conselhos locais de saÚde: caminhos e (des)caminhos da...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA EDGAR ANDRADE LISBOA CONSELHOS LOCAIS DE SAÚDE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VITÓRIA 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS DA SADE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

    EDGAR ANDRADE LISBOA

    CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS

    DA PARTICIPAO SOCIAL NO SISTEMA NICO DE SADE

    VITRIA 2014

  • EDGAR ANDRADE LISBOA

    CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS

    DA PARTICIPAO SOCIAL NO SISTEMA NICO DE SADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva do Centro de Cincias da Sade da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito para obteno do grau de Mestre em Sade Coletiva, na rea de concentrao Poltica, Planejamento e Gesto em Sade. Orientadora: Prof Dr Francis Sodr.

    VITRIA

    2014

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Lisboa, Edgar Andrade, 1987- L769c Conselhos locais de sade: caminhos e (des)caminhos da

    participao social no Sistema nico de Sade / Edgar Andrade Lisboa. 2014.

    101 f. : il. Orientadora: Francis Sodr.

    Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) Universidade

    Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias da Sade. 1. Descentralizao. 2. Participao Social. 3. Conselhos de

    Sade. I. Sodr, Francis. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias da Sade. III. Ttulo.

    CDU: 614

  • minha querida esposa, Dbora Libans, por todo amor,

    carinho, apoio e incentivo a cada passo desta caminhada.

    minha mezinha que amo, Rita de Cssia Andrade, a

    quem devo todas as minhas conquistas.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus por estar comigo em todos os momentos da vida, guiando-me e

    ensinando-me a confiar e crer integralmente em seu poder e agir.

    Agradeo a Dbora Libans, minha linda esposa, pessoa fundamental em minha

    vida. maravilhoso saber que sonhamos juntos, e que agora nos alegramos com

    esta conquista, que nossa. Viver ao seu lado a cada dia ter a certeza de

    desfrutar um amor e carinho essencial vida. Obrigado por me encorajar sempre.

    Simplesmente, te amo.

    Agradeo a minha me, Rita de Cssia Andrade, pois sempre acreditou em mim,

    investiu sua vida em proporcionar-me tudo o que h de mais sagrado, o

    conhecimento.

    Agradeo minha orientadora, Dr. Francis Sodr, que com todo carinho e

    sabedoria me ajudou a conduzir estes dois anos de mestrado e no desistir dos

    meus objetivos. Saberes compartilhados, histrias construdas juntas. Um perfil de

    mestre que almejo alcanar.

    Agradeo muito a todos os grandes amigos do Grupo de Estudo em Trabalho e

    Sade (GEMTES) e do mestrado. As amizades conquistadas, os conselhos em

    momentos oportunos e as contribuies no ficaro jamais restritas a este trabalho,

    mas levarei comigo para sempre.

    Aos professores e funcionrios da instituio, pela convivncia prazerosa e valiosas

    contribuies.

    Agradeo de forma especial a todos os amigos de trabalho do municpio de

    Anchieta, em especial da Estratgia de Sade da Famlia Centro III, que me

    apoiaram em tudo e torceram por mim. Levarei sempre saudades, e timas

    lembranas.

    A todas as pessoas, mesmo que indiretamente, que contriburam com os seus

    conhecimentos, me apoiaram emocional e espiritualmente e que foram fundamentais

    para realizao deste sonho. A vocs, meu muito obrigado.

  • A Democracia como o amor: no se pode comprar, no se pode decretar, no se pode propor. A Democracia s se pode viver e construir. (Jos Bernardo Toro)

  • RESUMO

    LISBOA, E.A. Conselhos Locais de Sade: caminhos e (des)caminhos da participao social no Sistema nico de Sade. Dissertao de mestrado (Sade Coletiva) Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria, 2014, 101 p.

    A partir da descentralizao, novas instncias de negociao e novas alternativas de ordenamento da estrutura organizacional do Sistema nico de Sade (SUS) foram criadas. Dentre estas alternativas, podemos citar os conselhos de sade, importantes canais de participao social. Todavia, frente s limitaes destes canais tradicionais de articulao entre Estado e sociedade, destacamos os ideais da gesto participativa e os Conselhos Locais de Sade (CLS) como alternativa de renovao e criao de instncias mais flexveis, porosas e efetivas s complexas demandas sociais. Neste sentido, buscamos analisar o processo de criao e implementao dos CLS do municpio de Anchieta/ES, a partir de uma abordagem quali-quantativa. Inicialmente, traamos o perfil socioeconmico e poltico dos conselheiros eleitos, a partir de um questionrio aplicado a uma amostra de 54 conselheiros; dados que foram categorizados e analisados por meio do emprego de estatsticas descritivas. Em seguida, entrevistamos treze conselheiros, de dois conselhos distintos do municpio, procedendo anlise de contedo do material, a partir dos ideais de Bardin (2000). Os resultados demonstraram que os conselhos foram criados a partir da iniciativa da gesto municipal em 2011, e que simplesmente institucionaliz-los como espao de participao social no foi suficiente para promover a mobilizao social e o envolvimento comunitrio. Quanto ao perfil dos conselheiros locais, 78% so mulheres, com predominncia de raa/cor branca, idade entre os 20 e 39 anos e funcionrias pblicas; 57% possuem Ensino Mdio e participaram como conselheiro por dois anos, e 60% destes j tiveram outras experincias de participao similares aos CLS. Do material oriundo das entrevistas, emergiram quatro categorias de anlise, a saber: 1) Ser ou no ser conselheiro de sade? Eis a questo!; 2) O no pertencimento e a no-participao; 3) Conselhos Locais de Sade: elos, meios e mediaes; e 4) A exogenia da administrao e os obstculos participao social. Os entraves ao funcionamento dos conselhos de sade, mesmo em nvel local, ainda so desafios a serem superados, para que estas instncias sejam mais influentes na gesto pblica, conforme os princpios de sua criao. A participao social e a democracia so fundamentais para a construo de polticas de sade que correspondam s reais demandas da comunidade. Contudo, para garantir a democracia na sociedade no basta promover a descentralizao. necessrio que os sujeitos polticos resistam s relaes de dominao, opresso e subordinao. Para isso, torna-se imprescindvel os programas de educao para cidadania dos sujeitos envolvidos nestes fruns de participao. O que nos motiva, enfim, notarmos a existncia, entre os conselheiros eleitos, de sujeitos protagonistas de seu prprio devir; sujeitos que atuam como agentes transformadores, motivadores de sonhos e projetos em prol da sade pblica e de sua comunidade. Palavras-chave: Descentralizao; Participao Social; Conselhos de Sade.

  • ABSTRACT

    LISBOA, E.A. Local Health Councils: paths and (mis) direction of social participation in the Unified Health System. Dissertation (Public Health) - Graduate Program in Public Health, Federal University of Esprito Santo, Vitria, 2014, 101 p. From decentralization, new instances and new alternative trading system of the organizational structure of the Sistema nico de Sade (SUS) was created. Among these alternatives, we can mention the health councils, important channels for social participation. However, due to the limitations of these traditional channels of articulation between state and society, include the ideals of participatory management and Local Health Boards (LHB) as an alternative for renewal and creation of more flexible, porous and effective to complex social demands instances. In this sense, we analyze the process of creation and implementation of CLS in the municipality of Anchieta/ES, from a quali-quantitative approach. Initially, we trace the socioeconomic and political profile of the elected councilors, from a questionnaire administered to a sample of 54 counselors, data were categorized and analyzed through the use of descriptive statistics. Then interviewed thirteen directors, two separate councils of the city, proceeding to an analysis of the material from the ideals of Bardin (2000). The results showed that councils were created at the initiative of the municipal administration in 2011 , and that simply institutionalize them as a space for social participation was not sufficient to promote social mobilization and community involvement. Regarding the profile of local councilors, 78 % are women, predominantly white race / color, age between 20 and 39 years and public employees, 57% have high school and participated as a counselor for two years, and 60 % of these had already other experiences similar to CLS participation. The material from the interviews, four categories emerged from the analysis, namely: 1) To be or not to be health counselor? That is the question; 2) not belonging and non-participation; 3) Local Health Councils: links, media and mediations; 4) The exogeny administration and obstacles to social participation. Barriers to the functioning of boards of health, even at the local level are still challenges to be overcome, so that these instances are more influential in public administration, according to the principles of its creation. Social participation and democracy are fundamental to the construction of health policies which meet the demands of the community. However, to ensure democracy in society not just promote decentralization. It is necessary that political subjects resist the relations of domination, oppression and subordination. For this, it is essential education programs for citizens of those involved to participate in these forums. What motivates us, in short, is to note the existence, among the elected councilors, of subjects protagonists of their own becoming; subjects that act as agents, motivators dreams and projects for the sake of public health and their community. Keywords: Decentralization, Social Participation, Health Advice.

  • LISTA DE FIGURAS, GRFICOS E TABELAS

    FIGURA 1 Diferentes Classificaes da Descentralizao ................................ 22

    TABELA 1 Classificao do porte dos municpios no Brasil .............................. 41

    GRFICO 1 Escolaridade dos conselheiros entrevistados ............................... 49

    GRFICO 2 Outras experincias de participao social .................................. 51

    GRFICO 3 Experincias de participao citadas entre os conselheiros ........ 52

  • LISTAS DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACS Agentes Comunitrios de Sade

    AIS Aes Integradas de Sade

    CAPS I Centro de Ateno Psicossocial I

    CASP ad Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas

    CEP Comit de tica e Pesquisa

    CLS Conselhos Locais de Sade

    CNS Conferncia Nacional de Sade

    CONASP Conselho Nacional de Administrao da Sade Previdenciria

    ESF Estratgia de Sade da Famlia

    GEMTES Grupo de Estudo em Trabalho e Sade

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    MDB Movimento Democrtico Brasileiro

    MRS - Movimento da Reforma Sanitria

    NOAS Normas Operacionais de Assistncia Sade

    NOBs Normas Operacionais Bsicas

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OPAS Organizao Pan-Americana de Sade

    PARTICIPASUS Poltica Nacional de Gesto Participativa para o SUS

    PDR Plano Diretor de Regionalizao

    PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento

    PREV-SADE Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade

    PSB Partido Socialista Brasileiro

    PV Partido Verde

    SESA Secretaria de Estado da Sade do Esprito Santo

    SUS Sistema nico de Sade

    UFES Universidade Federal Do Esprito Santo

    USF Unidade de Sade da Famlia

    TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................... 12

    1 DESCENTRALIZAO E DEMOCRATIZAO DAS POLTICAS

    PBLICAS DE SADE: CONTROVRSIAS HISTRICAS E

    CONCEITUAIS........................................................................................

    21

    1.1 DESCENTRALIZAO NA SADE: CONCEPES E

    CONCEITOS...............................................................................................

    21

    1.1.1 Descentralizao: outros olhares... outro debate ............. 29

    1.2 DESCENTRALIZAO E PARTICIPAO SOCIAL: PROJETOS

    ALINHADOS ..............................................................................................

    33

    1.2.1 Participao ou Controle Social?........................................ 34

    1.2.2 Descentralizao e Participao Social 38

    2 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: EXPERINCIA DE

    PARTICIPAO SOCIAL EM UM MUNICPIO DE PEQUENO PORTE...

    44

    2.1 OS CONSELHOS LOCAIS DE SADE EM UM TERRITRIO EM

    DISPUTA ....................................................................................................

    44

    2.2 CONSELHEIROS DE SADE: PERFIL SOCIOECONMICO E

    POLTICO ..................................................................................................

    48

    3 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS

    DA PARTICIPAO SOCIAL ...................................................................

    56

    3.1 SER OU NO SER CONSELHEIRO DE SADE? EIS A

    QUESTO!..................................................................................................

    56

    3.2 O NO PERTENCIMENTO E A NO-PARTICIPAO ................. 64

  • 3.3 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: ELOS, MEIOS E MEDIAES 72

    3.4 A EXOGENIA DA ADMINISTRAO E OS OBSTCULOS

    PARTICIPAO SOCIAL ..........................................................................

    76

    4 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................... 81

    5 REFERNCIAS ......................................................................................... 85

    APNDICES

    APNDICE A [Questionrio aplicado aos conselheiros eleitos] .. 96

    APNDICE B [Roteiro de entrevista com conselheiros de sade] . 97

    APNDICE C [Termo de consentimento livre e esclarecido] ... 98

    ANEXOS

    ANEXO 1 [Parecer consubstanciado do CEP com a aprovao da

    pesquisa] ...

    100

  • 12

    INTRODUO

    O interesse em estudar e discutir o tema Participao Social surgiu ainda na

    graduao em Enfermagem, quando tive a oportunidade de participar de um

    programa de extenso universitria, denominado Conexes de Saberes: dilogos

    entre a universidade e as comunidades populares. Dentre os objetivos deste

    programa, destacava-se o desejo de ampliar o dilogo e a articulao poltica entre a

    universidade e os moradores de espaos populares, juntamente com suas

    instituies e organizaes, em busca de promover o encontro, a troca de saberes e

    fazeres, alm do desenvolvimento de aes concretas entre esses dois territrios

    socioculturais, visando tambm ampliao do acesso e permanncia dos

    estudantes de origem popular nas Universidades.

    Dentre as aes desenvolvidas pelo referido programa, ns, acadmicos de origem

    popular de cursos da rea da sade da Universidade Federal do Esprito Santo

    (UFES), como exemplo enfermagem, medicina, psicologia, farmcia, servio social e

    odontologia, desenvolvemos um projeto denominado Conexo-Sade, cuja

    proposta era atuar em comunidades pobres dialogando sobre a sade, com foco em

    sua promoo. Para isso participamos de aes educativas dialgicas junto a estas

    comunidades nos municpios da Grande Vitria, a partir de atividades em grupos,

    buscando envolver os sujeitos como atores protagonistas do seu processo de

    cuidado em sade.

    O projeto Conexo-Sade proporcionou-nos tambm a participao em um grupo

    de estudo coordenado pelas professoras Dra. Roseane Vargas Rohr e Dra. Raquel

    Baroni de Carvalho, onde discutamos temas muito relevantes, como os princpios e

    diretrizes do SUS, a importncia deste sistema para a comunidade, a educao

    popular em sade, a promoo da sade e o protagonismo dos sujeitos na luta pelos

    seus direitos. Discusses que transformaram no apenas nossa formao

    profissional, mas nossos projetos de vida, uma vez que nosso olhar sobre a sade,

    as pessoas e a vida passaram a ser outros. Passamos a enxergar cada sujeito como

    nico. Um sujeito que dotado de desejos, saberes, histria e direitos, deve ser

  • 13

    respeitado e incentivado a protagonizar a luta por direitos individuais e coletivos,

    inclusive no que diz respeito luta em defesa do SUS.

    Com vrias expectativas, ao concluir a graduao ingressei no mercado de trabalho

    atuando como enfermeiro de uma Unidade de Sade da Famlia (USF) em

    Guarapari, um municpio ao litoral sul do Esprito Santo, em um vnculo estatutrio.

    Neste momento deparei-me com uma comunidade extremamente pobre, carente de

    recursos fsicos e materiais. Uma comunidade que sofria com as fragilidades de um

    sistema municipal de sade incapaz de corresponder s reais necessidades e

    demandas. Deparei-me ainda com os Agentes Comunitrios de Sade (ACS) desta

    equipe, que mesmo com toda dificuldade enfrentada, lutavam em seu cotidiano de

    trabalho no intuito de garantir a melhor assistncia sade possvel sua

    comunidade. Nesta experincia pude compartilhar saberes e experincias

    anteriormente vividas, incentivar os profissionais e atuar junto aos mesmos no intuito

    de mudarmos a realidade vivenciada em nosso cotidiano de trabalho, mediante a

    escassez de recursos e pessoal. Uma luta por direitos em busca de melhorias no

    sistema de sade local e municipal.

    Depois de trabalhar dois anos em Guarapari, solicitei meu desligamento e assumi

    outro vnculo estatutrio ainda no litoral sul, no municpio de Anchieta, que possui

    alta arrecadao de impostos devido ao seu grande parque industrial, quando

    comparado regio. Na sade, este municpio possui uma cobertura de Estratgia

    de Sade da Famlia (ESF) de 100%, o que pode ser considerado um avano.

    Em Anchieta encontrei outra realidade de sade, comparada vivncia anterior.

    Apesar de possuir comunidades tambm desprovidas de recursos fsicos e

    materiais, Anchieta um municpio com grandes investimentos em polticas pblicas

    sociais, mediante sua alta arrecadao e interesse da gesto municipal, o que pode

    ser notado, por exemplo, na sade, a partir da estrutura fsica das unidades de

    sade, da composio das equipes ou at mesmo da disponibilidade de materiais e

    equipamentos.

    Fui surpreendido, ao ingressar mais uma vez em uma equipe de sade da famlia,

    com a recente criao de CLS em cada uma das USF do municpio, a partir do

  • 14

    discurso de possibilitar a participao da comunidade na gesto das polticas e do

    sistema de sade municipal e local. Ao procurar conhecer mais a respeito destes

    CLS, descobri que o municpio de Anchieta havia recebido uma importante

    premiao na 14 Conferncia Nacional de Sade (CNS), o Prmio Srgio Arouca

    de Gesto Participativa no SUS, em sua quarta edio, graas a experincia

    exitosa de instalao dos CLS em 100% de seus territrios de sade.

    Ao mesmo tempo em que ingressava no municpio de Anchieta, dei lugar ao desejo

    antigo, mas no silenciado pela prtica profissional, de enveredar no mestrado em

    Sade Coletiva no intuito de aprofundar meus conhecimentos a respeito do SUS,

    fortalecer os ideais profissionais semeados em mim ainda na graduao e buscar

    respostas (ou ainda mais questionamentos) a respeito da realidade vivenciada no

    cotidiano de trabalho at ento. Foi quando tive a grande oportunidade de ir alm

    das disciplinas cursadas e fazer parte do Grupo de Estudo em Trabalho e Sade

    (GEMTES), coordenado pelas Professoras Dra. Maristela Dalbello Arajo e Dra.

    Francis Sodr, onde percebi que as sementes ora plantadas, germinavam como

    desejos de lutar em prol de um SUS de qualidade, resolutivo, equnime e integral.

    Assim, compreendi que para alcanar este SUS desejado e conquistado legalmente,

    seria muitssimo relevante a participao social em seu mbito.

    A deciso de estudar este tema veio, portanto, ao compreender que a participao

    social essencial para que o SUS desenvolva-se e alcance os objetivos sonhados

    pelo Movimento Sanitrio, transformados em princpios e diretrizes constitucionais.

    Uma participao entendida como a partilha de poder entre o Estado e a sociedade,

    que possibilite a gesto participativa do SUS, a fim de construir polticas e aes que

    realmente correspondam s demandas da comunidade.

    Ao decidir sobre este tema, lembrei-me dos CLS criados em Anchieta,

    principalmente ao observar o conselho que se reunia na USF em que trabalhava.

    Comecei a indagar-me se o discurso antes evocado em sua criao, no teria agora

    sido silenciado. Questionei-me quem eram estes conselheiros. Desejava saber de

    onde eles vinham a quem representavam, e a partir de quais interesses. Estava

    interessado em descobrir se os CLS, uma vez criados, geravam ou no alguma

  • 15

    repercusso no cotidiano dos servios de sade. Diante destes questionamentos,

    estruturamos este estudo a partir dos seguintes objetivos:

    Analisar o processo de criao e implantao dos CLS do municpio de

    Anchieta/ES;

    Descrever o perfil socioeconmico dos conselheiros eleitos;

    Investigar como os CLS influenciaram a poltica de sade municipal;

    Identificar que fatores que apoiaram ou limitaram a participao social nos

    referidos conselhos.

    A partir do momento em que propomos analisar o processo de criao e implantao

    dos CLS em Anchieta, elegemos a pesquisa qualitativa por entendermos que a

    natureza deste problema de pesquisa exigia uma abordagem capaz de buscar

    interpretaes dos fenmenos sociais, no sentido de analisar as vivncias e

    experincias a partir das relaes sociais (MINAYO, 2008), possibilitando uma

    investigao do processo, no apenas dos resultados e do produto (GASKELL,

    2002). Entretanto, foi importante tambm agregarmos alguns aspectos da pesquisa

    quantitativa, a partir do uso de estatsticas descritivas, para colaborar com esta

    anlise, conforme evidenciaremos posteriormente.

    Minado e Sanches (1993) afirmam que a pesquisa qualitativa

    [...] realiza uma aproximao fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos so da mesma natureza: ela se volve com empatia aos motivos, s intenes, aos projetos dos atores, a partir dos quais as aes, as estruturas e as relaes tornam-se significativas (MINAYO; SANCHES, 1993, p.244).

    Para o desenvolvimento desta pesquisa, realizamos uma anlise prvia a partir de

    alguns contatos com cada unidade de sade do municpio, perguntando nestas

    quem poderia nos informar um pouco a respeito do CLS. Em cada unidade foi nos

    indicado uma pessoa (usurio ou profissional), geralmente conselheiro de sade

    daquela localidade, para nos fornecer algumas informaes preliminares

    relacionadas ao funcionamento do conselho desde a sua criao e implantao.

    Propomo-nos a realizar esta anlise prvia para nos aproximarmos do cotidiano dos

  • 16

    conselhos, identificarmos a frequncia de reunies realizadas, a presena de

    conselheiros eleitos nas mesmas e a frequncia de encaminhamentos ou

    solicitaes emitidos, a fim de elegermos o modo em que conduziramos o estudo.

    A partir desta anlise prvia, identificamos que alguns conselhos foram pouco ativos

    desde sua criao e implantao, sendo que a partir de 2012 a maioria j no

    funcionava mais. Outros, porm, destacaram-se e mantiveram suas atividades at

    2012, como o CLS da ESF Jabaquara, da ESF Centro II e da ESF Me-B.

    Aparentemente, isso aconteceu porque alguns conselheiros abandonaram seus

    mandatos, ou ainda porque a partir de 2013 uma nova gesto assumiu o municpio,

    e novas eleies do CLS ainda no ocorreram, a fim de manter as atividades dos

    conselhos.

    De acordo com a Lei n 628, de 3 de agosto de 2010, que dispe sobre a criao

    destes CLS, os mandatos poderiam ser encerrados em 2012 ou prorrogados por

    igual perodo (ANCHIETA, 2010a). Entretanto, at o presente momento, nada foi

    definido pela gesto atual em relao a esta questo, o que tem comprometido a

    manuteno dos conselhos, mesmo os que se mantiveram mais atuantes at 2012.

    Logo, ficamos impossibilitados, inclusive, de propormos como tcnica de pesquisa a

    observao de reunies, pelo fato de no estarem acontecendo durante o

    desenvolvimento deste estudo.

    Diante deste cenrio e dos questionamentos que nos inquietavam, decidimos ento

    estruturar a pesquisa, a fim de alcanarmos os objetivos propostos, dividindo-a em

    quatro etapas, a saber: 1) Pesquisa bibliogrfica; 2) Coleta de dados a partir de um

    questionrio, com perguntas abertas e de mltipla escolha; 3) Entrevista orientada

    por roteiro semi-estruturado; e 4) Anlise documental.

    A pesquisa bibliogrfica levou em considerao as orientaes dadas por Gil (2006)

    para coleta de informaes, uma vez que buscamos uma profunda anlise do tema,

    em diversas fontes bibliogrficas, denominadas fontes de papel, como livros,

    publicaes peridicas, alm de outros impressos diversos, portais eletrnicos,

    dentre outras fontes. Para o referido autor

  • 17

    [...] A principal vantagem da pesquisa bibliogrfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenmenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem torna-se particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados muito dispersos pelo espao (GIL, 2006, p. 45).

    Assim, esta primeira etapa deste estudo foi constituda a partir dos principais

    descritores que fundamentariam nossas discusses. So eles: descentralizao,

    participao social, democracia e Conselhos Locais de Sade.

    A segunda etapa, correspondente aplicao de questionrio (APNDICE A). O

    questionrio foi composto por questes que abordaram informaes quanto ao perfil

    socioeconmico e poltico dos conselheiros. Procuramos investigar quem eles

    representavam, se j possuam ou no experincias anteriores de participao em

    fruns polticos e se eram filiados a algum partido politico, a fim de percebermos se

    havia ou no participao direta de conselheiros filiados aos partidos polticos que

    compuseram a coligao do prefeito em exerccio na poca de criao e

    implantao dos conselhos, o que poderia nos apontar as influncias da gesto

    municipal neste frum de participao social.

    A amostra selecionada para aplicao deste questionrio foi composta por 54

    (cinqenta e quatro) conselheiros e representou 50% do nmero total de

    conselheiros eleitos em todos os nove conselhos de sade. Para fins de anlise,

    dividimos a mesma em dois grupos. O primeiro referiu-se aos 20 (vinte)

    representantes dos usurios moradores destes territrios, e o segundo aos 34 (trinta

    e quatro) representantes dos profissionais de sade da ESF. Para selecionarmos

    esta amostra, consideramos os seguintes critrios: a) Ter sido eleito ou selecionado

    como conselheiro a partir da criao dos CLS em 2010; b) Ser conselheiro titular,

    prioritariamente, ou suplente, no caso em que no foi possvel ter acesso ao titular.

    A terceira etapa deste estudo consistiu em entrevista orientada por roteiro semi-

    estruturado, no intuito de analisarmos o processo de criao e implantao dos CLS

    e investigarmos como os referidos conselhos influenciaram (ou no) a poltica de

    sade municipal. A entrevista foi aplicada aos conselheiros de sade de dois

    conselhos selecionados, a partir das informaes que obtemos com a anlise prvia

    realizada, que nos indicou a atuao e funcionamento dos CLS. No total,

  • 18

    entrevistamos treze conselheiros de sade, utilizando os mesmos critrios de

    incluso citados anteriormente.

    Para as entrevistas, decidimos seguir a sugesto da banca de qualificao deste

    estudo, e selecionamos, dentre os conselhos existentes, duas experincias distintas

    no municpio: uma constituda de um conselho mais atuante, cujo seus conselheiros

    reuniram-se regularmente desde sua criao, e outra cujo conselho no se manteve

    ativo desde o princpio. Esta seleo nos possibilitou uma anlise diferenciada do

    problema de pesquisa, evidenciando ainda os fatores que constituram apoio ou

    entrave ao desenvolvimento dos CLS em Anchieta.

    Optamos pela tcnica de entrevista, pois se mostra como uma tcnica relevante,

    uma vez que a partir dela os sujeitos expressam por meio de ideias, crenas,

    opinies, sentimentos, atitudes e comportamentos uma representao de sua

    realidade (MINAYO, 2007).

    Em relao modalidade de entrevista, optamos pela utilizao de um roteiro semi-

    estruturado (APNDICE B) por acreditarmos ser importante para dar direcionamento

    ao entrevistador em questes fundamentais da pesquisa durante a entrevista, sem,

    contudo, roubar-lhe a liberdade de adapt-la de acordo com o retorno do

    entrevistado, tornando cada entrevista nica (FLICK, 2004; MINAYO, 2008).

    Finalmente, a quarta etapa da pesquisa, que na realidade ocorreu

    concomitantemente s demais, consistiu em uma anlise documental. Nesta etapa

    exploramos a Lei n 628, de 3 de agosto de 2010, que dispe sobre a criao dos

    CLS (ANCHIETA, 2010a), o Regimento Interno do CLS da ESF Centro III

    (ANCHIETA, 2010b) e algumas anotaes de reunies ocorridas em um dos

    conselhos selecionados para este estudo, uma vez que no existiam atas que

    registrassem o contedo das mesmas. Esta anlise foi importante para nos

    possibilitar o alcance de elementos que trouxeram indicaes sobre o processo de

    criao e implantao, alm do desejado funcionamento dos referidos conselhos.

    A anlise documental mostra-se relevante por permitir ao pesquisador analisar

    materiais que muitas vezes ainda no receberam nenhum tratamento analtico,

  • 19

    denominados fontes de primeira mo (GIL, 2006), como exemplo documentos

    oficiais, atas de reunies, dirios e reportagens. So importantes ainda porque

    possibilitam resgates histricos relevantes aos temas de pesquisas, colaboram com

    a reflexo crtica a respeito dos mesmos e com compreenso da realidade atual

    (GIL, 2006).

    Ao reunir cada um dos produtos deste estudo, partimos para a anlise e tratamento

    do material. Os dados fornecidos a partir da aplicao dos questionrios foram

    categorizados e analisados por meio do emprego de estatsticas descritivas,

    gerando grficos e tabelas, levando-se em considerao o nmero total da amostra

    para realizao dos clculos estatsticos.

    Os dados provenientes das entrevistas realizadas foram expostos a uma leitura

    profunda, repetidas vezes, sempre retornando leitura crtica e reflexiva do

    referencial terico selecionado para embasamento da pesquisa, no intuito de

    identificar os temas, as relaes e as contradies pertinentes ao entendimento da

    criao, implantao e repercusses dos CLS em Anchieta e da participao social

    no municpio.

    Para isso, escolhemos a proposta da Anlise de Contedo de Bardin (2000), cujos

    procedimentos metodolgicos da anlise consistem em: categorizao, inferncia,

    descrio e interpretao. Nos empenhamos em um trabalho de leitura e releitura

    dos materiais das entrevistas, at que as categorias de anlise comearam a

    emergir. Desta forma construmos quatro categorias de anlise. So elas: 1) Ser ou

    no ser conselheiro de sade? Eis a questo!; 2) O no pertencimento e a no-

    participao; 3) Conselhos Locais de Sade: elos, meios e mediaes; e 4) A

    exogenia da administrao e os obstculos participao social.

    A pesquisa primou por atender as prerrogativas da Resoluo n 196/96, do

    Conselho Nacional de Sade para Pesquisa Cientfica em Seres Humanos (BRASIL,

    1996). Logo, a aplicao dos questionrios e a realizao das entrevistas se deram

    mediante a autorizao dos pesquisados, por meio da assinatura do termo de

    consentimento livre e esclarecido (TCLE) (APNDICE C), quesitos indispensveis

  • 20

    aprovao desta pesquisa pelo comit de tica e Pesquisa (CEP) com seres

    humanos desta Universidade (ANEXO A).

    Ao final, esta dissertao, portanto, foi organizada em trs captulos que agora

    apresentamos. No primeiro nos dedicamos a discorrer a respeito da pesquisa

    bibliogrfica, realizada com base nos descritores que fundamentaram nossas

    discusses. Iniciamos com uma breve reviso terico-histrica da categoria

    descentralizao, at a mesma tornar-se diretriz constitucional do SUS e

    finalizamos questionando suas aplicabilidades ampliao ou no da democracia e

    da participao social quando nos referimos aos CLS.

    A partir do segundo captulo, trouxemos os resultados e discusses provenientes da

    aplicao dos questionrios aos conselheiros de sade, buscando caracterizar o

    perfil socioeconmico e poltico dos mesmos, em busca de relaciona-los instituio

    e funcionamento, ou no, dos CLS no municpio de Anchieta.

    No terceiro captulo, apresentamos e discutimos os dados provenientes das

    entrevistas realizadas com os conselheiros, em uma busca de promover um dilogo

    sobre as nossas inquietaes e crticas com os sujeitos da pesquisa e os autores

    ora evocados para a construo do nosso referencial terico.

    Finalizamos o trabalho tecendo algumas consideraes finais, porm, estamos longe

    de concluirmos as ideias ou trazermos respostas prontas. Ao contrrio, apontamos

    caminhos e (des)caminhos que facilitam, fomentam ou silenciam a participao

    social nos conselhos locais de sade algo que objetivvamos responder durante a

    trajetria no mestrado em sade coletiva.

  • 21

    1 DESCENTRALIZAO E DEMOCRATIZAO DAS POLTICAS PBLICAS DE

    SADE: CONTROVRSIAS HISTRICAS E CONCEITUAIS

    1.1 DESCENTRALIZAO NA SADE: CONCEPES E CONCEITOS

    A anlise da evoluo histrica das polticas pblicas de sade no Brasil nos revela

    que, mesmo em meio a controvrsias entre momentos autoritrios e centralizadores

    na formulao e na execuo das polticas sociais, a descentralizao da

    assistncia e gesto em sade foi uma das marcas dos anos 90, aps intensos

    embates polticos e ideolgicos promovidos pelo movimento de redemocratizao do

    pas, que na sade destacamos o Movimento da Reforma Sanitria (MRS).

    Entretanto, que sentido de descentralizao foi atribudo ao SUS e s polticas de

    sade? Por que este conceito alcanou destaque nas discusses polticas e sociais

    no Brasil e no mundo?

    Principalmente no setor pblico, descentralizar ganhou sentido de flexibilizao da

    gesto a partir dos governos centrais, num processo de transferncia de autoridade

    e/ou poder decisrio no financiamento e gesto do nvel nacional para nveis

    subnacionais, a partir do pressuposto que na gesto municipal possvel um maior

    controle de qualidade das polticas pblicas pelo cidado/usurio dos servios

    prestados e/ou contratados pelo setor pblico (COSTA; RIBEIRO; SILVA, 1999;

    TOBAR, 1991).

    Contudo, Tobar (1991) adverte que existem alguns riscos utilizao do termo

    descentralizao, que se tornou moda entre polticos, administradores e cientistas

    a partir das dcadas de 80 e 90, uma vez que falar em descentralizao tornou-se

    olhar a partir de um prisma; o termo transformou em um camaleo poltico, que se

    adequa de acordo com os interesses de quem o utilize.

    Assim, em um olhar o conceito foi esboado a fim de representar uma importante

    ferramenta capaz de expandir e intensificar a democracia, garantindo inclusive a

  • 22

    universalidade na cobertura dos servios pblicos, na busca pela aproximao dos

    servios s necessidades dos cidados e possibilitando a ampliao da participao

    social. Porm, em outro olhar, o conceito tornou-se mecanismo de controle e

    dominao, instrumento para a privatizao de servios, e at mesmo passou a

    significar a capacidade individual de cada cidado de custear o seu prprio

    atendimento, representando nitidamente os interesses do projeto poltico econmico

    que rege o sistema capitalista mundial (TOBAR, 1991; LECOVITZ; LIMA;

    MACHADO, 2001; SPEDO; TANAKA; PINTO, 2009).

    A incluso da descentralizao na agenda das polticas governamentais nem

    sempre foi carregada de conotaes positivas. H registros de tenses e

    divergncias histricas relacionadas dicotomia centralizao-descentralizao,

    uma vez que estes conceitos esto relacionados disputa de poder e recursos

    financeiros (TOBAR, 1991).

    Ao longo da histria, os governos oscilaram entre os que privilegiavam a "eficincia"

    e os que privilegiavam a "eficcia" na alocao de recursos para o financiamento

    pblico descentralizado. Os postulados destes dois grupos polticos divergem em

    vrios aspectos (TOBAR, 1991).

    O primeiro grupo, chamado eficientista considerava que a prioridade do Estado

    deveria ser sempre o crescimento do pas. Logo, descentralizar seria um retrocesso,

    pois o progresso do pas dependia da centralizao como estratgia econmica de

    alocao dos recursos nos centros, nas metrpoles, pois era nelas que os

    rendimentos cresciam cada vez mais (TOBAR, 1991).

    J o segundo grupo, denominado descentralista, defendia a descentralizao por

    acreditar que a alocao de recursos deveria acontecer de forma equnime em toda

    extenso territorial, considerando a potncia governamental do poder local, com

    vistas a favorecer a administrao e facilitar o processo poltico (TOBAR, 1991).

    Nesta disputa conceitual e ideolgica, os ideais descentralistas tornaram-se mais

    populares no momento em que comearam a ser defendidos pelos organismos

    internacionais, como a Organizao das Naes Unidas (ONU), o World Bank e a

    Organizao Pan-Americana de Sade (OPAS) a partir da dcada de 80. Neste

  • 23

    perodo, destacou-se uma publicao intitulada Decentralization and development

    (1983), de autoria de G. Shabbir Cheema e Dennis A. Rondinelli. Nesta, foram

    enunciadas diversas funes da descentralizao para a organizao poltica e

    econmica do mundo ocidental. Como exemplo, podemos citar a diminuio dos

    efeitos negativos da burocracia, o respeito s prioridades e necessidades locais, a

    facilidade de uma maior representatividade na formulao de decises, maior

    equidade na alocao dos recursos e ainda o aumento da legitimidade e

    estabilidade institucional (TOBAR, 1991).

    Todavia, de acordo com Tobar (1991), o argumento mais relevante da

    descentralizao na referida publicao, foi o de que ela capaz de reduzir os

    gastos financeiros relacionados superconcentrao do processo decisrio,

    possibilitando ainda o aumento do nmero de bens e servios pblicos, bem como a

    eficincia de sua prestao a custos mais baixos. Portanto foi a funcionalidade

    econmica da descentralizao a responsvel por aumentar sua popularidade nos

    meios polticos e gestores.

    a partir desta popularidade da descentralizao que o seu uso tornou-se mais

    comum, podendo ser notado vrias possibilidades de experincias

    descentralizadoras, com realidades e sentidos completamente diferentes, de

    acordo com a base ideolgica que as fundamentam (TOBAR, 1991).

    Diante deste contexto, achamos essencial o estudo das diferentes classificaes da

    descentralizao, uma vez que de acordo com o grau de poder poltico transferido,

    existem diferentes tipos de descentralizao. Dentre as diversas classificaes,

    destacamos algumas, conforme quadro esquemtico a seguir:

    FIGURA 1 Diferentes classificaes da descentralizao

    FONTE: MENDES, 2006; TOBAR, 1991; PASCHE et. al, 2006; SILVA, 2012

  • 24

    Acreditamos que, no que se refere ao Brasil e ao SUS, a classificao que

    predomina a descentralizao como devoluo, tambm presente na

    conceituao que adotamos, pois foi desta forma que foi idealizada a fim de ampliar

    a autonomia das esferas estaduais e municipais na gesto e execuo das polticas

    de sade (MENDES, apud PASCHE et. al, 2006).

    No setor sade, podemos considerar que a descentralizao ocorreu basicamente

    em dois momentos ao longo da histria do Brasil. O primeiro momento refere-se ao

    perodo entre a dcada de 60 e 70 do sculo passado e o segundo a partir da

    dcada de 80 (JACOBI, 1996).

    O primeiro momento foi caracterizado por intensa centralizao de poder e recursos

    por parte do governo federal, principalmente com o advindo da ditadura militar, em

    1964 e da reforma tributria em 1967, uma vez que o regime estabeleceu um

    movimento de desmunicipalizao das responsabilidades sociais, o que gerou

    afastamento dos municpios do processo decisrio das polticas pblicas no mbito

    do Estado, influenciado pelas polticas centralizadoras, que eram as balizas dos

    militares (JACOBI, 1996; VENNCIO, 2001). Cabe destacar tambm que este

    perodo histrico foi marcado pelos grandes contrastes de recursos financeiros e

    poderes em um sistema de sade dicotmico e dividido entre a assistncia mdica

    previdenciria, excludente e desigual, e a sade pblica, sob a responsabilidade do

    Ministrio da Sade (JACOBI, 1996).

    Entretanto, a histria brasileira revela que a descentralizao poltico-financeiro-

    administrativa j era desejada desde os anos 60, pois o Relatrio Final da III CNS,

    realizada em 1963, destacou a descentralizao e transferncia de poder aos

    municpios como ideais a serem alcanados pelo sistema de sade brasileiro

    (VENNCIO, 2001).

    Os ideais da descentralizao comearam a se destacar com a conquista de alguns

    governos municipais pela oposio, o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB),

    principalmente em prefeituras como a de Campinas (SP), Lages (SC), Londrina

    (PR), Niteri (RJ), e Piracicaba (SP), que na sade, passaram a programar modelos

    alternativos de servios de sade, focados na ateno primria (ELIAS, 1996).

  • 25

    J na dcada de 80, correspondente ao segundo momento histrico da

    descentralizao no Brasil (JACOBI, 1996), foi iniciado um processo de expanso da

    cobertura assistencial do sistema de sade, no intuito de atender as proposies

    formuladas pela OMS a partir da Conferncia de Alma-Ata (1978), que preconizava

    "Sade para Todos no Ano 2000 (NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).

    Neste mesmo perodo, o MRS emergiu caracterizado por liderar um intenso embate

    poltico-social que contou com a participao de intelectuais, trabalhadores da rea

    da sade, alm de outros movimentos sociais organizados com insero na sade e

    alguns parlamentares apoiados por estes atores sociais. Dentre suas inmeras

    vertentes, podemos caracteriz-lo principalmente pela crtica e questionamento ao

    modelo de sade altamente excludente, hospitalocntrico, e centralizado no mbito

    federal, alm de mergulhado em articulaes polticas que favoreciam o setor

    privado e os seus lucros (AGUIAR; OLIVEIRA, 2003).

    Mesmo em pleno regime militar, o MRS defendia, entre vrios ideais, a construo

    de uma poltica de sade efetivamente democrtica, pautada em princpios como a

    descentralizao e a universalizao (NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).

    Este movimento ocupou a mquina pblica nas burocracias federais e estatais,

    promovendo muitos debates em eixos como a integralidade, a universalidade da

    assistncia sade, a descentralizao do poder e recursos do mbito federal para

    estados/municpios e a participao social nas formulaes e decises das polticas

    pblicas de sade (AGUIAR; OLIVEIRA, 2003).

    Logo, desde a dcada de 80 a descentralizao tem sido evocada de forma

    veemente, tanto no plano retrico, quanto da ao, como a melhor alternativa para

    produzir mudanas no setor sade, principalmente com a ampliao do acesso. O

    grande desafio ento deste processo tem sido transformar a ideia hegemnica

    difundida que apregoa que o sistema de sade um caos sem fim, mediante as

    fraudes, os desperdcios financeiros e os enormes ns crticos. E a aposta nesta

    transformao vem a partir do realce dos melhores atributos da esfera local, com a

    descentralizao, pois pela proximidade entre governante e governados, pela menor

  • 26

    complexidade administrativa, pelo menor grau de burocratizao, e pela maior

    capacidade para fiscalizar e prover os servios de sade, essa mudana no iderio

    comunitrio seria alcanada. Assim, os municpios foram aos poucos sendo

    transformados nos principais depositrios na luta contra as fraudes e os desvios

    existentes no sistema de sade, principalmente a partir dos conselhos de sade

    (ELIAS, 1996).

    Dentre as vrias propostas deste movimento para implantao de uma rede de

    servios voltada para a ateno primria sade, fundamentada nestes princpios,

    podemos citar o Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento

    (PIASS), em 1976, o Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade (PREV-

    SADE), criado em 1980, que na verdade no se efetivou, e o plano do Conselho

    Nacional de Administrao da Sade Previdenciria (CONASP), tambm dos anos

    80 (FRANA, 1998; NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).

    O CONASP foi institudo mediante a crise financeira do sistema de sade e

    previdencirio do pas. Elaborou um novo plano de reorientao da assistncia

    sade brasileira, por meio de princpios como a descentralizao e a utilizao

    prioritria dos servios pblicos federais, estaduais e municipais na cobertura

    assistencial (ACURCIO, 2013).

    Dentre as principais atividades do CONASP, a que mais se destacou foi a

    implementao da poltica de Aes Integradas de Sade (AIS), a partir de 1983,

    que constituram uma estratgia de extrema importncia para o processo de

    descentralizao da sade (JACOBI, 1996; NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).

    A poltica de AIS tinha como objetivo integrar os servios de assistncia sade de

    uma dada regio, e para isso estabeleceu convnios entre os Ministrios da

    Previdncia e Sade e as Secretarias Estaduais de Sade, que recebiam recursos

    para executar o programa e repassava aos municpios que tambm aderiam aos

    convnios (ACURCIO, 2013).

    Esta poltica se fortaleceu a partir do perodo ps-ditatorial, principalmente no que

    diz respeito valorizao das instncias de gesto colegiada e participao de

  • 27

    usurios dos servios de sade na gesto do sistema, no intuito de torn-lo mais

    acessvel e correspondente aos ideais da Reforma Sanitria (CUNHA; CUNHA,

    1998). Porm, os principais problemas relacionados centralizao e

    descoordenao do sistema permaneciam por no haver definio das atribuies

    ou responsabilidades especficas entre as esferas de governo na gesto dos

    servios.

    Neste sentido, foram fundamentais alguns fatos ocorridos neste perodo: em 1982

    ocorreu a primeira eleio direta dos governadores; no mesmo perodo intensificou-

    se a mobilizao em prol dos investimentos sociais; e em 1986 realizou-se em

    Braslia a VIII CNS, marco histrico para o desenvolvimento do sistema de sade no

    Brasil baseado em ideais democrticos (JACOBI, 1996).

    A VIII CNS contou com a ampla participao de trabalhadores, governo, usurios e

    parte dos prestadores de servios de sade do pas. Foi precedida por conferncias

    municipais e estaduais e significou um marco na formulao das propostas de

    mudana do setor sade, consolidadas na Reforma Sanitria brasileira, servindo de

    palco para a apresentao de um modelo de sistema de sade revolucionrio, em

    face da amplitude e profundidade das mudanas apresentadas no documento

    resultante e dos ideais que lhe servem de sustentao. Este documento, resultado

    das discusses da VIII CNS, serviu de base para as negociaes na Assembleia

    Nacional Constituinte, que se reuniria logo aps, em 1987 (CUNHA; CUNHA, 1998).

    Dentre os ideais da Reforma Sanitria contemplados neste documento final da VIII

    CNS, destacamos os que se referem defesa de um sistema de sade

    descentralizado e que possibilitasse a autonomia municipal na formulao e

    execuo das polticas e planos de sade (VENNCIO, 2001).

    Assim, mediante embates poltico-ideolgicos e das diferentes propostas em relao

    ao setor sade, inclusive referentes s inmeras emendas populares Constituio,

    o SUS foi criado, a partir da Constituio Federal de 1988, estabelecendo a sade

    como um direito de todos os cidados a ser assegurado pelo Estado, mediante

    aes e servios pblicos de sade que integram uma rede regionalizada e

    hierarquizada; um sistema pautado em importantes diretrizes como

  • 28

    descentralizao, atendimento integral e participao da comunidade (BRASIL,

    1988).

    Alm da Constituio de 1988, outras legislaes foram elaboradas no intuito de

    regulamentar de forma mais clara os sentidos atribudos diretriz constitucional

    sobre a descentralizao. Dentre estas, destacamos a Lei Orgnica da Sade n

    8.080/90, que aborda a descentralizao poltico-administrativa do SUS, com vistas

    a descentralizar os servios para os municpios, a partir de critrios de

    regionalizao e hierarquizao da rede de servios de sade. Em seguida, foram

    elaboradas as Normas Operacionais Bsicas (NOBs) nos anos de 1991, 1993 e

    1996 e ainda as Normas Operacionais de Assistncia Sade (NOAS) nos anos de

    2001 e 2002, e nos Pactos pela Sade a partir de 2006, legislaes estas que foram

    fundamentais para solidificar as discusses a respeito do processo de

    descentralizao e transferi-las para o campo da prtica, pois estabeleceram aes,

    servios, recursos e responsabilidades aos municpios, estados e mbito federal.

    A proposta de descentralizao contida nestas legislaes foi muito audaciosa, no

    sentido de corresponder a variados e complexos aspectos da gesto e execuo

    das polticas pblicas, como o modelo assistencial, a redefinio de competncias

    das esferas de governo, e a questo dos recursos humanos (ELIAS, 1996).

    No entanto, nos questionamos se descentralizar a assistncia, a gesto, a

    participao, conforme as referidas legislaes e outras a respeito proferem, seria

    sempre algo vantajoso para os municpios ou para as comunidades. Ser que

    quanto mais descentralizados os servios, maior qualidade acrescida aos

    mesmos? Ser que quanto mais descentralizadas as arenas de participao, mais

    democrticas tornam-se as discusses, as relaes, as polticas pblicas?

    Questionamentos como estes vm e vo a nossas mentes e nos levam a uma

    reflexo crtica baseada em alguns autores a seguir.

  • 29

    1.1.1. Descentralizao: outros olhares... Outro debate

    At o momento discorremos a respeito da descentralizao e apresentamos um

    breve resgate histrico do conceito, com problematizaes quanto aos possveis

    usos, mostrando o seu potencial, mesmo envolto ao risco dos possveis

    desdobramentos deste conceito. Agora, porm, nos dedicaremos a discorrer a

    respeito dos possveis entraves concretizao desta diretriz constitucional, bem

    como mitos que a envolve, principalmente no que diz respeito autonomia municipal

    e democratizao das polticas pblicas de sade.

    Um dos pilares da descentralizao justamente a municipalizao, a partir do

    discurso de que a instncia municipal o melhor lugar para gerir as polticas e os

    recursos pblicos (COSTA; RIBEIRO; SILVA, 1999). Todavia, como a maioria dos

    municpios brasileiros no tm condies financeiras e administrativas prprias e

    capazes de subsistir como esfera autnoma de governo, os mesmos tornam-se

    refns das esferas estadual e federal para manter seus compromissos financeiros e

    administrativos, o que compromete substancialmente suas prerrogativas como poder

    local, sobretudo em relao sua autonomia (ELIAS, 1996).

    E ao promover a descentralizao, principalmente a partir da municipalizao nestes

    moldes e realidades, aes, servios, recursos e responsabilidades foram

    estabelecidos aos municpios sem a devida cooperao e apoio tcnicos das esferas

    estadual e federal, o que ocasionou a criao de sistemas municipais muitos

    distintos que passaram a apresentar dificuldades em seus potenciais resolutivos e

    tornaram-se atomizados, desarticulados (SPEDO, TANAKA, PINTO, 2009).

    Neste sentido, enquanto a esfera federal mantem-se em uma posio confortvel

    em relao descentralizao de responsabilidades aos estados e municpios, por

    estar livre do nus poltico, social e econmico que representa a sade e a

    previdncia, os municpios, principalmente, enfrentam o grande desafio de se

    aproximar das inmeras demandas sociais dos cidados, sem ter capacidade fiscal

    para atend-las suficientemente (MENDES, 2006; LUZ, 2001). Uma situao que

    causa prejuzos principalmente aos usurios dos servios de sade, pois no

  • 30

    conseguem acessar um direito que legalmente constitudo devido estas falhas do

    sistema (SILVA, BENITO, 2012).

    Venncio (2001) tambm considera que a descentralizao pode vir acompanhada

    de efeitos negativos. Dentre estes a autora cita a fragmentao dos servios, a

    perda de escala, o enfraquecimento das estruturas centrais, as possveis

    iniquidades, a ineficincia, o clientelismo local, a privatizao do Estado e o aumento

    do emprego, do gasto pblico e dos custos de transao.

    Apesar da rea da sade ser considerada como o exemplo mais consolidado da

    descentralizao no pas, Barros e Silva (1995) tambm relativizam seus benefcios,

    quando apontam as dificuldades de relacionamento entre distintas esferas de

    governo e entre estas e o setor privado prestador de servios, o que compromete os

    resultados positivos do processo.

    Outro aspecto interessante da descentralizao que, comumente, ela est

    associada democracia. Arretche (1996) apresenta que existem duas vertentes

    principais que consideram esta associao. De um lado os progressistas, que

    acreditam na descentralizao como uma estratgia para a participao de sujeitos

    sociais em decises polticas. De outro, os liberais, que afirmam que a

    descentralizao pode representar uma ruptura com estruturas centralizadas,

    possibilitando uma sociedade com mais iniciativas polticas.

    E nesse plano, questionamos o pressuposto inicial que a esfera municipal de

    governo seja mais democrtica por estar mais prxima da populao, e que as

    autoridades locais detenham melhor conhecimento das necessidades dos

    muncipes.

    necessrio considerar, por exemplo, se a esfera local possui aparato tcnico

    suficiente para exercer todas as atribuies que lhe so conferidas, visando o

    alcance mnimo de eficcia social que responda de modo socialmente competente

    s demandas da populao (ELIAS, 1996).

  • 31

    Questionamos ainda a suposio que com a descentralizao haveria o aumento da

    eficincia e da transparncia das polticas pblicas, uma vez que as decises

    pblicas seriam aproximadas dos cidados. Mendes (2006) esclarece que no h

    evidncias de que esse processo de descentralizao para os governos locais tenha

    alcanado estes objetivos, por no ter garantido maior eficincia e responsabilidade,

    apesar de grandes avanos na ampliao da oferta local de servios e na autonomia

    dos estados e municpios (ARRETCHE, 2003; MENDES, 2006).

    Tobar (1991) tambm traz uma crtica definio de que uma vez instaurado o

    processo de descentralizao, estaria garantida a gesto democrtica do sistema.

    Segundo o autor, esta afirmao opera com uma viso tecnocrtica que no leva em

    considerao as necessrias mudanas que o movimento descentralizador deve

    gerar nas correlaes de foras e poder. H omisso da existncia de projetos

    hegemnicos no poder e da necessidade de gestar alternativas de mudana.

    Nunes (1996) critica a ideia que o poder local mais factvel de ser democratizado e

    de servir de palco a uma maior participao por estar mais prximo do cidado.

    Esta crtica se embasa em trs argumentos. O primeiro refere-se o fato de que

    qualquer esfera de gesto pblica, mesmo a central ou as mais perifricas, possui

    uma abstrao no imaginrio da comunidade - no sentido de ser uma instncia de

    poder longe, distante da vida da sociedade, e o municpio no nem mais nem

    menos abstrato que os demais nveis de governo. O que ocorre com maior

    frequncia no caso municipal, quando comparado a outras esferas de poder, que

    as pautas de discusso so mais concretas, so mais facilmente compreendidas

    pela maioria da populao, uma vez que correspondem diretamente s

    necessidades vivenciadas no cotidiano, demandas aos gestores (NUNES, 1996).

    O segundo argumento utilizado pelo autor que como a democratizao depende

    cada vez mais de decises mais universais, o municpio, sem autonomia adequada,

    torna-se refm de instncias superiores que detm o poder, sendo submetido

    politicamente influncia delas. J o terceiro argumento, refere-se ao risco de que a

    proximidade possa dar lugar ao clientelismo e ao uso indiscriminado de poder pelas

    oligarquias, muito mais fortes em mbitos mais locais, o que significaria um

    retrocesso ao processo de democratizao desejado (NUNES, 1996).

  • 32

    No se pode negar, todavia, que a descentralizao, apesar de no garantir

    automaticamente a participao social, nem a democratizao, pode possibilitar a

    criao de novas instncias de negociao e novas alternativas de ordenamento da

    estrutura organizacional do sistema de sade, que sejam mais permeveis s

    demandas dos cidados.

    Porm, para garantir a democracia na sociedade, no basta descentralizar. Existem

    alguns princpios democrticos que precisam estar tambm incorporados nas

    instituies. Dentre estes podemos citar: o controle do governo pelos cidados, o

    direito ao voto, a priorizao das demandas das minorias, o acesso educao para

    cidadania e a participao popular (UGA, 1991). Caso estes princpios no estejam

    incorporados s instituies durante processos de descentralizao, ocorrer

    apenas transferncia de poder do centro para as instncias locais, com o risco

    apenas de deslocar a centralizao (ARRETCHE, 1996).

    Vianna e Piola (1991) apontam uma srie de pressupostos necessrios para o

    alcance de uma descentralizao que preserve minimamente a autonomia das

    esferas locais. Dentre estes pressupostos, destacamos: 1) A necessidade das

    esferas de governo compartilhar responsabilidades em relao sade da

    populao; 2) A obrigatoriedade de recursos federais claros e suficientes ao

    financiamento da sade; 3) A efetiva transferncia de poder decisrio, e no apenas

    de recursos financeiros, de modo a conferir ao nvel local uma maior governabilidade

    na conduo da poltica de sade; 4) Mudanas Constitucionais necessrias a fim

    de flexibilizar o uso dos recursos federais por parte das instncias estaduais e

    municipais; e 5) A intensificao da participao de usurios conscientes do

    potencial estratgico que possuem na gesto das polticas e do sistema de sade.

    Assim, possvel o xito no processo de descentralizao medida que existir

    ambiente social e cultural propenso a mudanas e enfrentamentos de problemas

    mltiplos a partir da capacidade de interveno de diferentes atores sociais

    (VENNCIO, 2001). O que mais uma vez refora a relao entre a descentralizao

    e participao social, no intuito de tornar mais democrtico o planejamento e a

    execuo das polticas pblicas de sade.

  • 33

    1.2 DESCENTRALIZAO E PARTICIPAO SOCIAL: PROJETOS ALINHADOS

    A partir da dcada de 90, os pilares fundamentais da descentralizao passaram a

    ser o financiamento das aes de sade e a participao social, uma vez que a

    constituio e o funcionamento pleno dos fundos e dos conselhos de sade

    tornaram-se requisitos indispensveis para que estados e municpios se

    candidatassem descentralizao, o que ocasionou um intenso crescimento no

    nmero de conselhos de sade no Brasil (ELIAS, 1996).

    Desde 1988, o texto constitucional explicitava que as aes e servios pblicos de

    sade deveriam integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um

    sistema nico, que tivesse como diretrizes fundamentais a descentralizao e o

    atendimento integral com prioridade para as atividades preventivas e ainda a

    participao da comunidade (BRASIL, 1988).

    Os conselhos de sade e as conferncias de sade, institucionalizados pela Lei

    Federal 8.142 de 28 de dezembro de 1990, representaram o desejo que a

    participao social assumisse lugar estratgico na definio e execuo das polticas

    de sade. Composto de modo paritrio pelos representantes dos usurios e pelos

    demais segmentos, foram considerados como uma possibilidade vocalizao dos

    interesses e da interveno de grupos e setores usualmente segregados do plano

    das deliberaes polticas na sade (CORREA, 2000; BRAVO, 2001).

    Entretanto, ao analisarmos algumas pesquisas e os dispositivos legais, notamos em

    muitos destes a adoo da expresso controle social como sinnimo de

    participao da comunidade ou participao social na gesto do SUS. Porm,

    como esta expresso tem sido alvo de muitas discusses e prticas recentes de

    diversos segmentos da sociedade (CORREA, 2008), e por no considerarmos tratar-

    se de um mesmo significado, decidimos trazer estas categorias, a partir de uma

    breve contextualizao poltica/histrica, antes mesmo de aprofundarmos a

    discusso a respeito das relaes entre a descentralizao e a participao social.

  • 34

    1.2.1 Participao ou Controle Social?

    A anlise histrica revela que o termo controle social tem origem na sociologia e

    empregado, neste contexto, para designar mecanismos de estabelecimento de

    ordem social e disciplinarizao da sociedade, mediante padres sociais e princpios

    morais aos quais os indivduos so submetidos, a fim de assegurar a conformidade

    de seu comportamento. Contudo, na teoria poltica, o significado desta expresso

    mostra-se ambguo, uma vez que pode ser concebido de diferentes formas, de

    acordo com diferentes concepes de Estado e de sociedade civil. Portanto, pode

    ser utilizado ora para designar o controle do Estado sobre a sociedade, conforme o

    sentido essencial advindo da sociologia; ou exatamente o contrrio, no sentido de

    designar o controle da sociedade (ou de setores organizados da mesma) sobre as

    aes do Estado (CORREA, 2008).

    Outro aspecto a ser analisado nesta discusso que as expresses controle social

    e participao social assumiram significados diversos, de acordo com contextos

    referentes s concepes do processo sade-doena e, principalmente, s relaes

    entre o Estado e a sociedade. No incio do sculo XX, por exemplo, perodo em que

    o pas vivia o sanitarismo campanhista, as concepes de sade-doena estavam

    ligadas teoria dos germes (modelo monocausal) e os problemas de sade eram

    explicados pela relao linear entre o agente e o hospedeiro, o que favorecia aes

    do Estado por meio de medidas de saneamento e controle de epidemias. Neste

    contexto histrico e poltico, o termo controle social tambm se relacionava ao

    controle do Estado sobre a sociedade, o que representa uma enorme diferena

    quanto sua aplicao nos textos legais a partir da Lei Orgnica da Sade

    (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

    Para reforar a crtica ao conceito, apresentamos a pesquisa realizada por Guizardi

    et al. (2004) que analisou a presena e o sentido atribudo s categorias controle

    social e participao social nos relatrios das Conferncias Nacionais de Sade

    (CNS), desde a oitava at a dcima primeira. Os autores encontraram como

    resultados inmeras divergncias conceituais, como descrevemos a seguir.

  • 35

    Inicialmente, o relatrio da VIII CNS trouxe o termo controle social com o sentido

    de garantir participao popular na organizao, gesto e controle dos servios e

    aes de sade. Um sentido amplo que envolve o cidado em todo o processo

    poltico, desde a formulao interveno e revela uma populao que adquire

    condio de sujeito, protagonista na construo social do projeto de direito sade

    (GUIZARDI et al., 2004).

    J a partir da IX CNS, realizada em 1992, no auge do neoliberalismo e marcada por

    um cenrio de intensos obstculos concretizao do SUS, o projeto de

    participao construdo at a VIII CNS mostrava-se comprometido, uma vez que o

    sentido de controle social tornou-se muito mais fiscalizao e avaliao externa, se

    contrapondo participao em todo o processo de construo, como antes. E ainda

    na X CNS os autores notaram uma consolidao e um enrijecimento normativo da

    direo tomada sobre o tema a partir da IX CNS - uma vez que o relatrio refere-se

    aos Conselhos de Sade como instncias de acompanhamento e fiscalizao,

    fortalecendo a concepo de exterioridade ao processo, cabendo a ele apenas

    acompanhar, fiscalizar ou ainda aprovar e autorizar (GUIZARDI et al., 2004).

    Todavia, a partir da XI CNS realizada em 2000, o sentido atribudo ao controle social

    e participao voltou a mudar, em relao direo hegemnica que se

    configurou a partir da IX CNS caracterizada pela reduo da participao ao controle

    social (externo) sobre o Estado e de sua restrio s instncias institudas pela

    legislao do SUS. A participao social passou a ser considerada em uma

    dimenso constitutiva como ao e interveno no campo social, a partir do

    protagonismo de atores sociais implicados e aos efeitos dessa mobilizao

    (GUIZARDI et al., 2004).

    Portanto, ao percebermos estas inmeras ambiguidades conceituais envolvendo os

    termos controle social e participao social, no intuito de evit-las, optamos por

    adotar neste estudo o termo participao social, considerando-a como um agente

    de construo e efetivao do SUS, por meio da interveno na produo do

    processo e no apenas em sua fiscalizao. Uma noo que promove a constituio

    de sujeitos sociais (GUIZARDI et al., 2004).

  • 36

    Este conceito de participao social surgiu se contrapondo ao conceito de

    participao comunitria. A participao comunitria vem do termo comunidade no

    sentido de representar um agrupamento de pessoas que coabitam num mesmo

    ambiente e so expostas as mesmas condies sociais e culturais supostamente

    homogneas, estando predispostas solidariedade, ao trabalho voluntrio e de

    ajuda mtua (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

    Tendo origem no incio do sculo XX, ligada a experincias norte-americanas de

    medicina comunitria, a participao neste contexto tem como caractersticas a

    assistncia social aos mais pobres e vulnerveis, a educao para o auto-cuidado, a

    solidariedade e coletivismo, a integralidade das aes e a descentralizao e

    organizao comunitria (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

    No Brasil, este modelo de medicina comunitria s ganhou destaque a partir da

    dcada de 70, entendida como passaporte para melhorias sociais (CARVALHO;

    PETRIS; TURINI, 2001, p.96), quando as aes e servios de sade oferecidos pela

    previdncia social deixaram de corresponder s demandas da populao,

    principalmente os no contemplados por ela.

    Como a situao poltica do pas na poca, de pouca liberdade e ausncia de

    democracia, no favorecia o fortalecimento das propostas de participao

    comunitria, muitas experincias perderam as foras. Porm outras persistiam, com

    um carter de organizao e politizao comunitria, que contestava a situao do

    sistema de sade vigente no intuito de propor um projeto contra-hegemnico,

    (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

    Assim, um novo sentido estava sendo atribudo ao termo, e aos poucos participao

    comunitria foi se consolidando como

    [...] um processo social em que grupos especficos com necessidades compartilhadas, vivendo numa determinada rea geogrfica, perseguem ativamente a identificao de suas necessidades, tomam decises e estabelecem mecanismos para atender a essas necessidades (RIFKIM et al., 1988, p.933 apud CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

  • 37

    E ento, seguindo as vertentes anteriormente citadas de organizao e politizao

    comunitria, surge no incio da dcada de 80, a partir do declnio do regime

    autoritrio, o termo participao popular, num contexto de crise social e no sistema

    de sade. Vale ressaltar ainda, que neste perodo houve ainda uma intensa crtica

    ao modelo de sade hegemnico centrado na doena e em relaes monocausais,

    principalmente a partir de atores posteriormente envolvidos na Reforma Sanitria,

    que trouxeram a esta discusso a grande interferncia dos efeitos do meio social no

    curso das doenas, como as condies de moradia, educao, sade e lazer. Neste

    sentido a participao popular ganhou destaque a partir do aprofundamento da

    crtica e radicalizao das prticas polticas de oposio ao sistema

    economicamente predominante (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).

    E para os referidos autores, o termo participao popular considerado sinnimo

    de participao social, relacionando-a a propostas de gestes colegiadas e

    representativas que reconhecem e legitimam as organizaes da sociedade civil, a

    partir do final da dcada de 70 e incio da dcada de 80, perodo que houve uma

    multiplicao de movimentos e organizaes populares na rea da sade, em vrios

    contextos (igrejas, associaes e sindicatos). Todos com o intuito de alcanar uma

    transformao poltica das prticas sanitrias e do conjunto do sistema de sade

    (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001, p. 97).

    por isso que neste estudo, buscando evitar as controvrsias conceituais,

    adotaremos a categoria participao social. Uma participao construda por

    diversos segmentos sociais empenhados por meio da mobilizao, denncia e

    contestao (LONGUI; CANTON, 2011) e que deve ser entendida como uma

    verdadeira partilha do poder entre o Estado e a sociedade civil, em espaos

    legalmente institudos ou no, pois se a partilha de poder estiver comprometida,

    restrita ou limitada, restar sociedade civil apenas funes consultivas, executoras

    e/ou legitimadoras das decises previamente tomadas no interior da estrutura estatal

    (DAGNINO, 2002).

  • 38

    1.2.2 Descentralizao e Participao Social

    Os ideais da descentralizao foram desenvolvidos em consonncia com as

    discusses polticas quanto participao social no Brasil. Um cenrio de fortes

    embates entre o poder estatal, movimentos sociais e organizaes da sociedade

    civil, que marcaram o pas, com uma trajetria de lutas pela ampliao democrtica,

    pela participao da sociedade nos processos decisrios da gesto e controle dos

    recursos pblicos.

    Ao abordarmos as relaes entre a participao social e a descentralizao

    essencial relembrarmos que at o incio dos anos de 1980 a gesto pblica no Brasil

    era caracterizada pela intensa centralizao do poder decisrio e da dotao

    financeiro-oramentria na esfera federal, restando aos estados e municpios,

    apenas o papel de executores de polticas formuladas centralmente. Ao mesmo

    tempo, como os recursos eram centralizados em nvel federal, tornaram-se comuns

    as articulaes clientelistas entre governos estaduais, municipais e o federal,

    baseadas em troca de favores. Isto transformava as instncias locais em

    agenciadores de recursos federais para o municpio ou estado, pois nas esferas

    locais de poder que as necessidades e demandas dos cidados eram diretamente

    expostas (DRAIBE, 1992).

    Em meio a esta intensa centralizao da gesto pblica, no havia espao para a

    sociedade civil no processo de formulao das polticas pblicas, nem mesmo no

    acompanhamento da implementao dos programas ou no controle da ao

    governamental. Ao contrrio, havia a predominncia de trs elementos no que dizia

    respeito s relaes entre Estado e Sociedade, sobretudo a partir da dcada de

    1980: o clientelismo, o corporativismo e o burocratismo; caractersticas que

    ocasionavam o desenvolvimento de polticas pblicas marcadas pela fragmentao

    e desarticulao institucional entre diferentes esferas de governo (DINIZ, 1996).

    A partir dos anos 1990, porm, intensificou-se o processo de descentralizao

    poltico-administrativa e a municipalizao das polticas pblicas. Um processo que

    interferiu diretamente nas relaes entre o Estado e a sociedade, levando a

    transformaes e ao fortalecimento das instituies democrticas no pas,

  • 39

    principalmente no que concerne aos governos locais, cujas mudanas na

    organizao e funcionamento eram as mais desejadas, a fim de incorporar

    mudanas a partir dos canais de gesto democrtica institucionalizados

    (ARRETCHE, 2000).

    Nesta tica, a descentralizao e a participao passaram a estar intimamente

    relacionadas, sendo consideradas fundamentais para uma reorientao de polticas

    sociais que garantissem equidade e incluso de novos segmentos da populao na

    esfera do atendimento estatal. Uma luta por direitos que envolveria os prprios

    sujeitos como atores sociais, protagonistas no processo de construo das polticas

    pblicas (DRAIBE, 1992).

    E foi assim que a luta pela democratizao da gesto pblica alcanou a

    Constituio Federal, que sinalizou o princpio da gesto descentralizada e

    participativa (BRASIL, 1988). Uma luta que, na sade, ganhou novos espaos

    legalmente institudos, os Conselhos e Conferncias de Sade, considerados formas

    inovadoras de interao entre governo e sociedade, canais estratgicos de

    participao social, como j mencionamos.

    Ao longo de mais de vinte anos de implantao, os conselhos e conferncias de

    sade consolidaram-se como espaos de mediao, participao social e

    interveno de interesses e valores diversificados e plurais, tornando inegveis os

    avanos alcanados com esta institucionalizao, que ocorreu de forma expressiva

    nos anos 90, apesar de algumas limitaes. A conquista desses espaos de

    participao foi decisiva para que o direito sade se efetivasse como direito de

    cidadania, pois possibilitou o fortalecimento da sociedade civil dentro do movimento

    de democratizao das relaes da sociedade e o Estado, que considerado como

    um acontecimento indito na histria das polticas sociais no pas, colocando a

    sade como pioneira na luta pela consolidao dos direitos sociais (VIANNA;

    CAVALCANTI; CABRAL, 2009).

    Uma agenda que passou a interligar a descentralizao e a participao social como

    eixos centrais para democratizar os processos de deciso a fim de garantir polticas

  • 40

    pblicas com mais equidade e tentar romper com o autoritarismo e paternalismo

    brasileiro de interveno estatal na rea social (BRASIL, 2006).

    Iniciativas que, implicitamente, levam em si a ideia de cidadania ampliada, que

    possibilita o acesso dos cidados ao processo de gesto das polticas pblicas em

    nossa sociedade, indo de encontro tendncia centralizadora e autoritria brasileira

    e possibilitando a participao da sociedade civil na gesto da coisa pblica

    (DAGNINO, 1994).

    De acordo com a Poltica Nacional de Gesto Participativa para o SUS

    (PARTICIPASUS), a descentralizao ocorrida na gesto e execuo das aes de

    sade, caracterstica fundamental do processo de implantao do SUS, legitimada

    quando adota-se a gesto participativa, capaz de incluir novos atores nos processos

    decisrios em diferentes instncias polticas (BRASIL, 2005).

    Ao identificar o usurio como membro de uma comunidade organizada com direitos

    e deveres, esta poltica apostou na ampliao da condio de cidadania, guiada

    pelos ideais reformistas. Assim, como em outros aspectos da descentralizao,

    considerou o municpio como uma instncia privilegiada para possibilitar a

    construo do modelo de ateno proposto para o SUS: resolutivo, equnime,

    humanizado e integral (a partir da regionalizao). Esta fundamentao baseia-se no

    fato de que os municpios so mais capazes de corresponder s reais demandas e

    necessidades da populao, por estarem mais prximos da realidade das pessoas.

    A descentralizao ento, como estratgia, estaria aliada regionalizao

    cooperativa, construda a partir de um pacto de gesto entre as distintas esferas do

    SUS, a fim de garantir o enfrentamento das inmeras iniquidades em sade, com

    integralidade e racionalidade (BRASIL, 2005).

    A descentralizao promoveria, logo, uma rede de participao social de alta

    capilaridade, um novo ciclo democrtico no SUS, a partir da gesto participativa

    considerada um componente estratgico capaz de influir e interagir com outros

    fundamentos do processo de democratizao (BRASIL, 2005).

  • 41

    A ideia de gesto participativa foi disseminada no intuito de buscar o aumento da

    participao direta da sociedade na gesto municipal, visando aumento da eficincia

    e da efetividade das polticas pblicas e buscando tornar a participao uma

    ferramenta de gesto pblica (BRASIL, 2006).

    Na sade, a gesto participativa frente s limitaes dos canais tradicionais de

    articulao entre Estado e sociedade, passou a apostar na renovao e criao de

    instncias mais flexveis, porosas e efetivas s complexas demandas sociais.

    Instncias nas quais os cidados em geral, independentemente de sua classe social,

    pudessem produzir uma nova compreenso sobre o papel do Estado, como sujeitos

    sociais, protagonistas na luta pela universalizao dos direitos. Uma cultura poltica

    de participao cidad (BRASIL, 2006).

    Assim, vrios casos concretos de participao comearam a se multiplicar nas

    ltimas dcadas, em destaque aqueles no totalmente governamentais, vinculados,

    porm a outras arenas de participao de carter no tradicionalmente institucionais

    (BRASIL, 2006). Dentre estes vrios casos de participao, surgiram os CLS, como

    alternativa flexvel de participao social, mais poroso s demandas comunitrias.

    Justificar a utilidade e importncia da descentralizao dos conselhos de sade em

    municpios de grande porte, ou uma metrpole pode ser uma tarefa de fcil

    realizao, tendo em vista as distncias geogrficas, as diferenas territoriais,

    culturais, econmicas e sociais. Entretanto, neste estudo nos propomos a analisar a

    descentralizao dos conselhos de sade no municpio de Anchieta, um municpio

    de pequeno porte que possui aproximadamente 24 mil habitantes e est localizado

    ao litoral sul do Esprito Santo (BRASIL, 2010).

    O porte do municpio definido conforme sua populao pelo Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatstica (IBGE). Portanto, de acordo com tabela a seguir, Anchieta

    considerado um municpio de pequeno porte II (BRASIL, 2010).

  • 42

    TABELA 1 Classificao do porte dos municpios no Brasil

    Pequeno porte I At 20.000 hab.

    Pequeno porte II De 20.001 a 50.000 hab.

    Mdio porte De 50.001 a 100.000 hab.

    Grande porte De 100.001 a 900.000 hab.

    Metrpole Mais de 900.000 hab.

    FONTE: IBGE (2010)

    A descentralizao na sade e na participao social em um municpio de pequeno

    porte tende a ocorrer de forma bem peculiar. Para estes municpios, a autonomia de

    gerir seu sistema de sade de forma a garantir uma assistncia integral, mostra-se

    como um dos vrios desafios a serem enfrentados (SILVA; CASOTTI, 2012).

    Embora existam municpios de pequeno porte no estado do Esprito Santo, por

    exemplo, que desfrutem de uma boa arrecadao financeira, principalmente devido

    aos royalties de petrleo, esta no a realidade da maioria desses municpios, que

    diante de uma realidade scio-demogrfica desfavorvel, ainda enfrentam grandes

    problemas por escassez de recursos.

    Alm disso, outros desafios enfrentados por estes municpios em questo tambm

    podem ser apontados, a saber: 1) as limitaes na garantia do acesso aos nveis de

    ateno secundrio e tercirio do SUS; 2) as dificuldades em implementar de forma

    efetiva polticas de planejamento, avaliao e monitoramento das aes; 3) as

    limitaes na obteno e utilizao de sistemas de informao, principalmente

    devido dificuldade de acesso internet; e 4) as dificuldades em instituir, manter e

    investir em polticas de recursos humanos e em educao permanente dos

    profissionais (SILVA; CASOTTI, 2012).

    Assim, os CLS surgiram como uma alternativa, inclusive aos municpio de pequeno

    porte. Representaram mais um espao participao, considerando a essncia da

    participao cidad, que preconizava que todos, independentemente de sua classe

    social, poderiam produzir uma nova compreenso sobre o papel do Estado, como

    sujeitos sociais, protagonistas na luta pela universalizao dos direitos.

  • 43

    Os conselhos locais tornaram-se componentes estratgicos da gesto participativa,

    uma vez que seguiam a cultura de descentralizao j implementada no pas desde

    os anos 90. Surgiram como instncias de participao mais prximas da

    comunidade e, logo, mais prximas do cotidiano dos usurios e da dinmica dos

    servios de sade da unidade, podendo inclusive interagir com outras organizaes

    do bairro, como as associaes de moradores, pescadores, trabalhadores rurais,

    dentre outras. Instncias que funcionariam como bases setoriais e territoriais,

    capazes de possibilitar mais envolvimento dos usurios na gesto pblica, por

    proporcion-los uma ampliao de informaes sobre o funcionamento dos servios

    e da administrao (JACOBI, 2002). Fruns que poderiam elaborar propostas para a poltica

    de sade em sua localidade, levar sugestes ou reivindicaes a instncias

    superiores, como o Conselho Municipal de Sade, e tambm estabelecer relao

    entre conselheiros e a populao, sendo uma forma de aumentar a mobilizao, no

    afastando os representantes da sua base (BRAVO, 2001).

    Neste sentido, nos propomos a investigar em Anchieta, municpio de pequeno porte,

    como foram criados e implementados os Conselhos Locais de Sade, buscando por

    meio de um resgate deste processo caracterizar o perfil dos sujeitos eleitos ou

    indicados a compor estes fruns de participao.

  • 44

    2 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: EXPERINCIA DE PARTICIPAO SOCIAL

    EM UM MUNICPIO DE PEQUENO PORTE.

    Em Anchieta, municpio localizado ao litoral sul do Esprito Santo foi criado e

    implantado no ano de 2010 os CLS em cada um dos nove territrios da ESF do

    municpio.

    2.1 OS CONSELHOS LOCAIS DE SADE EM UM TERRITRIO EM DISPUTA

    Anchieta um municpio a 73 km de Vitria e integra a Regio Metropolitana

    Expandida Sul do Esprito Santo. Apresentando 417 km2 de extenso territorial,

    mantm-se como um municpio de pequeno porte populacional, e de acordo com o

    IBGE (censo 2010), o municpio possui 23.902 habitantes, sendo 18.161 residentes

    na rea urbana e 5.741 na zona rural (BRASIL, 2010).

    As principais atividades econmicas em Anchieta so a indstria e servios, pesca,

    agricultura, pecuria, turismo e comrcio em geral. Possui uma alta arrecadao de

    royalties do petrleo. Um bom exemplo disto que em 2011 o municpio arrecadou

    aproximadamente R$ 50 milhes de reais. Recebe muitos migrantes de outros

    municpios do Esprito Santo, inclusive da Regio Metropolitana da Grande Vitria, e

    at mesmo de outros estados, principalmente Bahia, atrados pela especulao do

    crescimento e oportunidades de empregos nas grandes empresas da regio, que em

    sua maioria oferecem vnculos trabalhistas precrios, como contratos temporrios

    em empresas terceirizadas. No municpio, as localidades do interior concentram

    aproximadamente 50% do eleitorado (TOMAZELLI, 2012).

  • 45

    Palco de grandes embates econmicos e ambientais, nos ltimos anos esta regio

    tem atrado muitas empresas e investimentos nas reas de petrleo e siderurgia1,

    principalmente, o que tem ocasionado um processo de metamorfose com profundas

    e rpidas transformaes demogrficas, econmicas e sociais (RAUTA MARTINS;

    RAUTA RAMOS, 2012).

    Na sade, o municpio de Anchieta possui uma cobertura de 100% da ESF,

    totalizando nove USF principais, alm das sub-unidades. Possui ainda uma rede de

    sade composta por Centro de Especialidades Unificadas (especialidades mdicas,

    fonoaudiologia, fisioterapia, nutrio, dentre outras), Centro de Especialidades

    Odontolgicas, Pronto Atendimento, Centro de Ateno Psicossocial I (CAPS I),

    Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas (CASP ad), Centro de Testagem e

    Aconselhamento, Centro de Controle de Zoonoses e Laboratrio. Alm destes

    servios, o municpio possui convnio com um hospital filantrpico.

    Em dezembro de 2010, a Secretaria Municipal de Sade de Anchieta conquistou o

    Prmio Srgio Arouca de Gesto Participativa no SUS, em sua quarta edio,

    graas experincia exitosa de instalao dos CLS em 100% dos territrios de

    sade do municpio. Este prmio foi criado em 2005, em homenagem ao sanitarista

    Sergio Arouca, um dos lderes da Reforma Sanitria no pas, e em sua quarta

    edio, fez parte da agenda da 14 CNS, cujo eixo foi Acesso e acolhimento com

    qualidade: um desafio para o SUS. O objetivo da iniciativa foi promover o

    reconhecimento e a divulgao de experincias exitosas de gesto participativa em

    sade nos servios, organizaes e movimentos sociais (CARMO, 2012).

    Os CLS de Anchieta foram criados como uma proposta de interveno a partir de

    um curso de especializao em ateno primria sade, elaborado e financiado

    pela Secretaria de Estado da Sade do Esprito Santo (SESA) em parceria com as

    Secretarias Municipais de Sade e com Instituies de Ensino Superior do estado

    (CARMO, 2012). 1Alguns empreendimentos a serem desenvolvidos na regio e em especfico em Anchieta-ES so:

    Porto da Petrobrs, Ferrovia Litornea, quarta usina Samarco e siderrgica CSU, da Vale. Estes iro gerar impactos econmicos a partir da gerao de emprego e renda e aumento considervel das receitas do municpio, arrecadao de impostos e da participao dos royalties do petrleo (TOMAZELLI, 2012).

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    O referido curso de especializao foi criado com o intuito de capacitar profissionais

    de nvel superior que atuavam na ateno primria sade do estado e gestores. As

    turmas foram formadas seguindo a distribuio de acordo com o Plano Diretor de

    Regionalizao (PDR) do estado, nas microrregionais de sade