conhecimentos fortuitos nas escutas telefónicas: razão de ser dos crimes de catálogo

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Trabalho apresentado no âmbito do programa da unidade curricular de DIREITO PROCESSUAL PENAL do Mestre Manuel Monteiro Guedes Valente. Foi estabelecido um limite de 10/12 páginas. Última actualização: 22 de Fevereiro de 2011.

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Page 1: Conhecimentos Fortuitos nas Escutas Telefónicas: Razão de ser dos crimes de catálogo

Departamento de Direito

Mestrado em Ciências Jurídicas

CONHECIMENTOS FORTUITOS NAS ESCUTAS TELEFÓNICAS

Razão de ser dos crimes de catálogo

Trabalho apresentado no âmbito do programa da unidade curricular de

DIREITO PROCESSUAL PENAL.

Mestranda: Mónica Isabel Fonseca Sequeira Lima

Docente: Mestre Manuel Monteiro Guedes Valente

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2011

Page 2: Conhecimentos Fortuitos nas Escutas Telefónicas: Razão de ser dos crimes de catálogo

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ABREVIATURAS

Ac. – Acórdão

CDFUE – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CPP – Código de Processo Penal

CRP – Constituição da República Portuguesa

DUDH – Declaração Universal dos Direitos do Homem

PIDCP – Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos

RPCC – Revista Portuguesa de Ciência Criminal

StPO – Strafprozessordnung (Código de Processo Penal Alemão)

TRP – Tribunal da Relação do Porto

Page 3: Conhecimentos Fortuitos nas Escutas Telefónicas: Razão de ser dos crimes de catálogo

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1. Introdução. Escutas telefónicas enquanto meio de obtenção de

prova

Já vários autores se têm pronunciado sobre o potencial e frequentemente

imprevisível impacto devastador deste meio de obtenção de prova, lesante de direitos e

liberdades fundamentais e vida privada das pessoas escutadas, das pessoas para quem

elas falam, e das pessoas que para elas falam, e que demonstram a necessidade de uma

interpretação restritiva do regime jurídico das escutas telefónicas.1 Em particular, Costa

Andrade alertou-nos já para a “danosidade social”, capacidade de devassa de direitos

fundamentais e elevado potencial de ameaça das escutas.2 E, de facto, a sua importância é

tal que se consagrou a proibição de intromissão arbitrária ou ilegal nas comunicações de

uma pessoa em vários diplomas internacionais, nomeadamente nos termos do art. 12.º

DUDH, art.º 17.º, n.º 1 PIDCP, art. 7.º CDFUE, art. 8.º, n.º 1 CEDH, apenas para citar

alguns exemplos,3 que encontram, de certa forma, um paralelismo no n.º 4 do art. 34.º

CRP, que proíbe a prova obtida com intromissão abusiva nas comunicações privadas, e a

sua utilização também nos termos do art. 32.º, n.º 8 CRP.4 Impediu-se assim o legislador

ordinário de deixar em branco os tipos de crimes susceptíveis de investigação para

descoberta da verdade e/ou para prova através das escutas telefónicas, obstando assim a

essa ingerência abusiva nas telecomunicações, defendendo Guedes Valente que a

imposição do catálogo de crimes do n.º 1 do art. 187.º CPP é constitucional.5

A relevância da problemática das escutas telefónicas e, em particular, dos

conhecimentos fortuitos, não se limita a questões dogmáticas. Até porque o seu relevo

pragmático é crescente, face à banalização e multiplicação pelo constante recurso a este

meio de obtenção de prova. O que é grave, não só pelas razões já apontadas. A vocação

das escutas telefónicas não se encontra na “prova dos factos que integram a previsão da

conduta criminosa”, e sim na recolha de informação e compreensão da estrutura de

1 Cf. GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João – A Prova do Crime: Meios Legais para a sua

Obtenção. Coimbra: Almedina, 2009. p. 231; ANDRADE, Manuel da Costa – Das Escutas Telefó-nicas. In VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, coord. - I Congresso de Processo Penal: Memórias. Coimbra: Almedina, 2005. p. 216.

2 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa – Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 283, nota 4 e 4a).

3 Considerando sempre que, na maioria dos preceitos citados, o vocábulo “correspondência” é utili-zado num sentido mais amplo, de forma a abranger também as comunicações (telefónicas). Cf.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes Valente – Escutas Telefónicas: Da Excepcionalidade à Vulga-ridade. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Almedina, 2008. p. 152.

4 Cf. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra:

Coimbra Editora, 2005. Tomo I. p. 373. 5 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76.

Page 4: Conhecimentos Fortuitos nas Escutas Telefónicas: Razão de ser dos crimes de catálogo

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organizações criminosas.6

2. O Regime Actual dos Conhecimentos Fortuitos nas Escutas

Telefónicas

Henriques Eiras/Guilhermina Fortes7 consideram, em sede de escutas telefónicas e

face ao regime actual, conhecimentos fortuitos como os “factos de que foi tomado

conhecimento na intercepção e gravação de conversações que não respeitam ao crime que

as legitimou”. Por seu turno, Francisco Aguilar8 definiu, anteriormente, conhecimentos

fortuitos como “factos (ou conhecimentos) obtidos através de uma escuta telefónica

legalmente efectuada e que não se reportem, nem ao crime cuja investigação determinou

a realização daquela, nem a qualquer outro delito (pertencente ou não ao carácter legal)

que esteja baseado na mesma situação histórica de vida daquele”. Todavia, existe um

regime mais recente e que podemos encontrar no n.º 7 do art. 187.º Código de Processo

Penal (CPP). Assim, e nos termos daquele normativo, “sem prejuízo do dever de comunicar

ao Ministério Público a notícia do crime obtida nas escutas, a gravação de conversações ou

comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se for

indispensável à prova de crime de catálogo e se resultar de intercepção de meio de

comunicação utilizado por suspeito ou arguido, intermediário ou vítima de crime que

efectiva ou presumidamente consinta.”9 Em suma, o conhecimento fortuito vale como

prova quando resultar de intercepção de meio de comunicação usado por pessoa indicada

no n.º 4 (catálogo de alvos) do art. 187.º e quando se refira a um dos crimes do catálogo

relativamente aos quais a escuta telefónica é legalmente admissível (catálogo de crimes).10

Desta forma, as escutas podem ser utilizadas em relação aos crimes catalogares

investigados não só no processo onde foram efectuadas, como também em outros

processos, “já pendentes ou a instaurar, desde que se verifiquem os pressupostos que as

poderiam autorizar ab initio, quer quanto aos crimes admissíveis, às condições da

autorização e às pessoas susceptíveis de serem escutadas.”11

Assim, a lei consagrou a solução maioritariamente defendida pela doutrina (alemã

6 MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Escutas Telefónicas: o que não muda com a reforma. Revista

do CEJ. ISSN 1645-829X. N.º 9 (Jan.-Jun. 2008), p. 241.; Cf. ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova, p. 272.

7 ESCUTAS Telefónicas. In EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermina – Dicionário de Direito Penal e Processo Penal. 3.ª ed. Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 322; EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermi-na, colab. – Processo Penal Elementar. 8.ª ed. actual. Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 175-176.

8 AGUILAR, Francisco – Dos Conhecimentos Fortuitos obtidos através de Escutas Telefónicas: con-tributo para o seu estudo nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Coimbra: Almedina,

2004. p. 18. 9 SANTOS, Manuel Simas; LEAL-HENRIQUES, SANTOS, João Simas – Noções de Processo Penal.

[S.l.]: Rei dos Livros, 2010. p. 258.

10 Cf. GONÇALVES/ALVES, op. cit., p. 239. 11 SANTOS/LEAL-HENRIQUES/SANTOS, Noções de Processo Penal, p. 258.

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e portuguesa)12 e jurisprudência, de acordo com as quais a utilização de conhecimentos

fortuitos é tão somente de admitir quando se refiram a crimes de catálogo do art. 187.º,

relativamente aos quais a escuta é legalmente admissível.13

3. Os Crimes de Catálogo

O tribunal federal alemão pronunciou-se pela admissibilidade da valoração de

todos os conhecimentos fortuitos, considerando que a valoração só é admissível se e na

medida em que os factos conhecidos no âmbito de uma escuta telefónica conforme o

§100a) StPO, estão em conexão com a suspeita de um crime do catálogo no sentido deste

preceito. Nasceu assim o princípio da proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos

que não estejam em conexão com um crime de catálogo.14

A imposição do catálogo de crimes do n.º 1 do art. 187.º é constitucional, nos

termos do art. 34.º, n.º 4, in fine da CRP, para que o legislador ordinário não deixasse em

branco os tipos de crime susceptíveis de investigação para descoberta da verdade e/ou

para prova através da diligência em estudo.15

Segundo Guedes Valente,16 tal tipificação pretende proteger os direitos

fundamentais das pessoas e concretizar os princípios prescritos no n.º 2 do art. 18.º CRP.

Dos crimes tipificados de possível sujeição à diligência, verifica-se que correspondem:

– a crimes designados de criminalidade grave17 ou média – puníveis com

pena de prisão superior no seu máximo a 3 anos de prisão, nos termos da alínea a) do n.º

1 do 187.º CPP. Para Lamas Leite, seria preferível a moldura penal abstracta de cinco anos

de pena de prisão, pois tal reforçaria a ideia de que este meio se deveria reservar para os

ilícitos de maior potencial ofensivo,18 até por uma questão de respeito pelos direitos

fundamentais e para reforço do carácter de ultima ratio deste meio de obtenção de

prova.19

12 Cf. MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Sob Escuta: reflexões sob o problema das escutas telefó-

nicas e as funções do juiz de instrução criminal. São João do Estoril, 2003. p. 92.

13 Cf. SILVA, Germando Marques – Curso de Processo Penal. 4.ª ed. rev. e actual. Lisboa: Verbo,

2008. Vol. II, p. 256; GONÇALVES/ALVES, op. cit., p. 240. 14 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 119.

15 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76. 16 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76.

17 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76. Criminalidade de massa, nas palavras deste autor. Cri-

minalidade média na opinião de LEITE, André Lamas – As escutas telefónicas: algumas reflexões em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação.

Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Edito-ra. Ano I, (2004), p. 25.

18 Cf. LEITE, André Lamas – Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora; Instituto de Direito Penal

Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. ISSN 0871-8563.

Ano 17, n.º 4 (Out.-Dez. 2007), p. 626-627. 19 Cf. LEITE, As escutas telefónicas, p. 25.

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– a crimes de complexa investigação e especialíssima gravidade – tráfico de

estupefacientes, armas, engenhos explosivos, matérias explosivas e análogas, contrabando

– alíneas b) c) e d) do nº 1 do art. 187º CPP. 20

– e crimes de difícil produção de prova e, por conseguinte, de difícil

investigação, apesar de punidos com pena inferior, no máximo, a 3 anos de prisão –

injúria, ameaça, coacção de devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego

praticados por telefone fixo e móvel – al. e) do n.º 1 do art. 187º CPP.

A tipificação do n.º 2 do 187.º CPP não contraria a do n.º anterior, já que se

tratam de tipos de crime puníveis, no máximo, superiores a 3 anos de prisão, visando

“questões de urgência e de necessidade ou de questões logísticas e de economia

processual e de competência territorial.”21

4. Princípios fundamentais como razão de ser do catálogo de crimes

A República Portuguesa tem como base a dignidade da pessoa humana (art. 1.º

CRP). Esta concepção faz da pessoa, do homem concreto e individual, fundamento e fim

da sociedade e do Estado.22 Assim sendo, a República portuguesa, enquanto estado de

direito democrático, deve respeitar e garantir a efectivação dos direitos e liberdades

fundamentais (art. 2.º CRP), que vincula os órgãos de soberania por aplicabilidade directa

(art. 18.º, nº 1 CRP).23 Pretende-se, assim, proteger bens jurídicos constitucionalmente

consagrados e fundamentais ao desenvolvimento de pessoas humanas que se querem

livres, dignas, activas e realizadas numa sociedade organizada. Bens esses que podem ser

“ofendidos por actos investigatórios promovidos por serviços e órgãos do Estado

vinculados ao direito”, e restringidos, nos termos do art. 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 4 e 34.º, n.º

4 CRP.24 Assim, nos termos do art. 18.º da CRP, é prescrito o regime da restrição de

direitos:

(A) A restrição deve fundar-se, explícita ou implicitamente, na Constituição (primeira

parte do n.º 2 do art. 18.º CRP).25

(B) A restrição deve salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente

protegido (in fine, n.º 2 do art. 18.º CRP).26 Para Guedes Valente, “a defesa e

20 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76-77.

21 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 77.

22 Cf. MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. Tomo IV. p. 166, 169; MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, anot. – Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. Tomo I. p. 53.

23 Cf. CANOTILHO, J. J.; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª ed.

rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. Vol. I. p. 208, 382-383. 24 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 134-135.

25 Cf. MIRANDA, Manual, IV, p. 305; CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388; VALENTE,

Escutas Telefónicas, p. 136. 26 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388.

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protecção dos direitos fundamentais das pessoas e a descoberta da verdade para a

realização da justiça e promoção da paz jurídica individual e comunitária são valores

e interesses de relevância constitucional merecedores da restrição de direitos no

âmbito das escutas telefónicas.”27

(C) A restrição deve ser apta para o efeito e na medida necessária para alcançar o

objectivo visado (segunda parte do n.º 2 do art. 18.º CRP)28 – consiste no princípio

da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso, que tem como corolários

os princípios da adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido restrito.29

a. Princípio da adequação ou da idoneidade – as medidas restritivas

legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução

dos fins visados pela lei, para salvaguarda de outros direitos ou bens

constitucionalmente protegidos;30

b. o princípio da exigibilidade, da necessidade ou da indispensabilidade –

as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias, pois que os

fins pretendidos pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos

onerosos para os direitos, liberdades e garantias;31

c. o princípio da proporcionalidade em sentido restrito – os meios legais

restritivos e os fins obtidos situam-se numa justa medida, impedindo-se a

adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação

aos fins obtidos.32 Como pressuposto de legalidade na autorização ou ordem

judicial para a realização de intercepção e gravação de conversações e

comunicações, impõe-se que aquela se revele de «grande interesse para a

descoberta da verdade ou para a prova», nos termos do n.º1 do art. 187.º

CPP.33

(D) A restrição não pode aniquilar o direito em causa com a diminuição da extensão e do

alcance conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (in fine, n.º 3 do art. 18.º

CRP) – qual será o objecto de protecção da norma: o conteúdo essencial da garantia

geral e abstracta ou o conteúdo essencial da posição jurídica e individual de cada

cidadão? Devemos assim considerar que a expressão «preceitos constitucionais»

parece considerar os direitos fundamentais como bens jurídicos objectivos. E será

que o conteúdo essencial possui natureza absoluta (possui uma substancialidade

27 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 136-137. 28 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388; MIRANDA, Manual, I, p. 307; VALENTE, Escu-

tas Telefónicas, p. 137. 29 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 137.

30 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 392. 31 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 392-393.

32 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 393; MIRANDA/MEDEIROS, Constituição, I, p. 162;

MIRANDA, Manual, IV, p. 307. 33 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 137-138, 64-65.

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própria) ou, pelo contrário, relativa (delimita-se perante cada caso concreto,

mediante uma ponderação de bens ou interesses concorrentes)?34 Para Jorge

Miranda, o conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias consignados nos

preceitos constitucionais deve ser entendido com um limite absoluto (contra o abuso

de poder) que corresponde ao valor ou finalidade que justifica o direito, rejeitando

este autor as teses relativas, pois que estas confundem proporcionalidade (art. 18.º,

n.º 2 CRP) com conteúdo essencial (art. 18.º, n.º 3 CRP).35 G. Canotilho e Vital

Moreira defendem uma teoria mista, considerando que a delimitação do conteúdo

essencial se deve articular com a “necessidade de protecção de outros bens ou

direitos constitucionalmente garantidos”, sem se dar uma aniquilação daquele

conteúdo (deve sobrar um resto substancial que assegure a utilidade constitucional

do direito em causa).36 Assim, para Guedes Valente, “o conteúdo essencial do direito

à reserva da intimidade da vida privada não pode ser aniquilado ou nidificado com o

recurso à escuta telefónica sob pena de inutilização da prova por ser proibida.”37

5. Valoração de Conhecimentos Fortuitos

Concluímos assim com os pressupostos de valoração dos conhecimentos fortuitos

em sede de escutas telefónicas. Resulta, desde já, claro, que a valoração, sem restrições,

dos conhecimentos fortuitos, por uma questão de continuidade entre a licitude da

produção de uma prova e legitimidade da sua valoração não prossegue, tal como a

proibição de valoração de todo e qualquer conhecimento fortuito por exigência

constitucional de reserva de lei.38 Assim, “em matéria de escutas é já aceite, como

princípio de observância obrigatória, o da proibição dos conhecimentos fortuitos que não

estejam em conexão com um «crime do catálogo», entendido este como o «numerus

clausus» dos delitos em cuja instrução a lei adjectiva admite a possibilidade de utilização

das escutas.”39

Nos termos do n.º 7 do art. 187.º CPP, a valoração dos conhecimentos fortuitos

encontra-se sujeita, além do critério de indispensabilidade da prova de crime de catálogo

previsto no n.º 1, ao decurso de processo crime40 (“em curso ou a instaurar”), se tiver

34 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 394-395.

35 Cf. MIRANDA, Manual, IV, p. 307-308. Também neste sentido: CANOTILHO, J. J. Gomes – Direi-to Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 460. Para G. Canotilho, “a garantia do conteúdo essencial é um mais em relação ao princípio da proporciona-

lidade.” CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 395. 36 CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 395.

37 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 139-140. 38 SILVA, Curso de Processo Penal, II, p. 254.

39 Ac. TRP de 11-01-1995, proc. n.º 9441000 (n.º convencional JTRP00016793) (Pereira Madeira).

[Em linha]. [Consult. 02 Jan. 2011]. Disponível em URL: http://www.dgsi.pt/. 40 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 77.

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resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado contra um elenco taxativo de

pessoas.41 Assim, o juiz, no despacho a que o n.º 1 do art. 187.º CPP alude, terá de

identificar qual ou quais os números de telefone, telemóvel, etc. cujas comunicações

emitidas e recebidas passam a ser interceptadas e gravadas, independentemente da

titularidade dos meios de comunicação utilizados. Desta forma, é ilícito o recurso a este

meio de obtenção de prova quando o inquérito decorra contra incertos.42

Verificámos também que, além dos requisitos exigidos pelo n.º 7, devem verificar-

se igualmente os pressupostos que autorizariam as escutas ab initio, ou seja, os presentes

no n.º 1 do art. 187.º CPP. Desde logo, que as escutas só podem ser autorizadas durante

a fase de inquérito, e que se encontram sujeitas a um princípio de indispensabilidade43

para a descoberta da verdade ou impossibilidade ou imensa dificuldade de obtenção da

prova por outro meio. É igualmente exigido um despacho fundamentado do juiz de

instrução, por requerimento do Ministério Público.

A não interpretação restritiva de normas que restringem direitos, assim como a

não verificação cumulativa dos requisitos referidos deverá gerar uma proibição de

valoração dos conhecimentos fortuitos, por não salvaguardar minimamente os direitos

fundamentais directamente afectados do sujeito processual em causa, em particular se se

referir a crimes não contemplados no catálogo do art. 187.º CPP.44 Tal justifica-se porque

o “princípio da proporcionalidade resultante do Estado de Direito só permite a restrição das

posições respeitantes a direitos fundamentais apenas naquilo que seja absolutamente

necessário à protecção de bens jurídicos constitucionalmente reconhecidos”, devendo

proibir-se a valoração dos conhecimentos fortuitos que não sejam “relevantes para o fim

de protecção da ordem democrática e livre”.45 Afinal, nas palavras de Costa Andrade, “o

estado de direito é posto mais em crise por uma única violação da lei e do direito por parte

daqueles a quem cabe aplicar a lei e o direito, do que por um criminoso que fica sem

41 Cf. LEITE, Entre Péricles e Sísifo, p. 633. Para Guedes Valente, se for referido um terceiro (que

não participa nas comunicações interceptadas e gravadas), este poderá estar a ser arrastado

pelos intervenientes para a investigação a título de manipulação. A não ser que o terceiro seja

cúmplice ou interveniente do crime, aquele conhecimento fortuito deve, por parte do Ministério Público, originar uma investigação autónoma. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Conhecimen-tos Fortuitos: A Busca de um Equilíbrio Apuleiano! Coimbra: Almedina, 2006. p. 133.

42 Cf. LEITE, Entre Péricles e Sísifo, p. 631. Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, anot. –

Comentário do Código Processual Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 3.ª ed. actual. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009. p. 509-510.

43 Cf. VALENTE, Conhecimentos Fortuitos, p. 135. 44 Cf. VALENTE, Conhecimentos Fortuitos, p. 131, 133-134.

45 Cf. AGUILAR, Dos Conhecimentos Fortuitos, p. 30-31 apud VALENTE, Conhecimentos Fortuitos, p. 105. Daqui se retira também uma necessária obediência a um princípio de subsidariedade: se

só se deve recorrer às “escutas telefónicas quando não seja possível a mesma eficácia probató-

ria à custa de meios menos gravosos”, o mesmo se dirá quanto à valoração dos conhecimentos fortuitos. ANDRADE, Das escutas telefónicas, p. 218.

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punição.”46

6. Conclusões

As escutas telefónicas possuem um elevado potencial lesante de direitos

fundamentais das pessoas escutadas, mas não só para estas. Devido à sua importância e

danosidade social, este meio de obtenção de prova encontra-se regulado em sede do CPP

e limitado por preceitos constitucionais.

No que se refere aos conhecimentos fortuitos, a sua valoração dependerá de

vários requisitos cumulativos, nomeadamente os presentes nos n.ºs 1 e 7 do art. 187.º

CPP, tendo-nos centrado no quesito do catálogo de crimes. Concluímos que se admite a

utilização de conhecimentos fortuitos quando se refiram aos crimes catalogares do art.

187.º CPP, estabelecendo assim uma proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos

que não estejam em conexão com um crime de catálogo. Tal imposição é constitucional e

pretende proteger os direitos fundamentais das pessoas, de que um Estado de Direito,

fundado na dignidade da pessoa humana, não pode abdicar. E pese embora saibamos já

que não existem direitos absolutos, estes devem ser restringidos apenas na medida

necessária e adequada para proteger uma “ordem democrática e livre”.

46 ANDRADE, Das escutas telefónicas, p. 224.

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7. BIBLIOGRAFIA

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-1995, proc. n.º 9441000 (n.º conven-cional JTRP00016793) (Pereira Madeira) [Em linha]. [Consult. 02 Jan. 2011]. Disponível em URL: http://www.dgsi.pt/.

AGUILAR, Francisco – Dos Conhecimentos Fortuitos obtidos através de escutas telefónicas: contributo para o seu estudo nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Coimbra: Almedina, 2004. 117 p. ISBN 972-40-2184-X.

ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, anot. – Comentário do Código Processual Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 3.ª ed. actual. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009. 1642 p. ISBN 972-54-0228-3.

ANDRADE, Manuel da Costa – Das Escutas Telefónicas. In VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, coord. – I Congresso de Processo Penal: Memórias. 416 p. Coimbra: Almedina, 2005. ISBN 972-40-2390-7.

ANDRADE, Manuel da Costa – Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. 343 p. ISBN 972-32-0613-7.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital, anot. – Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. Vol. I. 1152 p. ISBN 978-972-32-1462-8.

CANOTILHO, J. J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coim-bra: Almedina, 2003. 1522 p. ISBN 978-972-40-2106-5.

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