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0 CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO GROSSO RUTH ALBERNAZ SILVEIRA Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Mato Grosso, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais para a obtenção do título de Mestre. CÁCERES MATO GROSSO, BRASIL 2010

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0

CONHECIMENTO ECOLÓGICO

TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE

CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO GROSSO

RUTH ALBERNAZ SILVEIRA

Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Mato Grosso, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais para a obtenção do título de Mestre.

CÁCERES

MATO GROSSO, BRASIL

2010

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1

RUTH ALBERNAZ SILVEIRA

CONHECIMENTO ECOLÓGICO

TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE

CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO GROSSO

Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Mato Grosso, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais para a obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª Drª Carolina Joana da Silva

CÁCERES

MATO GROSSO, BRASIL

2010

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2

Ruth Albernaz Silveira

CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES

DA COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM, PANTANAL DE MATO

GROSSO

Essa dissertação foi julgada e aprovada como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre em Ciências Ambientais.

Cáceres-MT, 20 de março de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Profª Drª Carolina Joana da Silva

Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT

Orientadora

_________________________________________________________

Profª. Drª. Joana Aparecida Fernandes Silva

Universidade Federal de Goiás - UFG

_________________________________________________________

Prof. Dr. Waldir José Gaspar

Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

_________________________________________________________

Prof. Dr. Heitor Queiroz de Medeiros

Universidade do Estado de Mato Grosso

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3

DEDICATÓRIA

Aos ribeirinhos de Cuiabá Mirim, que me ensinaram a olhar os pássaros

com a poética de Manoel de Barros...

A todas as pessoas que amo, que me inspiram a ser o que sou...

Ao Félix e Reinaldo, com a alegria do nosso amor.

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AGRADECIMENTO ESPECIAL

Sou grata a minha orientadora e amiga, professora Carolina Joana da Silva, pelos

bons ensinamentos e amizade ao longo de todos esses anos...

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5

AGRADECIMENTOS

À Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, pelo espaço

acadêmico oferecido e pela oportunidade de crescimento intelectual.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -

CAPES, pela bolsa de estudos concedida.

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais - PPGCA e ao

Centro de Estudos de Limnologia, Biodiversidade e Ecologia - CELBE pela

estrutura ofertada ao programa.

À Profª. Drª. Carolina Joana Da Silva, pelo apoio intelectual e

encorajamento contínuo, por seu exemplo de dedicação, organização e

competência em Ecologia e atenção especial à pesquisa em Etnoecologia.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências

Ambientais - UNEMAT: Carolina Joana Da Silva, Heitor Medeiros de Queiroz,

Aumeri Bampi, Stela França, Manoel dos Santos Filho, Carlos Teodoro Irigaray,

Germano Guarim Neto, Carla Galbiati, Mônica Josene, Elias Renato da Silva

Januário, Maria Aparecida, pela consideração e ensinamentos.

Aos professores Dr. Elias Renato da Silva Januário, Dr. Heitor Queiroz

de Medeiros pelas contribuições na aula de Qualificação.

Aos amigos queridos da ciranda do Mestrado, Wilkinson Lopes Lázaro,

Rosália Valençoela, Hilton Marcelo Souza, Everaldo Soares, Mairo Camargo,

João Severino, Korotowi Ikpeng, Ângela Pinheiro, Arlene Alcântara, Lilian

Machado, Hébia de Paula, Laura Justiniano, Maiuá Txicão Ikpeng e Marcos

Arruda, pelas discussões valiosas em sala de aula, pelo convívio e amizade.

À professora Carla Galbiati, pela coordenação do Mestrado. À Ediléia e

Ricardo, pela presteza na Secretaria do Programa.

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6

Aos meus pais: Iracema Albernaz e Simondes Fraga Silveira, por toda

energia ancestral ancorada no meu sistema e pelos ensinamentos da vida.

Aos meus irmãos consangüíneos, Keila, Simondes e Nelson, pela

oportunidade de nos relacionarmos como família.

Ao meu companheiro Reinaldo Gaspar Mota, pelo amor que nos nutre,

amizade, companheirismo e apoio ao meu crescimento profissional.

Ao Félix, meu filho amado, que me ensina todos os dias que é

necessário aprender a arte de conviver e “aceitar a vida como ela é”.

À Acelina Rondon minha prima-irmã, aqui representando todos meus

parentes, pelo amor que nos une.

Ao Pedro Paulo e Carolina pelo amor, amizade e por serem um porto

seguro na minha vida.

À minha amiga-irmazona do coração Imara Quadros, que estamos

sempre de mãos dadas nessa caminhada, pela amizade sincera e carinho para

comigo.

Aos queridos amigos Heitor e Cely pelo apoio, amizade e animadas

conversas em Cáceres.

À Michèle Sato, amiga querida, que tanto me ensina a respeito de

inúmeras coisas, como a caminhada na Educação Ambiental, sou grata por

participar do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental-GPEA/UFMT.

À Yara Galdino pelos toques dado na escrita científica e pela amizade.

À lika - Liete Alves pela bela amizade que tecemos sempre por meio de

horas e horas de conversas na nossa fome por cultura, diversão, arte e

ecologismo...

À Regina Silva e Michelle Jaber, nossos corações estão sempre ligados.

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7

À Cris Campos, por estar sempre me lembrando que é necessário

sermos excelentes quando nos propomos fazer algo.

À Iris Viana, por me apresentar a comunidade Cuiabá Mirim e pela

oportunidade de conhecê-la melhor e poder construir uma boa amizade.

Ao Jaime Rufino, amigo querido, que sempre me incentivou a estudar

desde quando começamos a graduação em Biologia em 1990.

Aos amigos Teodoro e Maria Irigaray, Marília e Pierre Girard, Cristiane

Façanha e Everton, Ana Hein, Josué Ribeiro, Maria Antônia Carnielo, Shirley

Marcato e todos os amigos que sempre estiveram comigo.

Ao Rodrigo Morais pelos ensinamentos do ANTROPAC e por ter me

mostrado que “é necessário superar os limites metodológicos para realizar a

escrita”.

Às pessoas de Cuiabá Mirim, em especial, Dona Ursolina e Seu

Salvador, Seu Biró e Dona Benedita, Seu Lúcio e Dona Ana Rosa, Seu

Sebastião e Dona Maria, Seu Flávio, Seu Bic e Dona Ana Gonçalina, Dona

Escolástica, irmã Benta e Seu Tote, Seu Martinho, Dona Adelina, Dona Maria

Aparecida e Seu Ivan, Nhô Gon, Domingos e Nega, Maria e Angela. E a toda a

comunidade de CUIABÁ MIRIM.

Às crianças de Cuiabá Mirim, aqui representadas por Milaine e Darlan,

que me ensinaram os caminhos daquele espaço de “con-vivência”.

Aos amigos do curso da Universidade da Flórida, Robert Buschbacher,

Wendy-lin Bartels, Simone Athayde, Renato Farias, Francisco Stuchi, Elineide

Marques, Maria do Socorro, Walterlina Brasil, André Baby, Mônica Grabert,

Taravy Kaiabi, Kátia, Isabela, Thaissa, Frederico e Paula Bernasconi.

À Deus – fonte de Luz, Amor e Vida e aos meus Guias Espirituais.

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8

SOBRE A AUTORA

Deixei uma ave me amanhecer.

Manoel de Barros

Ruth Albernaz Silveira, nascida sob o signo de câncer, é nativa de

Chapada dos Guimarães-MT, Bioma Cerrado, onde nascem águas que

alimentam o Pantanal.

Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato

Grosso - UFMT. Integrante da Rede Mato-grossense de Educação Ambiental -

REMTEA. Compõe a equipe do Instituto de Ecologia e Populações Tradicionais

do Pantanal - ECOPANTANAL. Possui experiência principalmente nos

seguintes temas: arte-educação ambiental, sustentabilidade, conservação da

biodiversidade, saúde e ecologia. Desenvolve trabalhos de arte a partir de

fibras vegetais da Amazônia, cerrado e Pantanal e elaboração de papéis

artesanais.

Foto: Reinaldo Mota

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Ninho que aninha

Sonhos

Esperança de continuidade

No canto do beija-flor

(Ruth Albernaz)

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ÍNDICE

Lista de abreviaturas, siglas e símbolos 14

Lista de tabelas 15

Lista de figuras 16

Resumo 18

Abstract 20

1. Introdução Geral 21

1.1. Referências bibliográficas geral

2. Capítulo I - Conhecimento ecológico tradicional de aves

28

32

Resumo 33

Abstract 34

2.1. Introdução 35

2.2. Material e Métodos

O Pantanal

Métodos

Pesquisa de campo

Pré-teste

Entrevista estruturada

Quem come quem

Observação Participante

Processamento dos dados

37

37

41

41

42

43

44

45

45

2.3. Resultados

Perfil dos informantes

Rede Social

Conhecimento ecológico tradicional de aves

Etnocategorias de aves

Conexões com a paisagem

Conexões de sobrevivência humana

Conexões de comportamento

Conexões estéticas

Conexões de sobrevivência

48

48

50

52

54

55

59

60

61

63

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11

Rede alimentar das aves 68

2.4. Discussão

2.5. Considerações Finais

73

78

2.6. Referências bibliográficas 79

3.0. Capítulo II - Etnoindicadores climáticos 83

Resumo

Abstract

84

85

3.1. Introdução 86

3.2. Material e Métodos

Área de estudo

Pantanal: aspectos físicos e biológicos

Pantanal de Cuiabá Mirim

Métodos

90

90

90

94

95

3.3. Resultados e Discussão

Significações culturais e ecológicas de Cuiabá Mirim

Etnocalendário social: tempo de escola e tempo de festas

Etnocalendário sócio-ecológico: tempo de pescar, plantar e colher

Etocalendário sócio-ecológico: tempo de enchente-cheia-vazante

Etnoindicadores climáticos

Fauna

Flora

Indicadores de alterações climáticas

99

99

100

104

107

108

112

113

116

3.4. Considerações Finais 121

2.6. Referências bibliográficas

Webliografia consultada

122

128

4.0. Capítulo III – As aves na Cosmologia Pantaneira 129

Resumo 130

Abstract 131

4.1. Introdução 132

4.2. Material e Métodos

A comunidade de Cuiabá Mirim

Métodos

135

135

136

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12

Percursos sobrevoados 136

4.3. Resultados e Discussão 138

4.4. Considerações Finais 147

4.5. Referências bibliográficas 147

Considerações Finais Gerais 150

Anexos 153

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13

LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS

BAP: Bacia do Alto Paraguai

CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Profissionais do Ensino Superior

CET: Conhecimento Ecológico Tradicional

EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

IPCC: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas

MT: Mato Grosso

ODM: Objetivos do Milênio

OMM: Organização Meteorológica Mundial

ONU: Organização das Nações Unidas

PNUMA: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPGCA: Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais

UNEMAT: Universidade do Estado de Mato Grosso

UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura

WWF: World Wildlife Fund

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14

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Modelo de entrevista semi-estruturada 44

Tabela 2. Origem dos informantes e tempo de residência em Cuiabá

Mirim

48

Tabela 3. Fragmento do anexo I. Análise de lista livre do conhecimento

das aves

53

Tabela 4. Análise de Consenso Cultural das etnoespécies de aves 54

Tabela 5. Tabela geral: Etnocategorias e quantidade de espécies 55

Tabela 6. Etnocategoria quanto ao vôo 56

Tabela 7. Etnocategoria quanto ao habitat 58

Tabela 8. Etnocategoria de aves que servem como alimento 60

Tabela 9. Etnocategoria quanto ao comportamento 60

Tabela 10. Etnocategoria quanto à aparência 62

Tabela 11. Etnocategoria de aves que podem ser criadas em casa 62

Tabela 12. Etnocategoria quanto ao hábito alimentar 65

Tabela 13. Lista associada de aves e peixes 72

Tabela 14. Avifauna etnoindicadora de mudanças temporais 111

Tabela 15. Etnoindicadores climáticos 115

Tabela 16. Percepção das mudanças climáticas do Pantanal 117

Tabela 17. Etnoindicadores simbólicos 142

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15

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Arte do Chão. Série Imagética Pantaneira 32

Figura 2. Imagem da área de estudo no Pantanal 39

Figura 3. Vista da Baía Siá Mariana, próximo à comunidade 40

Figura 4. Leito antigo do Rio Cuiabá 40

Figura 5. Observação participante na comunidade 47

Figura 6. Distribuição das profissões dos informantes 49

Figura 7. Rede social dos informantes 51

Figura 8. Urubu alimentando 61

Figura 9. Cabecinha vermelha e bem-te-vi 64

Figura 10. Rede alimentar: interação aves-plantas-bichos-terra-água 69

Figura 11. Cadeia alimentar com fluxo de energia direcional 70

Figura 12. Cadeia alimentar, interação animal-planta-mineral 70

Figura 13. Cadeia alimentar envolvendo organismos aquáticos, áreas

úmidas e terrestres

71

Figura 14. Etnoespécies ocupando o mesmo nicho interação animal-

vegetal-mineral

71

Figura 15. Rede alimentar envolvendo mineral-vegetal-animal-ser

humano

71

Figura 16. Entardecer no inverno, baia de Siá Mariana 84

Figura 17. Ninhos de Japuíra 95

Figura 18. Menino com pássaro e menina limpando lambari 102

Figura 19. Festa no Pantanal 104

Figura 20. Categoria de sinais-chave das aves 110

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16

Figura 21. Arte do chão I. Série Imagética Pantaneira 129

Figura 22. Interconexões do universo cosmológico dos ribeirinhos

pantaneiros de Cuiabá Mirim

139

Figura 23. Sinais-chave das aves etno-indicadoras simbólicas 141

Figura 24. Imagem de Sebastião Mendes 145

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17

RESUMO

ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da

Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010.

163 p. (Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).

O conhecimento ecológico tradicional é um sistema de conhecimento que

reflete a adaptação das populações humanas em seu ambiente. Este trabalho

apresenta o Conhecimento ecológico tradicional – CET de aves pelos

pantaneiros da Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso, Brasil. A

área de estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, próximo ao

sistema das baías de Chacororé e Siá Mariana. Os conhecimentos tradicionais

de comunidades do Pantanal desenhados pela intrínseca relação com o ciclo

das águas trazem no seu bojo a forte expressão da cultura local, onde o modo

de vida expressa importantes informações para a construção de sociedades

sustentáveis. O conhecimento ecológico tradicional de 22 pantaneiros foi

desvelado num processo dialógico, por meio de uma abordagem metodológica

híbrida de cunho qualitativo e quantitativo pelo viés da gestão e educação

ambiental. Para a coleta de dados foi utilizado técnicas como Listas Livres,

Observação Participante, Entrevistas Estruturadas e Semi-estruturadas. Os

informantes identificaram cento e oitenta e oito (188) etnoespécies de aves e

as etnocategorizaram de acordo com o hábito alimentar, hábitat, a aparência,

comportamento, as que podem ser criadas em casa e as que servem para

alimentação humana. No cotidiano da comunidade foi observado os

etnocalendários ligados ao sistema sócioecológico, evidenciando atividades

sociais como: o tempo de escola e tempo de festas e as atividades de

sobrevivência como pesca e roça, moldados pelo tempo das águas, nas fases:

enchente-cheia-vazante-estiagem. Foram levantadas as aves etnoindicadoras

climáticas e outros componentes bióticos e abióticos e a percepção dos

informantes em relação às alterações climáticas. A comunidade estudada

demonstrou amplo conhecimento a respeito das aves, com riqueza de detalhes

e percepção ecossistêmica, onde o fazer e o saber fazer são moldados pela

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18

relação com a natureza, contornados pela capacidade de adaptação e pelos

processos de resiliência ao longo do tempo. Estudo a respeito do

conhecimento Ecológico Tradicional das comunidades do Pantanal sobre as

aves e suas relações com o clima são importantes ferramentas para o acesso

às informações, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo. O enfoque

de pesquisas que contempla o saber ecológico das comunidades tradicionais

vem sendo reconhecido e valorizado por se tratar de conhecimento de longo

prazo, que se perpetua através da transmissão oral entre gerações.

Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, aves.

Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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19

ABSTRACT

ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá

Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.

(Dissertation – Master in Environmental Science).

The traditional ecological knowledge is a knowledge system that reflects the

adaptation of human population at their environment. This work presents the

Traditional Ecological Knowledge – TEK of birds by the pantaneiros of Cuiabá

Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso, Brazil. The studied area is located

in the city of Barão de Melgaço, near Siá Mariana and Chocororé bays. The

traditional knowledge of Pantanal communities pictured by the intrinsic

relationship with the water cycle, bring along a strong expression of the local

culture, where the way of life expresses important information to build a

sustainable society. The traditional ecological knowledge of 22 pantaneiros1

were revealed through a dialogic process, by a hybrid methodological approach,

with a qualitative and quantitative character, by the environmental education

and management bias. For the data collection it was used techniques like free

lists, Participant observation, structured and semi structured interviews. The

informers identified a hundred and eighty eight bird ethno species and ethno

classified them according to feeding habit, habitat, appearance, behavior, those

that can be home breed and those that work as human food. In the community

quotidian it was observed an ethno calendar linked to the socio-ecological

system, becoming evident activities as: school time and party time and the

survive activities like fish and agriculture molded by the water time, in the

phases: filling - flood – receding – dry. Ethoindicator birds weather, biotic and

abiotic components and the informers perception concerning to the climate

changes were raised up. The community studied showed up a wide knowledge

1 Pantaneiros is a term that refers to all those who live in Pantanal.

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20

about birds, with a lot of details and an ecosystemic perception, where knowing

and doing are molded by the relationship with the nature, outlined by the

capacity of adaption and by the capacity of readaptation of the environment

after being through a stressing situation. Studies about the traditional ecological

knowledge of Pantanal communities about birds and their relation with the

weather are important tools to the access to informations, rapidly, safely, and on

a low cost. Researches with an approach that contemplates the ecological

known of the traditional communities are being recognized and valorized

because it concerns to a long term knowledge that is perpetuated through the

oral transmission among generations.

Key - words: Pantanal, traditional ecological knowledge, birds.

Advisor: Teacher Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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21

1. INTRODUÇÃO GERAL

Eu queria crescer pra passarinho...

(Manoel de Barros)

É desafiador pensar e praticar o processo de aprendizagem e pesquisa

numa perspectiva inter/multidisciplinar como o Programa de Pós-Graduação

em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso -

UNEMAT vem corajosamente se propondo. O mesmo Programa organizou

sua primeira publicação coletiva intitulada “Gestão e Educação Ambiental:

água, biodiversidade e cultura” organizada por Santos e Galbiati (2008) onde

foi apresentada a estrutura conceitual e experiencial, objetivando a formação

de profissionais direcionados ao manejo e planejamento ambiental e à

incorporação efetiva da dimensão social ao lado da ecológica no tratamento da

questão ambiental.

Desconstruir-se para (re)construir novos paradigmas, na busca de

superar uma concepção positivista de ciência, de educação e de trabalho

acadêmico, lançando um olhar particular sobre o meio ambiente e a

sustentabilidade enquanto abordagem holística que entrelaça-se pelo viés da

Gestão e Educação Ambiental onde somos sujeitos históricos, cognoscentes e

ecológicos no processo de aprendizagem o qual está sempre em construção.

Primeiramente buscou-se uma reflexão em Carvalho (1992), que coloca

que o diálogo entre saberes de várias ordens, não apenas no âmbito

disciplinar, mas com outras formas de conhecimento dotadas de lógicas

culturais próprias, incitam a hibridização de conhecimentos, entendendo-se que

uma “nova cientificidade implica uma profunda reflexão sobre a ciência

tradicional.”

No texto “O vôo da águia: reflexões sobre método, interdisciplinaridade e

meio ambiente,” Brügger (2006) discute a construção do conhecimento e cita

Hanna Arendt a qual argumenta que a “mudança do „por que‟ e do „o que‟ para

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22

o „como‟ implica que os verdadeiros objetos do conhecimento já não são coisas

ou movimentos eternos, mas processos e, portanto o objeto da ciência já não é

a natureza ou o universo, mas a história de como vieram a existir a natureza, a

vida ou o universo”.

Na abordagem multidisciplinar, é necessário estabelecer um estado

permanente e constante de Educação Ambiental, para que possa ser

provocado um diálogo – debate generalizado. Wallace (2002), quando nos

alerta que todos nós devemos reconhecer que as questões ambientais são

também questões sociais, e que tais abordagens ainda não se encontram nas

principais pautas de discussões.

A Educação Ambiental é uma necessidade educacional contemporânea,

na perspectiva de viabilizar a compreensão da necessidade de uma nova

relação com o ambiente. É com ela que se pode ter a possibilidade de

conhecer e reconhecer a diversidade e a interação do mundo vivo, e assim

desenvolver uma relação, outra, do indivíduo com o ambiente. Sato (2004)

indica que a Educação Ambiental deve levar a uma formação mais cidadã.

Por sua vez, a Gestão Ambiental é entendida essencialmente como um

processo de mediação de conflitos de interesses. Reflexão sobre a construção

de comunidades com sustentabilidade ecológica nos remete a Capra em

Conexões Ocultas (2003, pág. 58) que coloca:

[...] não precisamos inventar comunidades humanas

sustentáveis a partir do zero, mas podemos modelá-las

seguindo os ecossistemas da natureza, que são as

comunidades sustentáveis de plantas, animais e micro-

organismos. Uma vez que a característica notável da biosfera

consiste em sua habilidade para sustentar a vida, uma

comunidade humana sustentável deve ser planejada de forma

que, suas formas de vida, negócios, economia, estruturas

físicas e tecnologias não venham a interferir com a habilidade

inerente à Natureza ou à sustentação da vida.

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No campo da sustentabilidade esta pesquisa está em consonância com

o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, a Declaração

do Milênio, aprovada pelas Nações Unidas, em 2000, onde seus países

membros assumiram metas como a erradicação da pobreza e o compromisso

com sustentabilidade do Planeta.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) são um conjunto de

8 macro-objetivos, com metas e indicadores precisos, a serem atingidos pelos

países até 2015, por meio de ações concretas dos governos e da sociedade na

busca pela solução de alguns graves problemas da humanidade. Dentre esses

objetivos está o de garantir a sustentabilidade ambiental. O documento

constitui o maior estudo internacional realizado envolvendo as interações entre

os ecossistemas e o bem-estar humano, em escala regional a global,

reconhecendo que pessoas e ecossistemas interagem no tempo e no espaço.

Neste contexto, este trabalho foi desenhado no tempo e no espaço dos

pantaneiros na perspectiva da etnoecologia, ancorado no conceito de

Conhecimento Ecológico Tradicional (CET) que foi definido por Berkes e Folke

(1998), como um corpo cumulativo de conhecimento, práticas e crenças sobre

as relações dos seres vivos com seu ambiente, evoluído através de processos

adaptativos e repassado através das gerações por transmissão cultural. Este

conhecimento ecológico tradicional difere do conhecimento ecológico científico,

por ser amplamente dependente de mecanismos sociais locais (BERKES et al.,

2000), podendo complementar o conhecimento científico através de

experiências práticas da vivência dentro do ecossistema e das repostas às

mudanças ambientais (BERKES et al., 1998).

Considera-se aqui o conceito de comunidade tradicional, o qual foi

definido por Diegues (2005) como:

No Brasil existem duas categorias de populações tradicionais:

os Povos Indígenas e as Populações Tradicionais não

Indígenas. Uma das características básicas dessas populações

é o fato de viverem em áreas rurais onde a dependência do

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mundo natural, de seus ciclos e de seus produtos é

fundamental para a produção e reprodução de seu modo de

vida. A unidade familiar e/ou de vizinhança é também uma

característica importante no modo de vida dessas populações

que produzem para sua subsistência e para o mercado. O

conhecimento aprofundado sobre os ciclos naturais e a

oralidade na transmissão desse conhecimento.

No artigo 3º do Decreto Presidencial número 6.040, publicado no Diário

Oficial da União, no dia 07 de fevereiro, 2007, povos e comunidades

tradicionais são considerados como:

grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como

tais, que possuem formas próprias de organização social, que

ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição

para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e

econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas

geradas e transmitidas pela tradição.

Segundo Colchester (2000) as comunidades tradicionais são grupos

étnicos que tem uma identidade diferente da nacional, tira sua subsistência do

uso dos recursos naturais e não é politicamente dominante. De maneira

complementar, Berkes et al (2000) coloca que são comunidades cujas vidas

dependem do manejo de recursos naturais e do seu conhecimento ecológico

tradicional.

Neste contexto, Arruda (2000) relaciona Cultura Rústica como à cultura

presente em populações localizadas em regiões menos povoadas, com

recursos naturais abundantes, o que possibilitou a sobrevivência e reprodução

desse modelo sociocultural de ocupação e exploração dos recursos naturais,

com especificidades de acordo com as características histórias e ambientais. O

autor afirma que as formas de manejo do ambiente nestas populações,

denominadas como “tradicionais”, adquirem maior visibilidade em meio à

valorização das questões ambientais.

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Como construir um trabalho científico quanti-qualitativo onde os sujeitos

da pesquisa possam ser reconhecidos e poderão se expressar de fato, e não a

projeção do pesquisador? Inúmeras reflexões são fundamentais.

O estudo do conhecimento de comunidades tradicionais pode ser

abordado sob vários enfoques científicos, desde a etnobiologia, etnoecologia,

etnobotânica, etnozoologia, etnoornitologia, ecologia cultural, e ecologia

humana, como forma de adaptação dos grupos humanos ao ambiente ou a

antropologia, através de uma abordagem histórica (KOERDELL, 1983).

Segundo este autor é através da cultura que as populações mantêm-se nos

ecossistemas. Em consonância, Begossi (1993) também coloca que o conjunto

complexo de interações que as culturas humanas mantêm com os animais

pode ser abordado por meio de diferentes recortes científicos, a depender da

linha teórica considerada.

Pesquisas com comunidades tradicionais do Pantanal com abordagem

etnoecológica vêm sendo desenvolvidas desde 1995 (Da Silva e Silva) e mais

recentemente no grupo de pesquisa liderado pela primeira autora, com

conceitos de Ecologia e Etnoecologia aplicados ao Pantanal.

O Pantanal Mato-grossense é regulado pelo pulso de inundação que é

previsível e de longa duração, porém, sujeito as variações anuais da

pluviosidade (DA SILVA e ESTEVES, 1995). O conceito de pulso de inundação

ressalta que durante a cheia, as áreas alagáveis recebem águas e material

dissolvido e em suspensão dos rios e lagos conectados, da chuva, e da subida

temporária do lençol freático. Alguns organismos aquáticos migram ativamente

ou são transportados passivamente para as áreas alagáveis, outros

desenvolvem-se a partir de estágios de dormência. Mudanças naturais e

antrópicas do pulso de inundação têm efeitos grandes para a estrutura e

funcionamento do sistema, e afetam os serviços prestados pelos sistemas para

a paisagem e as populações humanas (JUNK e DA SILVA, 1999; JUNK e DA

SILVA, 2003).

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É nesse ambiente moldado pelo ritmo das águas que as comunidades

tradicionais ribeirinhas da Bacia do Alto Paraguai vivem criando e recriando a

cultura pantaneira. Cada fase deste movimento – enchente, cheia, vazante e

estiagem – tem suas características próprias e traz para aqueles que lá vivem

um modo de pensar, sentir, olhar e agir único que, portanto, devem ser

considerados quando políticas de manejo e conservação desta bacia são

propostas (Da SILVA e SILVA, 1995).

No Pantanal de Mato Grosso, estudos de natureza etnobiológica

contemplam ainda: relações ambientais e educativas no cotidiano da

Comunidade Ribeirinha de Porto Brandão, Pantanal de Barão de Melgaço –

MT (REIS, 1996); Aspectos Comportamentais da Arara Azul (Anodorhynchus

Hyacinthinus) na Localidade de Pirizal, Município de Nossa Senhora do

Livramento, Pantanal de Poconé (PINHO, 1998); Impactos das Políticas

Públicas sobre os Pescadores Profissionais do Pantanal de Cáceres - Mato

Grosso (MEDEIROS, 1999); Tradição e Ruptura: cultura e ambiente

pantaneiro (CAMPOS FILHO, 2002); Percepção das mudanças naturais e

antrópicas no sistema hídrico do Rio Cuiabá na comunidade de Sitio Santa

Rita (SIMONI, 2004); Análise de Stakeholder no Sistema de Baías

Chacororé-Siá Mariana, caracterizando e identificando os principais grupos

de interesse que operam neste sistema (SILVEIRA, 2004); Educação

Ambiental e Etnoconhecimento: parceiros para a conservação da diversidade

de aves pantaneiras (OLIVEIRA JÚNIOR e SATO, 2006); Água na gente e

gente na água: o caminho das águas em São Pedro da Joselândia

(PIGNATTI et al., 2007); Práticas de cura de benzedores em comunidade

tradicional do Pantanal de Mato Grosso (MOTA, 2008);

Na comunidade de Cuiabá Mirim o grupo de pesquisa “Conceitos em

Ecologia e Etnoecologia do Pantanal” liderado por Da Silva vem realizando

amplas pesquisas como: A casa e a paisagem pantaneira percebida pela

comunidade tradicional Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso (GALDINO,

2006; GALDINO e DA SILVA, 2009); Conhecimento Ecológico Tradicional da

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pesca pela comunidade Cuiabá Mirim – Barão de Melgaço, Pantanal Mato-

Grossense (MORAIS, 2006); Rio Cuiabá: espaço de vida da comunidade de

Cuiabá Mirim, Pantanal Mato- Grossense (VIANA, 2008).

No cenário atual, pesquisas abordando o Conhecimento Ecológico

Tradicional - CET das comunidades do Pantanal sobre as aves e suas relações

com o clima e com o ciclo hidrológico são importantes ferramentas para o

acesso ao conhecimento, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo,

sabendo-se que ainda existe uma carência de pesquisas consolidadas nesse

viés.

Esta pesquisa tem a intenção de verificar o Conhecimento Ecológico

Tradicional da comunidade Cuiabá Mirim sobre as aves – a riqueza de

etnoespécies e etnocategorias – e os etnoindicadores climáticos. O desenho

deste trabalho será apresentado em forma de Capítulos.

O primeiro Capítulo contempla a rede social dos informantes, a lista de

etnoespécies de aves, bem como, as etnocategorias e a rede alimentar das

espécies mais citadas. O segundo apresenta as aves etnoindicadoras

climáticas e outros componentes bióticos e abióticos que a comunidade

reconhece como etnoindicadores climáticos naturais e de alterações no clima

do Pantanal. O terceiro Capítulo aborda a simbologia da comunidade ligada às

aves, tecendo um diálogo com o imaginário local visando contribuir com a

identidade Pantaneira dos que vivem em Cuiabá Mirim. O formato da

dissertação, onde são colocados resumos e referências bibliográficas em todos

os capítulos atende as normais atuais do Programa de Mestrado da UNEMAT.

Este trabalho recebeu o apoio por meio de bolsa de estudos da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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1.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GERAL

ARRUDA, R. S. V. Populações tradicionais e a proteção de recursos naturais

em unidades de conservação. Rev. Ambiente e Sociedade, São Paulo: ano II

no. 5. 2000.

BEGOSSI, A. Biodiversity, family income and ecological niche: a study on the

consumption of animals at Búzios Island. Ecology of Food and Nutrition. 1993.

BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C.; Rediscovery of traditional ecological

knowledge as Adaptive Management. In: Ecological Aplications, 2000.

BERKES, F.; FOLKE. C. Linking Social and Ecological Systems: Management

Practices and Social Mechanisms for Building Resilience. Cambridge University

Press, Cambridge. 1998.

BERKES, F.; KISLALIOGLU, M.; FOLKE, C.; GADGIL, M.; Exploring the basic

Ecological Unit: Ecosystem-like Concepts in Traditional Societies. Ecosystems.

1998.

BRÜGGER, P. O vôo da águia: reflexões sobre método, interdisciplinaridade e

meio ambiente. Educar, Curitiba, n. 27, Editora UFPR. 2006.

CAMPOS FILHO, L. V. S. Tradição e ruptura: cultura e ambiente pantaneiros.

Cuiabá: Entrelinhas, 2002.

CAPRA, F. As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix. 2003.

CARVALHO, I. C. M. Educação, meio ambiente e ação política. In:

ACSELRAD, H. (Org). Meio ambiente e democracia. Rio de Janeiro, IBASE,

1992.

COLCHESTER, M. Resgatando a Natureza: Comunidades Tradicionais e

Áreas Protegidas, in: DIEGUES, A.C. (org.). Etnoconservação: novos rumos

para proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: NUPAUB-USP. 2000.

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DA SILVA, C. J.; ESTEVES, F. Dinâmica das características limnológicas das

lagoas Porto de Fora e Acurizal em função da variação do nível de água. In:

ESTEVES, F. A. (ed.) Estrutura e Manejo de Ecossistemas Brasileiros. 1995.

DA SILVA, C. J.; SILVA J. No ritmo das águas do Pantanal. NUPAUB, São

Paulo, 1995.

DIEGUES, A. C. Aspectos Sócio-Culturais e Políticos do uso da Água. Plano

nacional de recursos hídricos - MMA, 2005.

GALDINO, Y. S. N. A casa e a paisagem pantaneira percebida pela

comunidade tradicional Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Dissertação

de Mestrado. UFMT. 2006.

GALDINO, Y. S. N.; DA SILVA, C. J. . A casa e a paisagem pantaneira:

conhecimentos e práticas tradicionais. 1. ed. Cuiabá MT: Carlini & Caniato,

2009.

JUNK W. J.; DA SILVA C. J. O conceito do pulso de inundação e suas

implicações para o Pantanal de Mato Grosso. In: II Simpósio sobre Recursos

Naturais e Sócio-econômicos do Pantanal: Manejo e Conservação. Empresa

Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Pantanal), Corumbá, 1999.

JUNK, W. J.; DA SILVA, C. J. O pulso de Inundação: Bases para Manejo do

Pantanal. In: CLAUDINO-SALES, V. (Org.) Ecossistemas Brasileiros: Manejo e

Conservação. Expressão Gráfica, Fortaleza. 2003.

KOERDELL, M. M. Estudos Etnobiológicos. Definicion, Relaciones y Métodos

de la Etnobiologia. In: BARRERA, A. (Edit.) La Etnobotânica: três puntos de

vista y uma perspectiva. Xalapa. Inst.Nac. de Investigaciones sobre Recursos

Bióticos, 1983.

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MEDEIROS, H. Q. Impactos das Políticas Públicas sobre os Pescadores

Profissionais do Pantanal de Cáceres - Mato Grosso. Dissertação de Mestrado.

São Paulo. USP. 1999.

MORAIS, R. Conhecimento Ecológico Tradicional da pesca pela comunidade

Cuiabá Mirim – Barão de Melgaço, Pantanal Mato-Grossense. Dissertação de

Mestrado. UFMT. 2006.

MOTA, R. G. Práticas de Cura dos Benzedores em Comunidade Tradicional no

Pantanal de Mato Grosso. Dissertação de Mestrado. Cuiabá. UFMT, 2008.

OLIVEIRA JÚNIOR, S.; SATO, M. Educação ambiental e etnoconhecimento:

parceiros para a conservação da diversidade de aves pantaneiras. Revista

Ambiente e Educação, FURG/RS. Vol. 11, 2006.

PIGNATTI, M. G.; CASTRO, S. P.; QUADROS, I. P.; ALBERNAZ-SILVEIRA,

R.; Água na gente e gente na água: o caminho das águas de São Pedro da

Joselândia, Mato Grosso – Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2007.

PINHO, J.B. Aspectos ecológicos e comportamentais da Arara-azul

(Anodorhynchus hyacinthinus) na localidade de Pirizal, município de Nossa

Senhora do Livramento, Pantanal de Poconé. Cuiabá: UFMT, Dissertação

Mestrado. 77p.1998.

REIS, S. L. A. As Relações Ambientais e Educativas no Cotidiano da

Comunidade Ribeirinha de Porto Brandão, Pantanal de Barão de Melgaço –

MT. Dissertação apresentada ao Programa Integrado de Pós Graduação do

Instituto de Educação da UFMT, Cuiabá – MT. 1996.

SANTOS, J. E.; GALBIATI, C. Gestão e Educação Ambiental:

água,biodiversidade e cultura. Ed.Rima, São Carlos, 2008.

SATO, M. Educação Ambiental. São Carlos, Rima. 2004.

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SILVEIRA. J. M. F. Aplicação do Método Stakeholder Analysis no Sistema de

Baias Chacororé/Sinhá Mariana, Pantanal de Mato grosso, Brasil.

(Dissertação). Instituto de Biociências- UFMT. Cuiabá, MT. 2001.

SIMONI, J. Percepção das mudanças naturais e antrópicas por uma

comunidade ribeirinha, no sistema hídrico do Rio Cuiabá, Mato Grosso.

Dissertação (Mestrado em Ecologia e conservação da Biodiversidade) Instituto

de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá. 2004.

VIANA, I. Rio Cuiabá: espaço de vida da comunidade de Cuiabá Mirim,

Pantanal Mato-Grossense. Dissertação de mestrado. UNEMAT. 2008.

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CAPÍTULO I

CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES

“... Acho que as águas iniciam os pássaros

Acho que as águas iniciam as árvores e os peixes

E acho que as águas iniciam homens,

Nos iniciam,

E nos alimentam e nos dessedentam,

Louvo esta fonte de todos os seres, de todas as

Plantas, de todas as pedras,

Louvo as natências do homem do Pantanal...”

(Manoel de Barros)

Figura 01: Arte do Chão. Série Imagética Pantaneira. Imagem: Ruth Albernaz, 2009.

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RESUMO

ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da

Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010.

163 p. (Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais)

Esta pesquisa apresenta o Conhecimento ecológico tradicional-CET de aves

pela comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso-MT. A área de

estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, com aproximadamente

97,5% de terras inundáveis no período das cheias. Para coleta de dados

utilizou-se de métodos como: entrevistas estruturadas e semi-estruturadas, lista

livre, observação participante e diário de campo. Foram entrevistados 22

moradores da comunidade. Os informantes citaram 188 etnoespécies de aves.

O grupo estudado mostrou amplo conhecimento ecológico tradicional a respeito

das aves, incluindo categorias relacionadas a morfologia, hábitos alimentares,

hábitats e comunicação. Esses conhecimentos são transmitidos oralmente ao

longo das gerações. A cultura pantaneira é rica em saberes sobre as aves, de

forma que a mesma poderá contribuir significativamente para a implementação

de políticas públicas que contemplem a gestão participativa do Pantanal e

ações em Educação Ambiental voltadas para a conservação do bioma.

Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, Aves.

Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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ABSTRACT

ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Tradicional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá

Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.

(Dissertation – Master in Environmental Science).

This research presents the birds Traditional Ecological knowledge in the

community of Cuiabá Mirim, Pantanal of Mato Grosso - MT - CET The studied

area is located in the city of Barão de Melgaço, with almost 97,5% of flooded área

during the flood period. The data collection used methods like: structured and

semi- structured interviews , free list, participant observation, camp dairy. Twenty

two people from the community were interviewed. The informers quoted 188 bird

ethno species. The studied group showed off a wide ecological traditional

knowledge about the birds, including concepts related to morphology, feeding

habits and communication. This knowledge is orally transmitted over the

generations. Pantanal‟s culture is rich in knowledge about birds, so that it can

contribute significantly to the implementation of public policies that include the

participatory management of Pantanal and environmental education focused on

the biome conservation.

Key - words: Pantanal, Traditional Ecological Knowdledge, Birds.

Advisor: Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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2.1. INTRODUÇÃO

O conhecimento tradicional é definido por Diegues (2000) como saber e

o saber fazer, a respeito do mundo natural e sobrenatural, gerado no âmbito da

sociedade não urbana/industrial e transmitido oralmente de geração em

geração.

Alguns autores preferem designar como conhecimento local, colocando

como um conhecimento hibridizado com os novos discursos da globalização e

da sustentabilidade. Segundo Leff (2005, pág. 332-333):

Nas culturas tradicionais, o conhecimento, os saberes e os

costumes estão entrelaçados em cosmovisões, formações

simbólicas e sistemas taxonômicos, através das quais

classificam a natureza e ordenam os usos de seus recursos; a

cultura atribui desta maneira valores-significado à natureza,

através de suas formas de cognição, de seus modos de

nomeação e de suas estratégias de apropriação de recursos.

Com a intenção de compreender os conhecimentos ecológicos a

respeito das aves pelos pantaneiros da comunidade Cuiabá Mirim, considerado

como parte integrante de um sistema sócio-ecológico complexo, foi planejada e

desenvolvida a presente pesquisa, buscando um diálogo entre as Ciências

Biológicas e Sociais, pelo viés da Etnobiologia/Etnoecologia.

A Etnobiologia origina-se da antropologia cognitiva, em particular da

etnociência, que busca entender como o mundo é percebido, conhecido e

classificado por diversas culturas humanas. A Etnobiologia tem como objetivo

analisar a classificação das comunidades humanas sobre a natureza, em

particular sobre os organismos (BEGOSSI, 1993).

Complementarmente, a Etnoecologia pode ser vista como um campo de

pesquisa (científica) transdisciplinar, que estuda os pensamentos

(conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos, que intermedeiam

as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais

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elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos

ambientais daí decorrentes (MARQUES, 2001).

Em “aspectos históricos e conceituais da etnoornitologia”, Farias e Alves

(2007, pág. 92) conceituam a etnoornitologia como: “Conjunto de estudos em

que se busca compreender as relações cognitivas, comportamentais e

simbólicas entre a espécie humana e as aves.”

Alguns desafios podem aparecer ao longo da pesquisa, onde o

investigador defronta ao lidar com outras culturas, refletindo para não correr o

risco de impor suas próprias idéias e categorias culturais a seus informantes ou

consultores culturais, como descrença, desagrado, reprovação (POSEY, 1987).

O mesmo autor ainda aponta para a importância da qualidade e não da

quantidade de dados e alerta para grande desvantagem dos pesquisadores em

campo, quando estes já trazem suas hipóteses de pesquisas formuladas, em

que conceitos etnocêntricos podem estar inseridos, transformando a pesquisa

em uma mera projeção do pesquisador.

Pesquisas realizadas abordando a biodiversidade de aves na

perspectiva ecológica e Educação Ambiental em área de abrangência do

Pantanal de Mato Grosso, podem ser elencadas: O canto de Céu Aberto e de

Mata Fechada (CATUNDA, 1994); Sucesso reprodutivo de tuiuiú Jabiru

mycteria (Aves: Ciconiidae) no Pantanal de Poconé-MT (OLIVEIRA, 1997);

Estrutura de Comunidades de Aves como Base para Monitoramento da área de

influência da APM Manso, Chapada dos Guimarães, MT (SONODA, 2001);

Efeitos bióticos e abióticos de ambientes alagáveis nas assembléias de aves

aquáticas e piscívoras no Pantanal (OLIVEIRA, 2006); O conhecimento local

dos moradores das comunidades pantaneiras de São Pedro da Joselândia e

Barra do Piraim (MT, Brasil) sobre a avifauna pantaneira (OLIVEIRA JÚNIOR e

SATO, 2007); Avifauna (OLIVEIRA, 2009).

Estudos no Pantanal vêm levantando a vasta biodiversidade de animais

e plantas, onde já foram identificadas mais de seiscentas e cinqüenta e seis

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(656) espécies de aves (MORRISON, 2008). A diversidade biológica é

elemento essencial para o equilíbrio ambiental, já que, sob a perspectiva

ecológica, quanto maior a simplificação dos ecossistemas, maior a sua

fragilidade.

2.2. MATERIAL E MÉTODOS

O PANTANAL

O Pantanal sul-americano é um sistema sócio-ecológico complexo

regido pela movimentação das águas, uma das principais rotas migratórias das

aves nômades, conectando territórios multinacionais, abrangendo a Bolívia, o

Paraguai, e sua maior área encontra-se no Brasil, nos Estados de Mato Grosso

e Mato Grosso do Sul.

A área de abrangência do Pantanal é de aproximadamente 150.355 km².

Desse território, as áreas inundáveis compreendem a maior parte do Pantanal

e são marcadas por uma variabilidade climática interanual, caracterizada por

duas estações distintas: uma seca (maio a setembro) e outra chuvosa (outubro

a abril). O relevo é de baixíssima declividade de 0,7 a 5 cm/km no sentido

norte-sul e entre 7 e 50 cm/km no sentido leste-oeste que, associado à

distribuição de chuvas periódicas na Bacia do Alto Paraguai, explica o

fenômeno das cheias anuais (IBGE, 2009) .

Esta sazonalidade é marcada pelo processo ecológico denominado

como pulso de inundação, desenhado por um ciclo mono-modal tendo uma

variação de amplitude de até cinco metros e de duração entre três a seis

meses (JUNK e DA SILVA, 1999). Quanto ao ritmo das águas e a presença

indígena na região, Lévi-Strauss (1996, pág.154) comenta:

Ao contrário do que parece, a água do Pantanal é ligeiramente

corrente; arrasta conchas e limo que se acumulam em certos

pontos onde a vegetação se enraíza. Assim, o Pantanal está

coalhado de tufos de vegetação chamado „capões‟, onde os

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antigos índios estabeleciam seus acampamentos e onde

descobrimos vestígios de sua passagem.

A pesquisa foi desenvolvida na Região da Bacia do Rio Cuiabá, um dos

principais contribuintes da planície pantaneira. A área está localizada no

Município de Barão de Melgaço, na comunidade ribeirinha Cuiabá Mirim,

assentada na margem direita do Rio Cuiabá (coordenadas geográficas S 16°

20‟ 51” e W 55° 57‟ 35”), próximo às Baías de Sinhá Mariana e Chacororé

(Figuras 02 e 03).

A comunidade Cuiabá Mirim conta com aproximadamente 274

moradores pertencentes a 48 famílias. As residências estão distribuídas

acompanhando a margem do Rio Cuiabá (figura 04), quando os filhos vão

casando-se, constroem suas casas próximo da casa dos pais, pois a

comunidade dispõe de um “espaço pequeno” de terras.

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39

Figura 02: Imagem da área de estudo no Pantanal; Fonte: Grupo de Pesquisa Conceitos

em Ecologia e Etnoecologia do Pantanal. Adaptação: satélite Landsat.

Cuiabá

Mirim

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40

Figura 03: Vista da Baía Siá Mariana, próxima à Comunidade Cuiabá Mirim.

Foto: Ruth Albernaz, 2009.

Figura 04: Vista do leito antigo do Rio Cuiabá, o qual corre água somente no

período da cheia. Foto: Ruth Albernaz, 2009.

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41

2.2. MÉTODOS

A escolha da abordagem híbrida de cunho qualitativo e quantitativo se

configurou como uma boa opção metodológica. A pesquisa compreendeu três fases

de execução: levantamento e leitura das fontes bibliográficas para a construção do

referencial teórico, pesquisa de campo, processamento de dados e redação.

Para a abordagem qualitativa utilizou-se de técnicas como entrevistas

estruturadas, semi-estruturadas e observação participante. Na abordagem

quantitativa, entrevistas estruturadas (lista livre).

A análise dos dados quantitativos foi realizada utilizando o “software

ANTROPAC 4.0” (BORGATTI, 1996), onde foi analisada a ocorrência de consenso

cultural nas informações.

A escolha dos entrevistados foi feita por meio da amostragem Bola de Neve

Snowball Sampling (CAULKINGS e HYATT, 1999; BERNARD, 2002), utilizada

para a elaboração de redes sociais, onde pode-se observar os níveis de

comunicação e interação entre as pessoas. O uso de redes sociais, em trabalhos

com comunidades tradicionais é indicado por Vogl, et al. (2004), os quais usaram

essa técnica nas suas pesquisas no México, Áustria e Bornéo.

PESQUISA DE CAMPO

A inserção ao campo contou com o apoio da pesquisadora Viana2, que já

havia feito sua pesquisa de Mestrado na comunidade e integra a equipe do Grupo

de Pesquisa liderado pela orientadora3 deste trabalho.

O primeiro contato realizado na comunidade foi com o Sr. Salvador, pessoa

influente na comunidade, pescador aposentado, que apóia os pesquisadores,

inclusive hospedando-os em sua casa. Ele foi o primeiro informante para este

trabalho.

2 Pesquisadora Msc. Iris Viana realizou a dissertação de mestrado: Rio Cuiabá: espaço de vida da

Comunidade Cuiabá Mirim, 2008, UNEMAT.

3 Profª Drª Carolina Joana da Silva lidera o Grupo de Pesquisa Conceitos Ecológicos e

Etnoecológicos aplicados a Conservação da Água e da Biodiversidade do Pantanal.

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42

As entrevistas foram realizadas a partir dos nomes que foram indicados na

rede social. Em função das atividades profissionais, como empregos em pousadas

da região do Pantanal, pescadores profissionais que ficam longos períodos fora da

comunidade e não estavam disponíveis para as entrevistas, foi necessário elaborar

dois critérios de escolha dos informantes:

1) os nomes mais indicados na rede social;

2) pessoas da rede social que estavam disponíveis para serem entrevistadas.

As entrevistas semi-estruturadas seguem um diálogo livre (VIERTLER, 2002)

em que o pesquisador se apóia em uma lista com tópicos e questões que devem ser

abordados na entrevista (BERNARD, 2002). As entrevistas semi-estruturadas foram

usadas com o objetivo de obter informações detalhadas sobre o tema da pesquisa.

As entrevistas estruturadas têm tópicos fixos (VIERTLER, 2002) que

delimitam as informações desejadas e geralmente contribuem para a quantificação

dos dados (HUNTINGTON, 2000).

Nesta pesquisa utilizou-se a listagem livre, um modelo de entrevista

estruturada, em que o informante faz uma lista de itens de um domínio cultural de

interesse do pesquisador (VOGL et al., 2004), neste caso das aves conhecidas

pelos informantes da Comunidade Cuiabá Mirim.

Quanto ao registro de dados, as entrevistas foram gravadas com a permissão

prévia dos informantes por meio de gravadora e filmadora SONY e fotografado

algumas atividades da observação participante. É indicado o uso de gravador na

realização de entrevistas para que seja ampliado o poder de registro e captação de

elementos de comunicação de extrema importância, pausas de reflexão, dúvidas ou

entonação da voz, aprimorando a compreensão da narrativa (SCHRAIBER, 1995).

PRÉ-TESTE

Na primeira visita à comunidade, após a conhecer algumas famílias da

comunidade, foi realizado um pré-teste com dez (10) pessoas, para assegurar que

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43

as perguntas da lista livre estavam elaboradas de forma compreensível, tanto em

linguagem êmica quanto ética4.

O pré-teste, ou estudo piloto, é usado para verificar a estrutura e a clareza do

roteiro, por meio de uma entrevista preliminar com pessoas que possuam

características semelhantes a da população alvo, ou mesmo com pessoas da

mesma comunidade a ser estudada (TRIVIÑOS, 1987).

ENTREVISTAS ESTRUTURADAS

Para categorizar a nomenclatura genérica das aves, levando-se em

consideração a linguagem local, evitando a inserção de uma definição pré-

estabelecida, foram elaboradas duas perguntas, de acordo com o contexto:

Quando havia alguma ave por perto, de forma que o informante pudesse

visualizá-la, perguntou-se: o que é aquilo?

Para as entrevistas realizadas a noite e/ou quando não havia nenhuma ave

no ambiente, perguntou-se qual a nomenclatura utilizada para: como o senhor(a)

conhece os bichos que voam, tem bico e penas?

A terceira pergunta teve o objetivo de elaborar a lista livre de etnoespécies

conhecidas pelos informantes, dessa forma foi perguntado: quais o(a) pássaros (ou

passarinhos) o(a) senhor(a) conhece? (LISTA LIVRE).

Ao final da entrevista foi pedido ao informante que ele(a) indicasse nomes de

pessoas que ele(a) julgasse saber sobre o assunto relativo às aves, com a

finalidade de construir a rede social e realizar as próximas entrevistas: quem são

as pessoas que o(a) senhor(a) indica para conversar sobre os passarinhos?

Durante a coleta de dados quantitativos (lista livre), os informantes

forneceram dados qualitativos que categorizavam as etnoespécies quanto ao:

vôo, aparência, hábito alimentar, hábitat, comportamento, os pássaros que

podem criar em casa, os que servem para comer.

Após a primeira etapa de entrevistas, partiu-se para a análise de dados no

software ANTROPAC 4.0 para verificar se havia consenso cultural.

4 Marques (2001) conceitua a linguagem êmico/ ético, como sendo a do informante/pesquisador.

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44

QUEM COME QUEM (REDE ALIMENTAR)

Na segunda etapa das entrevistas, ocorreu o aprofundamento das

informações de cunho qualitativo a respeito do conhecimento tradicional da rede

alimentar de 38 etnoespécies de aves que estavam no consenso cultural.

Essa técnica foi desenvolvida por Wallace (1983) que estudou o

conhecimento tradicional de uma comunidade em Pagan Gaddang, a respeito da

rede alimentar, onde ele coloca que estudar o conhecimento tradicional é mais

rápido para saber o que está acontecendo no ecossistema, porque as pessoas que

vivem naquele ambiente conhecem mais a respeito das relações da fauna e flora

local do que o pesquisador visitante.

Nessa etapa, buscou-se uma abordagem com entrevistas que o diálogo

fluísse de forma que se pudesse conseguir mais detalhes do objeto da pesquisa

(Tabela 01):

Tabela 01: Modelo de entrevista.

PERGUNTA RESPOSTA

O que o Tuiuiú come? “Peixe tipo mussum e cambatoá”;

O peixe que o tuiuiú come, come o quê? “Uns come inseto e mussum come outro peixe”;

O inseto que o peixe come, come o quê? “Lodo e água”;

Quem come o tuiuiú? “Jacaré e gente”;

Quem come o jacaré que comeu o tuiuiú? “Só a onça”.

Quem come a onça que comeu o jacaré? “Ah difícil, só o urubu que come a onça morta”.

E quem come o urubu?... ...

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45

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

Na técnica observação participante, o pesquisador se entrega ao

acompanhamento do cotidiano do informante, podendo detectar referenciais

culturais que sejam significativos para a interpretação daquele objeto estudado

(VIERTLER, 2002).

Na observação participante, é preciso atentar para o aspecto ético e para o

perfil íntimo das relações sociais, ao lado das tradições e costumes, o tom e a

importância que lhes são atribuídos, as idéias, os motivos e os sentimentos do grupo

na compreensão da totalidade de sua vida, verbalizados por eles próprios, mediante

suas categorias de pensamento (QUEIROZ, 2007).

Neste trabalho, a observação participante serviu para buscar informações

complementares a respeito do objeto de pesquisa, auxiliando principalmente nos

dados qualitativos e tecendo uma relação de confiança com a comunidade para

adentrar no universo da pesquisa.

A técnica conhecida como observação participante foi realizada em todas as

visitas à Comunidade, em atividades relacionadas aos afazeres do cotidiano:

acompanhamento das mulheres para a limpeza de peixes na beira do rio; lavagem

de roupas; pescaria com crianças; “bate papo” enquanto pescador consertava os

“petrechos” de pescaria; colheita de frutos junto com as mulheres; observação de

passarinho; colheita de folha de sarã para fazer chá e colheita de outras plantas

medicinais em quintal; colheita de couve em horta plantada no barranco do Rio

Cuiabá; visita à casa do principal ancião da comunidade, com 103 anos, para ouvir

as histórias da origem de Cuiabá Mirim, entre outras atividades (Fig.05).

PROCESSAMENTO DOS DADOS

Para processar as Listas Livres foi usado o software ANTHROPAC 4.0

(BORGATTI, 1996).

A Lista Livre foi analisada pelo Índice de Saliência de Smith, que analisa os

modelos cognitivos, através da freqüência e da ordem das respostas (BORGATTI,

1996a). Em um domínio cultural típico, existem na lista alguns itens principais, que

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46

muitas pessoas mencionaram, e muitos itens que foram pouco mencionados ou

mencionados apenas uma vez (itens idiossincráticos). De forma ideal deveria ser

encontrada uma quebra entre os elementos centrais (citados por muitos informantes)

e os elementos idiossincráticos (BORGATTI, 1996b).

Em seguida foi realizada a Análise de Consenso (ROMNEY et al., 1986), na

qual a Lista Livre foi analisada pelo:

(1) grau de acordo entre informantes sobre o domínio do conhecimento;

(2) respostas típicas;

(3) a proximidade das respostas dos informantes às respostas típicas.

Nesta pesquisa a Análise de Consenso foi utilizada para verificar quais aves

que eles conhecem e quais etnoespécies estão inseridas no domínio cultural

(CAULKINS e HYATT, 1999; BORGATTI, 1996) ou culturalmente típicas

(CHRISTANELL, 2003).

As repostas culturalmente típicas são definidas pelos informantes e pelo

consenso cultural sobre o que está sendo pesquisado. As respostas mais freqüentes

representam melhor o consenso cultural do que respostas idiossincráticas

(BORGATTI, 1996a; BERNARD, 2002).

Borgatti (1996a) coloca que o conceito uma cultura (one culture) é o

pressuposto para o uso da Análise de Consenso. Para este autor não podem

coexistir duas culturas bem definidas dentro de uma comunidade, e as possíveis

variações no conhecimento dos informantes numa comunidade, existem por causa

de experiências pessoais.

Para estes autores isto demonstra a variação e a diversidade cultural.

Caulkins e Hyatt (1999) descrevem dois tipos de acordo (ou desacordo) nos

domínios culturais: coerente, onde ocorre um alto grau de consenso cultural, e

incoerente, onde ocorre baixo consenso cultural entre os informantes.

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47

Figura 05: Observação participante na Comunidade. Fotos: Milaine, Iris Viana, Ruth Albernaz, 2009.

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48

2.3. RESULTADOS

PERFIL DOS INFORMANTES

O universo da pesquisa realizou-se com 22 informantes integrantes da rede

social, cuja faixa etária variou entre 29 a 103 anos. Quanto ao gênero são 05

mulheres (22,7%) e 17 homens (77,3%). O estado civil está distribuído entre: dois

solteiros (♂♂), dois viúvos (♂♀) e dezoito casados (4♀, 14♂). Todos os informantes

(100%) nasceram no Município de Barão de Melgaço, nas seguintes localidades

(tabela 02):

Tabela 02: Origem dos informantes e tempo de residência em Cuiabá Mirim.

Local de Nascimento Nº pessoas Tempo de residência

em Cuiabá Mirim

(anos)

Barão de Melgaço (cidade) 01 30

Cuiabá Mirim 01 33

Estirão Cumprido 04 30/43/47/37

Atibaia 04 40 /48 /40/23

Usina Flexas 05 27/30/30/38/30

Porto General 02 53 /53

Fazenda Espírito Santo 02 41/38

Boca da Pedra 01 28

Guató 01 30

Porto Brandão 01 32

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49

Quanto à profissão, a maioria dos entrevistados se auto-identificaram como

pescadores profissionais (82%), embora desenvolvessem outras atividades como:

criação de gado, plantio de roça (na piracema), piloteiro de barco para pousadas,

guia de turismo, trabalho temporário em pousada. Apenas dois informantes se

identificaram como lavrador (9%), sendo um lavrador-aposentado. Das cinco

mulheres entrevistadas, apenas uma colocou a atividade de dona-de-casa (4%)

como profissão, e um comerciante (5)% (figura 06).

A comunidade dispõe de uma porção pequena de terra que fica ao longo da

margem direita do Rio Cuiabá, limitando o espaço para o desenvolvimento de

atividades como a criação de gado e roças, de maneira que a atividade pesqueira se

transformou ao longo dos anos, na principal atividade de subsistência por ser a

alternativa de maior disponibilidade de recursos e baixo custo.

Figura 06: Distribuição das profissões dos informantes.

82%

9%

4%

5%

Profissão

Pescador

Lavrador

Dona de casa

Comerciante

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50

REDE SOCIAL

A rede social resultou em um emaranhado de conexões humanas com 51

(cinqüenta e uma) pessoas, onde cada entrevistado indicou outras pessoas. A rede

social serviu para a escolha dos informantes que foram entrevistados e para a

observação de como o fluxo de relações sociais se configura no âmbito da

comunidade. Os homens foram predominantes com 40 (quarenta) indicações e

11(onze) mulheres.

O primeiro entrevistado foi Seu Salvador, a partir dele foram entrevistadas

mais 21 pessoas. O informante mais indicado por outros para ser entrevistado foi o

Sr. Salvador com cinco indicações, seguido de Belmiro (Biró) e Benedito (Pitó)

ambos com quatro indicações. A mulher mais indicada foi D. Escolástica, 76 anos

(três indicações) (Figura 7).

As relações na comunidade são abertas e bem distribuídas, a maioria das

pessoas da rede social foi indicada por apenas um informante, podendo observar

uma riqueza de possibilidades de indicações, sendo que muitas vezes os

componentes da rede social que encontram-se na periferia da rede, apresentam

características de conexão com as outras sociedades.

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51

DODÔ BENTO TOTÓ GONÇALO SAMUEL NEGA DOMINGOS FLÁVIO SALVADOR CECÍLIO TOTÓ JOANA LÚCIO MARCINHO PEDRINHO LUZIA PITÓ BIRÓ JOÃO SONIA EDENIL BIZI

JÚLIO IVAN MARIA BENEDITA MARTINHO ANA ROSA ANTONIO GONÇALVES LUIZ C. JOSÉ TROMBONE LOURENÇO BIC JOANA RITA SEBASTIÃO MANOEL EDINHO CARLITO ANGÍ DILNEY ELOIO XINO PEDRINHO CARLINHO LOURENÇO TOTE BENEDITO EUZÉBIO MARIA APARECIDA URSOLINA ADELINA FRANCISCO MARIA PADILHA ESCOLÁSTICA

Figura 07: Rede social dos informantes de Cuiabá Mirim. Os nomes marcados foram entrevistados.

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52

CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES

Todos os informantes (100%) consideraram que os animais que possuem

penas, bico, voam e põem ovos são denominados de forma indistinta de pássaros

ou passarinhos:

“pra nós tudo esses que avoa no céu, é pássaro ou passarinho

e quando tem vários junto é um bando de pássaro” (SCS, 63

anos, ♂).

Foram registradas na lista livre dos informantes cento e oitenta e oito

etnoespécies de aves (anexo I), incluindo um mamífero: morcego (Ordem

Chiroptera) que foi indicado três vezes “Morcego é bicho, mas é passarinho.”

(AGQ, 63 anos, ♂). A lista livre é uma ferramenta utilizada para demonstrar o

domínio cultural sobre algo, sendo o número total das etnoespécies indicadas pelos

informantes

A análise do consenso cultural indicou trinta e oito etnoespécies a partir do

índice de Smith, apresentado na tabela 03. As etnoespécies que apresentaram os

índices de saliência mais elevados foram: Tuiuiú (0.788), cabeça seco (0.779),

garça (0.740).

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53

Tabela 03: Fragmento do anexo I. Análise de lista livre das etnoespécies dentro do

consenso cultural, de acordo com informantes de Cuiabá Mirim (índice de Smith).

Etnoespécie de aves Pista taxonômica Frequên cia

% de resposta

Ranque Índice Smith's

TUIUIU Jabiru mycteria 20 95 10.500 0.788

CABEÇA SECO Mycteria Americana 19 90 7.263 0.779

GARÇA Casmerodius albus 20 95 12.300 0.740

MUTUM Crax fasciolata 19 90 15.316 0.637

ARANCUÃ Ortalis canicollis 18 86 16.222 0.600

PAPAGAIO Amazona sp 18 86 17.278 0.562

BAGUARI Ardea cocoi 18 86 17.444 0.561

PIRIQUITO Psitacidae 18 86 22.500 0.512

JURUTI Leptotila sp 20 95 23.750 0.506

COLHEREIRO Platalea ajaja 13 62 13.769 0.461

CABECINHA VERMELHA

Paroaria sp 16 76 19.750 0.451

BIUÁ Phalacrocorax sp 12 57 13.333 0.440

MASSA BARRO Furnarius rufus 14 67 19.643 0.410

BEM-TE-VI Pitangus sulphuratus 14 67 23.071 0.387

JAÓ Crypturellus Undulatus 16 76 28.500 0.361

ANHUMA Chauna torquata 12 57 21.833 0.357

BEIJA-FLOR Trochilidae 15 71 26.533 0.353

MARRECA Anatidae 16 76 30.750 0.341

ROLINHA Columbina sp 15 71 28.467 0.334

SARACURA Aramides cajanea 15 71 31.467 0.349

SOCÓ Tigrisoma lineatum 10 48 13.800 0.324

SABIÁ Turdus sp 13 62 27.692 0.322

POMBA Columba sp 11 52 21.545 0.310

JACUTINGA Pipile pipile 11 52 25.545 0.308

ANDORINHA Hirundinidae 12 57 24.917 0.294

PIXARONE Saltator coerulescens 11 52 24.909 0.291

CANARINHO Fringilidae 12 57 27.083 0.277

MARTIM-PESCADOR Coraciformes 13 62 32.231 0.273

PIRIQUITO BARROSO Myiopsitta monachus 11 52 26.636 0.273

GALO DA CAMPINA Fringilidae 11 52 30.273 0.276

BIUATINGA Anhinga anhinga 10 48 26.400 0.268 TUCANO Ramphastos toco 11 52 28.364 0.262

URUBU Coragyps atratus 10 48 27.300 0.262

QUÁ Nycticorax nycticorax 11 52 29.727 0.240

JAPÚ Psarocolius decumanus

11 52 29.364 0.225

TAIAMÃ Phaetusa simplex 11 52 31.455 0.221

CAFEZINHO Jacana jacana 11 52 34.636 0.215

MARACANÃ Ara nobilis 11 52 34.000 0.212

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54

A Tabela 04 mostra o resultado da Análise de Consenso, indicando que o

primeiro fator (itens do consenso cultural) foi três vezes maior do que o segundo

fator (demais itens da lista) apontando para um consenso cultural a respeito das

etnoespécies de aves. A mesma também apresenta o valor de Pseudo-Reability

que explica a variabilidade ou grau de acordo entre os informantes. O valor padrão

para concordância entre os informantes necessita ficar na faixa entre 0.9 e 1.0.

Nesta pesquisa o valor obtido foi de 0.946 caracterizando a existência de uma

uniformidade entre as respostas. O consenso cultural concentrou-se em trinta e oito

etnoespécies de aves.

Tabela 04: Análise de consenso Cultural das etnoespécies de aves conhecidas

pelos informantes (Pseudo-Reability = 0.946)

FATOR VALOR RAZÃO

1 9.727 8.670

2 1.122 2.116

3 0.530

11.379

ETNOCATEGORIAS DE AVES

Os informantes agruparam as etnoespécies de aves em oito macro-

etnocategorias distribuídas em cinqüenta e nove etnogrupos, de acordo com as

conexões ecológicas e culturais que eles apresentaram, sendo que muitas delas

(etnoespécies) ocupam lugar em várias etnocategorias, correspondendo a trezentas

e oitenta e uma indicações (tabela 05).

Os grupos categóricos que mais de destacaram foram: “quanto ao hábitat”,

com cento e vinte e oito etnoespécies distribuídas em oito diferentes habitats

“lugares” (tabela 07), seguido das associadas ao “hábito alimentar das aves” com

cento e nove etnoespécies distribuídas em 20 categorias alimentares (tabela 12),

como demonstra a tabela geral (tabela 05):

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55

Tabela 05: Tabela Geral: Etnocategorias e quantidade de etnoespécies.

MACRO-ETNOCATEGORIA ETNOCATEGORIA Nº DE

ETNOESPÉCIE

Quanto ao vôo 04 37

Quanto ao hábito alimentar 20 109

Quanto ao habitat 08 128

Aparência 03 22

Os que podem criar em casa 01 15

Os que servem para comer 01 15

Quanto ao comportamento 02 40

Total de indicações 59 381

CONEXÕES COM A PAISAGEM

A conexão com a paisagem pantaneira foi desenhada pelos informantes a

partir das etnocategorias: quanto ao vôo dos pássaros e quanto aos lugares onde

os pássaros vivem.

Na etnocategoria quanto ao vôo (tabela 06), os informantes agruparam em

relação a estratos aéreos e terrestres: voam alto, baixo, passarinhos que são mais

terrestres e passarinhos que voam alto, mas ficam mais tempo no chão. O grupo

com maior quantidade de etnoespécies foi dos que “voam mais baixo”, com 24 aves,

como apresentado na tabela 06.

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56

Tabela 06: Etnocategoria quanto ao vôo

ETNOCATEGORIA AVES

Pássaros que voam

alto

andorinha, tuiuiú, cabeça seca, biuatinga, urubu;

Pássaros que voam

mais baixo

papagaio, arara, piriquito, cabecinha vermelha, baguari,

socó, garça branca, garça morena (maria faceira),

garça real, frango d‟água, cafezinho, curió, canarinho,

sabiá, joão pinto, japuíra, japu preto (joão congo), beija-

flor, bem-te-vi, tucano, açari, trinca ferro, pica-pau

grande da cabeça vermelha, pica-pau do campo da

cabeça amarela;

Passarinhos que

ficam no chão

Juruti, jaó, perdiz, saracura ;

Pássaros que voam

alto mas ficam mais

tempo no chão

Mutum, arancuã, rola cinzenta, rola branca.

Os informantes definiram alguns lugares5, relacionando-os às aves como

parte integrante daquela paisagem, “tem passarinho que é da beira do rio (ER, 75

anos, ♀)”, dando um sentido de pertencimento daquela determinada etnoespécie

ao lugar, que são unidades de paisagem conhecidas e identificadas pelos

ribeirinhos, porém, sem a denominação de paisagem.

Os informantes demonstraram ter uma compreensão ecossistêmica,

relacionando o lugar onde os pássaros vivem com a disponibilidade de alimento,

com a nidificação e com o hábito alimentar. Cognições estabelecidas por um dos

informantes em relação a etnoespécie Carão: “carão vive das lesmas do pantaná,

come caramujo e minhoca, por isso é brejeiro...(ER,75 anos, ♀)”, dessa maneira

5 Os lugares podem ser considerados como unidades de paisagem. Estudo realizado por Galdino (2006) na

mesma comunidade levantou através do conhecimento tradicional dezessete lugares ou unidades da paisagem

pantaneira.

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pode-se evidenciar a conexão entre o habitat e o hábito alimentar, mostrando a

importância do nicho trófico enquanto relação de sobrevivência.

Os informantes descreveram os lugares da seguinte maneira:

“Beira d’água, baía e beira do rio é os lugá onde tem mais água, no

barranco, dentro das baía e os bicho fica o dia todo junto com a

água” (GS, 51 anos, ♂).

“Brejo é aqueles lugá aberto que fica molhado o tempo todo cheio

de isca e frieira” (BRL, 53 anos ♂).

“Firme é lá pra trás (em relação ao rio), que fica seco o tempo todo”

(BRL, 53 anos ♂).

“As praia só aparece quando o rio ta baixo, nas seca,fica umas areia

bem branquinha, nós planta batata lá, aí tem uns bicho que bota ovo

e fica lá” (LR, 52 anos, ♂).

“As mata fechada é onde tem os pau alto, nas beira do rio e em

outros lugar” (URN, 67 anos, ♀).

“Os que fica no sarã. Sarã é umas planta que fica no barranco do

rio, ajuda a não desbarrancá e nós bebe o chá dela, tipo mate” (GCS,

51 anos, ♂).

“O que vive no ar , é aqueles que a gente vê eles no céu voando,

fazendo redemoinho, diz que eles vêm de longe” (GCS, 51 anos, ♂).

A tabela 07 apresenta a etnocategoria quanto ao hábitat, onde o grupo dos

que vivem na mata fechada apresentou o maior número de aves.

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Tabela 07: Etnocategoria “quanto ao Hábitat”.

ETNOCATEGORIA AVES

Os da beira d‟água, baía e

beira do rio

cabeça seco, tuiuiú, colhereiro, garça, biuá,

baguari, taiamã, martim, marreca, pato do

mato, biuatinga;

Os da mata fechada

mutum, arancuã, jacu, jacutinga, jaó,

saracura, nambu, rola, pomba, juruti do

pantanal, urubu, cracará (cabeça chato),

gavião, beija-flor, marriquitinha, sabiá;

Os do brejo

cafezinho, patinho d‟água, batuirinha,

saracura, carão, quero quero, cabecinha

vermelha ou josé fita, galo da campina,

chapéu veio e vira unha;

Os do firme

pavão, coruja, urutau, rolinha;

Os que ficam na praia

gaivota, batuíra;

Os que ficam no sarã

sicuíra, anu preto, anu branco, cabecinha

vermelho, bica de prata, sanhaço, sabiá;

O que vive no ar

Andorinha;

Os que vivem no cercado ou

campo

quero quero;

"As garças descem nos

brejos que nem brisas

Todas as manhãs".

(Manoel de Barros)

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CONEXÕES DE SOBREVIVÊNCIA HUMANA

Dentre as etnoespécies, foram indicadas 15 aves que os entrevistados

categorizaram como “os que servem para comer” (tabela 08), ou seja, para

alimentação humana. Segundo relato de um dos informantes:

“naquela época que não existia supermercado, nós comia o que tinha

por aqui mesmo, agora é só ter dinheiro e correr em Barão [...]”

(ARS, 64 anos ♂).

Outro informante relatou,

“antigamente eu comia os passarinho, hoje já nem como mais, tá

fácil de comprar comida na venda [...]” (US, 67 anos, ♂).

Das aves, o mutum parece ser a que eles consideram mais saborosa,

“nós gostamos de tudo, mas mutum é gostosa, parece frango, é só

fazê bem fritinho. Mas tuiuiú também é bom [...]” (US, 67 anos ♀).

Ao observar três garotos na beira do rio Cuiabá, depenando e tirando as

vísceras de uma ave, um dos garotos disse:

“isso que nós tamo limpano é pombo do mato, vamo fazê pro

almoço, é gostoso [...] Nós comemo vários passarinho [...]” (garoto de

treze anos).

Eles relataram que pegam os pássaros para comer atirando com “funda”6 ou

fazendo arapuca7 de madeira para capturar os bichos, que ficam no firme.

“Lá pro firme que é bom de pegar aqueles passarinho maiorzão, tipo

mutum e juruti” (garoto, doze anos).

6 Funda ou estilingue é uma arma feita por crianças e adultos, com forquilha de galho de árvore. E o pelote (a

bala) é de pedra arredondada. O ato de atirar com a funda é denominado de pelotear.

7 Arapuca é uma armadilha feita geralmente pelos adultos para prender as aves. Arma-se a arapuca e coloca-se

alimento como isca para prender as aves.

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Tabela 08: Etnocategoria “os que servem para gente comer”.

ETNOCATEGORIA AVES

Os que servem para gente comer

cabeça seco, garça, baguari, socó, quá, jaó,

papagaio, arara, tuiuiú, pato, arancuã, mutum,

jacutinga, juruti, pomba;

CONEXÕES DE COMPORTAMENTO

Os informantes agrupam algumas aves em função do comportamento

social e sexual, como:

“tem uns que só vive de bando, anda de grupo como

aqueles piriquitinho verde, já os massa barro vive de dois,

com a companheira [...]” (US, 67 anos ♀).

Foram citadas 12 etnoespécies que vivem em grupo e 28 que vivem em

casal (tabela 09).

Tabela 09: Etnocategoria quanto ao “comportamento”.

ETNOCATEGORIA ETNOESPÉCIES

Em grupo piriquitinho verde , piriquito barroso, pomba trucal ,

japuíra, anu preto grande canjiqueiro, anu preto

pequeno, papagaio, maracanã, ararinha verde,

nandaia, pássaro preto, xexéu;

Casal bem-te-vi, joão-de-barro, pardalzinho, canarinho

amarelo, pombo, juruti, pombo, rolinha (miudinha) de

vez em quando em grupo, curió marronzinho, curió

preto com costa branca, curió cor de canário, curió

branco, amarelo, preto c/coleira branca, bico de prata,

arancuã, jacutinga, jacu, mutum (fêmea carijó e macho

carijó de branco), joão pinto, jaó, papagaio, maracanã,

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nandaia, pássaro preto, xexéu, arara vermelha, arara

azul e arara amarela.

CONEXÕES ESTÉTICAS

Os pantaneiros expressam o encantamento que eles têm pelo lugar onde

vivem, alguns cantam músicas de siriri que retrata as belezas do Pantanal e outros

expressam:

“eu gosto de viver aqui, aqui é um lugar bom, tem muitas beleza [...]”

(URS, 67 anos, ♀).

As conexões com as aves foram expressas de diversas maneiras, inclusive

categorizando-as pela aparência (tabela 10), onde algumas foram consideradas

“bonitas” principalmente em função da cor da plumagem e forma anatômica:

“o que eu acho bonito é coeeiro, bem cor de rosinha, piriquito

também [...]” (ARS, 48 anos, ♀).

A definição de feiúra não está ligada somente à forma física, mas a outros

fatores, como o hábito alimentar (figura 08),

“urubu e cracará, os dois são feio, come carniça e o outro come os

pintos dos outro” (BS, 59 anos ♂).

Figura 08: Urubu alimentando-se do jacaré morto, Rio Cuiabá. Foto: Ruth Albernaz, 2009

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Tabela 10: Etnocategoria quanto à “aparência”.

ETNOCATEGORIA AVES

Pela boniteza tuiuiú, cabeça seco, massa barro, cabecinha

vermelho, beija-flor, papagaio, maracanã, piriquito,

mutum, pato, arancuã, nhana cocá e sabiá;

Os que tem a cor

parecida

rolinha, pomba e juruti;

Pela feiúra muié véia, coruja, gavião, morcego, urubu e cracará.

Ainda no contexto das relações estéticas, algumas aves compõem a

ambiência da casa. Foram apresentadas 15 aves como etnocategoria “os que

podem ser criados em casa”, pois consideram bonitos para enfeitar a casa, podendo

alguns serem “amansados” e outros além de bonitos, servem como alimento

(pomba, jaó, juruti, pato) (Tabela 11).

Tabela 11: Etnocategoria “os que podem ser criadas em casa”.

ETNOCATEGORIA AVES

Os que podem ser criados

em casa

Papagaio, piriquito, pato, marreca, cardeal,

galo da campina, pixororé, pardal, bica de

prata, bico curto, pomba, juruti, jaó, saracura,

pica-pau.

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CONEXÕES DE SOBREVIVÊNCIA

A etnocategoria quanto ao hábito alimentar (tabela 12) apresentou-se de

forma mais ampliada e com maior riqueza de detalhes. Os informantes, ao relatarem

sobre os hábitos alimentares das aves, acrescentaram de forma interligada algumas

particularidades do comportamento e ecossistema para a obtenção do alimento, em

relação a:

Horário:

“os que se alimenta de rato, lagartixa e outros bichinho, saem para

comer a noite” (GS, 51 anos ♂).

Lugares8:

“Os que se alimenta de ervas e bichinho ficam na beira da

lagoa para encontrar o alimento [...]” (ERS, 75 anos ♀).

“A anhuma come folha, mas é brejeira [...]” (SRS, 63 anos ♀).

“Esses que comem peixinho, gostam de vivê no brejo [...]” (GS, 51

anos ♂).

“cabecinha vermelha gosta de ficar em redor de casa para comer

arroz na panela da gente, eles são manso [...]” (URS, 67 anos ♀),

(figura 08).

Estratégias para obtenção de alimento:

“Os que comem frieira, vão chuçando o chão” (GS, 51 anos, ♂).

“Martim-pescador fica caceteando o pexe no pau, pra matá e comê”

(SRS, 63 anos, ♂).

Algumas etnoespécies que são consideradas como cardápio das aves, foram

descritas pelos informantes da seguinte maneira:

8 Lugar como extensão do acontecer ecológico parafraseando Milton Santos (1997) que conceitua lugar como

a extensão do acontecer homogêneo ou do acontecer solidário e que se caracteriza por dois gêneros de

constituição: uma é a própria configuração territorial, outra é a norma, a organização, os regimes de

regularização.

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“bichinho existe na água, a gente não vê ele, mas os inseto come

ele, deve de existir e esses bichinho come barro e o barro come a

água [...]” (GS, 51 anos ♂).

O “bichinho” é descrito como um ser invisível, semelhante a um inseto que eles

não enxergam, mas existe para alimentar outro no ecossistema.

“Frieira vive no barro, é parecida com uma minhoca, mas não é

minhoca, é menor que minhoca, mais fina e dá só na época que o

barro tá molhado [...]” (GS, 51 anos ♂).

“As isca viva é aqueles tuvira, cambatoá, caramujo, caranguejo [...]”

(SRS, 63 anos, ♂).

As “iscas vivas” são peixes pequenos, caramujos e caranguejos que os

pescadores utilizam para pescar e vender para os turistas.

Figura 09: Cabecinha vermelha e bem-te-vi alimentando-se na panela, varanda de uma

residência em Cuiabá Mirim. Foto: Ruth Albernaz, abril/2009.

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Tabela 12: Etnocategoria “quanto ao hábito alimentar”.

ETNO CATEGORIA

CATEGORIA CIENTÍFICA

AVES

Os que comem

rato, lagartixa e

outros bichinhos

Carnívoro joão curutu, urutau, coruja de orelha,

coruja do peito branco, coruja buraqueira,

coruja caburezinho;

Os que comem

ervas e bichinhos

Herbívoro-

insetívoro

anhuma, quero quero, vira unha, batuíra

pernilongo, batuíra colerinha, marreca,

curicaca;

Os que comem

peixe

Piscívoro tuiuiú, cabeça seco, biuá, socó boi, socó

galinha(come cobra também), garça,

baguari, sicuíra, quá, biuatinga, colhereiro,

martim-pescador, cafezinho,

saracura,tabuiaiá, garça branca, garça real

cinza, garça real amarelada com bico

cinza, sicuíra, marreca, quá;

Os que comem

isca viva ( tuvira,

cambatoá,

caramujo,

caranguejo)

Piscívoro tuiuiú, cabeça seca, tabuiaiá, colhereiro,

baguari, biguá, saracura, socó;

Os que comem

frutas e

minhocas

Onívoros mutum, arancuã, jacutinga, jacu, pomba,

jaó, ema, siriema, rolinha, papagaio,

piriquito, baitaca, nandaia, piriquito

barroso, tucano, acari, graia, cabecinha

vermelha, pardalzinho, canarinho, bica de

prata, pixororé, arara amarela, arara azul,

arara vermelha, quero quero;

Os que comem

frutas e insetos

Frugívoro-

insetívoro

bem-te-vi, joão-de-barro, piriquitinho verde,

piriquito barroso, pardalzinho, canarinho

amarelo, pombo juruti, pombo rolinha

(miudinha), pomba trucal, curió

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marronzinho, curió preto com costa

branca, curió cor de canário, curió branco,

amarelo, preto c/ coleira branca, bico de

prata, japuíra, anu preto grande

canjiqueiro, anu preto pequeno, arancuã,

jacutinga, jacu, mutum, joão pinto, jaó,

papagaio, maracanã, ararinha verde,

nandaia, pássaro preto, xexéu, arara

vermelha, arara azul e arara amarela;

Os que comem

frutas e

sementes

Frugívoro –

granívoro

arancuã, mutum, tucano, papagaio,

piriquito, cabecinha vermelha, pixororé (flor

e fruta), japu, galo da capina, bica de

prata, curió, bico curto, sariema, arara,

japuíra, rolinha, jacutinga, mutum, jacu,

jacu goela;

Os que comem

sementes

Granívoro jaó, juruti, rolinha, curió, bico curto,

arancuã;

Os que comem

frieira

Insetívoro curicaca, vira unha;

Os que comem

insetos e

minhocas

Insetívoro curicaca cinza, curicaca (preta, branca,

marrom), vira unha , frango d‟água ( dobra

o capim para fazer ninho) tem azul,

esbranquiçada e marrom, saracura;

Os que comem

inseto d‟água

Insetívoro patinho, cafezinho, frango d‟água,

marreca, pato grande;

Os que comem

inseto no seco

Insetívoro pioró, massa barro, sabiá, saracura,

andorinha;

Os que comem

caramujo

Malacófagos carão (vive das lesmas do pantanal, come

caramujo e minhoca), quero quero,

cabecinha vermelha ou josé fita, galo da

campina, chapéu veio e vira unha;

Os que comem Carnívoro gavião caramujeiro, muié véia, gavião

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67

cobra, peixe e

filhos de outros

pássaros

preto, gavião marrom, gavião carijó, gavião

có (carijó e grita co), pinhé (come filhotes),

cracará;

Os que comem

outros

passarinhos e

cobras

Carnívoro caburezinho, kriquiri, gavião pinhé, tucano;

Os que comem

fruta e o filhote

dos outros

Carnívoro tucano, açari (parece tucano, mas é meio

marrom, peito amarelado e listrado);

Os que comem

galinha

Carnívoro coruja, urutau e joão curutu;

Os que comem

melzinho, pólen

da flor e da flor

Nectívoro-

herbívoro

beija-flor, marriquitinha, pixororé (flor);

Os que comem

aranha,

baratinha dágua

e arroz do campo

Insetívoro-

granívoro

pato, marreca;

Os que comem

folha

Herbívoro Anhuma.

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REDE ALIMENTAR DAS AVES

A rede alimentar das aves foi construída a partir do relato do conhecimento

ecológico dos informantes a respeito de trinta e oito etnoespécies mais indicadas e

que foram consideradas como consenso cultural a partir da análise do ANTROPAC

4.0.

Associada à trinta e oito etnoespécies foi realizada as perguntas da técnica

“quem come quem”, A partir das respostas foi elaborado a rede alimentar da figura

10, na perspectiva pedagógica de demonstrar o emaranhado de conexões

estabelecidas em um ecossistema pantaneiro.

A configuração da rede alimentar apresentada contemplou aves, peixes,

mamíferos, répteis, plantas nativas e exóticas e elementos minerais como: barro,

areia, pedregulho, chuva e água.

As setas foram colocadas no sentido predador-presa, na perspectiva de quem

come quem. A energia é transferida no sentido contrário, presa- predador, ou seja, o

predador se beneficia da energia da presa.

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Figura 10: Rede alimentar: interação aves-plantas-bichos-terra-água [As setas estão

indicadas no sentido predador-presa].

TUVIRA CARANGUEJO

GENTE ONÇA JAGUATIRICA URUBU GAMBÁ CABEÇA SECO BAGUARI BARATA D‟AGUA MUTUM AREIA TUIUIÚ COLHEREIRO MARRECA GAVIÃO JACARÉ BEM-TE-VI ROLINHA COBRA CANINANA PIRIQUITO FRUTAS ARANCUÃ PEIXES PAPAGAIO MILHO TUCANO

MASSA BARRO INSETO DO CHÃO SABIÁ CABECINHA VERMELHA GENIPAPO BEIJA-FLOR SARACURA JAÓ MINHOCA FRUTA DE CANELEIRA POMBA ANHUMA ISCAS BARRO INSETO D‟ÁGUA QUERO QUERO GARÇA FOLHA DE BATATA LAMBARI ÁGUA SEMENTES

FLOR LODO INSETINHO CHUVA

CUPIM BICHINHO FORMIGA MADEIRA PEDREGULHO AREIA DA PRAIA FRIEIRA

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70

As redes alimentares apresentadas pelos informantes mostraram a

transferência do alimento (energia) de um nível para outro nível trófico a partir dos

produtores, através de cadeias alimentares, cuja complexidade é variável.

Informações de diversos elementos interacionais apareceram, podendo ser

construídos alguns modelos, oriundos das conexões estabelecidas através dos

relatos que estão exemplificados nas figuras de 11 a 15 (que foram elaboradas de

múltiplas maneiras, demonstrando as várias possibilidades pedagógicas):

Figura 11: Cadeia alimentar citada pelos informantes, com fluxo de energia direcional,

interação entre animal-mineral.

Figura 12: Cadeia alimentar citada pelos informantes, com fluxo de energia direcional,

interação animal-vegetal-mineral.

ONÇA JACARÉ SICUÍRA PIQUIRA ÁGUA

jacaré tuiuiú e outros

isca vivainseto

dagua e cupim

madeira terra

Consumidor secundário

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71

Figura 13: Cadeia alimentar envolvendo organismos aquáticos, áreas úmidas e

terrestres, relação trófica entre animal-vegetal.

Figura 14: Cadeia alimentar com espécies ocupando o mesmo nível hierárquico na

interação animal-vegetal-mineral.

Figura 15: Rede alimentar envolvendo mineral, vegetal, animal e ser humano.

ONÇA JACARÉMARTIM-

PESCADOR

SARDINHA

F RUTA DA

SARDINHEIRA

GENTE

ONÇA E JAGUATERICA

MUTUM

CANELEIRA

INGARANA

FIGUEIRA

BARRO

Produtor

Consumidor primário

Consumidor secundário

(ave)

Topo de cadeia

Consumidor primário

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72

Os informantes demonstraram conhecer bem o comportamento das aves,

apresentando uma lista associada de algumas espécies, situando-as no mesmo

nicho relatando a respeito do comportamento de algumas etnoespécies e

especificando as estratégias para se alimentarem, como é o caso do Martim-

pescador: “Martim, fica caceteando o peixe até matá e comê” (GS, 51 anos, ♂).

Tabela 13: Lista associada de aves/peixes: “quem come quem”.

AVES PISCÍVORAS

PEIXES

Tuiuiú e cabeça seco rubafo, sardinha, cambatoá;

Garça e colhereiro sardinha, lambari;

Biuá e biuatinga

bagre, carra carra, rapa canoa;

Socó e baguari

filhote de piranha, sardinha, jijum;

Taiamã e Sicuíra

Taiamã come só as piquirinhas; sicuíra come

piquira, filhote de rubafo;

Martim-pescador e biuá lambari, sardinha, bagre.

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73

2.4. DISCUSSÃO

Todos os informantes desta pesquisa têm sua origem no Município de Barão

de Melgaço, sinalizando uma estreita relação com o Pantanal, com rico

conhecimento sobre o assunto tematizado nesta pesquisa. A maioria dos

entrevistados se autoidentificaram como pescadores profissionais, expressando que

existe uma relação de dependência com os serviços ofertados pelo Rio Cuiabá.

A rede social demonstrou que as indicações contemplam um bom número de

pessoas, configurada de forma aberta, não havendo concentração de indicação em

um único informante.

Os resultados em relação ao conhecimento da riqueza de aves concentraram-

se em cento e oitenta e oito (188) etnoespécies9 que sinalizam a ligação dos

pantaneiros e pantaneiras com as aves e o ambiente, demonstrando conexões

ecológicas que fazem parte do bojo do conhecimento tradicional. A compreensão

dos informantes a respeito das aves se apresentou de forma sistêmica, com amplo

grau de consenso cultural em relação às aves, incluindo trinta e oito etnoespécies

dentro do consenso cultural.

As aves são sem dúvida um dos grupos mais conhecidos e as pessoas

costumam conferir-lhes nomes que geralmente se relacionam com características

marcantes como comportamento, forma, cor ou manifestações sonoras (FARIAS e

ALVES, 2006).

Para Marques (2001, pág.52) qualquer sociedade humana estabelece as

seguintes conexões básicas: “toda e qualquer sociedade humana estabelece seis

conexões fundamentais: cosmológica, geológica e hidrológica, botânica, zoológica,

humana e sobrenatural.”

9 As etnoespécies de pássaros são espécies de aves consideradas aqui por poderem receber mais

de um nome, de acordo com os apelidos dados pela comunidade, sendo etnoespécie morcego

entendida como pássaro pelos informantes.

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74

As conexões estabelecidas pelos informantes foram: conexões com a

paisagem, conexões de sobrevivência humana, conexões estéticas, conexões de

sobrevivência das aves e a rede alimentar (conexões mineral-vegetal-animal).

Os informantes classificaram e agruparam as etnoespécies de aves em oito

macroetnocategorias distribuídas em cinqüenta e nove etnocategorias, de acordo

com as conexões ecológicas e culturais que eles apresentaram, sendo que muitas

das etnoespécies ocupam lugar em várias etnocategorias, correspondendo a

trezentas e oitenta e uma indicações de aves.

As macro-etnocategorias indicadas pelos informantes relacionam-se com o

tipo de vôo, o comportamento, a aparência, hábitat, hábito alimentar, os que servem

como alimentação humana e os que servem para serem criados em casa.

Pesquisa com abordagem semelhante foi realizada por Giannini (1991) com

grupos indígenas que nomeavam e classificavam as aves, através de princípios de

sistemas classificatórios com base na morfologia, cantos, hábitat e, principalmente,

por meio da compreensão dos mitos.

No mesmo sentido, pesquisa abordando as classificações com perspectiva

multidisciplinar foi realizada por Jensen (1985) estudando sistemas classificatórios

de aves, realizados com grupos indígenas na região norte do Brasil. Nesse estudo,

foi observado um sistema hierárquico de classificação das aves utilizando

descontinuidades naturais, semelhantes a aquelas reconhecidas na sistemática

Lineana, e um sistema de classificação social.

Nesta pesquisa, a etnocategoria quanto ao hábitat, “onde os pássaro vive”,

demonstra a conexão com os habitats, sendo listado oito (8) lugares de onde os

“pássaros pertencem”, numa abordagem ecossistêmica rica em detalhes de

comportamento e interações intra-específicas: comportamento, estratégias para

conseguir alimento (forrageamento e predação) e interespecíficas: rede alimentar e

disputa do nicho trófico (disputa de território, predação).

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75

Os “lugares” indicados podem ser também compreendidos como as unidades

de paisagem10 do Pantanal. Os “lugares” onde houve os maiores números de

etnoespécies citadas foram: mata fechada com dezesseis etnoespécies e em

seguida um grupamento de lugares denominados “beira d‟água, baía e beira do rio”

que eles colocaram juntos em função das etnoespécies movimentarem entre esses

espaços, indicando onze etnoespécies. O brejo foi o terceiro lugar mais citado com

dez etnoespécies. “brejo fica nesse lugar mais baixo e fica sempre molhado, com

isca, caranguejo [...]” (SRS, 63 anos). Essas aves encontradas no brejo alimentam-

se de insetos aquáticos e de pequenos peixes.

“No Ritmo das águas do Pantanal” escrito pelas pesquisadoras Da Silva e

Silva (1995), com pesquisa realizada na região de Mimoso é uma densa descrição

do modo de vida dos pantaneiros e contempla os diversos ambientes, havendo

semelhança na descrição de brejo e iscas que vivem no brejo, citando as mesmas

etnoespécies encontradas em Cuiabá Mirim.

Pesquisa realizada por Galdino (2006) revela que na mesma comunidade

(Cuiabá Mirim) foram identificadas dezessete unidades de paisagem para obtenção

de recursos vegetais para a construção da casa pantaneira, sendo que brejo, baía,

firme, rio, lagoa, morro, mata e corixo, obtiveram um provável consenso cultural

entre os informantes.

No Pantanal, em relação à abundancia de espécies, Nunes e Tomas (2008)

colocam que as aves aquáticas predominam na comunidade de migrantes e

nômades na planície do Pantanal. Entre os migrantes intercontinentais as aves

aquáticas representam 56,4% das espécies que invernam no Pantanal.

Devido à complexidade dos sistemas naturais, é extremamente difícil

compreender com exatidão o papel que as espécies desempenham na

funcionalidade dos ecossistemas e até que ponto as diferentes espécies podem

sobrepor na sua contribuição em determinada função particular de um ecossistema

10

O conceito de paisagem é definido por Metzger (2001) como “um mosaico heterogêneo formado por

unidades interativas, sendo esta heterogeneidade existente para pelo menos um fator, segundo um

observador e numa determinada escala de observação”.

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76

(HOBBS et al., 1995). É, no entanto possível identificar grupos de espécies que

desempenham papéis mais relevantes no funcionamento de um dado ecossistema

(HECTOR et al., 2001).

A rede alimentar elaborada pelos informantes contemplou a hierarquização

dos diversos níveis da teia alimentar, onde foi demonstrado o conhecimento

ecológico das aves, estabelecendo o vínculo existente entre um grupo de

organismos presentes no ecossistema, os quais são regulados pela relação

predador-presa. É através da rede alimentar, ou cadeia trófica, que é possível a

transferência de energia entre os seres vivos.

Existem basicamente dois tipos de cadeia alimentar, as que começam a partir

das plantas fotossintetizantes e as originadas através da matéria orgânica animal e

vegetal (PINTO COELHO, 2000). O maior número de etnoespécies indicadas estava

na etnocategoria “os que comem frutas e insetos” (trinta e três etnoespécies)

indicando que estão em dois níveis tróficos, se alimentando de produtores (frutas) e

alimentando de consumidores primários (inseto).

Pesquisa semelhante foi realizada por Magalhães (1990) no Município de Nossa

Senhora do Livramento que apresentou uma teia alimentar a partir do capão como

unidade ecossistêmica e a descrição dos informantes sobre as relações tróficas.

Foram citadas 15 etnoespécies de aves como fonte de dieta dos ribeirinhos,

podendo constatar a interdependência entre seres humanos/aves/ambiente na teia

alimentar e o amplo grau de adaptação da cultura pantaneira refletida na culinária

que, mesmo tendo o peixe como principal fonte de proteína, possui uma

diversificação nas fontes, diminuindo a pressão sobre o pescado.

Outras comunidades tradicionais utilizam aves na dieta alimentar como relatado

por Hanazaki (2001) no estudo a respeito de “ecologia de caiçara: uso de recursos e

dieta” verificando que na região do litoral sul de São Paulo as etnoespécies de

sabiás são amplamente consumidas pelas comunidades caiçaras.

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77

Para conservação das práticas tradicionais, Primack e Rodrigues (2001, pág.

282) discutem sobre as políticas de conservação, e ressaltam a difícil missão de se

planejar políticas públicas que contemplem a diversidade cultural e acrescentam:

Cada espécie de planta, grupo de animais, tipo de solo e paisagem

quase sempre tem uma expressão lingüística correspondente, uma

categoria de conhecimento, um uso prático, um sentido religioso, um

papel em um ritual, uma vitalidade individual ou coletiva.

Salvaguardar a herança natural de um país sem resguardar as

culturais que lhe tem dado vida, é reduzir a natureza a algo sem

reconhecimento, estático, distante, quase morto.

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78

2.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conhecimento ecológico tradicional de aves vem sendo repassado ao longo

das gerações, auxiliando no processo de adaptação e resiliência às perturbações

sociais e ambientais que vem ocorrendo no Bioma Pantanal.

Nesse sentido, a biodiversidade e o ambiente do Pantanal parecem oferecer

condições para que a comunidade de Cuiabá Mirim adapte-se às mudanças

operadas em seu meio físico e social e disponha de recursos que atendam a suas

novas demandas, porém as pressões externas são fatores contínuos que ameaçam

a continuidade do padrão cultural.

É necessário reconhecer a existência entre as comunidades tradicionais, de

outras formas, igualmente racionais de perceber a biodiversidade, além das

oferecidas pela ciência moderna, considerando que este conhecimento assegura o

acesso rápido a informações elementares para pesquisas científicas e

monitoramento da biodiversidade, além de dar subsídios à população local na

defesa de “seu lugar”.

Estudos desta natureza trazem no seu bojo a esperança de dar visibilidade ao

conhecimento ecológico tradicional, em espaços de diálogo para a implementação

de políticas públicas que garantam a sustentabilidade dos pantaneiros e

pantaneiras.

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83

CAPÍTULO 2

ETNOINDICADORES CLIMÁTICOS

“gavião caramujeiro vai voando

e fazendo redemoinho circular

tá advinhando o tempo, vai chovê.”

(E. da Silva Luz, 75 anos, ♀)

Figura 16: Entardecer no inverno, Baía de Siá Mariana. Imagem: Ruth Albernaz, julho de 2009.

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84

RESUMO

ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da

Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.

(Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).

Este trabalho apresenta o Conhecimento ecológico tradicional – CET de aves pelos

ribeirinhos da Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso, Brasil. O

Conhecimento Ecológico Tradicional de 22 pantaneiros foi desvelado num processo

dialógico, por meio de uma abordagem metodológica híbrida de cunho qualitativo e

quantitativo pelo viés da gestão e educação ambiental. Para a coleta de dados foi

utilizado técnicas como Listas Livres, Observação Participante, Entrevistas

Estruturadas e Semi-estruturadas. No cotidiano da comunidade foi observado os

etnocalendários ligados ao sistema sócioecológico, evidenciando atividades sociais

como: o tempo de escola e tempo de festas e as atividades de sobrevivência como

pesca e roça, moldados pelo tempo das águas, nas fases: enchente-cheia-vazante-

estiagem. Foram levantadas as aves etnoindicadoras climáticas e outros

componentes bióticos e abióticos e a percepção dos informantes em relação às

alterações climáticas. A comunidade estudada demonstrou amplo conhecimento a

respeito das aves, com riqueza de detalhes e percepção ecossistêmica, onde o

fazer e o saber fazer são moldados pela relação com a natureza, contornados pela

capacidade de adaptação e pelos processos de resiliência ao longo do tempo.

Estudo a respeito do conhecimento Ecológico Tradicional das comunidades do

Pantanal sobre as aves e suas relações com o clima são importantes ferramentas

para o acesso às informações, de modo rápido, seguro, eficiente e de baixo custo. O

enfoque de pesquisas que contempla o saber ecológico das comunidades

tradicionais vem sendo reconhecido e valorizado por se tratar de conhecimento de

longo prazo, que se perpetua através da transmissão oral entre gerações.

Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, aves.

Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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ABSTRACT

ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá

Mirim Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.

(Dissertation – Master in Environmental Science).

The traditional ecological knowledge is a knowledge system that reflects the

adaptation of human population at their environment. This work presents the

Traditional Ecological Knowledge – TEK of birds by the ribeirinhos11 of Cuiabá Mirim

Community, Pantanal of Mato Grosso, Brazil. The traditional ecological knowledge of

22 pantaneiros were revealed through a dialogic process, by a hybrid methodological

approach, with a qualitative and quantitative character, by the environmental

education and management bias. For the data collection it was used techniques like

free lists, Participant observation, structured and semi structured interviews. In the

community quotidian it was observed an ethno calendar linked to the socio-ecological

system, becoming evident activities as: school time and party time and the survive

activities like fish and agriculture molded by the water time, in the phases: inundation

- flood – receding – dry. Ethoindicator birds weather, biotic and abiotic components

and the informers perception concerning to the climate changes were raised up. The

community studied showed up a wide knowledge about birds, with a lot of details and

an ecosystemic perception, where knowing and doing are molded by the relationship

with the nature, outlined by the capacity of adaption and by the capacity of

readaptation of the environment after being through a stressing situation. Studies

about the traditional ecological knowledge of Pantanal communities about birds and

their relation with the weather are important tools to the access to informations,

rapidly, safely, and on a low cost. Researches with an approach that contemplates

the ecological known of the traditional communities are being recognized and

valorized because it concerns to a long term knowledge, that is perpetuated through

the oral transmission among generations.

Key - words: Pantanal, traditional ecological knowledge, birds.

11

Ribeirinhos is a term that refers to all those who live in Pantanal.

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3.1. INTRODUÇÃO

A regulação climática do Planeta Terra envolve muitas discussões gerando

grandes polêmicas, em função das crenças, interesses e valores dos envolvidos. O

fenômeno das mudanças climáticas vem sendo considerado por muitos estudiosos

no assunto como a mais séria ameaça para toda a vida do planeta, com impactos

adversos sobre o ambiente, a saúde, a segurança alimentar, as atividades

econômicas, recursos naturais e infra-estruturas físicas. As mais recentes

descobertas científicas, apresentadas no Quarto Relatório de Avaliação do Painel

Intergovernamental de Mudanças Climáticas12 indicam, com 90% de certeza, que

apesar das variações naturais do clima global, o aumento da concentração de gases

do efeito estufa emitidos por fontes antropogênicas está alterando significativamente

o equilíbrio do sistema do clima e seus efeitos já são observados, tornando

necessárias, portanto, imediatas ações preventivas, de curto, médio e longo prazos,

dada a inércia do sistema climático.

As preocupações com as mudanças climáticas começaram ganhar evidência

a partir da década de 1980, quando pesquisas científicas sobre a possibilidade de

mudança do clima em nível mundial despertaram interesses crescentes no público e

na comunidade científica em geral. Em 1988, o Programa das Nações Unidas para o

Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM)

estabeleceram o Intergovernamental Panel on Climate Change [Painel

Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC]. O IPCC tem a missão de

apoiar com trabalhos científicos as avaliações do clima e os cenários de mudanças

climáticas para o futuro.

As alterações do equilíbrio climático podem ser causadas por quatro fatores

principais. Três deles dizem respeito a mudanças no nível de concentração, na

12 Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima - Mudança do Clima 2007. Quarto Relatório de Avaliação do IPCC. No âmbito da

quarta avaliação feita pelo IPCC da situação atual do conhecimento da mudança do clima, apresentam-se o Sumário para os Formuladores de

Políticas do Grupo I - a Base das Ciências Físicas, o Sumário para os Formuladores de Políticas do Grupo II - Impactos, Adaptação e

Vulnerabilidade e o Sumário para os Formuladores de Políticas do Grupo III - Mitigação da Mudança do Clima.

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atmosfera, de elementos muito importantes: os gases de efeito estufa; os aerossóis

e a radiação solar; o quarto fator diz respeito a transformações nas características

da superfície terrestre (ARTAXO, 2008).

Pesquisas indicam as conseqüências a médio e longo prazo em função das

alterações antrópicas que influenciam o clima global:

O efeito do desmatamento e das mudanças climáticas afeta o

ciclo hidrológico em todas as escalas de tempo: em escalas de

tempo de dias a meses, levam a mudanças na incidência de

inundações; em escalas de tempo sazonais a interanual,

mudanças nas características da seca é a principal

manifestação hidrológica; e em escalas de anos a décadas, as

teleconexões nos padrões de circulação global atmosférica,

ocasionadas pela interação oceano-atmosfera, afetam a

hidrologia de algumas regiões, especialmente nos trópicos, por

diferentes eventos, entre eles o El Niño (NIJSSEN et al., 2001,

pág. 14).

A rica biodiversidade do Pantanal aliada a exuberante beleza cênica são

fatores que influenciaram o reconhecido como Patrimônio Nacional pela Constituição

de 1988 e como Área Úmida de Importância Internacional pela Convenção Ramsar13

. Em 2000, foi designado como Reserva da Biosfera, pela UNESCO14, como

Patrimônio Natural da Humanidade, oferecendo uma oportunidade única para a

conservação da biodiversidade em conjunção com o desenvolvimento sustentável.

13 DECRETO Nº 1.905 DE 16 DE MAIO DE 1996 promulga a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, especialmente como

Habitat de Aves Aquáticas, conhecida com Convenção de Ramsar, de 02 de fevereiro de 1971.

14 UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

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88

Referindo-se ao seu valor biológico e ao seu estado e prioridade de

conservação, pesquisas apontam que o Pantanal é uma região de “grande

significância global, vulnerável e com altíssima prioridade para a conservação em

escala regional”.

A Declaração do Milênio enfoca as pressões sócio-ambientais impostas aos

diversos biomas no mundo, em especial os impactos potenciais das mudanças

climáticas globais. Diversos autores tem relatado e discutido os impactos das

mudanças climáticas globais associados a esses biomas, como Alverson et al.

(2002); Cramer et al., (2004); Davis et al. (2003); Opdam e Wascher, (2004); Meira

(2009), entre outros.

O Pantanal Mato-Grossense concentra uma das maiores riquezas biológicas

de aves, das quais as aves aquáticas são as mais evidenciadas (DA SILVA et al,

2001; JUNK et al., 2003). As aves são reconhecidas em diversos estudos, como

boas indicadoras de mudanças ambientais naturais, podendo ter um papel

importante como indicadoras das atuais mudanças climáticas global.

Neste Bioma ocorrem inúmeras espécies de aves aquáticas, tanto

neotropicais – que se distribuem desde o Caribe até o sul do continente sul-

americano – como as neárticas, espécies que têm suas áreas reprodutivas na

América do Norte, desde o ártico até o México (MORRISON et al., 2008). Os

mesmos autores ainda constataram que, em escala global, nas diferentes rotas

migratórias conhecidas, as aves aquáticas e limícolas15, encontram-se ameaçadas

e com declínio populacional ente 33% a 68%.

Neste estudo, os etnoindicadores climáticos contemplam as aves e aspectos

bióticos e abióticos que são conhecidos pelos pantaneiros e pelas pantaneiras,

fazendo parte do arcabouço do Conhecimento Ecológico Tradicional-CET ou mesmo

podendo ser considerado por alguns autores como sabedoria popular local. Quando

se utiliza a expressão sabedoria popular, é a partir da idéia entrelaçada com a

15

Espécies que vivem em substratos lodosos, costeiros, sejam de água doce ou salgada.

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89

perspectiva do senso comum. Geertz (1997) conceitua senso comum como um

sistema cultural, como um corpo de crenças e juízos, com conexões amplas.

Nesse sentido, busca-se inspiração em Leff (2001) que define o ambiente

como uma visão das relações complexas e sinérgicas gerada pela articulação dos

processos de ordem física, biológica, termodinâmica, econômica, política e cultural.

Este conceito ressignifica o sentido do habitat como suporte ecológico e do habitar

como forma de inscrição da cultura no espaço geográfico. O mesmo autor afirma:

O conhecimento local não é apenas o arsenal de técnicas e saberes

construídos pela prática. O conhecimento local não soma as

condições empíricas a estudos abstratos. Não é submissão de

particularidades locais a racionalidades universais dominadoras e

hegemônicas. O conhecimento local é construído por significados

elaborados através de processos simbólicos que configuram estilos

étnicos de apropriação do mundo e da natureza (LEFF, 2001,

pag.336).

Considerando-se as configurações do saber como construções locais,

inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros, onde tudo aquilo que se vê

depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo

tempo (GEERTZ, 2002).

O conhecimento das aves enquanto etnoindicadores climáticos na

Comunidade de Cuiabá Mirim, no Município de Barão de Melgaço, Mato Grosso é

identificado como um importante elemento cultural, presente no campo social e

ecológico. Neste estudo foram consideradas as relações dos pantaneiros com os

aspectos culturais, sociais, bem como características ecológicas próprias do

Pantanal. Dessa forma, a valorização do espaço e suas interações se tornam

indispensáveis.

A “descrição densa", proposta pelo método etnográfico, proporciona a

abordagem de diversos elementos pertencentes ou envolvidos nestas práticas.

Buscou-se interpretar os aspectos subjetivos, a partir da percepção dos ribeirinhos

em seus relatos no processo inter-relacional da pesquisa. A análise das ações no

cotidiano permite definir os códigos que estruturam o pensamento e conferem um

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90

significado ao mundo observado. O saber popular ou senso comum fundamenta as

práticas cotidianas (GEERTZ, 1989).

A partir dos relatos das fontes orais16 em meio ao seu cotidiano, baseando na

observação do comportamento das aves em seu contexto ambiental, e suas

interpretações ancoradas nos elementos culturais, buscou-se compreender suas

significações, bem como, o conhecimento sobre as aves para decifrar a realidade

simbólica, atribuindo significados, segundo as normas sociais e culturais deste

grupo. As aves e outros etnoindicadores climáticos bióticos e abióticos surgem como

importantes elementos ecológicos integrados à realidade cultural deste grupo

humano que interage constantemente com as alterações ambientais e climáticas.

Este trabalho se desenha a partir do Conhecimento Ecológico Tradicional-

CET de aves pela comunidade Cuiabá Mirim relacionado a etnoindicadores

climáticos, levando-se em consideração a temporalidade, bem como, os relatos de

fontes orais em relação as alterações climáticas local. Para conhecer melhor o ritmo

sócio-ecológico da comunidade, buscou-se observar os etnocalendários

estabelecidos através das práticas coletivas dos ciclos onde eles interagem.

3.2. MATERIAIS E MÉTODOS

3.2.1. ÁREA DE ESTUDO

PANTANAL: ASPECTOS FÍSICOS E BIOLÓGICOS

O Pantanal situa-se no maior sistema alagável contínuo de água doce do

Planeta, região central da América do Sul, na Bacia do Alto Rio Paraguai – BAP

apresentando vasta biodiversidade, beleza cênica e rico processo histórico de

ocupação. Com superfície de aproximadamente 150.355 km² de área (IBGE, 2009).

Alguns autores defendem a idéia de vários pantanais subdividindo este

território de acordo com suas características geográficas. A Empresa Brasileira de

Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA considera que o Pantanal é dividido em onze

16

Neste capítulo adotou-se a nomenclatura fontes orais em substituição a informantes.

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regiões, denominados em sua maioria, de acordo com rios ou povos da região.

Assim, do sul para a região norte, temos o Pantanal de Porto Murtinho, Nebileque,

Aquidauana, Miranda, Abobral, Nhecolândia, Paiaguás, Paraguai, Barão de

Melgaço, Cáceres e Poconé.

No Estado de Mato Grosso, dentro dos limites do Pantanal estão os

municípios de Cáceres, Poconé, Nossa Senhora do Livramento, Santo Antônio do

Leverger e Barão de Melgaço (ALLEM e VALLS, 1987).

De acordo com Da Silva (1990), Barão de Melgaço é o município que possui a

maior área dentro dos limites pantaneiros, uma vez que 99,2% de seu território

encontram-se dentro dos limites do Pantanal. A área territorial de Barão de Melgaço

compreende aproximadamente 11.662 KM². Desta superfície, cerca de 97,5% são

terras inundáveis na época de cheia do Pantanal.

O clima no Pantanal, Tropical Úmido (AW), com a temperatura média anual

de 35°C e a umidade relativa 82%, caracteriza-se por apresentar uma estação

chuvosa no verão, que acontece entre os meses de outubro a abril, contrastando

com a estação seca, no inverno, entre maio a novembro.

Geologicamente o Pantanal vem sendo formado há cerca de sessenta

milhões de anos, desde o soerguimento do escudo brasileiro. Com a orogênese da

cordilheira dos Andes, houve fragmentações do escudo em blocos desnivelados, um

desses blocos é o Pantanal. O Pantanal integra-se em uma falha de contacto entre o

escudo brasileiro e o sistema andino, constituindo-se ao longo do tempo numa fossa

de afundamento cuja base, do período Quaternário, estaria sob o nível do mar

(AB‟SABER, 1988).

Segundo Del‟Arco (1996) o relevo pantaneiro, cujas altitudes variam de 80 a

150 metros, está diretamente conectado às águas oriundas das terras altas, dos

planaltos ao seu redor. Estas montanhas, morros ou chapadas, com altitudes

variáveis entre 200 a 1.000 metros, emolduram com suas bordas o entorno da

superfície pantaneira: ao norte a Chapada dos Parecis, ao sul a Serra da

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Bodoquena a leste o Planalto Central Brasileiro e a Oeste, para além do Chaco, a

formação Andina.

As águas que descem desses planaltos em leques aluviais, moldam neste

ambiente geológico, a Formação Pantanal, que se deu por deposições sedimentares

em diferentes formas e texturas. Trata-se, portanto, de uma vasta planície aluvial da

Bacia do Alto Paraguai - BAP, com alternância fluvial que determina as vazantes e

cheias (CARVALHO, 1984). As baixas terras pantaneiras são constituídas por 92,5%

de solos pouco férteis e bastante inundáveis, típicos de área úmida (solos

hidromórficos), o que compromete a agricultura local.

De acordo com Alho (1992), no Pantanal de Mato Grosso, janeiro é o mês

mais quente do ano, com temperatura média entre 28 a 29 º C. No mês de julho a

temperatura média cai significativamente oscilando em torno de 17 º C no sul e 22

ºC na região norte do Pantanal. Esta variação se dá pela presença de frentes frias

vindas da região sul do continente. Durante o mês de julho, por poucos dias há a

predominância desses ventos frios, ocasionando brusca queda de temperatura.

Nos períodos chuvosos, as águas vindas das regiões mais elevadas no

entorno do Pantanal, transbordam dos leitos dos rios, inundando grande parte das

terras pantaneiras.

Principal formador do Pantanal Mato-grossense, o Rio Paraguai tem como

um de seus maiores afluentes o Rio Cuiabá, que percorre aproximadamente 828 km

desde sua cabeceira à foz, drenando aproximadamente 100.000 km² de superfície, o

que corresponde à cerca de vinte por cento da Bacia do Alto Paraguai.

A dinâmica do Rio Cuiabá é caracterizada pela marcante alternância em

processos naturais de erosão e deposição de sedimentos. Este processo forma ao

longo de seu canal principal, diferentes biótopos, tais como praias (bancos de areia),

baixios, remansos, corredeiras, cachoeiras e poços. Os diversos níveis naturais de

flutuação contribuem para a construção e composição destas variadas paisagens,

graças à marcante sazonalidade Essa diversidade de biótopos é parte da paisagem

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pantaneira, o que faz deste rio um componente vital para esta grande área úmida

denominada Pantanal (DA SILVA e SILVA, 1995).

Esta dinâmica rede fluvial se explica pelo conceito de pulso de inundação do

Pantanal. Junk e Da Silva (1999) consideram o período de inundação como aquele

cujas áreas alagáveis recebem as águas e outros elementos dissolvidos ou

suspensos, oriundos das chuvas, degelo e da elevação temporária do lençol freático.

Este material é conduzido por rios e lagos interconectado, nesta trama hídrica.

Segundo os autores, este pulso de inundação é previsível e de longa duração,

sujeito a variações anuais e plurianuais. Esta força que regula o fluxo longitudinal de

matéria orgânica faz com que este transporte esteja relacionado à quantidade e

qualidade da água, aos nutrientes dissolvidos e ao material em suspensão.

Este dinamismo de inundações periódicas contribui significativamente para a

biodiversidade do Pantanal. Os processos biológicos ocorridos na planície inundável

se adaptam e readaptam ao habitat que se alternam entre períodos ora secos, ora

inundados.

Denominado por Eitten (1990) e Sarmiento (1983) de Savana Hiper Sazonal,

estas áreas inundadas anualmente no Pantanal Mato-grossense, apresentam um

complexo vegetacional constituído por mosaico de diferentes ecossistemas, onde

coabitam elementos de quatro províncias fitogeográficas da América do Sul:

Amazônica, Cerrado, Chaco e Mata Atlântica.

A comunidade de Cuiabá Mirim está estabelecida em áreas alagáveis do Rio

Cuiabá, cuja dinâmica das águas está integrada ao sistema hídrico do Pantanal. As

inundações periódicas no Pantanal têm sua origem em fatores de ordem natural tais

como: a uniformidade topográfica, os fracos desníveis de drenagem e a

predominância de litologias sedimentares recentes. Estas reduzem o escoamento

das águas superficiais resultantes das chuvas periódicas anuais que caem na bacia

do Alto Paraguai, principalmente nos seus afluentes superiores (ALVARENGA et al.,

1984).

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PANTANAL DE CUIABÁ MIRIM

O Pantanal de Mato Grosso é um sistema complexo de ambientes que

envolvem diversas culturas, ampla diversidade biológica, sendo as aves muito

destacadas pela abundância e beleza que compõem o cenário da paisagem

pantaneira, porém o foco deste diálogo está no contexto da comunidade ribeirinha

de Cuiabá Mirim.

A comunidade de Cuiabá Mirim constrói e transforma o seu viver, conforme

seu jeito de ver, sentir e pensar o mundo (figura 17). A comunidade está localizada

na margem do Rio Cuiabá, onde periodicamente é inundada, de maneira adaptativa

foram construídos muros de arrimo próximo à margem do Rio, que eles denominam

de açudes.

Pesquisas anteriores descrevem que a origem da comunidade Cuiabá Mirim

está diretamente ligada à história da Fazenda Flexas, que inicialmente era uma

das grandes produtoras e beneficiadoras de cana-de-açúcar da região, onde os

primeiros moradores foram trabalhadores desta fazenda no campo, nas

plantações de cana-de-açúcar, ou no beneficiamento de produtos. Atualmente nesta

fazenda é praticada a pecuária de corte (GALDINO, 2006; MORAIS, 2006; VIANA,

2008).

Nas conversas realizadas com as fontes orais, um dos anciões da

comunidade trouxe à memória um relato da época que trabalhavam na lavoura de

cana-de-açúcar e relembrou episódios onde a relação patrão-empregado era muito

próxima da escravidão, relatando que trabalhadores apanhavam no tronco, por

serem considerados indisciplinados.

Outro informante coloca que quando a Usina Flexas “faliu”, os trabalhadores

foram “despejados” no local onde hoje é a Comunidade de Cuiabá Mirim, e relata

que naquela época não tiveram nenhuma negociação dos direitos trabalhistas e as

famílias tiveram que buscar alternativas para se adaptarem à nova realidade.

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Figura 17: Ninhos de Japuíra próximo a comunidade Cuiabá Mirim. Foto: Ruth Albernaz. Abril,

2009.

3.2.2. MÉTODOS

Este trabalho apresenta uma abordagem de cunho qualitativo na perspectiva

etnográfica, ancorado em “Interpretação das Culturas de Clifford Geertz (1998) e

Pescando Pescadores de José Geraldo Marques (2001), lançando mão de

ferramentas da antropologia e da etnobiologia.

Para Martins e Bicudo (1989), a pesquisa qualitativa pode ser vista como

pesquisa fenomenológica, para outros autores, o qualitativo é sinônimo de

etnográfico (TRIVIÑOS, 1987), já Bodgan e Biklen (1994) consideram como sendo

um termo do tipo guarda-chuva que pode incluir outros estudos, por outro lado há

um sentido bem popularizado de pesquisa qualitativa, identificando-a como aquela

que não envolve números, isto é, na qual poderia considerar como sinonímia de

não-quantitativo (ANDRÉ, 2008).

Para Sato e Souza (2001), a orientação etnográfica posiciona-se claramente

em favor da não dicotomização entre as etapas de coleta e análise de "dados,"

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configurando-se o "estar no campo" como um constante diálogo entre a natureza do

objeto, os objetivos do trabalho e o que o campo "fala”.

Buscou-se na pesquisa, uma adequada construção do diálogo espontâneo

com os moradores de Cuiabá Mirim. Este relacionamento foi construído em processo

de mútuo respeito e progressiva confiança, aspectos que contribuíram na obtenção

das informações levantadas durante este trabalho na Comunidade, espaço

representado por uma realidade empírica a ser estudada a partir de concepções

teóricas que fundamentam o objeto da investigação. O principal período de coleta de

dados estendeu-se entre os meses de Novembro de 2008 a Outubro de 2009. Nesta

pesquisa para a coleta de dados, utilizou-se de métodos como entrevistas semi-

estruturadas (VIERTLER, 2002), relatos orais e observação participante.

O relato oral é utilizado como importante forma de obtenção de dados sobre o

conhecimento ecológico tradicional de etnoindicadores climáticos e aspectos do

cotidiano. O relato oral é uma forma de abordagem aos comportamentos, valores,

emoções relacionados à subjetividade do informante (QUEIROZ, 1987). O discurso

do sujeito, enquanto ator social, assume relevância através do relato oral que aborda

na essência a estrutura da "linguagem", permitindo-se a compreensão de fenômenos

sociais.

Os relatos orais, enquanto discursos narrativos dos sujeitos proporcionaram

nesta pesquisa a obtenção de informações sobre o modo de vida dos ribeirinhos em

meio ao ambiente natural, social, histórico e cultural de Cuiabá Mirim. Tais relatos

facilitaram a expressão de conteúdos vivenciados pelas fontes orais no processo

interacional com seu ambiente, em particular com os etnoindicadores considerados

nesta pesquisa.

Para a obtenção dos relatos orais utilizou-se entrevistas abertas com a

descrição de experiências com o ambiente pantaneiro, considerando-se tais relações

como um espaço material e simbólico, onde interagem as ribeirinhas e ribeirinhos

pantaneiros, sujeitos desta pesquisa.

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97

As entrevistas semi-estruturadas ou semi-abertas caracterizam-se por

possuírem itens ou tópicos fixos e itens flexíveis desenvolvidos de acordo com o

encaminhamento da entrevista, cujas questões são contempladas na investigação

(VIETLER, 2002). Para tanto, desenvolveram-se roteiros de entrevistas aplicadas

com 22 pessoas da comunidade. Para orientar esse diálogo, foi elaborado um roteiro

básico com as seguintes perguntas:

-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que indicam que irá mudar o tempo de

seca para o tempo de chuva?

-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que vai mudar o tempo de chuva para o

tempo de seca?

-Quais os sinais o(a) senhor(a) conhece que o rio vai encher? E vazar?

-De quando o senhor era criança até agora, existe alguma diferença no clima?

Qual? Por quê?

A aplicação das entrevistas semi-estruturadas facilitou à pesquisadora, a

obtenção de dados sobre o universo de significados subjetivos de cada fonte oral. A

abordagem desse universo exige, segundo D‟olne (2001), um esforço incessante de

respeito aos referenciais e fenômenos alheios. A postura receptiva neste diálogo

com as fontes orais facilitou a obtenção de dados e a compreensão dos fenômenos

inquiridos.

Nesse sentido a contribuição de Malinowski (1984) ressalta a importância

para uma coleta de dados tanto detalhada quanto diversificada. Um etnógrafo que

se propõe a estudar somente religião, ou somente tecnologia ou somente

organização social abre apenas um campo artificial de pesquisa e seu trabalho

estará seriamente deficiente. Desta forma a observação participante utilizada neste

trabalho foi fundamental, oferecendo um complemento de dados não referenciados

nos relatos orais.

A observação participante é, segundo Bogdan e Taylor (1975), um processo

investigativo caracterizado por intenso relacionamento social interativo entre o

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investigador e os sujeitos, no meio destes, durante o qual os dados são recolhidos

de forma sistemática. Neste processo foram observadas as formas relacionais do

sujeito da pesquisa com seu ambiente, seu comportamento social no cotidiano, sua

relação com a temporalidade, locais onde se dão as práticas cotidianas do convívio

sócio-familiar, manejos de utensílios, objetos e ferramentas utilizadas no cotidiano,

bem como terminologias e forma de linguagens relacionadas ao tema da pesquisa.

A observação participante foi utilizada nesta pesquisa como instrumento

utilizado para se conhecer o cotidiano dos moradores entrevistados da comunidade

de Cuiabá Mirim, perspectivando um diálogo êmico /ético, onde será descrito como

“significações culturais e ecológicas”.

Dessa forma, a observação participante permitiu que adquirisse informações

nem sempre verbalizadas, facilitando a compreensão de aspectos sobre a relação

dos ribeirinhos com o ambiente em meio à temporalidade cíclica das águas do

Pantanal na Comunidade de Cuiabá Mirim. Para Gans (1998) este método permite

ao pesquisador uma percepção aproximada das pessoas, isto é, a observação

participante permite um estudo direto sobre o cotidiano das pessoas, enquanto

outros métodos se limitam ao relato do que as pessoas dizem sobre seu cotidiano.

Malinowski (1984) indica que o observador cientificamente treinado perpasse

o registro superficial de detalhes e valorize através desta técnica os fenômenos

importantes que não podem ser registrados através de questionários ou

documentos, mas que possam ser observados em sua plenitude real. No que diz

respeito a esta pesquisa, a técnica de observação participante contribuiu para que

se obtivessem significativos dados sobre a relação do ser humano e o ambiente

pantaneiro, fonte de conhecimento ecológico onde se inserem os elementos bióticos

e abióticos enquanto etnoindicadores climáticos.

Durante o transcorrer da coleta de dados, foram observados os seguintes

conteúdos para mergulhar no objeto da pesquisa: relacionamento entre as mulheres

durante a limpeza de peixes na beira do rio; Atividade das mulheres durante a

lavagem de roupas; brincadeiras e pescaria com crianças; comportamento dos

pescadores nos preparativos da pescaria; atitudes das mulheres durante a colheita

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de frutos; comportamento dos informantes durante “passeios para ver passarinho”;

visita à quintais onde as mulheres apresentaram as plantas cultivadas,

principalmente as de uso medicinal; visita a horta plantada no barranco do Rio

Cuiabá; visitas às casas dos moradores e do principal ancião da comunidade, na

época com 103 anos, quando se ouviam as histórias da origem de Cuiabá Mirim e

da Usina das Flexas.

3.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

SIGNIFICAÇÕES CULTURAIS E ECOLÓGICAS DE CUIABÁ MIRIM

A significação anima a palavra, como o mundo anima meu corpo,

graças a uma surda presença que desperta minhas intenções, sem

desdobrar-se diante delas (Merleau-Ponty).

As significações da cultura dos ribeirinhos pantaneiros de Cuiabá Mirim

trazem em sua expressão, o modo de viver no espelhamento do ritmo do ciclo das

águas do Pantanal, desenhando e reinventando seu cotidiano a partir da dinâmica

da natureza. Neste ritmo pantaneiro, uma marcação temporal importante está ligada

às fases de enchente-cheia-vazante-estiagem, estabelecendo um etnocalendário17

interligado entre as atividades sociais, econômicas e ecológicas. “Aqui nós

acompanha as água [...]” (SRS, 63 anos, ♂).

O etnocalendário apresentado em diálogos com as fontes orais da

comunidade demonstraram que as atividades cotidianas contemplam vários

aspectos culturais e ecológicos, que aqui serão descritos os mais evidentes nos

relatos. Para Geertz (1989, pág. 15):

Cultura se configura como uma teia de significados que o ser

humano cria e permanece eternamente amarrado, entrelaçando os

fios significantes, tramados pelos componentes do grupo social no

seu tempo em seu espaço, ambiente de vida cotidiana.

O principal elemento a ser analisado no etnocalendário da comunidade

Cuiabá Mirim, diz respeito ao tempo, onde se pode considerar um dos fatores mais

17

Etnocalendário, utilizou-se essa nomenclatura para designar o calendário da comunidade

Cuiabá Mirm.

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100

abstratos, mas desenhado por tipos cíclicos distintos como o tempo de Chronos18, o

tempo histórico, o tempo circular, o tempo da lua (em suas fases), o tempo climático,

o tempo de antes e de agora, tempo de escola, tempo de festas de santo, tempo de

pesca, tempo de roça, tempo das águas, entre outras temporalidades.

Em “La Nouvelle Alliance: métamorphose de La science”, as autoras tecem

uma reflexão:

Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos,

ramificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A

história, seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá

nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único,

quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de

um progresso ou de uma degradação. (PRIGOGINE e

STENGERS, 1997, pág. 211).

Tratando do tempo, no discurso da identidade e a racionalidade ambiental,

Leff coloca:

O tempo que forja um futuro sustentável não é só aquela dimensão

do tempo inerente a eventos e processos externos e objetivos, mas

um tempo fenomenológico: o tempo que constrói a história, o tempo

que toma corpo em identidades que configuram sentidos existenciais,

que mobilizam processos sociais e emancipam vontades de

mudança; o tempo que desencadeia o mundo com novos

significados que organizam o material e o simbólico no encontro da

ecologia com a cultura. (LEFF, 2001, pág. 42).

ETNOCALENDÁRIO SOCIAL: Tempo de escola e tempo de festas

“no meu tempo não tinha escola, agora precisamos fazer um esforço

para que nossos filho aprenda a lê e escrevê, pois o mundo ta

mudando e o que nós sabe fazê é pescá e o pexe tá acabando, o

que eles vão fazê? [...]” (SRL, 48 anos, ♂).

Nesses cenários, entre o passado, o presente e o futuro, nas relações

paradigmáticas, o pantaneiro expressa sua preocupação com as mudanças

ambientais, refletidas na escassez do pescado, principal fonte de sobrevivência das

18

Chronos: na mitologia grega é considerada a personificação do tempo.

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comunidades tradicionais ribeirinhas. Como uma alternativa para o futuro a

educação formal surge como uma possibilidade de resiliência frente às pressões

externas ao longo do tempo.

A Escola Municipal de Cuiabá Mirim atualmente (2009) conta com

aproximadamente setenta alunos e três professores, que lecionam para as turmas

do 1º ao 7º ano do ensino fundamental, se configura como um importante espaço de

aprendizado formal e não-formal. Lá os jovens interagem, (re)produzem as relações

sociais cotidianas no “tempo de aprendizado” como espaço de possibilidades de

diferentes práticas sociais, culturais, religiosas e econômicas.

Em diálogo com os professores, foram relatadas as dificuldades para dar

continuidade às atividades escolares, segundo eles o apoio da prefeitura municipal é

incipiente. Os professores contam apenas com giz, quadro negro e um aparelho de

som para instrumentalizar as aulas, pouco compensadoras diante do baixo salário.

Atualmente, todos os três professores tem suas casas fora da comunidade, sendo

este um dos fatores desestimulantes:

“nós professores que temos que consertá as coisas que quebra na

escola, o encanamento de água só tá funcionando porque fomos lá e

consertamos, a prefeitura não aparece [...] Se acharmos uma

colocação em Barão não vamos voltar pra cá, porque aqui gastamos

muito para vir de barco”. (A. S., 33 anos, ♂).

A escola encontra-se em um momento de aparente fragilidade, correndo risco

de ser fechado, o que levaria os alunos a procurar alternativas para o próximo ano

letivo (2010). O lábil ritmo no tempo da escola sobrevive pelo esforço de todos e de

cada um, pois maior esforço haveria se seguissem o calendário escolar na escola da

Comunidade do Estirão Comprido, onde seria necessário navegar “rio acima” por

volta de 30 minutos:

“se os professores desiste de dar aula, não sei como vai ser [...]” (M.

S., 30 anos, dois filhos na escola, ♀).

Observa-se que a aprendizagem se dá de diversas formas, em múltiplos

espaços e em temporalidades distintas: no momento das brincadeiras as crianças

reproduzem as práticas paternas, quando banham-se nas águas do Rio Cuiabá,

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quando acompanham seus pais na pesca, quando vão caçar passarinho para

comer: “[...] três garotos na beira do rio, limpando uma ave, e cortando-a em pedaços,

disseram que se tratava de um pombo do mato e aquele pássaro seria o almoço deles,

disseram também que costumavam pegar as aves peloteando19 ou fazendo armadilhas.”

Figura 18: Menino com pássaro e menina limpando lambari.

As práticas religiosas se evidenciam como atividades importantes no

contexto social, marcada por dois grupos cristãos: a Igreja Católica e a Igreja

Evangélica Assembléia de Deus.

O grupo católico realiza algumas festas de santo, sendo a mais

movimentada, a festa de São Pedro - padroeiro dos pescadores, protetor da pesca e

controlador das chuvas - cabendo ao Santo uma função notoriamente ecológica. As

festividades dedicadas aos diversos santos são freqüentes e seguem o calendário

pré-estabelecido de acordo com as tradicionais datas dos santos católicos.

Para a festa de São Pedro, os fiéis começam preparar a festa com

antecedência à data, pois é necessário construir um local adequado para o festejo.

Os homens se reúnem para o “muxirum”20 da construção do salão, geralmente

localizado na casa de um dos festeiros. O salão é construído com madeiras colhidas

19

Pelotear ou estilingar significa atirar pedra com uma arma feita com forquilha de madeira,

presa com uma borracha de pneu de bicicleta ou outra borracha flexível,geralmente.

20 Muxirum é a realização de atividades coletivas que também pode ser denominada por mutirão.

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103

na redondeza e o telhado feito com folhas que são denominadas por “palhas” das

palmeiras de acuri (Scheelea phalerata Bur.) ou de babaçu (Orbignya oleifera Bur.).

As mulheres se reúnem para fazer os doces caseiros de frutas que são

cultivadas nos quintais21, como laranja, mamão e alguns bolos. Os enfeites

decorativos da festa, também são atividades designadas para as mulheres, que

fazem bandeirolas semelhantes às usadas em festas de São João, enfeitando o altar

e montam um mastro com a imagem do Santo:

“Nós se reúne muitos dias antes para prepará todas as coisa da

festa, é muito divertido, fazemos o almoço pra todo mundo pra facilitá

o trabalho, fazemos um panelão de feijoada e a gente se reúne

várias vezes porque tem muito serviço.” (A. G. S., 62 anos, ♀).

As festas de São Pedro mobilizam boa parte da comunidade que se prepara

para receber nesta ocasião os moradores de outras localidades vizinhas. Nessa

oportunidade as rezas, cultos, devoções, cânticos sacros misturam-se aos bailes e

danças de siriri e cantos do cururu.

“Quando termina uma festa, os festeiro já começa arrecadá as

prenda pra festa do ano seguinte, nós ganha novilha, as comida tudo

[...] É a festa mais esperada do ano.” (C. M. S., 53 anos, ♂).

No contexto pantaneiro, pesquisa realizada por Albernaz-Silveira e Quadros

(2009, pág. 25) comentam que “a poética pantaneira está manifesta principalmente

pela poesia, música, religiosidade, mitos e materializada de múltiplas maneiras por

meio de artefatos, objetos, culinária e arquitetura.”

No tempo das festas de Santo, a musicalidade se faz presente, os ritmos

tradicionais se renovam nos cantos dos cururueiros, nos ensaios do siriri realizados

a noite, reunindo jovens e adultos de ambos os sexos, que queiram participar das

danças.

Dia de Santo é dia sagrado, geralmente não se desenvolvem outras

atividades de trabalho se não ligadas às festividades comemorativas ao Santo do

dia. Desde cedo os homens soltam fogos e fazem rodadas de cururu com suas

21

Definido por Amorozo (2008) como espaço de usos múltiplos que fica próximo à residência do grupo familiar.

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104

letras poéticas próprias do pantanal, que incluem aves numa conexão ave-

religiosidade-dança:

Nandaia, Nandaia vamos todos nandaiar

Ó meu padre Santo Antônio venha me ensinar dançar.

Se não servir essa, ponha essa outra, para a senhora moça...

(E. L., 75 anos, ♀)

Figura 19: Festa no Pantanal. Imagem de Nilson Pimenta (acrílico sobre tela).

ETNOCALENDÁRIO SÓCIO-ECOLÓGICO: tempo de pescar, tempo de plantar e

tempo de colher

A Comunidade de Cuiabá Mirim traz a força de sua identidade cultural como

uma comunidade de pescadores e lavradores. A grande maioria das pessoas, tanto

homens como mulheres, se auto-identificam como pescadores profissionais e

lavradores: “aqui, nós tudo somos ribeirinho e somos pescador e lavrador (URS, 67

anos, ♀)”. Eles passam a maior parte do tempo em atividades que estão

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diretamente ligadas com o ambiente natural, e são adaptados ao ciclo das águas. A

pescaria é uma atividade cotidiana, de todas as idades (Anexo II), onde pode ser

visto a todo o momento alguém indo ou voltando da pesca.

Os pescadores desenvolveram variadas estratégias de pesca que foram

estudadas por Morais (2006) onde identificou vinte e uma (21) estratégias dentro do

domínio cultural da comunidade Cuiabá Mirim. É raro o dia que eles não se

alimentam do peixe, pois a base do cardápio da comunidade é peixe, arroz e

mandioca.

No calendário próprio da comunidade, existe o tempo da pescaria mais

intensa e o tempo de “piracema” quando se faz respeitar a legislação ambiental do

Estado e suspender temporariamente as atividades pesqueiras (novembro a março).

Em alguns relatos, eles evidenciaram a questão do cumprimento das Leis

Estaduais de pesca,

“temos que cumprir as lei, se não, não sobra pexe prôs nossos neto

[...]” (SCS, 63 anos).

Esse cuidado em se respeitar o ciclo reprodutivo dos peixes ou tempo da

“piracema" reflete as práticas sustentáveis presentes na comunidade de Cuiabá

Mirim, bem como, o respeito pelo ciclo da natureza e sua preocupação com o futuro

em relação à sustentabilidade local. Outro relato aponta a preocupação com o ciclo

reprodutivo dos peixes e as alterações ambientais:

“Se tiver fora da piracema e a gente começa achar algum tipo de

pexe com ova, a gente dá um tempo daquele pexe, vai pescá outro

por alguns dias, pois ta tudo mudando [...]” (SRS, 63 anos ♂).

No contexto da pesca no Pantanal, Da Silva e Silva (2008) salientam que a

cultura pantaneira através dos tempos aparece como um princípio ativo para o

desenvolvimento das forças produtivas, em um paradigma alternativo de

sustentabilidade e indicam que a pesca representa a principal atividade produtiva

(social e econômica) das comunidades tradicionais pantaneiras.

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Quando começa o período das chuvas e da piracema, os moradores buscam

atividades ligadas ao plantio de roça e manejo de outros espaços e atividades

diversas, dão mais atenção à pequena criação do gado, pois as famílias ocupam

o escasso espaço físico de terras firmes disponíveis para a comunidade. Estas

alternativas econômicas para a sobrevivência e manutenção de cada grupo familiar

é fruto da adaptação à realidade que se constrói conforme os recursos disponíveis, o

entendimento e as necessidades locais. Como afirma Brandão (1985), cultura diz

respeito a toda humanidade, mas ao mesmo tempo a cada uma das sociedades.

“no tempo das roça, nós planta banana, milho, mandioca, batata,

abóbora, maxixe, melancia, feijão e outras semente que a gente tivé

na época, mas nos últimos tempo o cateto qué comê tudo... Nós

acompanha o tempo da lua, cada plantação tem um jeito de plantá

[...]” (BRS, 50 anos, ♀).

As roças são plantadas para a subsistência da família e os excedentes são

geralmente vendidos ou trocados na própria comunidade ou em comunidades

vizinhas, como Conchas e Estirão Comprido, onde moram muitas pessoas que são

“parentes” das famílias de Cuiabá Mirim, “esses povo tudo da beira do Rio é parente

[...]” (URS, 69 anos, ♀).

Quanto ao tempo da roça, pesquisa realizada na mesma comunidade por

Viana (2008) descreve a atividade da roça como uma atividade de subsistência e de

um período longo de preparo por se tratar de “roça de toco”, que é um sistema que

se usa pouca tecnologia, apenas machado para abrir as áreas para plantio e é

necessária a rotação dessas áreas.

Ao acompanhar com uma das moradoras para conhecer a roça da família, foi

mostrado ao longo do caminho etnoespécies de aves que ocupam diversos

ambientes (Anexo III). Entre a casa (à margem do rio Cuiabá) e a roça pode-se

observar várias unidades de paisagem que foram categorizadas pela moradora

como: brejo, cercado, mata fechada e firme.

“tem muitos passarinho que gosta de ficá no caminho e na roça,

como piriquito, cabecinha vermelho tem muito, tucano, açari,

papagaio, bico curto, ararinha verde, rolinha, galo da campina, jacu

goela, ih! Tem um monte que é de ficá na roça [...]” (BS, 50 anos, ♀).

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Galdino (2006) descreve as unidades de paisagem levantadas pela

comunidade e discute a relação dos moradores de Cuiabá Mirim com os recursos

vegetais para a construção da casa pantaneira. A autora coloca:

[...] a subsistência é uma relação chave entre o pantaneiro e o

ambiente, de maneira que, os pantaneiros de Cuiabá Mirim

desenvolvem várias atividades de subsistência como: agricultura,

extração, coleta, pesca, caça, pecuária de pequena escala e

manufaturas de casas, canoas e apetrechos de pesca. (GALDINO,

2006, pág. 45).

Em um estudo sobre o campesinato goiano descreve os diversos modos de

adaptação à temporalidade de plantar, colher e comer e aponta “[...] é de uma

dependência original e direta dos recursos da natureza o que faz com que o lavrador

avalie o seu ambiente segundo critérios muito definidos de utilidade para a

subsistência (BRANDÃO, 1981, pág. 49).”

ETNOCALENDÁRIO SÓCIO-ECOLÓGICO: Tempo de enchente-cheia-vazante-

estiagem

“O patinho d’água, ele faz o ninho numa certa altura, bota, choca, a

hora que sair o filho, a água tá encostando no fundo do ninho. Olha a

altura (do ninho) que quando tirá o filho a água tá encostando.”

(BRS,51 anos ♂).

Este é o etnocalendário que permeia todos os outros. Em meio ao ciclo das

águas, o morador do Pantanal integrado e dependente das forças da natureza,

reproduz entre as secas e cheias pantaneiras suas atividades do sobreviver. Na

interação com este ciclo que se perpetua ao longo do tempo, internaliza no próprio

existir o ritmo do ambiente. Este constante processo de adaptação, entre as fases

das águas, traz ao pantaneiro e pantaneira a versatilidade de sobreviver em seu

próprio lugar, desenvolvendo estratégias diversas, adaptadas ao cotidiano,

sincronizado com o tempo.

Seja no tempo de pescar, de plantar, de colher e de festar, essa variação de

ritmo pautada entre a seca e a chuva perpetua nos moradores do Pantanal saberes

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diversos sobre o manejo do lugar. Aprende-se a observar e reconhecer na natureza

seus múltiplos elementos, seus ritmos, sinais e significados, símbolos e signos.

Aprende-se a reconhecer, na relação com o próprio tempo, as transformações

cíclicas que se reproduzem no comportamento entre as espécies, como o vôo das

aves no período migratório, seu ciclo reprodutivo, as vocalizações dos pássaros e

seu comportamento, buscando prever o que há de vir.

ETNOINDICADORES CLIMÁTICOS

“andorinha, quando tá arrumado pra chovê, fica assanhado, fazendo

verão” (CMS, 53 anos, ♂).

Na comunidade Cuiabá Mirim, algumas aves podem ser consideradas como

etnoindicadores, muitas vezes são colocadas como mensageiras para essa cultura

que se reinventa, inserida em um ambiente com rica diversidade biológica,

permeada pelos quatro elementos (ar-água-fogo-terra) que pulsam naquele espaço

regido pelo ritmo das águas.

Nessas interconexões ribeirinhas e ribeirinhos pantaneiros percebem as

mudanças naturais, como os sinais que indicam a estação seca, a chegada da

estação chuvosa, sendo um dos mais evidentes as vocalizações de aves que são

percebidas pela capacidade de “adivinharem ou anunciarem chuva, seca ou frio” os

quais são consideradas como ornitoáugures meteóricos. Marques (2002) conceitua

ornitoáugures meteóricos como "aves cujas vocalizações atribui-se o poder de

prenunciar eventos relacionados com o tempo e clima".

“Mancauã, se ele cantá na madeira seco, vai tê muita seca, se

canta na árvore verde, vai tê muita chuva, lá por agosto e

setembro [...] ele faz previsão.” (BRS, 51 anos ♂).

O Macauã (ou acauã) é reconhecido por outras culturas como

etnoindicadores climáticos, como aponta estudos.

Na região do Alto Juruá-Acre, Cunha e Almeida (2002) relatam que os

indígenas da etnia Ashaninka reconhecem os diferentes cantos do Macauã e atribui

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a determinados cantos a anunciação de chuva, o mesmo ocorre com a saracura e

outros pássaros da região.

Pesquisa de Simoni (2004), em uma comunidade ribeirinha do Rio Cuiabá na

região de Nobres - MT foi citada a acauã como indicador climático com a mesma

descrição (acima citada) ligada ao pouso em árvore seca ou verde.

Araújo, Lucena e Mourão (2005) estudaram o prenúncio de chuvas pelas aves

na percepção de moradores de comunidades rurais no Município de Soledade - PB,

levantando trinta espécies que pressagiam mudanças de estação, entre elas, o

acauã.

As vocalizações das aves são importantes elementos que auxiliam a

adaptação humana nos ambientes do Pantanal, como coloca Catunda (1994) “o

canto dos pássaros nos ensinam a ouvir”. Em Cuiabá Mirim, as vocalizações são

ouvidas em diversos horários, com diversas funções e entonações:

“Saracura dá o sinal, se ela canta 4 h da manhã, 4 h da tarde vai

chovê.” (BRS, 51 anos ♂).

Marques (1999) realizou uma pesquisa para descrever o papel semiótico que

as vocalizações das aves desempenham entre comunidades rurais, apontando que

os camponeses brasileiros se envolvem tradicionalmente e emocionalmente com os

sons das aves.

Além das vocalizações, existem outros sinais-chave que são contemplados

com valor informacional que os pantaneiros observam nas aves para mudança

climática natural (figura 20):

“quando vai começar a secá, começa passar os biuá e as garça.

Quando passa de baixo pra cima significa que tem pexe aí para

cima, na beira das lagoa, porque ta secando. Quando passa para

baixo, ta indo pousá.” (SRS, 63 anos, ♂).

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Figura 20: Categorias de sinais-chave das aves

Os diversos sinais que são interpretados pelos ribeirinhos de Cuiabá Mirim em

relação a aspectos etológicos das aves indicando mudanças temporais naturais

estão apresentados na tabela 14, demonstrando a conexão entre o ser humano, o

ambiente vivido e a ligação com as aves.

vocalizações

• canto

• piado

• choro

• latido

• horário das vocalizações

tipo de vôo

• circular

• direcional

• assanhado

nidificação• altura do ninho

• posição do ninho

presença

coloração

• Anuncia a

chegada do frio

• Fica com a cor bem

vermelhinha no frio

AVES

EM GERAL

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111

Tabela 14 – Avifauna Etnoindicadora de mudanças temporais.

SINAL CHAVE RELATO DOS PANTANEIROS DE CUIABÁ MIRIM

Vocalização do patinho

d‟água

(Cairina moschata)

“quando patinho d’água ta latindo igual cachorro é que o rio

vai encher.”

Nidificação e

localização do ninho do

patinho d‟água (Cairina

moschata)

“ele faz ninho numa certa altura, bota os ovos, choca, a hora

que sair o filho, a água ta encostando no fundo do ninho. A

gente olha a altura que ele fez o ninho, a posição, porque

quando ele tirá o filho a água ta encostando.”

Canto da Saracura

(Aramides cajanea)

“quando Saracura Três pote canta, vai chovê...”

“Saracura dá o sinal, se ela canta 4 h da manhã, 4 h da tarde

vai chovê.”

“Saracura gosta de cantá quando vai começar a chover”;

Canto e localização do

Mancauã

(Herpetotheres

cachinnans)

“Mancauã, se ele cantá na madeira seco, vai tê muita seca,

se canta na árvore verde, vai tê muita chuva, lá por agosto e

setembro ele faz previsão.”

Vôo do Biuá

(Phalacrocorax

olivaceus) e garça

(Casmerodius albus)

“quando vai começar a secá, começa passar os biuás e as

garças. Quando passa de baixo pra cima significa que tem

peixe aí para cima, na beira das lagoas porque ta secando.

Quando passa para baixo, ta indo pousá”;

Canto do Quá

(Nycticorax nycticorax)

“Quá, quando o rio vai vazá, ele avisa de madrugada...”

“Quando o rio Cuiabá vai secar, em maio, o quá canta.”

“Quando vai vazá, o quá desanda a cantá, cedinho, aí minha

mãe falava que o rio já ia vazá...”

“quando vê um quá, o rio vai vazá.”

“Quando o rio Cuiabá vai secar, em maio, o quá canta.”

Vôo circular da

andorinha

(Progne chalybea)

“andorinha, quando tá arrumado pra chovê, fica assanhado,

fazendo verão.”

Vôo circular do gavião

caramujeiro

(Rosthramus sociabilis)

“gavião caramujeiro vai voando e fazendo redemoinho

circular ta adivinhando o tempo, vai chovê.”

Canto do sabiá (Turdus

rufiventris)

“sabiá ta cantando vai chovê...”

Presença e coloração

da ave São Joãozinho

(Pyrocephalus rubinus)

“São Joãozinho quando aparece com o peito bem vermelho,

e ele só aparece na época do frio.”

“São Joãozinho, quando aparece todo mundo fala: - vai fazer

frio porque são Joãozinho já apareceu.”

Canto do Tem tem

“Tem tem cantou é seca...”

Nos diálogos com as fontes orais a respeito das aves etno-indicadoras,

apareceram espécies da fauna e flora como etnoindicadores biológicos de

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mudanças naturais, estação seca-chuvosa – ciclo hidrológico do Pantanal: período

de enchente-cheia e período de vazante-estiagem e estação climática de frio, que

os pantaneiros consideram como importantes. Pode-se evidenciar a visão

ecossistêmica dos mesmos, trazendo à tona espontaneamente, os seguintes

conhecimentos ecológicos tradicionais:

FAUNA

Vocalização e movimento corporal do Jacaré:

“jacaré, quando começa a urrar, vai mudar o tempo (SCS, 63 anos,

♂).” “quando ele urra e mergulha borbulhando, vai chovê” (LRS, 53

anos, ♂).

“quando ele urra e bate a boca, vai ventá e não vai chover” (LRS, 53

anos, ♂).

Vocalização da onça:

“Onça, quando tá arrumado pra chovê, ela bufa” (SCS, 63 anos, ♂).

“lá onde nós pesca, a onça começa a urrar quando vai chover. Dá

um urro longo, não é só um bufado [...]” (LRS, 53 anos, ♂).

“Onça quando urra com a boca para baixo é chuva, os mais velho

que dizia.” (BS, 28 anos, ♂).

Presença da sucuri:

“sucuri apareceu, pode falar que vai vazá [...]” (BSS, 59 anos, ♂).

Movimento do caititu:

“Caititu, quando vai enchê, ele aparece, vem caçá no seco, porque a

água vem vinda” (BSS, 59 anos, ♂).

Vocalização do bugio:

“quando Bugio ta urrando, vai virar frio” (LRS, 52 anos, ♂).

“[...] bugio avisa quando vai fazer frio” (GCS, 51 anos, ♂).

“Quando bugio ronca ru, ru, ru, vai chover” (SBL, 53 anos, ♂).

Coaxar de sapo e rã:

“sapo ta cantando é chuva” (DRS, 31 anos, ♂).

“Sapo e rã quando começam a cantá vai chove” (AGS, 54 anos, ♀).

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Os ribeirinhos de Cuiabá Mirim observam o comportamento dos peixes e

aspectos morfológicos foram colocados, como apontam as informações abaixo:

Peixes em geral:

“quando vai enchê, a gente olha e vê que os peixe tudinho vão pro

campo, entram nas boca dos corixo e baía” (MAS, 37 anos, ♀).

Sardinha:

“quando a Sardinha, você pega ela, ta com barba, já vai enchê, ela

fica barbada nessa época” (BSS, 59 anos, ♂).

Dourado:

“quando o Dourado bóia, ih, vai vazá [...]” (BSS, 59 anos, ♂).

Lambari e piquira:

“os Lambaris e Piquiras saem das bocas que eles entraram e ficam

zoando (fazendo um barulho), vai vazá [...]” (MAS, 37 anos, ♀).

FLORA

Folhas da Abrobeira:

“Uma árvore chamada abrobeira, quando vai chovê a folha dela vira

tudo ao contrário, é um dos primeiro sinal que vai começar as

chuvas, temporal que vai ter e muda muito começa ventá norte,

venta de descida assim [...]” (BRS, 51 anos, ♂).

Fenologia: floração da Beladona ou trombeteira (Datura suaveolens):

“Beladona, aquela que nós planta no quintal, quando abre a flor e

fica bem branquinha, pode falar que vai começar a chover” (ARP, 64

anos, ♀).

Embaúba (Cecropia sp):

“tem uma árvore, a embauveira, se ela amanhecer virada, o lado da

folha da direita ta para a esquerda, é paulada, vai chovê. Meu bisavô

explicava isso pra nós [...]” (BRS, 51 anos, ♂).

Sardinheira:

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“quando a sardinheira tá com flor, o rio vai encher” (BSS, 59 anos,

♂).

Fenologia: floração de anxuma ou guanxuma (Malvastrum sp):

“um mato chamado anxuma, que dá no terreiro, quando ela floresce

é porque a água já vai abaixá” (LRS, 53 anos, ♂).

Além dos sinais que os componentes bióticos indicam, os ribeirinhos tecem

conexões sutis ligadas às interações com o ambiente abiótico, com o simbólico,

sobrenatural e as práticas cotidianas de adaptação e resiliência, como se pode

observar na tabela 15.

O céu pode trazer informações importantes para os ribeirinhos em relação às

mudanças temporais, de forma que eles podem organizar-se para pescar e

desenvolver outras atividades que dependem da natureza.

“quando tamos com a canoa lá na baía e começa ventá norte, vai

chuvê, as água vai encrespando, vamo logo pra casa porque se não

a baía dá umas ondonas na chuva e fica perigoso, é sinal que temos

que vazá [...]” (SCS, 63 anos, ♂).

Tabela 15 – Etnoindicadores Climáticos.

ETNOINDICADOR RELATO DOS PANTANEIROS DE CUIABÁ MIRIM

Céu – coloração “quando fica um barrão vermelho no céu, é que vai cortá as

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chuva.”

Céu - arco-íris “quando ta arrumando pra chovê, aí aparece o arco-íris”;

“quando tá anuviado e o arco-íris panha água, vai começa

as chuva.”

Trovão e

relâmpago

“junta nuvem grossa e troveja”;

“um troço que urra e brilha quando vai chovê”

“à noite o céu fica fuzilando, ta perto de chover”;

Nuvem -

Coloração e

forma da nuvem

“quando ta arrumado, vai chovê, tem nuvem preta”;

“nuvem desenha gente ou passarinho, aí vai arrumá pra

chovê.”

Lua nova /

quarto

crescente

“a lua quando faz nova e fica emborcada para baixo, vai

chover e quando ela ta com a boca reta emborcada para

cima vai cortá a chuva...”

“quando a lua nova está fazendo quarto-crescente e a lua ta

torta para baixo, ta perto de chover”;

Lua e horário

cronológico-

madrugada

“de noite levanta de madrugada, tem essas manchas no céu

e olha a lua, ela tá pense (meio virada para baixo) é sinal

que já vai começar a chuva...

Passagem da

lua

“na passagem de lua também sempre chove, é bom pra

chovê”;

Direção do

vento: sul para

norte

“Quando começa o vento sul é sinal que já vai vazá, porque

o vento sul é sinal de frio e o frio dá na época da seca.”

“quando começa a ventá de baixo pra cima vai esfriar (de

baixo pra cima em relação ao rio Cuiabá)”.

Direção do

vento: norte

para sul

“muitas vezes o tempo tá arrumado pra chovê e aí começa

ventá norte, aí vai chovê”;

Serração

“quando começa a serração, vai minguá a chuva”;

“serração tipo uma neblina é sinal de seca, os mais velho

que falava...”

“quando tem serração, vai cortá a chuva.”

Sereno “quando começa serená vai cortá a chuva”;

“quando amanhece tudo serenado no gramado vai minguá a

chuva”;

“quando ta serenando bastante, vai cortar a chuva.”

Rio Cuiabá:

turbidez e

volume

“Quando começa a sujar a água, vai começa a encher, a

chovê.”

“quando o rio vai vazando, a gente vê o rio vazando, vai

cortando a água, as chuva...”

“espiá no rio e a água ta fumaceando e vai tomar banho a

água que tava fria fica morna...”

Comunicação “... assisto na TV a previsão do tempo.”

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116

de Massa –TV

Religiosidade:

dia de santa

“depois de duas chuvas podemos plantar, plantamos nos

dias de Santa Catarina e Nossa Senhora da Conceição, aí

não falta chuva.”

INDICADORES DE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

O conhecimento dos pantaneiros a respeito das alterações climáticas (tabela 16)

se dá por duas vias: o conhecimento vivido, com elementos da memória que foram

apreendidos com os mais velhos e as informações externas adquiridas nas práticas

sociais e através dos meios de comunicação de massa, como televisão e rádio.

Adquirido pelos meios de comunicação de massa: “A destruição das

mata ciliar, o desmatamento, os carros e a usina, a soja tem que

desmatá, daí a camada de ozônio vai acabando” (IRP, 40 anos ♂).

Adquirido pela vivência: “O que ajuda o calor é muito fogo, ajuda a

esquentá [...]” (BRS, 51 anos ♂).

Adquirido pelas práticas sociais-diálogos: “Depois que colocaram a

usina de Manso a água ficou controlado, e as mudança no clima é

grande, tá ficando um clima muito quente [...]” (IRP, 40 anos ♂).

Nas últimas décadas é evidente a alteração das paisagens Mato-Grossense,

em decorrência da expansão de atividades produtivas, diretamente ligadas ao

agro-negócio no Estado. Os modelos produtivos e a utilização de novas tecnologias

aplicadas na região dos planaltos ao redor do Pantanal vêm trazendo ameaças a

este importante bioma, inclusive a falta de controle do uso de agrotóxicos nas

lavouras de soja e algodão.

Pesquisas de Alho et al. (1988), Mourão et al. (2002) e Vieira et al. (2004)

evidenciam através de trabalhos de campo, que os agrotóxicos utilizados pela

agricultura nas áreas ao redor do Pantanal contaminam os rios da planície

pantaneira. Nas águas dos rios Taquari e São Lourenço, constata-se a presença

significativa de pesticidas usados na lavoura de soja. Os pesquisadores revelam

ainda que apesar de ter sido proibido o uso de mercúrio nos garimpos de Poconé -

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117

MT, ainda é grande o índice de contaminação na cadeia alimentar por este metal,

altamente agressivo à saúde humana.

Tabela 16: Narrativa das fontes orais em relação às mudanças climáticas no

Pantanal.

Indicador Narrativa

Pulso de

inundação

“antes quando era janeiro o rio já tinha carregado, agora ta

vazio (fevereiro), porque não chove e que ta mudando ta, o

calor ta muito mais do que era antigamente, uns vinte anos

atrás”;

“Tem época que em janeiro já era cheio, agora em fevereiro que

veio chovê”;

Queimadas “O que ajuda o calor é muito fogo, ajuda a esquentá...”

Alteração no

tamanho do

Planeta Terra

“ta mais quente porque o céu desceu, ta mais baixo...”

“o povo acha que o sol baixô ou a Terra cresceu...”

Atraso no início

das chuvas e

interrupção do

período

“o problema do calor ta sendo mais quente que uns anos atrás,

desde a água do rio ta atrasando. Antigamente começa em

novembro e agora a chuva começou em dezembro, parou e

agora que começou de novo (fevereiro)”;

Desmatamento “o desmatamento ta ajudando muito a esquentá, os velhos

dizem que onde tem mais mato, tem mais chuva e é mais

fresco”.

“A destruição das mata ciliar, o desmatamento, os carros e a

usina, a soja tem que desmatar, daí a camada de ozônio vai

acabando.”

-“ta ficando calor por causa das queimada e por causa da

derrubação de pau, tão derrubando tudo...”

“a chuva ta encurtando por causa do desmatamento, onde tem

mais mato, chove mais...”

“tá diferente, nem frio dá mais quase... É muita poluição e

desmatamento, que ta fazendo isso.”

Usina de manso “Depois que colocaram a usina de Manso a água ficou

controlado, e as a mudança no clima é grande, ta ficando um

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118

clima muito quente...”

Idade x

sensação

térmica

“o clima ta mais quente, ta melhor e o frio minguou.”

“O frio vem e só acha os veios e o calor só acha os novos.”

Tá acabando o oxigênio do tempo temos que ter consciência de

preservar, se não vamos ter que ter um robô congelado para

nós andar dentro.”

Diminuição do

frio

“ta muito diferente, acabou a friagem e ta mudando só pra

calor.”

“Fazemos como antigamente, mas não dá...”

Temporalidade “O calor, agora ta mais quente, quando eu era pequena era

mais frio...”;

“o frio ta acabando, de antigamente pra agora...”;

“ta esquentando tanto que ta dando as doenças do sol na pele,

que antes não tinha...”;

“ta diferente, cada ano que passa ta mudando,

modificando...”

“já teve várias mudanças, de 70 a 80 dava um frio mesmo,

de 90 para cá, não dá mais frio. O último que eu achei frio

mesmo foi dia 10 de junho de 1989”;

Simbólico-

religioso

“Fraqueza na plantação, antes plantava no dia santo (sete de

dezembro) e chovia na certa, agora continua plantando, mas

não chove”;

“Na bíblia, nas reza conta que as coisas vão ser diferente”;

“Uns falam que o céu desceu mais pra baixo, mas eu não

acredito”;

“O frio acabou mais porque Deus ta com dó de nós, nós

passava muito frio antigamente”;

“ta mais quente, o calor tem aumentado, ta chegando o fim do

mundo, Jesus disse que quando estivesse perto da vinda dele

muitos sinais iriam acontecer”.

Nesse cenário atual, o patrimônio natural do Pantanal vem sofrendo ameaças

importantes em sua biodiversidade, graças ao modelo de ocupação e manejo em

seu território e nas áreas circunvizinhas ao território pantaneiro (HARRIS, 2005).

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Vários fatores ambientais interferem na dinâmica desta enorme planície

inundável do Mato Grosso, comprometendo um grande número de espécies animais,

entre aves e mamíferos, como o tuiuiú (Jabiru mycteria), cabeça seca (Mycteria

americana), veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus), o cervo-do-pantanal

(Blastorecus dichotomus), a capivara (Hidrocaeris hidrocaris), além de espécies de

anfíbios, répteis e a flora nativa deste bioma.

De acordo com Padovani (2004), mais de 40% das florestas e savanas do

Pantanal, foram alterados para a ocupação da pecuária, inclusive com a introdução

de gramíneas exóticas, cujo impacto ambiental para o Pantanal ainda é

desconhecido. As alterações desse desmatamento são percebidas pelos mais

velhos, que afirmam que a mata é sinônimo de abundância para a vida e controle de

temperatura.

Com a ocupação das áreas para a criação de gado e lavouras de soja, cana-

de-açúcar, algodão e outras práticas que envolvem o desmatamento, que ainda é

uma atividade presente nos planaltos adjacentes ao Pantanal, o problema ambiental

vem se agravando e comprometendo todos os Biomas Mato-Grossenses e

ameaçando as práticas de subsistência. Vários relatos apontam o aquecimento do

clima e relacionam com o desmatamento e queimadas:

“ta ficando calor por causa das queimada e por causa da derrubação

de pau, tão derrubando tudo... Os mais velho dizia que onde tem

mais árvore é mais fresco [...]” (GS, 51 anos, ♂).

O desmatamento vem trazendo alterações importantes como a diminuição

das águas na região, de acordo com a percepção relatada pelos ribeirinhos:

“O problema do calor ta sendo mais quente que uns anos atrás,

desde a água do rio ta atrasando. Antigamente começava em

novembro e agora a chuva começou em dezembro, parou e agora

que começou de novo (fevereiro)” (IRP, 40 anos, ♂).

“Antes quando era janeiro o rio já tinha carregado agora tá vazio

(fevereiro), porque não chove e que tá mudando tá, o calor tá muito

mais do que era antigamente, uns vinte anos atrás e as água ta

minguando” (SBL, 50 anos, ♂).

Na mesma direção, Harris (2005) cita os fatores ameaçadores à

biodiversidade pantaneira, a perda de habitat pelo desmatamento ou queimadas, a

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caça que no passado ameaçava espécies importantes do Pantanal como o Jacaré, a

ariranha e a onça-pintada e parda e a falta de ordenamento da pesca.

Na região alta do Rio Cuiabá, Simoni (2004) discute a percepção de uma

comunidade em relação às alterações ambientais decorrentes dos projetos de

desenvolvimento como a Usina Hidroelétrica de Manso e aponta a preocupação da

comunidade com a alteração do ciclo hidrológico do mesmo rio onde está localizada

a comunidade de Cuiabá Mirim. A mesma autora relaciona as aves como

indicadoras climáticas e cita acauã como ave que anuncia as estações.

Devido à complexidade dos sistemas naturais do Pantanal, é extremamente

difícil compreender com exatidão o papel que as espécies desempenham na

funcionalidade dos ecossistemas e até que ponto as diferentes espécies podem

sobrepor na sua contribuição em determinada função particular de um ecossistema

(HOBBS et al., 1995). É, no entanto possível identificar grupos de espécies que

desempenham papéis mais relevantes no funcionamento de um dado ecossistema

(HECTOR et al., 2001).

Neste contexto, reporta-se a dois conceitos funcionais que emergiram na

década de 80 relacionados às funções ecológicas das espécies: o conceito de

espécie-chave e de ligadores móveis. As espécies-chave são aquelas que

desempenham uma função determinante na estrutura e funcionamento dos

ecossistemas e a sua perda terá um impacto significativo em outras populações, ou

seja, o efeito cascata. Também são consideradas espécies-chave aquelas que

indicam a degradação da qualidade do habitat natural (PAYNE, 1966).

De acordo com De Groot (1992), estas funções podem assim serem

entendidas: as funções de regulação estão relacionadas à capacidade dos

ecossistemas naturais ou semi natural em regular os processos ecológicos

essenciais e os sistemas suporte de vida, contribuindo para a manutenção da saúde

ambiental pelo fornecimento de ar, água, solos não poluídos; as funções de suporte

referem a capacidade dos ecossistemas naturais ou semi naturais em fornecem

espaço e substrato adequados para muitas atividades humanas, tais como:

habitação, cultivo, recreação; as funções de produção dizem respeito à capacidade

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do ambiente em fornecer recursos, desde alimentos e matéria prima para o uso

industrial, até recursos energéticos e material genético; as funções de informação

compreendem a capacidade do ambiente em contribuir para a manutenção da saúde

mental, pelo fornecimento de oportunidades para reflexão, enriquecimento espiritual,

desenvolvimento cognitivo, estética.

Conciliar conservação e gestão de recursos no Pantanal é uma tarefa que

envolve respeitar os conhecimentos do ser humano pantaneiro e suas formas de

interpretar a natureza (GUARIM NETO et al., 2008).

3.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conhecimento ecológico tradicional a respeito das aves, suas

categorizações e etnoindicadores climáticos apreendidos e expressos pela

comunidade Cuiabá Mirim demonstraram a riqueza de saberes e as conexões que

eles estabelecem com o ambiente pantaneiro moldado pelo pulso de inundação.

Os etnoindicadores climáticos são percebidos pelos ribeirinhos que ao longo

das gerações vem adaptando e desenvolvendo modos de viver e conviver com a

dinâmica do ciclo das águas, marcados pelas fases de enchente-cheia-vazante-seca

e a movimentação da biodiversidade.

A perda de hábitat em função do desmatamento e queimadas refletindo no

clima local é colocada por meio dos relatos dos ribeirinhos e ribeirinhas que tecem

reflexões sobre o desmatamento e as queimadas, demonstrando as observações do

ambiente e as ameaças vigentes, como diminuição no pescado.

O Conhecimento Ecológico Tradicional enfocando etnoindicadores climáticos

pelas comunidades locais vem sendo valorizados mais recentemente, devido este

ser transmitido entre gerações, sendo considerado por isso um conhecimento de

longo prazo, podendo contribuir significativamente com o monitoramento da

biodiversidade.

As comunidades tradicionais necessitam ainda de representatividade e

empoderamento junto aos meios acadêmicos, discursos e políticas públicas sobre

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mudanças climáticas, principalmente pelo fato de que serão afetadas por essas

mudanças. O conhecimento ecológico tradicional do Pantanal pode contribuir para

uma gestão integrada, eqüitativa e ética de um sistema sócio-ecológico complexo,

que se sustenta através de percepções únicas com seu conhecimento da avifauna

do Bioma Pantanal.

3.5. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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129

CAPÍTULO 3

AVES NA SIMBOLOGIA PANTANEIRA

Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas, Sombra-Boa entardece.

Caminha sobre estratos de um mar extinto.

Caminha sobre as conchas dos caracóis da terra.

Certa vez encontrou uma voz sem boca.

Era uma voz pequena e azul.

Não tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha", ele disse.

Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares conversamentos de gaivotas.

E passam navios caranguejeiros por ele, carregados de lodo Sombra-Boa tem hora que entra em pura decomposição lírica:

"Aromas de tomilhos dementam cigarras."

Conversava em Guató, em Português, e em Pássaro. Me disse em Língua-pássaro:

"Anhumas premunem mulheres grávidas, três dias antes do inturgescer".

Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas: “Borboletas de franjas amarelas são fascinadas por dejetos."

Foi sempre um ente abençoado a garças.

Nascera engrandecido de nadezas.

(Manoel de Barros22)

22

Manoel de Barros: fragmento de Mundo Pequeno do Livro das Ignorãças.

Figura 21: Arte do Chão I. Série Imagética Pantaneira. Ruth Albernaz, 2009.

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130

RESUMO

ALBERNAZ-SILVEIRA, Ruth. Conhecimento Ecológico Tradicional de aves da

Comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p.

(Dissertação – Mestrado em Ciências Ambientais).

Este trabalho apresenta o Conhecimento ecológico tradicional-CET de aves

relacionado à cosmologia da comunidade Cuiabá Mirim, Pantanal de Mato Grosso-

MT. A área de estudo localiza-se no Município de Barão de Melgaço, com

aproximadamente 97,5% de terras inundáveis no período das cheias. Para coleta de

dados utilizou-se de métodos como: entrevista semi-estruturada, observação

participante e diário de campo. Foram entrevistados 22 moradores da comunidade.

O grupo estudado mostrou amplo conhecimento ecológico tradicional a respeito das

aves enquanto etnoindicadoras simbólicas. Esses conhecimentos são transmitidos

oralmente ao longo das gerações. A cultura pantaneira é rica em saberes sobre as

aves, de forma que a mesma poderá contribuir significativamente para a

implementação de políticas públicas que contemplem a gestão participativa do

Pantanal e ações em Educação Ambiental voltadas para a conservação do Bioma.

Palavras-chave: Pantanal, Conhecimento Ecológico Tradicional, Aves.

Orientadora: Profª. Drª. Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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131

ABSTRACT

ALBERNAZ-SILVEIRA, R. Traditional Ecological Knowledge of birds in the Cuiabá Mirim

Community, Pantanal of Mato Grosso. Cáceres: UNEMAT, 2010. 163 p. (Dissertation –

Master in Environmental Science).

This research presents Traditional Ecological knowledge about birds related in

cosmology in the community of Cuiabá Mirim, Pantanal of Mato Grosso - MT - CET

The studied area is located in the city of Barão de Melgaço, with almost 97,5% of

flooded area during the flood period. The data collection used methods like: semi-

structured interviews, participant observation and camp dairy. Twenty two people from

the community were interviewed. The study group showed extensive traditional

ecological knowledge about the birds while ethnoindicators symbolic. This knowledge is

orally transmitted over the generations. Pantanal‟s culture is rich in knowledge about

birds, so that it can contribute significantly to the implementation of public policies that

include the participatory management of Pantanal and environmental education focused

on the biome conservation.

Key - words: Pantanal, Traditional Ecological Knowdledge, Birds.

Advisor: Carolina Joana da Silva, UNEMAT;

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132

4.0. INTRODUÇÃO

O poeta pantaneiro Manoel de Barros traz a ligação do imaginário da cultura

pantaneira entrelaçada com as aves em diversos momentos de sua obra literária. As

aves são símbolos arquetípicos presentes ao imaginário de muitas culturas, na trilha

do tempo da história da humanidade. Um pequeno passeio por algumas culturas nos

trará esse cenário.

O imaginário é um conjunto de produções mentais ou materializadas em

obras de caráter visual ou em criações de linguagem; apresenta-se como um

sistema organizador de imagens, comportando um conteúdo semântico, uma

estrutura e uma visão de mundo. Seu dinamismo revela-se do poder poético de

articulação de arquétipos, imagens simbólicas e mitos (LISBOA DE MELLO, 2007).

Em diversos sítios arqueológicos do mundo, pode-se observar a presença de

imagens de aves em pinturas rupestres, fragmentos de peças de arte e outros

vestígios de atividades humanas, demonstrando essa ligação entre as aves e a

cosmogonia dos povos. A mitologia apresenta um grande número de registros que

contemplam a participação das aves em seu corpus.

Na América do Sul, um ícone que se destaca é a imagem do colibri (beija-

flor), representada em geoglifos no deserto de Nasca, no Peru, medindo 96 x 66

metros. O povo Nasca concede ao colibri caráter divino por atribuírem-lhe o papel de

mensageiros entre os homens e os condores, que eram considerados deuses

(DUKSZTO e ARGUEDAS, 2006).

A importância dessas aves, enquanto símbolos sagrados para as culturas pré-

colombianas também se apresenta na forma arquitetônica da cidade de Machu-

Pichu, que traz as imagens do condor e o puma, afirmando a forte ligação da cultura

Inca com a imagética da natureza, com conteúdo cosmológico ligado aos animais.

De acordo com Salazar e Salazar (1996, pág. 53) o nome antigo de Machu

Picchu foi dado em função de uma ave:

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Este pode ser o sentido oculto no nome do antigo e o nome dado à

cidade sagrada, a APU ou de Pássaro Espiritual, ainda invocado pela

população local, o conselho e cura e nomeado para os maiores picos

no bairro do Vale Sagrado, o Urubamba. O Apu que trouxe paz ao

povo e ao mesmo tempo em que sobrevoam o Vale Sagrado para o

oeste, deixando um rastro de luz, a Via Láctea, onde tudo começou e

onde ele traz a Verdade, o Absoluto, atravessando o espaço e o

tempo, para a idéia de Deus.

No contexto do sagrado, em registros de relatos orais dos pajés Guarani, o

mito de criação traz as “Palavras Formosas” (Anexo IV) que descreve a cosmogonia

Guarani, onde o Grande Criador trouxe o colibri e a coruja como imagens de

expressão de divindade (JECUPÉ, 2001).

As aves também estão presentes nas práticas do xamanismo, pajés de

diversas etnias utilizam a simbologia de algumas espécies de aves, como a águia, o

gavião real, a coruja e outros que são consideradas por algumas culturas como

animais de poder23 para rituais de visão e trabalhos de cura.

Na mitologia presente na cultura grega e etíope, a Fênix apresenta-se como

um ícone bastante difundido por diversas culturas por ser um exemplo de renovação

e de esperança de transformação nas adversidades. Eliade (1994) coloca que “o

retorno à origem oferece a esperança de um renascimento.”

De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1994) a pomba é, entre os cristãos,

um dos símbolos da pureza, da paz, e a representação inequívoca do Espírito

Santo. Os autores lembram que, no início do Gênesis, o espírito de Deus se movia,

como uma ave, sobre a superfície das águas primordiais.

No pensamento de Edgar Morin, filósofo-sociólogo francês, “Cada civilização

possui um pensamento racional, empírico, técnico, simbólico, mitológico e mágico.

Também havendo sabedorias e superstições” (MORIN, 2004, p. 27).

No contexto da formação cultural do Brasil, Ribeiro (1995, pág. 20) coloca

que a sociedade e culturas brasileiras são “conformadas como variantes da versão

23

Na visão do Xamanismo, os animais de poder ancoram a energia de cura e proteção, sendo que cada pessoa

possui um ou mais animais de poder (grifo nosso).

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lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos

herdados dos índios americanos e dos negros africanos.” O mesmo autor

acrescenta que a confluência dessas matrizes „raciais‟ dá lugar a um povo novo,

num novo modelo de estruturação societária.

A cultura Brasileira Rústica, assim denominada por Id. (2007), é o resultado

do desenvolvimento, das protocélulas culturais, no território nacional ao longo de

quatro séculos, estando elas representadas pela área cultural crioula, sob a égide do

engenho açucareiro no nordeste brasileiro. A área cultural caipira, constituída na

zona dos mamelucos paulistas. Área cultural cabocla, relacionada principalmente à

região amazônica nos seringais. A área cultural sulino-gaúcha, fortemente

relacionada ao pastoreio no sul do país, e a Áreas culturais sertanejas, advindas

pela atividade pastoril de gado nos vazios, desde o nordeste até a região centro-

oeste.

No cenário da cultura pantaneira atual, os assentamentos humanos, como a

das comunidades tradicionais, têm influência européia e africana, e principalmente

da matriz indígena:

Esta região guarda uma grande importância histórica desconhecida e

apesar deste aparente vazio de homens e de história, o Pantanal

de Mato Grosso foi território povoado por inúmeros grupos

indígenas (Paiguá, Guaikuru, Bororo e Guató) que lutaram

intensamente contra colonizadores espanhóis e portugueses

desde o século XVI. Alguns grupos sobreviveram à guerra contra

eles travada, e estão atualmente ilhados em pequenas reservas: são

eles os Bororo, os Kadiwéu (remanescentes dos Guaikuru) e os

Guató (DA SILVA e SILVA, 1995, pág. 10).

Essas influências culturais refletem no imaginário dessas comunidades em

dois planos: material e simbólico, traduzidos nas estratégias de vida, no manejo da

agricultura e pesca e nas crenças, no folclore e no pensamento mítico.

A cultura dos que vivem e convivem em Cuiabá Mirim é dinâmica e se

reinventa a cada aparição de elementos sobrenaturais vividos, narrados para aos

mais jovens e nas diferentes circunstâncias . Esses saberes repassados entre as

gerações conectam-se com os ensinamentos de Paulo Freire:

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Aprender e ensinar faz parte da existência humana, histórica e social,

como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o

ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a fé, a

dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia. E

ensinar e aprender cortando „permeando‟ todas as atividades

humanas (FREIRE, 2001, pág.12).

Sob essa ótica, este capítulo tem como objetivo tecer um diálogo entre a

relação cosmológica da comunidade Cuiabá Mirim e as aves, componentes do

sistema sócio-ecológico complexo, envolvendo aspectos míticos e simbólicos. E tem

a intenção de contribuir com a reafirmação da cultura e identidade dos pantaneiros

de Cuiabá Mirim.

4.1. MATERIAIS E MÉTODOS

A COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM

“Cuiabá Mirim é um lugá bom de vivê, é bonito, calmo, eu quero vivê

sempre aqui. Eu sou ribeirinha, sou pescadora, nasci no pantaná e

aqui que vou ficá [...]” (URNS, 67 anos, ♀).

A comunidade Cuiabá Mirim localiza-se no Município de Barão de Melgaço,

Pantanal de Mato Grosso. A paisagem de Cuiabá Mirim é um sistema complexo de

ambientes que envolvem diversas unidades de paisagem: o Rio Cuiabá, mata ciliar,

brejos, os sistemas das baías de Chacororé e Siá Mariana, firme, baixios e outras

unidades que eles reconhecem como lugares e que foram estudados por Galdino

(2006) e Galdino e Da Silva (2009).

A comunidade de Cuiabá Mirim constrói e transforma o seu viver, conforme

seu jeito de ver, sentir e pensar o mundo. Esta construção é fortemente marcada

pelo ritmo das águas do Pantanal onde está inserida a comunidade na margem

direita do Rio Cuiabá.

Estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Conceitos Ecológicos e

Etnoecológicos aplicados a Conservação da Água e da Biodiversidade do Pantanal

descrevem que a origem da Comunidade Cuiabá Mirim está diretamente ligada à

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história da Fazenda Flexas, que inicialmente era uma das grandes produtoras e

beneficiadoras de cana-de-açúcar da região (início do século XX). Os moradores

mais velhos de Cuiabá Mirim foram trabalhadores desta fazenda, no campo, nas

plantações de cana-de-açúcar e no beneficiamento de produtos (GALDINO, 2006,

GALDINO e DA SILVA, 2009; MORAIS, 2006; VIANA, 2008).

Aspectos do imaginário de Cuiabá Mirim foram relatados:

Os pantaneiros citaram várias histórias de encantamentos que

permeiam o imaginário, relacionadas diretamente com o rio como

sobre o Bicho D‟água; sereias e cavalos encantados, que aparecem

nas baías Sinhá Mariana e Chacororé; fachos de luz e sobre a mãe

do ouro. A partir da crença nessas histórias, costumam evitar a

pesca e também sair à noite para não encontrarem esses seres

encantados (VIANA, 2008, pág. 71).

4.2. MÉTODOS

Percursos Sobrevoados

Este trabalho está em consonância com outras pesquisas que foram

realizadas pela pesquisadora Carolina Joana Da Silva desde 1995 na região do

Pantanal. Este capítulo contempla um diálogo entre Gestão e Educação Ambiental,

lançando mão de um hibridismo metodológico, utilizando-se de técnicas qualitativas.

O primeiro passo foi o levantamento bibliográfico e visita à comunidade para

observar quais os procedimentos para a coleta de dados se apresentaria como uma

“boa” opção metodológica. Os procedimentos para a coleta de dados foram:

entrevista semi-estruturada e observação participante.

O registro dos dados foi amparado por meio de fotografias e anotações em

diário de campo. O uso de diário de campo onde o pesquisador anota as

“impressões subjetivas sobre fenômenos desconhecidos e intuições pode vir a

constituir um instrumental precioso para futuros insights...” (VIETLER, 2002, pág.

18).

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Após a escolha da metodologia e novo retorno à comunidade pesquisada foi

realizado um pré-teste para adequação das entrevistas, para que se pudesse

estabelecer um diálogo êmico/ético.

Para selecionar as fontes orais a serem entrevistadas buscou-se reconhecer

as pessoas com mais conhecimento de aves do Pantanal, identificadas por meio da

técnica bola de neve snow ball sampling (BERNARD, 2002), a qual possibilitou o

desenho da rede social relacionada a este saber.

O resultado da rede totaliza cinqüenta e uma pessoas - elos em forma de um

complexo sistema de ligações entre pessoas que se relacionam e que uma indica

outras em que, aquela pessoa que está sendo indicada é reconhecida como um

entendedor ou entendedora do assunto relacionado às aves (apresentado no

Capítulo I).

A partir da rede social apresentada no capítulo I, foram entrevistadas 22

fontes orais (anexo V), onde utilizou-se para o diálogo entrevista semi-estruturada,

com a seguinte pergunta norteadora (ou suleadora-oesteadora-lesteadora):

“as aves dão recado (ou aviso ou sinal)? Qual o (a) senhor (a) conhece?”

Buscar informações simbólicas trouxe a necessidade de ancorar em Geertz

(1989) quando propõe um conceito de cultura que denota um padrão de significados

transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções

herdadas expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens

comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em

relação à vida, imputando à cultura um caráter público e compartilhado.

O cotidiano da comunidade foi vivenciado por meio da técnica da Observação

Participante, acompanhando as mulheres em seus afazeres domésticos e na roça; e

os homens nas tarefas associadas à pesca. A observação participante é um

processo mutuamente educativo, nos lembra Macedo (2006, pág. 97) “o saber do

senso comum e o saber científico se articulam na busca da pertinência científica e

da relevância social do conhecimento produzido.”

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4.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa emergem os conhecimentos que são passados

ao longo do tempo pela oralidade, estabelecendo as conexões da cultura pantaneira,

na sua dinâmica Certauniana24 da reinvenção do cotidiano com os ciclos ecológicos,

reproduzindo aqui o que Darci Ribeiro afirma sobre a cultura brasileira:

A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela precocidade

da constituição dessa matriz básica da nossa cultura tradicional,

como por seu vigor e flexibilidade. Essa última característica lhe

permitirá de, como herdeira de uma sabedoria milenar, ainda dos

índios, conformar-se, com ajustamentos locais, a todas as variações

ecológicas regionais e sobreviver a todos os sucessivos ciclos

produtivos, preservando sua unidade essencial (RIBEIRO, 1995, pág

272).

Na construção do saber ambiental o conhecimento local é fonte de sabedoria

pautada no fazer cotidiano. Esse conhecimento é construído por significados

elaborados através de processos simbólicos que configuram estilos étnicos de

apropriação do mundo e da natureza. E é nesse sentido que se apresenta os

aspectos do imaginário da Comunidade Cuiabá Mirim que se ligam e fazem parte do

corpus do Conhecimento Ecológico Tradicional-CET.

Observou-se por meio dos relatos dos entrevistados que a estrutura do

pensamento dos pantaneiros da comunidade Cuiabá Mirim é permeada pela crença

no “Criador” - Deus - que rege todas as coisas que existem, incluindo a natureza - e

pela visão ecossistêmica, onde eles compreendem bem as conexões ecológicas e

24 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 2 v. 1994.

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nesse contexto, os seres encantados ou míticos25 são os elos entre natureza

ecossistêmica e o Criador, criando a natureza sobrenatural, onde “as aves são

mensageiras de Deus26” (Figura 22).

A comunidade Cuiabá Mirim está dividida entre um grupo “católico” e outro

evangélico da denominação “Assembléia de Deus”, configurando formas diferentes

de praticar a religiosidade. As fontes orais de ambos os grupos relataram a respeito

dos sinais das aves, demonstrando que ambos os grupos ainda mantém o

conhecimento das histórias míticas que ancoram o imaginário local.

Figura 22: Interconexões do universo cosmológico dos ribeirinhos de Cuiabá Mirim.

No sentido das interconexões onde há necessidade de um locus para ancorar

os elementos perceptivos, o pensamento filosófico de Deleuze & Guattari percepto,

afecto e conceito27, serve aqui como uma bricolagem28:

25

Mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes

sobrenaturais. Mito é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, íllo tempõre,

quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o

cosmo, ou tão-somente um fragmento, um monte, uma pedra , uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um

comportamento humano. Mito é, pois a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo que não era

começou a ser. BRANDÃO, Junito de Souza, Mitologia Grega, vol I 19ª ed. –Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.p 35-41.

26 Relato de URNS, 69 anos, ♀, uma das moradoras mais antigas de Cuiabá Mirim. Ela conta muitas histórias da

sua infância no Pantanal.

DEUS-CRIADOR

NATUREZA SOBRENATURAL

NATUREZA ECOSSISTÊMICA

SER HUMANO

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Cada território, cada habitat junta seus planos ou suas extensões,

não apenas espaço-temporais, mas qualitativos: por exemplo, uma

postura e um canto, um canto e uma cor, perceptos e afectos. Cada

território engloba ou recorta territórios de outras espécies ou

intercepta trajetos de animais sem território, formando junções

interespecíficas. É nesse sentido que num primeiro aspecto,

desenvolve uma concepção de natureza melódica, polifônica,

contrapontual. Não apenas o canto de um pássaro tem suas relações

de contraponto, mas pode fazer contraponto com o canto de outras

espécies, e pode ele mesmo, imitar outros cantos, como se se

tratasse de ocupar um máximo de freqüências (DELEUZE e

GUATTARI, 1997 pág.239).

E parece ser nesse espectro de freqüências e contrapontos expressos pelos

sinais das aves que os pantaneiros conseguem interpretar a vibração e

comportamento desses seres da natureza em seu cotidiano. Esses sinais chave

podem ser evidenciados pelas vocalizações, o tipo de vôo, a presença e os lugares

onde aparecem os pássaros (Figura 23).

27

Os perceptos não mais são percepções são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos e afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excede qualquer vivido (DELEUZE e GUATTARI, 1995). 28

A bricolagem é um termo utilizado por algumas áreas do conhecimento, podendo ser a união de vários elementos para a formação de um. Aqui a intenção é trazer o pensamento filosófico de Deleuze e Guattari, no sentido de conectividade entre o pensamento ecológico e filosófico num texto único.

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Figura 23: Sinais-chave das aves etno-indicadoras simbólicas.

Os sinais chaves traduzidos nas narrativas das 22 fontes orais entrevistadas

evidenciam um conhecimento detalhado e específico do comportamento das aves

(tabela 17).

vocalizações•canto

•desconjuro

•estala o rabo (cauda)

vôo•direcional

•circular

presença•anuncia a chegada de visita

•notícias

lugar • Acima da casa;

• Dentro da casa.

AVES

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Tabela 17: Etnoindicadores simbólicos.

SINAL

CHAVE

AVE ETNO

INDICADOR

A

SIMBOLOGIA

NARRATIVA

Vocalização Alma de gato (Piaya cayana)

Anuncia chegada de visita

-“alma de gato quando canta, vai chegar gente [...]”

Vocalização Bilro (Melanerpes Candidus)

Anuncia chegada de visita

-“Quando canta é sinal que vai chegar gente...” -“Bilro quando canta vai chegar visita...”

Vocalização Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus)

Anuncia chegada de visita

-“Quando canta vai chegar gente”

Vôo e presença

Beija-flor

Boas notícias e anuncia chegada de visita

-“quando entra em casa é coisa boa que vai acontecer” -“Beija-flor, quando ele entra dentro de casa, vai chegar gente...” -“Beija-flor quando voa na porta, vai chegar gente.” -“Beija-flor quando entra na casa é visita...”

-Vôo direcional;

-vocalização; - lugar

Tesoureiro (Tyrannus savanna)

Prenuncia morte na família

-“quando passa por cima da casa a noite e estala o rabo igual tesoura, está cortando o pano para fazer o negócio do caixão...” -“tesoureiro, faz tem quê, tem quê... ta cortando e rá, rá, rá, rasgando o pano e aí avisa que vai morrê gente...” -“tesoureiro quando passa e corta mortália, ele rasga rá, gente que vai falecê...”

Vocalização Coruja Mal agouro -“quando passa e fica cantando

a noite, é azarento.” -Vôo direcional

-vocalização; -Lugar

Anhuma (Chauna torquata)

Prenuncia acontecimentos ruins e morte.

-“quando passa por cima da casa de dia, ta avisando que vai acontecê alguma coisa ruim na família. Ele fica voando com uma perna estirada e a outra pendurada e cantando...” -“anhuma quando passa por cima de casa, vai morrê parente, ta avisando...”

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143

Vocalização Galo (Galus galus)

Desconjuro -“o galo quando fica desconjurando cruz, cruz, é doença na família, eu apedrejo ele.”

Presença Curiango do chão (Nyctidromus albicollis)

Relação de azar -“Curiango do chão, se você pegar o ovo dele, fica preguiça igual ele.”

Vocalização Pica-pau de cabeça vermelho (Dryocopus lineatus)

Agouro -“Quando ta cantando tic, tic, tic, ta agourando a gente.”

Vocalização Massa Barro (Furnarius rufus)

Anuncia as horas

-“Canta as horas, 7 horas, doze horas...” -“Massa barro dá aviso da hora... Eu tenho uma tia que antigamente só fazia as coisa com o horário de passarinho. Meu tio dizia: -Maria, o almoço já ta pronto? - Espera Raimundo, o Massa Barro ainda não cantou.”

-Vôo circular -vocalização

Rolinha (Columbina sp)

Anúncio de morte

-“rolinha quando canta, ele fica rodeando casa e cantando ai Jesus, ai Jesus, porque morreu alguém...”

Nesse cenário de ampla diversidade biológica e cultural, as aves são muito

destacadas pela riqueza de espécies, abundância e beleza traduzidas pelas cores-

texturas-vôos-cantos-ninhos que compõem o ambiente, servindo como elo das

conexões da natureza e com a construção de sua cosmologia.

Na cosmologia dos pantaneiros de Cuiabá Mirim, o imaginário é permeado

por sinais de elementos da paisagem pantaneira que se expressam na vida

cotidiana. Nesse sentido, Maffesoli (2001, p.74) nos lembra que “o imaginário é uma

força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua,

perceptível, mas não quantificável.”

Para Souza Santos (2005) as situações da vida cotidiana serão entendidas

como espaço de relações dialetizadoras e expressam uma imagem que não se

restringe a sua leitura social, política, cultural e econômica, mas também, aos

aspectos ambientais e simbólicos.

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Nessa mesma direção, Viana (2008, pág. 55) ao discutir a respeito das

comunidades do Pantanal faz uma discussão entre a territorialidade e o simbólico:

[...] o território para as comunidades tradicionais, sejam esses

permanentes ou não, é o espaço onde obtém os recursos naturais

necessários a sua sobrevivência. O território não é apenas um local

onde retiram esses recursos, mas sim um espaço cheio de

significados, onde ocorrem as relações e representações sócio-

culturais.

Essas conexões revelam as aves como fonte de inspiração, elementos

marcantes que contribuem para (re)afirmação da identidade cultural pantaneira,

traduzida na poesia, música, religiosidade e mitos. Para Bachelard (1998, pág.03) “a

imagem poética, em sua novidade, abre o porvir da linguagem”, que no Pantanal é

expressa na musicalidade e aos elementos a ela associada:

“Andorinha voou, sentou no telhado,

Dança meninas pros seus namorado [...]” (música de siriri cantada

por EL, 75 anos, ♀).

Em relato, uma fonte oral colocou que, quando ela era jovem, sabia diversas

músicas e versinhos de passarinhos, cantados no cururu e siriri, e então cantou:

“Nandaia, nandaia, vamos todos nandaiá. Ó meu padre santo

Antônio, venha me ensinar a dançá. Se não servir essa, ponha essa

outra, pra senhora moça... Da uma volta no meio, põe mão no joelho

[...]” (URS, 69 anos, ♀).

O siriri e cururu são ritmos musicais bastante difundidos pelas comunidades

tradicionais não-indígenas de Mato Grosso, tendo inúmeras letras com a imagética

da natureza local como base das inspirações.

Em Cuiabá Mirim há um grupo de cururueiros e de siriri. Eles se reúnem para

treinar as danças e músicas e se apresentam nas festas, principalmente na de

Santo, como a Festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores.

Os instrumentos musicais que eles utilizam para cantar são: a viola de cocho,

ganzá (figura 24) e mocho. A viola de cocho é confeccionada tendo como matéria-

prima principalmente a madeira de uma árvore denominada popularmente por sarã

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de leite. O ganzá, um tipo de reco-reco, “é um instrumento de percussão feito

geralmente de taquara com 40 a 70 cm de comprimento, tendo um nó do próprio

bambu em cada extremidade” (CUIABÁ, 2006).

Figura 24: Imagem de Sebastião Mendes em acrílico s/ tela, compondo o painel do auditório da UNEMAT, mostrando cururueiros com o reco-reco à esquerda e com a viola de cocho à direita, num ambiente de festa pantaneira.

A poética inspirada nas aves ora está presente nas letras das músicas, ora é

a própria música, como a da etnoespécie da ave Quá:

“Quá foi comprar remédio para a mãe que estava doente. Daí no

caminho ele encontrou uma festa e começou a festá, dançá. Quando

ele assustou tinha amanhecido o dia, correu para comprar [...]

Quando chegou à casa da mãe, encontrou um monte de gente

chorando. Quando foi ver, a mãe tinha morrido e tava no velório dela.

Quá começou a cantar morreu, morreu, morreu e tá cantando até

hoje, morreu, morreu, morreu [...]” (AGS, 51 anos, ♂).

Essa narrativa descreve o comportamento semelhante aos humanos e com

indicação da vocalização como um “desconjuro eterno” como forma de autopunição

pela atitude de “não dar a devida atenção à mãe”, cabendo aí uma forma de

ensinamento onde a “moral da história” está ligada ao respeito que os filhos devem

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ter com os pais, na concepção social. Essa narrativa é bastante popular na

comunidade e exerce um papel educativo.

Numa cultura de tradição oral, além do cotidiano, os narradores, os

contadores de causos, desempenham uma tarefa educativa extremamente

importante. O papel da memória, em comparação com as culturas letradas, é

significativo (CAMPOS, 2004).

Para Freire (1996), o saber local é um conhecimento que se aprende e se

ensina. Neste contexto, as aves, enquanto etno-indicadoras simbólicas fazem parte

do bojo da cultura pantaneira, o qual nos remete a Deleuze e Guattari (2003, pág.

25), “a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar

"transversalmente" as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de

referência sociais e individuais.”

O desafio requer traduzir os conhecimentos da comunidade em práticas

coletivas de Educação Ambiental numa perspectiva de continuidade, de modo a

garantir a conexão entre a identidade cultural e ecológica, na construção de

sociedades sustentáveis.

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147

4.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O CET da Comunidade Cuiabá Mirim ao revelar o papel das aves como

etnoindicadoras traz à tona nas narrativas uma riqueza de detalhes pautados no

conhecimento ecológico e cultural, expressos nas vocalizações, nos vôos, na

presença, nas cores, formas e texturas. Esses conhecimentos evidenciam ainda

conexões entre o macro e o micro, entre o global e o local, evidenciando os traços

da cultural universal e sua reprodução na cultura brasileira e a sua diferenciação na

cultura pantaneira. A ligação entre a natureza e cultura presente na comunidade,

traduzida nesta pesquisa no conhecimento das aves, pode contribuir como alicerce

para construção de programas de EA participativos.

4.5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:

Martins Fontes, 1998.

BERNARD, R. Research Methods in Anthropology: Qualitative and Quantitative

Approaches. Almira Press, New York. 2002.

DUKSZTO, A.; ARGUEDAS, J. M. H. Descubriendo Perú. Ediciones de Hipocampo.

Lima. 2006.

CAMPOS, C. Pantanal Matogrossense: o semantismo das águas profundas. Cuiabá:

Entrelinhas. 2004.

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário dos Símbolos. Lisboa, Ed. Teorema,

1994.

CUIABÁ, Secretaria Municipal de Cultura. Viola de Cocho. Cuiabá: Central de Texto,

2006.

DA SILVA, C. J.; SILVA J. No ritmo das águas do Pantanal. NUPAUB, São Paulo,

1995.

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150

CONSIDERAÇÕES FINAIS GERAIS

Este estudo trouxe a oportunidade de (re)conhecer o modo de vida da

comunidade tradicional Cuiabá Mirim e suas relações com as aves e outros

elementos que a natureza oferece no espaço do cotidiano e nas temporalidades e

ciclos moldados pelo ritmo das águas do Pantanal.

A riqueza biológica das aves, seus hábitos e comportamentos conhecidos

pela comunidade foram gentilmente apresentados nas narrativas e trouxeram

grande descoberta pessoal e profissional. Os momentos dialógicos demonstraram o

vasto conhecimento que a comunidade possui a respeito do tema pesquisado,

trazendo a possibilidade de múltiplos olhares para as Ciências Ambientais, onde o

assunto pede continuidade, com a perspectiva de novas pesquisas e ações voltadas

para o monitoramento da biodiversidade, gestão e educação ambiental no Pantanal.

A forma como a comunidade percebe e maneja os espaços e os recursos,

entrelaçado pela cultura e as relações sociais, históricas e simbólicas refletem no

conhecimento complexo das aves e suas conexões com o Bioma Pantanal, que são

transmitidos por meio da oralidade dos mais velhos para os mais jovens e pela

repetição de padrões de comportamento.

Os sistemas classificatórios da avifauna pela comunidade pesquisada vão

além do caráter utilitário, alçando vôos por espaços ecológicos até alcançar as

relações do imaginário local, onde as aves assumem a função de etnoindicadores

climáticos e simbólicos.

Os seres humanos fazem parte do ecossistema global e ao longo da história

vem alterando as características básicas desse sistema, tais como biodiversidade e

clima. Essa capacidade de alterar os ecossistemas dá a todos uma responsabilidade

como gestores destes recursos para gerações futuras, refletindo na urgência em se

construir novos modelos de sociedades sustentáveis. A incorporação de serviços

ambientais no sistema econômico parece ser uma prioridade para redirecionar as

ações humanas que impactam estes serviços, tais como a manutenção de

biodiversidade, a ciclagem de água e o balanço de carbono.

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151

As evidências científicas de vários estudos em diversos biomas e das

observações por meio do conhecimento ecológico tradicional apontam para o fato de

que as mudanças climáticas representam um sério risco para os recursos hídricos

no Brasil. Não só as mudanças do clima futuras representam risco, mas a

variabilidade climática também; é só lembrar que pesquisas recentes mostram que o

impacto do aquecimento global será mais alto, na região Centro Oeste e que as

secas da Amazônia, do Nordeste, enchentes do Sul e do Sudeste do Brasil nos

últimos dez anos têm afetado a economia nas escalas regional e nacional. O

impacto das variações e mudanças do clima pode ser somado por outros fatores

não-ambientais, como os aspectos políticos e sociais, e todos juntos podem gerar

um custo elevado para a sociedade

Estudos de longo prazo realizados em várias comunidades tradicionais

poderão preencher grandes lacunas de conhecimento a respeito da riqueza de

espécies de aves ocorrentes no Pantanal e sua função como etno-indicadoras de

mudanças climáticas e simbólicas. Tais informações poderão ser fundamentais na

elaboração de estratégias de manejo nas diferentes situações da paisagem

pantaneira, bem como a aplicação do código florestal e outras legislações aplicáveis

à conservação da biodiversidade deste Bioma.

É fundamental o planejamento para estabelecer pesquisas e monitoramento

na região do Pantanal Mato-Grossense para avaliar os riscos relativos às mudanças

do clima, os quais poderão contribuir de forma significativa para o delineamento de

programas de gestão ambiental em diversas escalas que possam contemplar as

dimensões da sustentabilidade e subsidiar políticas de Educação Ambiental focadas

na mitigação desses riscos.

A pressão exercida pela crise ambiental vem refletindo na formulação de

táticas e estratégias alternativas para garantir a sustentabilidade, baseadas na

diversidade cultural, onde estão se legitimando os direitos das comunidades sobre

seus territórios e espaços étnicos, sobre seus costumes e instituições sociais e pela

autogestão de seus recursos produtivos.

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152

Nesse contexto, os conhecimentos ecológicos tradicionais dos pantaneiros de

Cuiabá Mirim a respeito de aves e as mudanças climáticas poderão oferecer

pegadas importantes para a gestão ambiental. Este trabalho poderá ser utilizado

para fomentar a implementação de políticas públicas no Pantanal Mato-Grossense,

que incluam grupos sociais de menor visibilidade; e para uma reflexão sobre

sociedade-natureza com vistas a integração das dimensões econômica, ecológica,

territorial, e cultural da sustentabilidade.

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153

ANEXOS ANEXO I – Lista de etnoespécies de aves indicadas pelos pantaneiros

ETNOESPÉCIE FREQUÊNCIA

% DE

RESPOSTA RANQUE

ÍNDICE

Smith's

Juruti 20 95 23.750 0.506

Garça 20 95 12.300 0.740

Tuiuiú 20 95 10.500 0.788

Mutum 19 90 15.316 0.637

Cabeca Seco (cab. Seca) 19 90 7.263 0.779

Arancuã 18 86 16.222 0.600

Baguari 18 86 17.444 0.561

Piriquito 18 86 22.500 0.512

Papagaio 18 86 17.278 0.562

Jaó 16 76 28.500 0.361

Cabecinha Vermelha 16 76 19.750 0.451

Marreca 16 76 30.750 0.341

Rolinha 15 71 28.467 0.334

Saracura 15 71 31.467 0.349

Beija-Flor 15 71 26.533 0.353

Massa Barro 14 67 19.643 0.410

Bem-Te-Vi 14 67 23.071 0.387

Sabiá 13 62 27.692 0.322

Colhereiro 13 62 13.769 0.461

Quero Quero 13 62 40.231 0.199

Martim-Pescador 13 62 32.231 0.273

Andorinha 12 57 24.917 0.294

Biuá 12 57 13.333 0.440

Anhuma 12 57 21.833 0.357

Cracará (Cabeça Chato) 12 57 36.417 0.225

Canarinho 12 57 27.083 0.277

Pixaroné (Pixoroné) 11 52 24.909 0.291

Pomba 11 52 21.545 0.310

Piriquito Barroso 11 52 26.636 0.273

Cafezinho 11 52 34.636 0.215

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154

Jacutinga 11 52 25.545 0.308

Maracanã 11 52 34.000 0.212

Sicuíra 11 52 38.909 0.186

Tucano 11 52 28.364 0.262

Galo Da Campina 11 52 30.273 0.276

Taiamã 11 52 31.455 0.221

Japú 11 52 29.364 0.225

Passarinho Preto 11 52 33.818 0.231

Quá 11 52 29.727 0.240

Urubu 10 48 27.300 0.262

Socó 10 48 13.800 0.324

Gaivota 10 48 33.100 0.167

Coruja 10 48 31.700 0.195

Bica De Prata 10 48 20.500 0.267

Biuatinga 10 48 26.400 0.268

Sarí (Araçari, Laçari) 9 43 35.000 0.181

Pato 9 43 20.778 0.240

Curicaca 9 43 38.444 0.130

Bico Curto 9 43 30.556 0.214

Tabuiaiá 8 38 27.125 0.206

Gavião Caramujeiro 8 38 44.000 0.101

Nandaia 8 38 28.125 0.152

Sanhaço 8 38 29.375 0.168

Carão 8 38 47.000 0.120

Frango Dágua 8 38 26.625 0.205

João Pinto 8 38 20.625 0.235

Arara Amarela 7 33 40.143 0.097

Arara Azul 7 33 39.857 0.100

Caburezinho 7 33 44.857 0.091

Urutau 6 29 40.167 0.040

Garça Real 6 29 31.500 0.146

Curió 6 29 36.667 0.137

Arara 6 29 14.500 0.218

Vira Unha 6 29 48.667 0.056

Ema 6 29 28.667 0.164

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155

Socó Boi 6 29 32.000 0.162

Seriema 6 29 18.500 0.169

Graia 6 29 51.167 0.068

Pomba Trocá 6 29 32.333 0.150

Pavãozinho 6 29 31.667 0.135

Xexéu 5 24 38.200 0.084

João Curutu 5 24 39.800 0.085

Tem-Tem 5 24 34.200 0.132

Pica-Pau 5 24 37.000 0.106

Gavião 5 24 23.200 0.133

Coriango 5 24 46.200 0.064

Massa Barro Do Campo 5 24 24.000 0.157

Jacú 5 24 17.000 0.162

Socó Galinha 5 24 37.200 0.116

Muié Véia 5 24 45.800 0.062

Japuíra 4 19 22.750 0.113

Chico do Capão 4 19 40.250 0.062

Bilro (Birro) 4 19 54.000 0.061

Macamã 4 19 57.000 0.022

Anu Preto 4 19 27.750 0.103

Gavião Pinhé 4 19 48.250 0.041

Peito De Moça 4 19 36.750 0.106

Pato do Mato 4 19 27.500 0.102

Arara Vermelha 4 19 36.750 0.057

Chama Chama 3 14 30.000 0.071

Perdiz 3 14 38.333 0.039

Bico De Prata 3 14 14.667 0.087

Alma De Gato 3 14 54.667 0.009

Marriquitinha 3 14 32.667 0.063

Patinho Dágua 3 14 42.000 0.043

Cardeal 3 14 27.000 0.066

Gavião Preto 3 14 58.667 0.029

Morcego 3 14 26.000 0.051

Nhana Cocá 3 14 21.667 0.092

Martim-Pescador Pequeno 3 14 63.667 0.028

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156

Sao Joãozinho 3 14 29.667 0.082

Marrequinha 3 14 27.000 0.091

Garça Morena (Maria Faceira) 3 14 29.333 0.063

Pardal 3 14 31.333 0.082

Anú Branco 3 14 32.000 0.066

Pixui 2 10 20.000 0.073

Baitaca 2 10 41.000 0.023

Jacucaca 2 10 19.500 0.056

Pixuita 2 10 35.500 0.037

Urubu Branco 2 10 31.500 0.060

Gavião Real 2 10 45.000 0.039

Tico Tico 2 10 39.500 0.047

Bem-Te-Vi Monta Cavalo 2 10 38.500 0.037

Batuíra 2 10 41.000 0.010

Nambú 2 10 15.000 0.068

Garça Cinzenta 2 10 36.000 0.040

Pardalzinho 2 10 19.000 0.056

Chora Chuva 2 10 47.000 0.029

Gavião Carijó 2 10 50.500 0.023

Pinhé 2 10 60.000 0.027

Papagaio Trombeteiro 2 10 57.500 0.025

Rola Cinzenta 1 5 36.000 0.014

Martim Do Barranco 1 5 12.000 0.027

Curió Branco (Coleira Branca) 1 5 13.000 0.038

Coruja Do Peito Branco 1 5 41.000 0.010

Ararinha Verde 1 5 25.000 0.029

Coruja Buraqueira 1 5 42.000 0.009

Curicaca Cinza 1 5 43.000 0.015

Anuzinho 1 5 60.000 0.001

Pioró 1 5 14.000 0.035

Quem Quem 1 5 36.000 0.004

Pica Pau Da Cabeça Amarela 1 5 29.000 0.021

Curió Cor De Canário 1 5 12.000 0.039

Pomba Da Embauveira 1 5 41.000 0.016

Biguá 1 5 5.000 0.044

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157

Gavião Có 1 5 57.000 0.004

Anú 1 5 36.000 0.014

Garça Boiadeira 1 5 36.000 0.020

Krikiri (criquiri) 1 5 41.000 0.008

Pica-Pau De Cabeça Vermelha 1 5 44.000 0.005

Curió Marronzinho 1 5 10.000 0.041

Canarinho Amarelo 1 5 6.000 0.044

Canário da Terra 1 5 18.000 0.032

Curió Preto com costa branca 1 5 11.000 0.040

Garça Carrapateira 1 5 35.000 0.017

José Fita 1 5 18.000 0.023

Marreca Sinharinha 1 5 25.000 0.013

Pato Brabo 1 5 26.000 0.012

Pomba Rola 1 5 12.000 0.031

Coruja De Orelha 1 5 40.000 0.010

Jacú Goela 1 5 16.000 0.030

Anú Canjiqueiro 1 5 59.000 0.002

Pato De Casa 1 5 9.000 0.036

Piriquito Peito Branco 1 5 19.000 0.037

Batuíra Pernilongo 1 5 47.000 0.004

Batuíra Colerinha 1 5 48.000 0.003

Gavião Marrom 1 5 55.000 0.005

Oleiro 1 5 31.000 0.030

Garça Pequena 1 5 36.000 0.028

Garça Grande 1 5 37.000 0.027

Bemtevizinho 1 5 45.000 0.013

Tesoureiro 1 5 29.000 0.006

Japú Preto 1 5 22.000 0.028

Nambu chintã 1 5 18.000 0.027

Ararinha 1 5 40.000 0.001

Corujinha 1 5 82.000 0.001

Andorinha pequenininha 1 5 28.000 0.022

João Congo 1 5 39.000 0.022

Pavão 1 5 42.000 0.021

Garça Fita 1 5 7.000 0.044

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158

Rola Branca 1 5 37.000 0.013

Xuí 1 5 23.000 0.035

Chico Cartão 1 5 69.000 0.008

Pombinha 1 5 46.000 0.021

Trinca ferro 1 5 75.000 0.004

Pomba Apaga Fogo 1 5 79.000 0.002

Coriango Rebuçado 1 5 46.000 0.003

Rola 1 5 19.000 0.027

Batuirinha 1 5 29.000 0.015

Pica Pau 1 5 18.000 0.035

Bico De Agulha 1 5 13.000 0.040

Graia Cinza 1 5 16.000 0.038

Graia Branca 1 5 17.000 0.037

Bebe Ovo 1 5 41.000 0.022

Piriquito Nandaia 1 5 54.000 0.014

Urubu Cabeca De Sola 1 5 61.000 0.009

Chapéu Véio 1 5 70.000 0.003

As etnoespécies constam somente os nomes populares em função de ter sido trabalhado

apenas o conhecimento tradicional, onde uma espécie poderá obter mais de uma

denominação em etnoespécie, respeitando o nome de acordo com a pronúncia citada e não

houve avistamento das espécies para identificá-las cientificamente.

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159

ANEXO II

FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE CAMPO

“Hoje fui pescar sauá (um peixe pequenino), com Darlan, um garoto de quatro anos, que

insistiu para fazer uma pescaria comigo. Fomos pescar no barranco do rio Cuiabá, no porto

de um das vizinhas da casa dele (ele disse que gostava de pescar ali, porque a dona do

porto cevava os peixinhos com resto de comida, quando lavava as vasilhas). A isca que ele

utilizava era uma massa de trigo com água, como se fosse massinha de pão, feito pela sua

vó, dona Ursolina. O anzol parecia meio capenga (ele levou dois anzóis, pois eu não tinha

“petrechos” de pescaria). Após pegarmos sete peixinhos e deixarmos guardados em um

tamborete, daqueles que são reutilizados de algum recipiente de acondicionar produto

químico. Quando a pescaria estava quase findando, lá pelas quatro da tarde, ele deu uma

olhada geral nos pescados e começou a soltar vários peixinhos. Daí indaguei: - O que

houve que você está jogando quase todos os peixinhos de volta na água? Tá acabando com

nossa pescaria... Ele respondeu: - Tão todos fora da medida. Não pode comer peixe fora da

medida. Enfim, restaram três peixinhos na medida... Naquele momento comecei a

compreender as regras éticas das práticas, onde até as crianças já estavam com aquele

conhecimento internalizado e com o discurso da sustentabilidade.

Darlan limpando o peixinho da pescaria. Imagem: Acervo: Ruth Albernaz.

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160

ANEXO III

Ninho no caminho para a roça de uma família. Foto: Ruth Albernaz, 2009.

Ninho de Massa Barro do Campo, em frente uma das residências da comunidade.

Foto: Ruth Albernaz, 2009

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161

Ninho de japus, em frente a uma residência. Foto: Ruth Albernaz, 2009.

Ninho de Massa Barro, na margem do Rio Cuiabá. Foto: Ruth Albernaz, 2009.

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162

ANEXO IV

Fragmento de “Palavras Formosas” do Mito de Criação Guarani, extraído do livro “Tupã

Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani” de

Kaká Werá Jecupé, 2001.

Nosso Pai Primeiro

Criou-se por si mesmo

Na Vazia Noite iniciada.

Da divina coroa irradiada

Flores plumas adornadas

Em leque

Em meio às flores plumas floresce

A coroa-pássaro

Do pássaro futuro,

Luz veloz

Que paira

Em flor e beijo,

Que voa não voando.

Nosso Pai Primeiro criava

Futuro colibri, no curso de sua evolução, seu divino corpo.

Existia no entanto em meio aos primeiros Ventos Futuros

Como coruja dentro da noite primeira

Olha-se revoando

Seu futuro firmamento, sua futura terra,

Brisas surgidas

Enquanto colibrizava vidas

Dos ventos produzidos do Imanifestado que fora:

Um colibri.

Page 164: CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE · PDF fileMATO GROSSO, BRASIL 2010 . 1 RUTH ALBERNAZ SILVEIRA CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL DE AVES DA COMUNIDADE CUIABÁ MIRIM, PANTANAL

163

ANEXO V

FONTES ORAIS DESTE TRABALHO „RIBEIRINHAS E RIBEIRINHOS PANTANEIROS DE CUIABÁ

MIRIM‟