conhecimento de africa e conhecimento de africanos duas perspectivas sobre os estudos africanos1

Upload: paulgustavom

Post on 21-Feb-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    1/13

    Revista Crtica de CinciasSociais80 (2008)

    Epistemologias do Sul

    ................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    Paulin J. Hountondji

    Conhecimento de frica, conhecimentode Africanos: Duas perspectivas sobreos Estudos Africanos................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

    Revues.org um portal de revistas das cincias sociais e humanas desenvolvido pelo CLO, Centro para a edioeletrnica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - Frana)

    ................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    Referncia eletrnicaPaulin J. Hountondji, Conhecimento de frica, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os EstudosAfricanos , Revista Crtica de Cincias Sociais[Online], 80 | 2008, posto online no dia 01 Outubro 2012, consultadoo 30 Janeiro 2013. URL : http://rccs.revues.org/699

    Editor: Centro de Estudos Sociaishttp://rccs.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em: http://rccs.revues.org/699Este documento o fac-smile da edio em papel.

    CES

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    2/13

    Revista Crtica de Cincias Sociais,80, Maro 2008: 149-160

    PAULIN J. HOUNTONDJI

    Conhecimento de frica, conhecimento de Africanos:Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos

    Em que medida so africanos os chamados Estudos Africanos? O estudo da frica, talcomo desenvolvido at hoje por uma longa tradio intelectual, faz parte de um projecto

    abrangente de acumulao do conhecimento iniciado e controlado pelo Ocidente. Esteartigo defende que as sociedades africanas devem eles prprias apropriarse activa,lcida e responsavelmente do conhecimento sobre elas capitalizado durante sculos.Defende, mais genericamente, o desenvolvimento em frica de uma tradio autnoma,confiante em si prpria, de investigao e conhecimento que responda a problemas equestes suscitados directa ou indirectamente por africanos. Convida os investigadores africanos da rea dos Estudos Africanos e de todas as outras disciplinas a compreenderam que, at ao momento, tm vindo a levar a cabo um tipo de pesquisa maciamenteextravertido, isto , orientado para fora, destinado em primeira linha a ir ao encontrodas necessidades tericas e prticas das sociedades do Norte. Prope uma nova orien

    tao e novas ambies para a investigao feita por africanos em frica.

    A la mmoire de John Conteh-Morgan

    Quando falamos de estudos africanos, normalmente estamos a referir-nosno apenas a uma disciplina, mas a todo um leque de disciplinas cujo objectode estudo frica.2Entre estas incluem-se, frequentemente, disciplinas

    1 Este artigo uma verso revista de uma conferncia proferida na cerimnia de abertura daBayreuth International Graduate School of African Studies (BIGSAS), na Universidade de Bayreuth,na Alemanha, em 13 de Dezembro de 2007. Os meus agradecimentos Fundao Alexander vonHumboldt, por nessa altura me ter dado a possibilidade de alargar por trs meses a estada naAlemanha, para efeitos de investigao. A primeira bolsa de estudo que me foi concedida pelafundao Humboldt remonta a 1980-1982. Fui acolhido pelo Instituto de Filosofia da Universidadede Dsseldorf, ento dirigido pelo Professor Alwin Diemer, que j no se encontra entre ns.2 John Conteh-Morgan foi professor associado de Literatura Francesa e Francfona na Ohio StateUniversity. Faleceu a 3 de Maro de 2008. Soube da sua morte quando estava a terminar este artigo.

    Respeitosamente, dedico-lhe este trabalho em memria de uma velha amizade. John e eu conhe-cemo-nos no final da dcada de 60 na Universidade de Besanon, em Frana, quando eu iniciavaa minha carreira acadmica, como assistente de filosofia, e ele estava a terminar a suaMatriseemFrancs. Foi com surpresa e enorme alegria que o reencontrei de novo nos EUA. Ainda possuo

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    3/13

    50| Paulin J. Hountondji

    como a histria africana, antropologia e sociologia africanas, lingus-tica africana, poltica africana, filosofia africana, etc. Torna-se inevi-tvel, por isso, colocar uma primeira questo: existir algum tipo de unidade

    entre estas disciplinas? Ser que apenas se relacionam individualmente comfrica, sem estarem interrelacionadas de uma qualquer forma? Ser quesimplesmente se sobrepem umas s outras, estudando o mesmo objecto apartir de perspectivas e ngulos diferentes, ou sero, pelo contrrio, inter-dependentes ao ponto de estarem sujeitas a crescer ou desaparecer juntas?Facilmente se depreende o que isto implica: se estas disciplinas no neces-sitam umas das outras, se cada uma delas consegue florescer por si s semrecorrer a disciplinas vizinhas, ento no h qualquer necessidade de asreunir numa mesma instituio, nem de criar institutos de estudos africanos.

    Na verdade, partimos do pressuposto de que estas disciplinas esto dealgum modo interrelacionadas e temos boas razes para o fazer. Por exem-plo, entre a histria africana e a sociologia africana existe, claramente, umacomplementaridade objectiva, visto que a situao presente de qualquersociedade decorre, directa ou indirectamente, do respectivo passado. Poroutro lado, um bom conhecimento do presente e da lgica dos aconteci-mentos na vida actual pode oferecer pontos de vista teis para compreendero passado. Assim, a sincronia remete para a diacronia e vice-versa. A hist-

    ria e a sociologia so apenas um exemplo. Podem encontrar-se relaessimilares entre todas as disciplinas que constituem os estudos africanos.Mas h mais. Para alm das ligaes especiais que unem as disciplinas

    que estudam o mesmo objecto, existe uma solidariedade geral entre ascincias, tanto do ponto de vista intelectual como histrico. Os chamadosestudos africanos no s se baseiam em metodologias e teorias que se con-solidaram em vrios campos como a histria geral, a sociologia, a lingus-tica, a economia, a cincia poltica, etc. muito antes de terem sido aplica-das a frica enquanto novo campo de estudo, como , de resto, comum,em instituies acadmicas e de investigao, encontrar esta matria asso-ciada a outras disciplinas, como sejam a matemtica, a fsica, a informtica,a biologia, a qumica, a geologia, a gesto e administrao, a filosofia ou aengenharia. Em breves palavras, estas disciplinas so objecto de ensino einvestigao para alm dos prprios estudos africanos e das grandes disci-plinas que lhes deram origem. Este quadro institucional no exclusivo de

    um exemplar com dedicatria do seu livro Theatre and Drama in Francophone Africa. Publicou

    inmeros artigos livros e organizou vrios livros [Conteh-Morgan, 1994, Conteh-Morgan, Grovere Bryce (org.), 2002; Conteh-Morgan e Olaniyan (orgs.), 2004], assim como realizou algumastradues como a de Dark Side of the Light: Slavery and the French Enlightenment, de LouisSala-Molins (2006) e o meu prprio livro, The Struggle for Meaning.

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    4/13

    Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos | 5

    Bayreuth. De facto, o mesmo se passa em todo o lado, tornando clara ainterligao profunda entre as diversas reas de investigao. Como sabido, essa interligao que est na raiz da prpria ideia de universidade (Uni-

    versitas) tal como foi tematizada, entre outros, por um homem que no foium mero pensador, mas sim o verdadeiro fundador da Wissenschaftspolitikda Alemanha do sculo XIX: Wilhelm von Humboldt.

    Todavia, pelo menos uma outra questo se coloca: quo africanos so oschamados estudos africanos? Por exemplo, por histria africana entende-senormalmente o discurso histrico sobrefrica, e no necessariamente umdiscurso histrico proveniente de frica ou produzido por africanos. Emtermos gramaticais, referimo-nos histria defrica: historia Africaeem

    Latim, em queAfricae, genitivo deAfrica, seria um genitivo objectivo, e noum genitivo subjectivo. Na mesma ordem de ideias, a sociologia ou a antro-pologia africanas significam a sociologia ou antropologia defrica enquantogenitivo objectivo, ou seja, um discurso sociolgico ou antropolgico sobrefrica e no uma tradio sociolgica ou antropolgica desenvolvida porafricanos em frica. Da mesma forma, a lingustica africana entendidacomo o estudo de lnguas africanas e no necessariamente um estudo feitopor africanos. Imaginemos um grupo de acadmicos africanos que estudem

    Japons, por exemplo, ou Ingls, Alemo ou Portugus. Deles no se dirque esto a contribuir para o desenvolvimento de uma tradio de investi-gao lingustica em frica, mas sim que esto a produzir uma lingustica

    japonesa, inglesa, alem ou portuguesa.Ao longo do meu prprio percurso intelectual, fui sensibilizado para este

    problema e comecei a percepcion-lo como problema ao ler livros sobrefilosofia africana ou sistemas de pensamento africanos. Normalmente, osautores partiam do princpio de que os africanos no tinham conscincia dasua prpria filosofia e que apenas os analistas ocidentais, que os observavama partir do exterior, poderiam traar um quadro sistemtico da sua sabedo-ria. ao padre Placid Tempels, um missionrio belga a trabalhar no antigoCongo Belga, que se deve a formulao mais explcita deste pressuposto:

    No esperemos que o primeiro negro com quem nos cruzamos na rua (sobretudo sefor jovem) nos d um quadro sistemtico do seu sistema ontolgico. No obstante,

    esta ontologia existe; ela penetra e enforma todo o pensamento do primitivo e domina--lhe todo o comportamento. Recorrendo aos mtodos de anlise e sntese das nossas

    disciplinas intelectuais, podemos e, portanto, temos de auxiliar o primitivo a pro-curar, classificar e sistematizar os elementos do seu sistema ontolgico. (Tempels,1969: 15)

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    5/13

    52| Paulin J. Hountondji

    E mais adiante:

    No pretendemos que os Bantus sejam capazes de nos presentear com um tratado

    filosfico acabado, j com todo o vocabulrio prprio. graas nossa prpriapreparao intelectual que ele ir sendo desenvolvido de uma forma sistemtica.Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso da sua concepo das entidades, de forma

    a que eles se reconheam nas nossas palavras e concordem, dizendo: Vs percebes-tes-nos, agora conheceis-nos completamente, conheceis da mesma forma que ns

    conhecemos. (Tempels, 1969: 14)

    O que est errado nesta pretensa inconscincia dos nativos em relao sua prpria filosofia esta ser considerada a disciplina mais autoconsciente

    de todas, pelo menos numa certa tradio filosfica, precisamente aquelaem que fui educado: a filosofia da conscincia, tal como foi desenvolvidadesde Plato at Husserl, passando por Descartes e Kant, para mencionarapenas algumas das mais importantes figuras de referncia nesta tradio.3

    O que mais me incomodava era o facto de um nmero crescente deintelectuais africanos estarem a seguir nessa mesma direco. Os acadmicosafricanos que se dedicavam filosofia, dentro ou fora das universidadesocidentais, passavam a maior parte do tempo a redigir teses de mestrado,

    dissertaes de doutoramento, artigos, livros e comunicaes ou monogra-fias de todo o tipo, sobre tpicos como a filosofia do ser entre os povos doRuanda, o conceito de tempo entre os povos da frica Oriental, a percep-o dos velhos entre os Fulas da Guin, a concepo yoruba de ser humano,o pensamento metafsico dos Yoruba, a filosofia moral entre os Wolof, adoutrina akan de Deus, a concepo da vida entre os Fon do Daom, etc.Eu achava estes temas interessantes per see algumas das monografiasbastante perspicazes. Contudo, no podia aceitar que o dever primeiro e muito menos o dever nico dos filsofos africanos fosse descrever oureconstituir a mundiviso dos seus antepassados ou os pressupostos colec-tivos das suas comunidades. Por isso, defendi que aquilo que a maioriadestes acadmicos estava realmente a produzir no era filosofia, mas simetnofilosofia: estavam a escrever um captulo especfico da etnologia quevisava estudar os sistemas de pensamento das sociedades habitualmente

    3 Esta a tese defendida por Abiola Irele no incio da sua brilhante introduo minha obraAfrican Philosophy, Myth and Reality. Este importante trabalho contribuiu decisivamente para

    chamar a ateno do pblico de lngua inglesa para este livro, inicialmente publicado em francs.Para alm desta introduo, Abiola Irele conhecido pelo seu esforo incansvel em construirpontes entre os mundos anglfono e francfono no campo acadmico, no apenas em frica, masnum plano global (Irele, 1983, 2001).

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    6/13

    Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos | 53

    estudadas pela etnologia4 independentemente da caracterizao que sefaa de tais sociedades.5

    Ao mesmo tempo, contudo, chamei a ateno para a prpria existncia

    destas monografias. Para mim, elas faziam parte integrante da filosofia afri-cana num sentido radicalmente novo. A meu ver, a filosofia africana nodevia ser concebida como uma mundiviso implcita partilhada inconscien-temente por todos os africanos. Filosofia africana no era seno uma filo-sofia feita por africanos. Existia uma contradio na filosofia ocidental,quando esta se considerava a mais autoconsciente de todas as disciplinasintelectuais, mas presumia ao mesmo tempo, que algumas filosofias no--ocidentais podiam ser desprovidas dessa conscincia de si mesmas.

    Voltei as atenes, portanto, para a existncia de uma literatura filosfica

    africana. Logo a primeira frase do meu livroAfrican Philosophy, Myth andReality(Filosofia africana, mito e realidade), de 1996, afirmava algo que hojepode soar como uma verdade de la Palice, um lugar comum bastante simplesmas que, devido ao panorama ideolgico e intelectual da poca, pareciaconter uma novidade extraordinria: Por filosofia africana entendo umconjunto de textos (Hountondji, 1977, 1983).

    4 Como do conhecimento geral, o termo etnofilosofia foi usado no incio da dcada de setentado sculo XX quase em simultneo por mim e pelo meu colega camarons Marcien Towa, num

    sentido depreciativo e controverso (Houtondji, 1970; Towa, 1971). No entanto, a palavra em si mais antiga. Remonta, pelo menos, ao incio da dcada de quarenta, quando Nkrumah a usou numsentido bastante positivo para descrever uma disciplina para a qual ele prprio se propunha con-tribuir. Tal como menciona na sua autobiografia, Nkrumah formou-se em filosofia em 1943 pelaUniversidade da Pensilvnia, em Filadlfia, e pouco depois inscreveu-se num doutoramento emetnofilosofia. Chegou mesmo a escrever a tese, mas no conseguiu defend-la antes de partirpara a Gr-Bretanha em 1945, onde trabalhou como secretrio do quinto Congresso Pan-Africano.Fico grato a William Abraham por me ter disponibilizado uma cpia da verso dactilografada.O termo etnofilosofia j aparecia no ttulo:Mind and Thought in Primitive Society: a Study inEthno-Philosophy with special Reference to the Akan Peoples of the Gold Coast, West Africa Esp-rito e pensamento na sociedade primitiva: um estudo de etnofilosofia, com especial referncia aos povosakan da Costa do Ouro (Nkrumah, s. d., 1957).5 Hoje em dia, amplamente consensual que as noes tradicionalmente usadas para identificaro tipo de sociedades estudadas pela etnologia (por oposio sociologia) so fortemente eurocn-tricas e, neste sentido, tendenciosas ou ideolgicas. Os estudiosos esforam-se por explicarexactamente o que entendem por sociedades primitivas. Certas noes alternativas, supostamentemais politicamente correctas, como as expresses sociedades arcaicas, sociedades tradicionais,povos indgenas, etc., tambm no so muito mais claras. Descrever a etnologia como o estudodas sociedades iletradas tambm no melhor, na medida em que essas sociedades so, assim,caracterizadas negativamente por algo que nopossuem: a literacia. mais produtivo prestarateno aos modos e dispositivos concretos atravs dos quais o conhecimento transmitido semrecurso escrita tal como ela usada no Ocidente. Por esta razo, devem ser chamadas, comosugeriu o linguista francs Maurice Houis (1971), civilisations de loralit civilizaes da oralidade.

    Mamouss Diagne, um filsofo do Senegal, analisou detalhadamente, na sua obra Critique of OralReason, esta lgica da oralidade, em contraposio com a lgica da escrita descrita por JackGoudy e com o impacto deste modo concreto de transmisso sobre o conhecimento produzido(Houis, 1971; Goody, 1986; Diagne, 2005).

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    7/13

    54| Paulin J. Hountondji

    Se este livro causou um impacto forte, ao ponto de ter recebido o prmioHerskovitz em Los Angeles em 1984 e ter sido, posteriormente, seleccio-nado, na Feira Internacional do Livro, que decorreu em 2002 no Zimbabu,

    entre os melhores cem livros africanos do sculo XX, isso ter-se- certamentedevido a essa simples e aparentemente ingnua afirmao, cujas implicaese consequncias tinham, no entanto, um grande alcance.

    Uma das implicaes imediatas foi a seguinte: o novo conceito de filoso-fia africana permitiu estabelecer uma distino entre africanistas e africanosno campo da filosofia. Muitos dos pensadores ocidentais que escreviamprofusamente sobre os sistemas de pensamento africanos deixaram de poderser vistos como pertencentes filosofia africana entendida neste novo sen-tido, ao passo que as obras dos seus pares africanos faziam parte da escrita

    africana sobre a etnofilosofia e, por conseguinte, parte da literatura filos-fica africana. Isto no significa que as obras escritas por africanos fossemmelhores, seja em que acepo do termo for. Alm do mais, ningum podeignorar a solidariedade temtica ou at mesmo a cumplicidade intelectualexistente entre a etnofilosofia africana e a no-africana, nem negar a filiaogenealgica que faz com que a etnofilosofia africana seja filha do envolvi-mento ocidental com as mundivises exticas. No entanto, estabelecer estetipo de demarcao tornou possvel chamar a ateno para a recepo afri-

    cana das tradies de investigao ocidentais e levar os acadmicos africanosa assumir as suas responsabilidades intelectuais prprias.H ainda uma outra implicao: a filosofia africana tambm inclui escri-

    tos que criticam ou pem em causa a etnofilosofia. Isto um indcio clarode que no existe qualquer unanimidade em frica sobre esta questo con-creta. Identificar filosofia africana com a bibliografia ou literatura filosficaafricana permitiu ter noo das contradies e dos debates internos, dastenses intelectuais que do vivacidade a esta filosofia e que fazem da culturaafricana, no seu todo, uma cultura viva e no morta. A etnofilosofia baseava--se, entre outros pressupostos, na ideia de que, nas sociedades de pequenaescala ou sociedades primitivas, como so chamadas, vigorava uma totalunanimidade, com toda a gente a concordar, por assim dizer, com toda agente. Alm disso, essa pretensa unanimidade era vista como uma virtude,e o desacordo como algo mau ou perigoso. A esta duplo pressuposto dei onome de iluso unnime. Em contraposio a isto, chamei a ateno paraa virtude do pluralismo enquanto factor de progresso e para o facto de nos a frica moderna como tambm a chamada frica tradicional terem

    vivenciado o pluralismo ao longo dos tempos e em vrios domnios. No quediz respeito filosofia, este tipo de pluralismo pareceu-me ser algo muitovalioso e frutfero (Hountondji, 2002).

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    8/13

    Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos | 55

    Desnecessrio ser dizer que a filosofia africana abrange todo um conjuntodiverso de obras que pouco ou nada tm a ver com a questo concreta da exis-tncia de uma filosofia africana e que, portanto, no cabem dentro da classifi-

    cao Etnofilosofia versusFilosofia Crtica. Alguns desses trabalhos levam pordiante certas tentativas africanas no sentido de pensar, repensar ou simples-mente compreender a filosofia ocidental, bem como no sentido de uma apro-priao, por assim dizer, das tradies de pensamento no-africanas. Assim sevai dando origem a interpretaes africanas de Descartes, Kant, Hegel, Marx,Husserl, da Escola Crtica de Frankfurt, de pensadores islmicos e, no futuro,talvez de filosofias chinesas e indianas, bem como muitas outras tradiesintelectuais provenientes de fora de frica. Outros escritos vm trabalhandotemas e conceitos universais, incluindo temas ligados lgica matemtica ou

    aos fundamentos da cincia, histria e sociologia da cincia, antropologiado conhecimento, tica e filosofia poltica, filosofia da linguagem, etc.Todos estes esforos fazem, obviamente, parte integrante da filosofia africana.

    Como que tudo isto se aplica, ento, aos estudos africanos? De certaforma, o estudo da frica marcado por uma espcie de pecado original,tendo em vista o papel objectivo que desempenhou na histria da coloni-zao. No caso da Alemanha, o problema ainda mais srio, dado o modocomo a disciplina foi instrumentalizada durante o perodo do nacional-

    socialismo, algo que suponho apresentar alguns paralelismos com o queaconteceu em Portugal durante o regime colonial-fascista.Tudo isto j pertence Histria. A cumplicidade histrica tem sido denun-

    ciada vezes sem conta, no apenas por acadmicos no-ocidentais mas tam-bm, e isto o mais importante, pelos prprios acadmicos do Ocidente.Alm disso, no que respeita ao perodo hitleriano, deve ter havido, no augedessa terrvel ditadura, pelo menos alguns tmidos protestos que no podiamser verbalizados em voz alta, a no ser que o seu autor quisesse cometersuicdio. Presumo que, como escreveu recentemente um antroplogo alemo,apesar dos exemplos com maior visibilidade, seria errneo [] considerarque todos os participantes nos estudos africanos desempenharam um papelactivo na Alemanha de Hitler. A imagem adequada seria mais, como lhechamou Dostal, a do silncio na escurido (Dostal, 1994; Probst, 2005).

    No obstante este pecado original, o meio acadmico ocidental, incluindoaAfrikanistikalem, trouxe um enorme contributo ao conhecimento daslnguas, sociedades, histria e culturas africanas. Alguns nomes permaneceminesquecveis, tal como o de Adolf Bastian, pai da etnologia (Vlkerkunde)

    alem, para usar as palavras de um antroplogo africano (Diallo, 2001);Carl Meinhof, especialista em lnguas bantu; Diedrich Westermann, que foimissionrio no Togo antes de iniciar uma notvel carreira como antroplogo;

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    9/13

    56| Paulin J. Hountondji

    Leo Frobenius, cuja obra contribuiu em muito para dar a escritores negroscomo Aim Cesaire e Lopold Sedar Senghor uma maior conscincia dosprincpios fundamentais e do valor da sua prpria cultura; Janheinz Jahn,

    que ficou to impressionado, aps ter assistido a uma palestra pronunciadapor Senghor em 1951, que quase de imediato comeou a sua incansvelrecolha e traduo da literatura africana (Probst, 2005: 415); e ainda, maisprximo de ns, um homem como Ulli Beier, que criou em Bayreuth ainstituio a que em Alemo se chama Iva-leva Haus (porque o som wno tem correspondncia no Alemo), que na lngua dos Yoruba se pro-nuncia Iwa lewa e significa beleza carcter, como por exemplo ema mulher bela aquela que sabe comportar-se. Por fim, h que recordarGeorg Elwert, j falecido, a quem os camponeses de Ayou, uma aldeia do

    Benim onde realizou a maioria do seu trabalho de campo, prestaram umavibrante homenagem em Outubro de 2006.6

    Na qualidade de observador externo talvez no dissesse, como fazPeter Probst, que os estudos africanos na Alemanha se encontram situadosa meio caminho entre [] duas grandes esferas de influncia, a francesae a britnica ou sentados entre duas cadeiras, como reza a expressofrancesa, e que como quem diz, sem ter uma identidade prpria (Probst,2005: 405). Pelo contrrio, a tradio alem parece-me ser o modelo que

    deveramos tentar construir em frica. Em primeiro lugar, um modeloque fala a sua prpria lngua, o alemo. Em segundo, e consequentemente,dirige-se prioritariamente a um pblico que fala alemo e processa-se, antesde mais, segundo um debate interno dentro da Alemanha e dos pases delngua alem, incluindo a ustria e parte da Sua, onde os acadmicos sequestionam mutuamente, respondendo e discutindo entre si. Em terceirolugar, as questes debatidas dizem muito comunidade acadmica falantedo alemo e so por ela largamente partilhadas, o que permite o desenvol-vimento de um debate que horizontal e tem uma sustentao prpria. Noestamos numa situao em que um acadmico isolado partilha uma proble-mtica desenvolvida num outro local, por exemplo no mundo francfonoou anglfono, como que falando por sobre as cabeas da sua prpria comu-

    6 Os aldees foram convidados a assistir a uma sesso de duas horas em homenagem a Georg Elwert,um africanista alemo (1947-2005), durante um congresso internacional organizado em Cotonou,entre 16 e 19 de Outubro de 2006, pelo Centro Africano de Estudos Avanados. Em vez de um oudois delegados, trouxeram uma grande delegao composta por 25 pessoas com tambores e outrosinstrumentos sofisticados. Explicaram emAizo(uma variante do Fongbe) o que aquele homem signi-

    ficava para eles, relembrando, entre outras coisas, como ele os tinha ensinado a escrever e a ler na suaprpria lngua, como os tinha ajudado a arranjar verbas para abrir poos e obter gua potvel paraas suas aldeias. Com a devida autorizao dos ancios, executaram danas sagradas s permitidas emcircunstncias especiais. De facto, o evento acabou por se tornar uma segunda cerimnia fnebre.

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    10/13

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    11/13

    58| Paulin J. Hountondji

    das necessidades tanto intelectuais como materiais das sociedades africanas.O primeiro passo nesse sentido seria talvez formular problemticas ori-ginais, conjuntos originais de problemas estribados numa slida apropriao

    do legado intelectual internacional e profundamente enraizados na experi-ncia africana (Houtondji, 1988b, 1997, 2002, 2007).Desta perspectiva, a disciplina ou o conjunto de disciplinas a que se

    chama estudos africanos certamente no tero o mesmo significado na fricae no Ocidente. Na frica, fazem ou deveriam fazer parte de um projectomais vasto: conhecer-se a si mesmo para transformar. Os estudos africanosem frica no deveriam contentar-se em contribuir apenas para a acumu-lao do conhecimento sobre frica, um tipo de conhecimento que capi-talizado no Norte global e por ele gerido, tal como acontece com todos os

    outros sectores do conhecimento cientfico. Os investigadores africanosenvolvidos nos estudos africanos devero ter uma outra prioridade: desen-volver, antes de mais, uma tradio de conhecimento em todas as disciplinase com base em frica, uma tradio em que as questes a estudar sejamdesencadeadas pelas prprias sociedades africanas e a agenda da investiga-o por elas directa ou indirectamente determinada. Ento, ser de esperarque os acadmicos no-africanos contribuam para a resoluo dessas ques-tes e para a implementao dessa agenda de investigao a partir da sua

    prpria perspectiva e contexto histrico.Por conseguinte, seria bom que houvesse coisas a acontecer tambm emfrica, e no sempre ou exclusivamente fora dela. H que repor a justiapara o continente negro, fazendo com que todo o conhecimento acumuladoao longo de sculos sobre diferentes aspectos da sua vida, seja partilhadocom a gente que l vive. H que tomar medidas adequadas no sentido depossibilitar frica proceder a uma apropriao lcida e responsvel doconhecimento disponvel, bem como das discusses e interrogaes desen-volvidas noutras paragens. Uma apropriao que deve ir a par com umareapropriao crtica dos prprios conhecimentos endgenos de frica e,mais do que isso, com uma apropriao crtica do prprio processo deproduo e capitalizao do conhecimento.7

    Traduo deIns Martins Ferreira

    7 J foi demonstrado, de forma convincente, quo profundo foi o impacto do estudo de frica nas

    disciplinas-me das cincias sociais e humanas (Bates, Mudimbe e OBarr, 1993). Embora admitindoeste importante facto, o que tento aqui demonstrar ligeiramente diverso. essencialmente noOcidente que tanto estas disciplinas nucleares como os estudos africanos se tm, at agora, desen-volvido. No entanto, a frica dever agora desenvolver o seu prprio processo de questionamento

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    12/13

  • 7/24/2019 Conhecimento de Africa e Conhecimento de Africanos Duas Perspectivas Sobre Os Estudos Africanos1

    13/13

    60| Paulin J. Hountondji

    Hountondji, Paulin (1995), Producing Knowledge in Africa Today,African StudiesReview, 38(3), 1-10.

    Hountondji, Paulin (org.) (1997), Endogenous Knowledge: Research Trails. Dakar:

    CODESRIA.Hountondji, Paulin (2002), The Struggle for Meaning: Reflections on Philosophy, Culture,and Democracy in Africa. Athens: Ohio University Center for International Studies.

    Hountondji, Paulin (2006), Global Knowledge: imbalances and current tasks, inGuyNeave (org.),Knowledge, Power and Dissent: Critical Perspectives on Higher Educationand Research in Knowledge Society. Paris: UNESCO Publishing, 41-60.

    Hountondji, Paulin (org.) (2007),La Rationalit, une ou plurielle?. Dakar: CODESRIA.

    Irele, Abiola (1983), Introduction, inPaulin J. Hountondji,African Philosophy, Myth

    and Reality. Bloomington: Indiana University Press, 7-30.

    Irele, Abiola (2001), The African Imagination: Literature in Africa and the Black Diaspora.Oxford/New York: Oxford University Press.

    Nkrumah, Francis K. (s.d., s.l., circa1945),Mind and Thought in Primitive Society.

    A Study in Ethno-Philosophy with special Reference to the Akan Peoples of the Gold

    Coast, West Africa. Dactilografado.

    Nkrumah, Kwame (1957), Ghana. Autobiography of Kwame Nkrumah. London: Nelson.Probst, Peter (2005), Between and Betwixt. African studies in Germany, Afrika

    Spectrumm, 30(3), 403-427.

    Sala-Molins, Louis (2006),Dark side of the light: Slavery and the French Enlightenment,traduo e introduo de John Conteh-Morgan. Minneapolis: University of Minnesota

    Press.Taiwo, Olufemi (1993), Colonialism and its Aftermath: The Crisis of Knowledge

    Production, Callalloo, 16(3), 891-908.Tempels, Placid (1969),Bantu Philosophy, traduo de Colin King. Paris: Prsence

    Africaine [1945].Towa, Marcien (1971), Essai sur la problmatique philosophique dans lAfrique actuelle.

    Yaound: CLE.