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101 Conhecimento sobre plantas lenhosas da Caatinga: lacunas geogrÆficas e ecológicas Marcelo Tabarelli Universidade Federal de Pernambuco Adriano Vicente Universidade Federal Rural de Pernambuco

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Conhecimentosobre plantas

lenhosas da Caatinga:lacunas geográficas

e ecológicasMarcelo Tabarelli

Universidade Federal de Pernambuco

Adriano VicenteUniversidade Federal Rural de Pernambuco

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A região da Caatinga abrange umaárea aproximada de 800.000km2, incluindopartes dos estados do Piauí, Ceará, RioGrande do Norte, Paraíba, Pernambuco,Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais(Ab�Saber 1977). De modo geral, a biota daCaatinga tem sido descrita na literaturacomo pobre, abrigando poucas espéciesendêmicas e, portanto, de baixo valor parafins de conservação.

Tal descrição contrasta com adiversidade de tipos vegetacionais observadanesse ecossistema. Apesar de bemdelimitada do ponto de vista biogeográfico(Cracraft 1985, Haffer 1985, Rizzini 1997),a vegetação de Caatinga está longe de serhomogênea do ponto de vista fisionômico.Ferri (1980) reconheceu muitas formas decaatinga, tais como: agreste, carrasco,sertão, cariri e seridó, as quais variam emfisionomia e em composição florística.Veloso et al. (1991) definem como savanaestépica a vegetação da Caatinga,reconhecendo quatro fisionomias: a savanaestépica florestada, a arborizada, a parquee a savana estépica gramíneo-lenhosa.Andrade-Lima (1981) divide a Caatinga em6 tipos e 12 subtipos de vegetação. Emgeral, esses tipos representam gradientes,em termos de estrutura física, riqueza ediversidade de espécies, contribuição relativade formas e histórias de vida. Tais gradientesestão associados às variáveis fisiográficas,climáticas e antrópicas dominantes

(Andrade-Lima 1981, Sampaio et al. 1994,Sampaio 1995), entre as quais o solo. O Tipode solo tem sido considerado um indicadorda distribuição de plantas lenhosas naCaatinga (ver Araújo et al. 1999), existindo,pelo menos, 40 tipos nesse bioma (IBGE1985).

Estudos recentes (Andrade-Lima1981, Rodal 1992, Sampaio 1995, Garda1996, Silva & Oren 1997) sugerem que aidéia de �baixa riqueza de espécies� podedecorrer de um artefato de amostragem. Oque a literatura indica, na verdade, é que aCaatinga é uma das regiões menosconhecidas da América do Sul, no que dizrespeito à sua biodiversidade (MMA 1998,Silva & Tabarelli 1999). Várias espécies novasde animais e plantas têm sido descritasrecentemente para a região, indicando umconhecimento zoológico e botânicobastante precário (cf. Silva & Tabarelli 1999).Um estudo sobre o esforço amostral dascoletas de um grupo de anfíbios identificoua Caatinga como uma das regiões menosconhecidas em toda a América do Sul, comextensas áreas sem uma única informaçãosequer (Heyer 1988).

Apesar de insuficientemente co-nhecida, a Caatinga vem sofrendo alteraçõesdrásticas (MMA 1999). O mapa de vegetaçãoproduzido pelo Projeto Radambrasil indicaque cerca de 30% desse ecossistema já foidrasticamente modificado pelo homem(Castelletti et al. 2000). Esse percentual faz

INTRODUÇÃO

And

ré P

esso

a

Caatinga na estação seca

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da Caatinga o terceiro bioma brasileiro maisalterado pelo homem, sendo ultrapassadopela Floresta Atlântica e pelo Cerrado (cf.Myers et al. 2000). Apesar das ameaças àsua integridade, apenas 1,6% da Caatingaestá protegida em unidades de conservaçãode proteção integral (Tabarelli et al. 2000).Esse cenário justifica a necessidade de seampliar rapidamente o conhecimento sobrea distribuição dos organismos e a formacomo estão organizados em comunidadesna Caatinga. Informações completas sobrea distribuição dos organismos sãofundamentais para o entendimento daevolução, ecologia e conservação de umabiota (Primack 1995).

Este estudo procura identificarlacunas geográficas e ecológicas deamostragem de plantas lenhosas daCaatinga e de estudos que caracterizam aforma como essas espécies estãoorganizadas em comunidades. Apesar deincorporar apenas uma parte da informaçãodisponível sobre as plantas lenhosas desseecossistema, o presente estudo possibilitadetectar padrões importantes sobre comoo conhecimento botânico e ecológico estáespacializado na Caatinga. São feitastambém considerações sobre: (1) questõesbiogeográficas e ecológicas que têm suasrespostas associadas ao preenchimento delacunas geográficas e ecológicas deconhecimento; e (2) as principais relaçõesentre conhecimento e conservação dadiversidade biológica da Caatinga.

MATERIAL E MÉTODOS

Distribuição da CaatingaNeste trabalho a Caatinga segue os

limites propostos pelo IBGE (1993), o qualpublicou um mapa (1:5.000.000) contendo adistribuição dos tipos vegetacionais noterritório brasileiro. Com base neste mapa, opolígono da Caatinga possui uma área de777.915,08km2, onde são encontrados 19tipos vegetacionais. Entre esses, sete tipos sãode caatinga sensu lato (savana estépica),incluindo áreas de contato com atividadesantrópicas, cerrado (savana) e floresta

estacional. Em conjunto, essas sete unidadese o tipo contato savana-floresta estacional (oqual abriga vegetação do tipo carrasco)cobrem 732.545,08km2 (94,1% da área dopolígono). O restante do polígono da Caatingaé coberto por enclaves de cerrado e áreas detransição entre cerrado e outros tipos florestais.

Distribuição geográfica e ecológicadas coletas e dos estudos

Para avaliar a distribuição geográficae ecológica das coletas de plantas lenhosase dos estudos florísticos e fitossociológicosna Caatinga foram produzidos e/ou utilizadosos seguintes mapas digitais na escala de1:5.000.000: distribuição das localidadescom coletas e estudos, distribuição dasáreas perturbadas na Caatinga, e tipos devegetação e de solos da Caatinga.

Para a produção do mapa delocalidades com coletas e estudos utilizou-se registros de material botânico depositadonos herbários Dárdano de Andrade-Lima(Empresa Pernambucana de PesquisaAgropecuária), Geraldo Mariz (UniversidadeFederal de Pernambuco), VasconcelosSobrinho (Universidade Federal Rural dePernambuco) e Herbário da UniversidadeFederal de Sergipe. Foram utilizadosregistros de plantas de 61 famílias queocorrem na Caatinga, sendo que cadaregistro de herbário eqüivale a uma coletaneste trabalho. As informações sobre osestudos realizados na Caatinga foramobtidas na literatura pertinente.

Como mapa de áreas perturbadas naCaatinga, foi utilizado aquele produzido porCastelletti et al. (2000). São reconhecidascomo áreas perturbadas aquelas próximasde rodovias ou onde a atividadeagropecuária é intensa segundo IBGE(1993). Os mapas de vegetação e solo foramobtidos através da digitalização dos mapaspublicados pelo IBGE (1985, 1993). Admite-se que o número de tipos de vegetaçãoreconhecido é menor do que poderia ser e,portanto, corre-se o risco de subestimar-sea quantidade de tipos existentes na região(ver detalhes em IBGE 1993). Entretanto,esse é o único e melhor mapa disponível nomomento em formato digital.

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Análise dos dadosA análise da distribuição geográfica e

ecológica das coletas de plantas lenhosas edos estudos na Caatinga foi feita através docruzamento dos mapas digitais utilizando-se as ferramentas Xtools e Script Calc_Area,com a projeção Equal_Area Cylindrical, doprograma Arc View (ESRI 1998). Parafacilitar as análises, o mapa de limites dobioma foi dividido em quadrículas de 40 x40km (1.600km2).

Utilizou-se o Teste G (Sokal & Rohlf1995) para analisar a distribuição das coletase dos estudos em relação à perturbação daCaatinga, tipo de vegetação e solo. O mesmoteste foi utilizado para analisar a distribuiçãodas coletas e dos estudos em relação àdistância da cidade de Recife (0-1000km),considerado um centro de ensino e pesquisa.

Ressaltamos que a informação utilizadanesse artigo não é completa, pois diversascoleções de plantas não foram incluídas em

nossa análise (existem 21 herbários na regiãoNordeste, Barbosa & Barbosa 1996). Todavia,a informação disponível é capaz de mostrartendências importantes sobre a distribuiçãogeográfica e ecológica do esforço de coleta(número de registros por área) e dacaracterização de comunidades de plantaslenhosas na Caatinga (estudos florísticos efitossociológicos).

RESULTADOS

Distribuição geográfica dascoletas e dos estudos

Foram identificadas 306 localidadesna Caatinga para as quais há 3.528coletas, enquanto os 49 estudosregistrados estão distribuídos em 37localidades. Os mapas de distribuição eesforço de coleta de plantas lenhosas

Figura 1Localidadescom coletade plantaslenhosas naCaatinga.

ColetaLimite da Caatinga

N0 200 Km

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(Figuras 1 e 2) sugerem a existência delacunas geográficas de informação eesforço desigual de coleta na região. Aárea na qual não foram registradas coletasrepresenta 41,1% da Caatinga, e a áreaonde há entre 1 e 10 coletas/1.600km2

representa outros 40%. Dessa forma,estima-se que 80% da área da Caatingaestá sub-amostrada (< 10 registros/1.600km2). As áreas sub-amostradasconcentram-se na periferia geográfica dobioma.

Ao contrário, as áreas melhorconhecidas concentram-se nas proximi-

dades dos centros de ensino e pesquisa.Há menos coletas por unidade de área àmedida em que se aumenta a distância emrelação à cidade do Recife (G = 3042,6,g.l.= 9, P < 0.001) (Figura 3). A maior partedas coletas (61%) entre 0 e 1.000km dedistância dessa cidade, encontra-se nos500km mais próximos, os quaisrepresentam apenas 25% das áreas decoleta incluída nessa análise. O mesmopadrão é observado em relação àdistribuição dos estudos, dos quais83,3% estão localizados a até 600km dedistância dessa cidade

Figura 2Distribuição do

esforço decoleta de plantas

lenhosas naCaatinga.

Limite da Caatinga

0 200 Km

N

Intensidade de coleta1 - 1010 - 5050 - 100100 - 200200 - 300

106

A maior parte das coletas (71,8%) edos estudos (81,6%) foi realizada em áreasou regiões consideradas perturbadas,apesar dessas áreas representarem 45,3%do bioma (Figura 4). Ou seja, as áreas da

Figura 4Distribuição dascoletas eestudos deplantas lenhosasem áreas com esem pressãoantrópica naCaatinga.

Caatinga menos perturbadas pela açãoantrópica são as que apresentam menoscoletas e estudos (G = 1033,9, g.l. =1, P < 0,001; G = 27,45, g.l. = 1, P <0,001).

EstudosColetas

Perturbação antrópicaCom pressãoSem pressão

N0 200 Km

Limite da Caatinga

Figura 3Distribuição relativa daárea amostral, dascoletas(N = 3.532)e dos estudos(N = 42)de plantas lenhosasem relação à distânciada cidade do Recife(0-1.000km).

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10Classes de distância

40

35

30

25

20

15

10

5

0

%

ÁreaColetaEstudos

Distribuição ecológica das coletas e dos estudos

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Unidades vegetacionais Área % Coletas % Estudos %Savana estépica arborizada 39,2 38,7 (1366) 26,5 (13)Savana estépica-atividades agrícolas 27,3 40,5 (1427) 53,0 (26)Contato savana estépica-floresta estacional 16,2 12,3 (436) 4,1 (2)Savana estépica florestada 6,9 2,6 (94) 8,2 (4)Contato savana-savana estépica-florestaestacional 4,2 0,1 (4) 0Contato savana-savana estépica 2,3 0,8 (28) 0Contato savana-floresta estacional 1,5 2,6 (93) 8,2 (4)Savana estépica parque 1,4 2,2 (80) 0Total 98,9 100 (3528) 100 (49)

Entre parêntesis está o número absoluto.

Tabela 1 - Percentual de coletas e estudos nos diferentes tiposvegetacionais da Caatinga, com suas respectivas áreas.

A distribuição das coletas e dosestudos é proporcional à área cobertapelos diferentes tipos vegetacionais (Tabela1). Todavia, o tipo vegetacional com maiornúmero de coletas e de estudos,corresponde aquele onde a atividadehumana é mais marcante (savana estépica-atividades agrícolas). Para cinco tiposvegetacionais há menos que 100 coletase para três tipos não há registros deestudos. Ou seja, 62,5% dos tiposvegetacionais da Caatinga estão sub-amostrados, pois possuem poucosregistros de plantas (< 100) e poucosestudos (< 5).

Dentre os 40 tipos de soloencontrados na Caatinga, 26 (65%)possuem coletas de plantas lenhosas, maspara apenas 11 (27,5%) há mais de 50coletas registradas. Em apenas nove tiposde solos (22,5%) foram realizados estudos.Ao contrário do observado para o tiposvegetacionais, a distribuição do esforço decoleta e dos estudos difere daabrangência relativa dos tipos de solo(G = 1554,42, g.l. = 8, P < 0.001;G= 37,1, g.l. = 7, P< 0,001) (Tabela 2).Alguns tipos, como o regossolo, apesar deocupar apenas 3,9% da área da Caatinga,abriga 13,2% das coletas e 14,2% dosestudos.

Tipos de solo Área % Coletas % Estudos %Solos bruno não cálcicos 13,7 26,8 (946) 22,4 (11)Latossolo vermelho-amarelo distrófico 13,3 5,4 (192) 10,2 (5)Podzólico vermelho-amarelo eutrófico Tb 11,1 14,0 (496) 0,0Solos litólicos eutróficos 9,2 7,1 (252) 12,6 (6)Areias quatzosas distróficas 9,1 3,1 (110) 2,0 (1)Planossolo solódico 8,8 13,0 (461) 8,1 (4)Solos litólicos distróficos 6,9 5,3 (187) 0,0Latossolo vermelho-amarelodistrófico e eutrófico 4,7 2,7 (95) 12,6 (6)Regossolo eutrófico 3,9 13,2 (465) 14,2 (7)Laterita hidromórfica distrófica 3,3 0,05 (2) 0,0Solonotez-solodizado 1,7 4,5 (160) 0,0Podzólico vermelho-amarelo distrófico 1,3 0,03 (1) 16,3 (8)Outros 13,0 4,6 (161) 2,0 (1)

Entre parêntesis está o número absoluto.

Tabela 2 - Percentual de coletas de plantas lenhosas e de estudos portipo de solo na Caatinga, com suas respectivas áreas.

Os resultados desse estudo sugerema existência de lacunas geográficas eecológicas em termos de coletas e estudossobre comunidades de plantas lenhosas naCaatinga. Especificamente, grande parte dainformação está concentrada na regiãocentral desse bioma, a qual corresponde aáreas sob forte pressão antrópica, e nasadjacências dos centros de ensino e pesquisa(cf. Figura 4). A informação está concentrada,também, em dois tipos vegetacionais (savanaestépica arborizada e savana estépica-

atividades agrícolas) e em sete tipos de solos.Isto eqüivale a dizer que o nível de informaçãosobre a ocorrência e forma de organizaçãodesse grupo biológico é reduzido ou atémesmo inexistente para 80% da Caatinga.

Na Caatinga, as lacunas geográficase ecológicas estão correlacionadas. As áreasmais afastadas dos centros de ensino epesquisa (a maioria próxima do litoral),correspondem às regiões ecotonais entre aCaatinga, o Cerrado, as matas secas e os

DISCUSSÃO

Lacunas geográficas e ecológicas de informação

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campos ruprestes. São também as regiõesonde estão os tipos vegetacionais (os tiposcontato, sensu Veloso et al. 1991) e muitosdos solos sub-amostrados. Em váriosecossistemas tropicais, incluindo a Caatinga,as regiões ecotonais têm sido caracterizadascomo áreas distintas em termos de riqueza,composição e organização dascomunidades vegetais (Araújo et al. 1999,Ribeiro 2000). Há evidências de que asregiões ecotonais correspondem, também,às áreas onde os processos de especiaçãoocorrem com maior freqüência (Smith et al.1997). Dessa forma, as lacunas aquidetectadas têm implicações importantespara o conhecimento e a conservação daCaatinga.

Implicações para oconhecimento da Caatinga

Conhecimento sobre a distribuição deorganismos vegetais e a forma com que elesse organizam em comunidades nas biotasé fundamental para entender questõescomo a origem da flora, sua riqueza e seunível de endemismo, e a distribuição espaciale ecológica das entidades taxonômicas,formas e histórias de vida.

Sínteses já foram realizadas paraalguns biomas brasileiros. Estima-se, porexemplo, que a Floresta Atlântica brasileirapossua 20.000 espécies de plantasvasculares, das quais 8.000 seriamendêmicas (2,7% das plantas do planeta)(Myers et al. 2000). Entre 40 e 50% dasespécies lenhosas encontradas em qualquertrecho dessa floresta são endêmicas àmesma (Mori et al. 1981, Thomas et al.1998). São reconhecidos para a FlorestaAtlântica três centros de endemismos �Pernambuco, sul da Bahia e Rio de Janeiro-São Paulo � os quais, acredita-se,representaram áreas de refúgio florestaldurante as glaciações do quaternário (Prance1987). Cada um desses centros temcontribuições distintas da flora Amazônica,associadas às ligações entre essas biotasdurante o terciário (Prance 1979) e às rotasde migração através do Cerrado e regiõeslitorâneas (Rizzini 1963). No sul da Bahia, porexemplo, as espécies com padrão de

distribuição Amazônia-Bahia, representamcerca de 7% da flora de plantas lenhosas(Thomas et al. 1998). Ao norte do rio SãoFrancisco, as espécies com padrão dedistribuição Amazônia-Floresta Atlânticaocorrem preferencialmente nas florestas deterras baixas, enquanto aquelas oriundas dosul e sudeste do Brasil ocorrem nas florestassub-montanas e montanas (Andrade-Lima1964, 1966).

Informações sobre riqueza,endemismo, distribuição geográfica eecológica de plantas lenhosas da Caatingaexistem de forma preliminar. Gamarra-Rojas& Sampaio (2002) citam pelo menos 1.102espécies lenhosas para a Caatinga. Giuliettiet al. (2002) encontraram 318 espéciesendêmicas a esse bioma, e, por outro lado,62 espécies apresentam ampla distribuiçãonas florestas secas sul-americanas (Prado &Gibbs 1993). Em alguns grupos, como nasfamílias Cactaceae, Bromeliaceae eAsteraceae, o índice de endemismo podeser elevado (Rizzini 1997). Rodal (1992)sugere que a Caatinga contém, pelo menos,dois blocos florísticos, norte e sul, separadospelo maciço da Borborema, cada um comsuas espécies vegetais características eendêmicas. Silva & Oren (1997) reconhe-ceram, também, duas áreas de diferenciaçãopara uma espécie de ave endêmica àCaatinga. Novas sínteses sobre riqueza,endemismos, relações biogeográficas e tiposvegetacionais da Caatinga devem surgir àmedida em que algumas das lacunasdetectadas nesse estudo forem preenchidas.

Implicações para aconservação da Caatinga

O conhecimento sobre a distribuiçãodos organismos e das comunidades temimplicações importantes para aconservação da diversidade biológica, taiscomo, quantificar e qualificar os efeitos daação antrópica (p. ex. redução de hábitats,fragmentação, extração seletiva) sobre abiota, estabelecer estratégias eficientes deconservação, atrair entidades financiadorase programas de conservação e fornecersubsídio científico aos formuladores depolíticas públicas.

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Coimbra-Filho & Câmara (1996)lançaram a hipótese que, antes da chegadados colonizadores europeus, a Caatingaera, em sua grande parte, composta porflorestas secas muita mais desenvolvidas,em termos estruturais, do que aquelasobservadas atualmente. Se a estrutura dafloresta se alterou, também houvemudanças na composição das espéciesvegetais, na riqueza dos organismos e nacomposição das estratégias biológicaspresentes, já que existem relaçõesconhecidas entre essas variáveis nasflorestas secas (Murphy & Lugo 1986,Gentry 1995, Medina 1995). Hipótesescomo essa, só podem ser cientificamenteavaliadas à medida em que áreashistoricamente bem preservadas daCaatinga forem estudadas. Infelizmente, adistribuição dos estudos realizados até omomento parece estar concentrada emáreas ou regiões com longo histórico deperturbação antrópica.

Do ponto de vista da conservação, oestabelecimento de um sistema ou rede deáreas protegidas é um dos maisimportantes instrumentos ou estratégiaspara garantir a conservação da diversidadebiológica de uma biota (Margules & Pressey2000). A eficiência desse instrumento podeser medida pelo percentual de espécies�capturadas pelo sistema� (represen-tatividade biológica), pela manutenção depopulações viáveis e por sua capacidadede manter processos ecológicos emdiferentes escalas espaciais que garantamresiliência à biota (Noss et al. 1997).

Dessa forma, informações com-pletas sobre a distribuição de organismosde uma biota são fundamentais para queo sistema planejado de áreas protegidastenha a máxima representatividadebiológica. Em um esforço coletivo, mais de100 pesquisadores identificaram 82 áreasprioritárias para a conservação da Caatingacom base na informação biológicadisponível (Silva & Tabarelli 2000). Entreessas, 25 (30,5%) foram consideradasáreas insuficientemente conhecidas, asquais representam cerca de 20% da áreada Caatinga. Com o preenchimento demuitas das lacunas geográficas e

ecológicas identificadas nesse estudo, omapa de áreas prioritárias para aconservação da diversidade poderá sofrermodificações. Seleção de áreas prioritáriascom base no conhecimento sobre adistribuição da biodiversidade é um métodoextremamente útil (Margules & Pressey2000). Todavia, se reconhece que naausência de informações confiáveis asáreas consideradas mais ricas podem ser,na verdade, apenas as áreas melhoramostradas (Nelson 1991).

Insuficientemente conhecida, aCaatinga permanece ainda hoje fora docenário nacional e internacional em termosde prioridades para a conservação dadiversidade biológica. A Caatinga, porexemplo, não faz parte de nenhum dosgrandes projetos de conservação queoperam a nível mundial, como a Reservada Biosfera, The Global Two Hundreds-Conservation Priorities (World WildlifeFoundation) e Conserving BiodiversityHotspots (Conservation International).É importante mencionar que entre as25 regiões consideradas como altaprioridade mundial para conservação pelaConservation International, cinco sãoregiões semi-áridas que abrigam 19% dasplantas vasculares do planeta (Myers et al.2000).

O conhecimento científico é umacondição essencial para o estabelecimentode políticas eficazes de conservação. Aocontrário, conhecimento inadequado é umaliado perigoso nas mãos de planejadoresinteressados em converter áreas naturaisem pólos de desenvolvimento econômico.No Cerrado, por exemplo, um dos alicercesdas políticas públicas implementadas nessebioma nas últimas três décadas, foi a idéiade que sua vegetação era pobre emespécies endêmicas e, dessa forma, suasubstituição por empreendimentosagropecuários traria poucos prejuízosambientais (Silva 1998). Hoje sabe-se queo Cerrado é rico em espécies vegetaisendêmicas (Heringer et al. 1977, Rizzini1997) e pode apresentar uma diversidadefilética de plantas vasculares superior às dasflorestas Atlântica e Amazônica (Gottlieb &Borin 1994). Seguramente, um dos

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motivos do desamparo legal que a Caatingaainda sofre é a crença generalizada de queesse bioma é pobre e, portanto, poucoimportante.

Em síntese, os resultados desseestudo suportam as idéias de que aCaatinga é um dos biomas brasileirosmenos conhecidos, que sua �baixa riquezade espécies� pode ser um artefato deamostragem e que a distância dos centrosde ensino e pesquisa é um preditor dadistribuição geográfica e ecológica dasinformações sobre plantas lenhosas daCaatinga. A partir das lacunas e tendênciasidentificadas nesse estudo, novos esforçosde investigação podem ser planejados, comobjetivo de ampliar a representatividadegeográfica e ecológica do conhecimento

das plantas lenhosas da Caatinga. Novasinformações sobre a ocorrência edistribuição dos organismos são essenciais,não só para ampliar o entendimento sobrea diversidade biológica dessa biota, maspara sua própria conservação.

AgradecimentosAos curadores dos herbários

Dárdano de Andrade-Lima � EmpresaPernambucana de Pesquisa Agropecuária;Herbário Geraldo Mariz � UniversidadeFederal de Pernambuco, VasconcelosSobrinho � Universidade Federal Rural dePernambuco e Herbário da UniversidadeFederal de Sergipe.

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