca mais especificamente na história do homem e da mulher, Adam e Hawá (Adão e Eva), e a sua colocação no jardim do Eden.

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Capítulo 3 - Pecado e Punição Após serem tentados pela serpente, o homem e a mulher comem do fruto proibido, e recebem várias punições, dentre elas a expulsão do jardim do Eden.

Capítulo 4 - O Primeiro Assassinato Qayin (Caim) e Hebhel (Abel) apresentam seus sacrifícios ao Eterno. O Eterno aceita o sacrifício de Hebhel, e despreza o de Qayin, possivelmente devido à intenção do último. Kayin assassina Hebhel. O Eterno o pune, e ele se torna andarilho pela terra. A Torá narra a descendência de Qayin, e depois e ocupa do nascimento de Shet (Sete), o terceiro filho de Adam e Hawá.

Capítulo 5 - A Genealogia de Noah A Torá apresenta a genealogia desde Adam até Noah (Noé).

Capítulo 6 - Introdução ao Dilúvio A humanidade se corrompe, e o Eterno decide destruir a humanidade em um dilúvio.

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2) Fontes Importantes

Algumas fontes sugeridas, de estudos anteriores, que falam sobre os seguintes temas:

a) A criação em Bereshit (Gênesis) pode não ter sido a primeira

http://qol-hatora.org/misterios-do-tanakh/segredos-eden-principio/

b) Ao contrário do que muitos pensam, a criação pode não ter sido ex-nihilo. (E pode também indicar uma evolução):

http://qol-hatora.org/misterios-do-tanakh/segredos-eden-o-ato-da-criacao-parte-ii/

c) O relato pode indicar que houve um cataclisma antes da criação, tal como a ciência descreve:

http://qol-hatora.org/misterios-do-tanakh/segredos-do-eden-destruicao-e-desolacao/

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d) A serpente no Eden representa a própria inclinação do homem ao mal, e procura corrigir antigos mitos politeístas:

http://qol-hatora.org/misterios-do-tanakh/segredos-do-eden-o-misterio-da-serpente/

3) O Propósito

Embora haja curiosidades fascinantes nesta parashá, não se pode perder o foco do objetivo principal:

“No majestoso relato da criação, o primeiro capítulo da Torá articula os princípios mais básicos e importantes que uma pessoa deve saber acerca do Eterno, o homem e o mundo. O Eterno, sozinho, fez tudo existir por feito divino exatamente conforme Seu plano e propósito. Ele permanece supremo, acima da ordem criada, fora do tempo e do espaço. Não há restrições à Sua vontade.

…Gênesis 1 não deve ser visto como um relato literal e cronológico da criação, que de qualquer forma não teria valor prático para o homem. Deve, ao contrário,

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ser entendido em sentido metafórico ilustrando discernimentos básicos acerca do Eterno, do homem e do mundo. Como uma declaração de doutrina revestida em simbolismo narrativo, quaisquer inconsistências literárias que possam existir entre ele e os capítulos seguintes não têm qualquer consequência.”” (Genesis Chapter 1 - R. Moshe Shamah)

4) A Estrutura Literária

O relato da criação é um texto poético, repleto de métrica, paralelismos e jogos de palavra. Não é um texto narrativo, e portanto deve ser compreendido como texto figurativo.

“A narrativa contém simbolismo numérico significativo. O número sete - bem atestado na literatura do Oriente Médio antigo como conotando completude e perfeição - bem como todos os seus números múltimplos são notórios…

O número de dias e o número de frases de aprovação divina são sete. O primeiro versículo contém sete palavras, o segundo versículo quatorze palavras, a

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passagem final trinta e cinco palavras. As três atestações de יום השביעי são, cada um, parte de um grupamento de sete palavras.

As 469 palavras da narrativa completa (Gn. 1:1-2:3) são um múltiplo de sete (7x67) tal como a contagem das três divisões da narrativa, como se segue:

Prólogo (1:1-2) - 21 palavras - 7x3 Seis dias (1:3-31) - 413 palavras - 7x59 Shabat (2:1-3) - 35 palavras - 7x5” (Genesis Chapter 1 - R. Moshe Shamah)

Se contarmos as 7x67 palavras, os 7 dias da semana, as 7 frases do Eterno, bem como a bênção especial do Eterno ao sétimo dia, temos um total de 70 instâncias de 7.

O número 70 é comumente utilizado para se referir a toda a humanidade (as 70 nações), ou pode ser um número intensificador do 7 (vide por exemplo Gn. 4:24).

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Ou seja, há um simbolismo aqui representado de que o mundo foi criado em absoluta e total perfeição, contendo todos os recursos dos quais a humanidade precisa para exercer sua missão.

A relevância disso será compreendida mais adiante.

5) As Duas Criações

As duas criações de Bereshit (Gênesis) possuem enfoque muito diferente.

Há três interpretações sobre as duas criações distintas:

a) Estilo Literário

A visão da maioria dos exegetas é a de que, na realidade, a narrativa é de uma única criação, com o capítulo 2 simplesmente trazendo mais detalhes para a narrativa do primeiro capítulo.

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b) Relatos Complementares A visão de que os capítulos são complementares, dando detalhes diferentes para situações distintas. As diferenças são harmonizadas buscando o meio-termo (ex: a primeira narrativa é cronológica, a segunda fala em ordem de importância). Ex: R. Breuer e R. Soleveitchik

c) Criações Diferentes A visão de que os capítulos se referem a eventos diferentes. Gn. 1 se refere ao evento geral da criação do mundo, bem anterior ao evento de Gn. 2, quando é criado o jardim do Eden e a linhagem de Adam (Adão). Ex: Hoil Moshe e R. Nissani.

d) Tradições Distintas A visão mais moderna é a de que os capítulos se referem a diferentes tradições criacionistas, ambas importantes aos israelitas, e ambas ajustadas à visão monoteísta da Torá. Ex: Comentário da New JPS - Study Bible

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Narrativa de Gn. 1 Narrativa Gn. 2Foco no cosmos Foco no ser humano

O Eterno é chamado primordialmente de 'Elohim’

O Eterno é chamado primordialmente de ‘YHWH Elohim'

O Eterno aparece distante O Eterno é bem presenteO Eterno fala, e a criação se forma O próprio Eterno moldaVerbos: bará (criar) e `assá (fazer) Verbo: yassar (moldar)

O homem é criado por último O homem é criado primeiroO homem é criado à imagem e

semelhança do EternoO homem é formado a partir do pó da

terraHomem e mulher são criados juntos A mulher é criada depois do homemA missão do homem é se multiplicar A missão do homem é cuidar do jardim

do EdenToda a terra é criada de maneira indistinta.

O jardim do Eden é um lugar especial

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Ordem da criação: 1) Água, 2) Vegetação, 3) Animais, 4) Homem e

Mulher

Ordem da criação: 1) Homem, 2) Vegetação, 3) Água, 4) Mulher, 5)

AnimaisO mundo é criado em 7 dias O mundo é criado em 1 dia

Narrativa de Gn. 1 Narrativa Gn. 2

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5) Imagem, Semelhança, e a Boa Criação

Para compreender a questão do “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, é preciso entender a cultura semita da época.

De acordo com registros arqueológicos egípcios, sumérios, etc. cria-se que:

a) O homem era um mero joguete nas mãos dos deuses; b) A criação e o desenvolvimento do mundo ocorreram como consequência do

conflito dos deuses. c) Os seres humanos se dividiam em dois tipos: Os governantes, descendentes

dos deuses, e criados à sua imagem e semelhança; e os homens comuns, criados a partir do barro, da terra, da água, etc.

É preciso ter esse contexto em mente para compreender a criação do homem.

Não é à toa que o Eterno diz ‘Façamos’, numa referência aos seus mal’akhim (‘anjos’), isto é, aos seus agentes, às próprias forças da natureza.

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“… a humanidade ter sido feita ‘à imagem do Eterno’ é uma expressão que implica a faculdade do pensamento racional, o livre arbítrio e o valor infinito. O Eterno os abençoou e os revestiu com potencial para realizações prodigiosas. Ele lhes disse: ‘preenchei a terra, sujeitai-a e governai sobre’ suas criaturas…

O fato de que todos os homens são criados à imagem do Eterno e são recebedores de Suas bênçãos vitalizadoras, possuindo dignidade sem limites e valor único, é uma proclamação… de que todos os seres humanos nascem iguais…

Essa noção igualitária do homem sendo criado à imagem do Eterno coloca em movimento pensamentos acerca da condição humana e da sociedade que, por fim, floresceram na pedra fundamental da civilização moderna.

Vista em contraste com crenças contemporâneas [aos israelitas antigos] no Oriente Médio, Gênesis 1 constitui um enorme protesto contra doutrinas pagãs. Essas últimas falam das origens e características dos deuses, suas paixões, conflitos, esquemas e alianças, suas heranças na natureza e eles próprios sujeitos a forças poderosas, projetando seus caprichos egoístas e conflituosos sobre a terra.

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Os seres humanos estavam entregues a para sempre viverem em um mundo de discórdia e contexto fatalista. Somente os reis recebiam o status de serem feitos à imagem de uma divindade.

Tudo isso, juntamente com a superstição e a magia a isso subordinados, é varrido para fora pela Torá em seu capítulo de abertura. O homem recebeu um mundo bom e harmonioso, cheio da bênção do único Elohim, com a capacidade (e responsabilidade) de mantê-lo ou, por fim, repará-lo.” (Genesis Chapter 1 - R. Moshe Shamah)

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6) A Luz, Antes do Sol

É importante compreender o contexto semita e a poesia criacionista para entender porque o sol é colocado como criado depois da luz.

Observe a estrutura da poesia semita, em seu paralelismo:

A) Dia 1 - Criação da luz B) Dia 2 - Criação do céu e das águas (de onde procedem animais marinhos e voadores) C) Dia 3 - Criação da terra seca (de onde procedem os animais terrestres e o homem)

D) Dia 4 - Criação dos luminares (de onde procede a luz) E) Dia 5 - Criação dos animais marinhos e voadores F) Dia 6 - Criação dos animais terrestre e do homem

Repare que na primeira parte da criação, a Torá se ocupa de falar da criação dos ambientes. Na segunda parte, de maneira análoga e seguindo a mesma ordem, fala daquilo que procede do ambiente. Exceto no que diz respeito à luz.

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Qualquer semita na antiguidade teria notado essa inversão, e ela é proposital.

Mas, por que ela acontece?

“Uma vez que as luminárias eram os principais objetos de idolatria ao longo da história, e eram o item mais provável de ser um tropeço para Israel (vide Dt. 4:19), na narrativa da criação suas funções primárias foram desengatadas delas enfatizando que os benefícios que o mundo recebe do sol por fim derivam da vontade da Divindade. Ele apontou ao sol suas tarefas, e quando esse provê seu grande bem, é somente Aquele que o criou que deve ser agradecido.” (Genesis Chapter 1 - R. Moshe Shamah)

Nenhum semita era tolo de não saber que a luz vem dos astros. O objetivo era justamente mostrar que o propósito da luz foi criado pelo Eterno primeiro, e que os astros vieram depois.

Ou seja, os astros cumprem a função apontada pelo Eterno, e não são divindades em si próprios.

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7) A Rejeição de Qayin

Há diferentes interpretações para a rejeição do sacrifício de Qayin:

a) O Sacrifício era Inferior Muitos entendem que Qayin não trouxe sacrifício das primícias, apenas do fruto da terra, o que significa que seu sacrifício foi rejeitado por ter sido inferior. Exemplos: Rashi, Tanchuma, R. Yosef Bekhor Shor, além do Midrash Rabá, do Targum Yerushalmi e de Pirkei DeRabbi Eliezer

b) A Personalidade de Qayin era um Problema Qayin teria se tornado lavrador por ser uma pessoa mais ambiciosa do que seu irmão, e desejoso de ter bens materiais. Lavrar a terra significava ter menos tempo para estudo e para buscar o Eterno. Exemplos: Abarbanel, R. Mecklenburg, R. Hirsch e Flavio Josefo

c) Interpretação de Qayin Esta é uma leitura de Ralbag: Na realidade, a Torá faria alusão não à realidade dos fatos, mas à percepção de Qayin. Por ter perdido sua colheita (que é dependente de chuva), Qayin teria interpretado como uma rejeição do Eterno.

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8) O Assassinato de Hebhel

A Torá não diz se Qayin matou Hebhel intencionalmente, ou se teve com ele uma discussão que escalou para a violência.

A questão é como interpretar: ויאמר קין, אל-הבל אחיו (e falou Qayin a Hebhel seu irmão)

Teria Qayin chamado Hebhel premeditadamente, ou teria começado uma discussão?

Muitos comentaristas entendem que foi premeditado. Exemplos: Rashi, Tanchuma, R. Yosef Bekhor Shor, Chizkuni, Ramban, Abarbanel, Seforno, Moshe Shamaha, além do próprio Midrash Rabá.

Outros entendem que foi resultado de uma briga que escapou ao controle. Exemplos: Radak, R. Yitzchak Arama, Netziv, R. Hoffmann

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Qayin reclama que sua punição é pesada demais (Gn. 4:13,14). Os da primeira interpretação afirmam que isso ocorreu porque Qayin não fora instruído sobre o assassinato ser pecado, e por isso sua punição foi menos severa.

Os da segunda interpretação afirmam que a reclamação de Qayin, e a pena mais branda, são testemunhas de que Qayin não teria tido, a priori, a intenção de matar.

A Leitura do Targum Yerushalmi

“E Qayin disse a Hebhel seu irmão: Vinde, vamos nós dois sair ao campo. E sucedeu que quando tinham saído para dentro do campo, Qayin respondeu e disse a Habhel: Percebo que o mundo foi criado em bondade, mas não é governando segundo o fruto de boas obras, pois há acepção de pessoas no juízo; por isso é que tua oferta foi aceita e minha não foi aceita com boa vontade.

Hebhel respondeu e disse a Qayin: Em bondade o mundo foi criado, e segundo o fruto de boas obras é governado; e não há acepção de pessoas em juizo; mas porque os frutos de minhas obras foram melhores que os teus, minha oblação, perante a tua, foi aceita com boa vontade.

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Qayin respondeu, e disse a Hebhel: Não há julgamento nem juiz, nem mundo vindouro; nem boa recompensa é dada ao justo, nem vingança será tomada do iníquo.

E Hebhel respondeu e disse a Qayin: Há julgamento, e há um Juiz; e há mundo vindouro, e uma boa recompensa é dada ao justo, e vingança é tomada do iníquo.

E por causa dessas palavras eles contenderam sobre a face do campo; e Qayin se levantou contra Hebhel seu irmão, e lançou uma pedra em sua testa, e o matou.”

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9) O Discurso de Lemekh

Por que Lemekh fala sobre assassinato ao final do capítulo 4?

a) Lemekh era um assassino Alguns comentaristas entendem que Lemekh era, de fato, um assassino, e estava se gabando disso.Exemplos: R. Yosef Ibn Kaspi, Umberto Cassuto

Nessa visão, haveria uma ponte entre o que fazia a semente de Qayin (Caim) e os eventos em Gn. 6, que levaram ao dilúvio

b) Lemekh não matou intencionalmente Lemekh expressa sua preocupação e tenta se defender. Exemplos: Tanchuma, Rashi, Abarbanel, Seforno, Netziv

c) A pergunta é retórica Segundo essa visão, Lemekh não teria matado ninguém, mas sim faz uma pergunta retórica para defender sua inocência, possivelmente devido ao medo de suas esposas de que seus filhos poderiam ser mortos por serem a sétima geração

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a partir de Qayin, porque o Eterno diz que Qayin seria punido sete vezes. Outros vêem outras razões para as acusações infundadas. Exemplos: Rashi, Sa'adia Gaon, R. Yosef Bekhor Shor, Ramban, Ralbag e o Midrash Rabá

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